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O que é este blog?
Este blog trata basicamente de ideias, se possível inteligentes, para pessoas inteligentes. Ele também se ocupa de ideias aplicadas à política, em especial à política econômica. Ele constitui uma tentativa de manter um pensamento crítico e independente sobre livros, sobre questões culturais em geral, focando numa discussão bem informada sobre temas de relações internacionais e de política externa do Brasil. Para meus livros e ensaios ver o website: www.pralmeida.org. Para a maior parte de meus textos, ver minha página na plataforma Academia.edu, link: https://itamaraty.academia.edu/PauloRobertodeAlmeida.
“Destruição é a agenda do Tradicionalismo”, a ideologia por trás de Bolsonaro e Trump
Benjamin Teitelbaum passou 15 meses entrevistando os principais ideólogos conservadores atuais para escrever ‘Guerra pela eternidade’, que mostra a relação entre os gurus Olavo de Carvalho e Steve Bannon com esta ideologia antimodernista e de fundamentos religiosos
Tanto no Brasil quanto nos Estados Unidos, a escalada populista com flerte autoritário dos Governos de Jair Bolsonaro e Donald Trump suscita comparações com o fascismo. Mas para o pesquisador da extrema direita e etnógrafo norte-americano Benjamin Teitelbaum, autor do livro Guerra pela eternidade (Editora da Unicamp, War for eternity: inside Bannon’s far-right circle ―no título original, em inglês), a cruzada em curso contra valores modernos e democráticos nos dois países pode ser melhor compreendida a partir de uma outra doutrina menos conhecida, o Tradicionalismo (com ‘T’ maiúsculo, para diferenciá-lo do conservadorismo tradicional). Não que a alternativa seja melhor, o autor se apressa em esclarecer.
Baseado em mais de 15 meses de pesquisa e entrevistas com ideólogos conservadores como o ex-estrategista da Casa Branca Steve Bannon, o guru do Bolsonarismo, Olavo de Carvalho, e o conselheiro do presidente russo Vladimir Putin, Aleksandr Dugin, Teitelbaum descreve em seu livro como essa teoria obscura seguida por eles têm influenciando os governos dos Estados Unidos, do Brasil e da Rússia.
Nesta entrevista concedida por vídeochamada ao EL PAÍS, o professor de Assuntos Internacionais e Etnomusicologia da Universidade do Colorado (EUA) explica por que ele considera esta ideologia mais radical em suas concepções antimodernistas do que o próprio fascismo. “Há um elemento de destruição no Tradicionalismo que não necessariamente existe no fascismo”, alerta. Mesmo após a derrota de Trump e a prisão de Bannon (sob acusação de desvio de recursos para a construção do muro entre os EUA e o México), o autor avalia que as forças que eles representam continuarão vivas —e testando as instituições democráticas. Também examina como o Tradicionalismo legitima desde o racismo até a propagação de teorias conspiratórias em relação à pandemia do coronavírus.
Pergunta. Seu livro descreve como o Tradicionalismo, que até pouco tempo era considerada uma doutrina marginal dentro da própria extrema direita, alcançou influência global. Para quem ainda não leu o livro, como o senhor sintetizaria essa doutrina?
Resposta. O Tradicionalismo é originalmente uma escola espiritual filosófica que se tornou política em certo nicho. Os seguidores basicamente acreditam que a humanidade está ao fim de um longo ciclo de declínio e que vai ser concluído com destruição e renascimento. O que foi perdido neste ciclo de declínio foi o conhecimento verdadeiro da religião e também a ordem nas nossas sociedades —incluindo a diferença entre homens e mulheres, posições sociais e espirituais. No lugar disso, teríamos um mundo massificado e secularizado, neste processo de modernização. O Tradicionalismo acredita que é preciso haver um cataclismo para restaurar o que acreditam ser a verdade. Um dos elementos desse Tradicionalismo politizado de direita é acreditar que é preciso restaurar uma hierarquia onde homens arianos e líderes espirituais estão no topo, em oposição a materialistas, não-arianos e mulheres.
P. Quais as principais consequências do Tradicionalismo, e o que mais lhe surpreendeu durante a pesquisa para o livro?
R. Vou começar pelo fim. A grande consequência é que o Tradicionalismo acrescenta uma motivação espiritual para o que poderia ser simplesmente uma agenda política do populismo de direita, antiglobalista, antiprogressista. As pessoas podem aderir a isso por diferentes razões, como ressentimento econômico, racismo, antifeminismo… Mas o Tradicionalismo oferece uma motivação religiosa. E esse é um elemento importante. No caso de Olavo de Carvalho, por exemplo, ele não expressa apenas um ódio às elites, desprezo à ciência, à mídia, às universidades. Existe também a visão, um certo mandato espiritual, com o desejo de destruir grandes organizações, como a União Europeia, as Nações Unidas. A seus olhos, a destruição é uma coisa boa. Isso é assustador e preocupante. Os tradicionalistas acham que essas grandes organizações querem unificar e homogeneizar o mundo com o comunismo, ou com dominação chinesa. Então Olavo quer ver o establishment no Brasil ser quebrado em peças e fraturado: sejam os militares, a universidade, a mídia. Destruição é a agenda.
O que me surpreendeu é que não sei por que isso aconteceu agora. Olavo, Bannon e Dugin são bem diferentes. Não conseguem trabalhar juntos, não é um círculo funcional. Mas o estranho é que essas ideias extremas acabaram vindo à tona basicamente no mesmo momento, e não pelas mãos de Bolsonaro, Trump, e Putin, mas pelas mãos das figuras atrás deles, como uma espécie de Rasputin... os conselheiros místicos, influentes.
P. Desde a publicação do livro nos Estados Unidos, no início deste ano, o cenário político mudou. Bannon foi para a prisão e Trump perdeu as eleições. Como você interpreta essas mudanças?
R. Eu sinto quase como se isso pudesse liberar a verdadeira mensagem do livro, porque o real sujeito do livro não são as ações de Bannon, Olavo e Dugin. É a história mais ampla por trás disso, para entender por que em lugares diferentes, com trajetórias independentes, vimos essa ideologia aparecer. A história não é sobre a ação de indivíduos. É sobre o que está por trás disso tudo, porque nos encontramos em um momento em que as pessoas estão buscando ideologias que parecem destoar tanto do padrão. E essa ideologia não é o comunismo, não é liberalismo, não é fascismo. O Tradicionalismo é tão fora do mapa que nenhum cientista político, nenhuma think tank em Washington, ninguém no Congresso e nenhum candidato à presidência jamais ouviu falar dele. E esse movimento ainda assim se sustenta. Há tanto desencanto, tanta frustração com o status quo, que nós vemos atores buscando alternativas radicais.
P. Vários pesquisadores vêm definindo essa guinada populista de direita que estamos vivendo em países como Brasil e Estados Unidos como uma retomada do fascismo. Você discorda, então?
R. Eu discordo, e isso não é pra dizer que eu acho que é melhor. Essa definição é errada, e há um certo nível de falta de interesse e rigor que leva a essa caracterização como fascismo. Mas o único jeito de compreender essa ideologia é levá-la a sério e ouvir o que ela realmente diz, em vez de olhar apenas a fachada. O Tradicionalismo é anti-progressista num nível que raramente vemos. Muitas pessoas costumam chamar a si mesmas de conservadoras, mas quase todo mundo no campo conservador é basicamente progressista no mundo ocidental. Elas acreditam que, se você reduzir as regulações governamentais do capitalismo e aumentar a liberdade individual sobre a propriedade, você pode criar uma sociedade melhor. Eles não são nostálgicos. O Tradicionalismo vai na direção diametralmente oposta. Eles não acreditam que é possível mudar ou melhorar a história, acham que é preciso desfazer todo o mal feito para as nossas sociedades, e isso não significa voltar apenas décadas para trás, mas séculos.
P. Qual a principal diferença entre o fascismo e o Tradicionalismo?
R. O fascismo é futurista, modernista, a despeito de tudo. Hitler e Mussolini queriam transformar radicalmente suas sociedades, revolucioná-las. O Tradicionalismo vai na direção contrária: quer voltar para trás, num nível que ninguém leva muito a sério. E é nesse ponto que as ideologias se separam. Ambas se opõem ao feminismo, ao multiculturalismo, às políticas emancipatórias contemporâneas. Mas as diferenças são significativas. Há um elemento de destruição no Tradicionalismo que não necessariamente existe no fascismo.
P. Você descreve no livro que certos autores tradicionalistas, como o italiano Julius Evola, colaboraram com o fascismo e com o nazismo. Qual o marco dessa separação ideológica?
R. O fascismo historicamente era amistoso com a ideia de modernização e com o pensamento científico. Quando Evola rompeu com os nazistas, foi justamente quando ele achou que eles estavam sendo materialistas demais, científicos demais. O entendimento de raça dos nazistas era visto como muito modernista e biológico para ele. O grande contexto é que o Tradicionalismo é cético em relação à ciência. E não acho que seja coincidência que pessoas na administração Bolsonaro, como Ernesto Araújo, e o próprio Olavo e pessoas de seu círculo, que leem e celebram o trabalho de autores como Guénon [o francês René Guénon, patriarca do Tradicionalismo] e Julius Evola, sejam também os mais adeptos a teorias da conspiração em relação ao coronavírus. Isso não é muito facilmente explicável olhando para o fascismo. É muito mais fácil de entender pelas lentes do Tradicionalismo.
P. Um ingrediente comum das teorias da conspiração em relação ao coronavírus é culpar a China pela pandemia. Seu livro conta que Bannon recebeu um milhão de dólares para militar contra o Partido Comunista Chinês. Não parece ser coincidência que, antes de ser preso, Bannon também tenha sido um dos primeiros a articular essa narrativa conspiratória do “vírus chinês”. No Brasil, vemos o mesmo discurso contra a China. Por que esta questão é tão crucial?
R. No caso de Bolsonaro, isso parece se justificar por uma oposição ao comunismo. Mas, para Bannon e Ernesto Araújo, há uma questão mais específica: o fato de a China ser secular, antirreligião, e ao mesmo tempo massificante, globalizante, por estar eliminando fronteiras. Isso é um problema para os nacionalistas. Não por acaso, Araújo escreveu em seu blog meses atrás que o maior problema não era o fato de a China ser um país contra o capitalismo, mas por ser contra o espírito. Então, para os tradicionalistas, a China não é uma vilã apenas pela questão econômica, mas é um demônio metafísico.
P. Como você vê o papel do Olavo nesse contexto?
R. Comparando com os outros, Olavo é ao mesmo tempo o mais tradicionalista de todos e também o menos. É mais porque não há um partido tradicionalista oficial, um clube, então o único jeito de ser oficialmente afiliado é ser iniciado em um centro religioso afiliado às ideias de Guénon, por exemplo, que podem ser centros hare krishna ou tariqas muçulmanas sufistas. E Olavo foi iniciado numa dessas linhas muçulmanas. Essas são credenciais tradicionalistas muito antigas, que são passadas por uma longa rede de pessoas. Mas olhando para Olavo hoje, ele não segue o Tradicionalismo de forma ortodoxa. É como se o Tradicionalismo fosse um tempero em seu pensamento. E isso é comum entre os tradicionalistas, pessoas que são inspiradas por essas ideias, mas as misturam com outras. E esse parece ser o caso de Olavo.
P. Depois da publicação, o Olavo atacou você, classificando-o como mentiroso.
R. Olavo disse que eu era um mentiroso, mas ele nunca respondeu quando eu enviei para ele um capítulo do livro antes da publicação. Os documentos que reuni mostram basicamente que Olavo se converteu ao islã, era chamado de Sidi Muhammad. E eu acredito que ele ainda seja, de acordo com algumas tradições religiosas.
P. Você disse que Olavo foi o “pior” dos seus entrevistados, o que reagiu de forma mais furiosa à publicação do livro. Por que você acha que Olavo teve a pior reação?
R. Eu acho que há duas coisas: primeiro, que ele ficou um pouco envergonhado de eu expor sua ligação com a tariqa do Schuon [Frithjof Schuon, herdeiro intelectual de Guénon], porque isso contradiz a imagem que ele projeta hoje, de um cristão zeloso. E ele fala e escreve melhor baseado em uma posição de vitimização. É mais fácil me chamar de mentiroso, em vez de ter revisado os materiais que eu havia mandado para ele com antecedência. E há uma questão de personalidade. Eu não quero fazer uma psicanálise, mas nenhum dos outros personagens pareceu tão desapontado.
P. Quando eu entrevistei Olavo, ele me disse que não tinha projeto para a sociedade, que ele só sabia o que ele era contra, não o que era a favor. Isso parece reforçar essa lógica tradicionalista de destruição.
R. Interessante você mencionar isso, porque uma das coisas mais perspicazes que o Olavo me disse durante sua entrevista foi uma frase sobre o tradicionalista René Guénon. Ele disse que Guénon estava certo em tudo o que ele rejeitava e errado sobre tudo o que ele apoiava. E, de certa forma, senti quase como se o Olavo estivesse falando de si mesmo quando estava falando isso. Ele pode criticar , mas não há meta alguma. Não há muito o que construir, é tudo sobre destruição. E se você pensar historicamente, a crítica é muito fácil. A construção de algo é que é difícil. Olhando para o pensamento conservador, a crítica que fazem ao marxismo é justamente o fato de Marx criticar tanto o capitalismo e não conseguir imaginar muito o que colocar no seu lugar.
P. Como o senhor imagina o futuro do Tradicionalismo?
R. Eu não sei quantas pessoas vão se identificar como tradicionalistas. O que eu sei é que muitos republicanos bem posicionados, trabalhando para organizações nacionais, estão mais sintonizados com o Tradicionalismo do que eu jamais imaginaria. O Tradicionalismo está circulando, e isso vem de leituras da alt right. Não é necessário que haja uma evangelização, não precisa. Steve Bannon nunca pensou em fazer isso. Essas são ideias circulando entre a direita intelectual dissidente, pessoas que querem tomar o lugar dos conservadores nos Estados Unidos. Então essas ideias são atraentes para pessoas que se consideram intelectuais e ideólogos. Mas eu acredito que isso é o sintoma de algo maior. Há uma frustração e uma insatisfação política que vai fazer com que essas pessoas continuem procurando ideólogos e pensadores que querem alternativas e mudanças radicais, que querem repensar nossa democracia. E isso pode acontecer via Tradicionalismo ou outra ideologia, mas eu acredito que continuaremos vendo essa tendência.
P. Como a derrota de Trump afeta essa tendência? O movimento se enfraquece?
R. Trump perdeu, mas ele continua sendo incrivelmente popular entre a direita. Não há nada parecido, nenhum republicano jamais recebeu tantos votos nos Estados Unidos. E além disso os republicanos ainda foram muito bem nas votações do Senado, no Congresso. Eles têm uma penetração crescente entre grupos minoritários e pessoas sem diploma. Tenho entrevistado muitos jovens republicanos e eles seguem a cartilha de Trump. Eles acreditam que Trump mostrou que, se conseguirem combinar políticas econômicas liberais com políticas sociais conservadoras, eles podem vencer os democratas. Isso deve manter a ideologia trumpista viva.
P. E como o senhor vê as perspectivas para Bolsonaro, um dos maiores aliados de Trump, após a vitória de Biden?
R. Bolsonaro tem um problema real, não vejo o mesmo potencial para ele. Me parece que ele se antecipou ao se aliar aos Estados Unidos e virar as costas para a China. Agora que os Estados Unidos subitamente se transformaram e não o querem mais como parceiro, quem serão os amigos de Bolsonaro? Acho que o que salva Bolsonaro é que nem todos os seus subordinados no setor público levam tão a sério suas ameaças à China e seguem fazendo seu trabalho para manter as relações. Se tudo o que ele diz fosse levado à risca, o Brasil estaria realmente em apuros.
Antes também tínhamos Bannon, que fazia uma boa interlocução com o governo Bolsonaro. Havia um círculo, formado por Araújo, Bannon, Olavo, o embaixador brasileiro, e Gerald Brant. Eles tinham jantares juntos, confraternizaram frequentemente, em todas as visitas, mesmo Bannon não tendo cargo oficial no Governo Trump. Agora que tudo isso implodiu, é difícil saber quem manterá o entusiasmo por Bolsonaro em Washington. Trump não se importa muito.
P. O senhor tem formação em música. Como começou a pesquisar a extrema direita?
R. Eu era um etnomusicólogo e estava estudando a relação entre música e cultura. Estava na Suécia e ia escrever uma dissertação sobre um ritmo assimétrico na música folk sueca. Ninguém no mundo ia ler isso (risos), mas enquanto eu estava lá a extrema direita assumiu o poder no país, e eles disseram que iriam investir na música folk sueca. Achei isso interessante, e decidi entrevistá-los sobre isso. Percebi que isso significava uma grande mudança para eles. Historicamente, a extrema direita era associada à música metal skinhead white power, mas, assim que tomaram o poder, queriam transformar sua imagem. Então havia uma história ali, a história de como estavam tentando reconstruir sua imagem não pela política, mas pela música.
Esse foi o começo, há mais de uma década. O interessante é que quando eu dizia para as pessoas que era um pesquisador de música, as pessoas falavam comigo. Se eu dissesse que era jornalista, historiador, ou cientista político, certamente ficariam mais desconfiados. Quando você chega perguntando sobre sua agenda política, eles se assustam. Mas se você chega perguntando que tipo de música eles mais gostam, eles se abrem.
P. Uma pergunta que ouço com frequência é por que devemos estudar pessoas como Olavo de Carvalho, ou Bannon. Há quem diga que são malucos, radicais, e que ao escrever sobre eles estaríamos dando plataforma. Por que, na sua opinião, é importante estudá-los?
R. Eu sou um acadêmico. Sou um etnógrafo, um antropólogo. E antropólogos estudam pessoas. Acreditam que todos merecem ser estudados. Meu editor tem uma explicação diferente. Ele diz que essas pessoas geram consequências, e que por isso precisamos compreendê-las. Acho que há um outro aspecto importante: muita análise que se faz da extrema direita é realmente ruim, simplista. Existe tanto medo em contribuir para a criação de mitos que a resposta acaba sendo muito simplista, com rótulos como ‘eles são racistas’, ‘eles são nazistas’. Mas devemos prestar atenção para o fato de que esse discurso também é anti-intelectual. As pessoas ficam com medo dos detalhes, das nuances. E a consequência acaba sendo uma falta de entendimento, se perde o grande contexto. Quando você estuda um fenômeno social, as questões precisam ser bem mais amplas do que se isso é bom ou ruim.
Fim dos “supersalários” deve unir Congresso, terceiro setor e sociedade civil
Em tempos de pandemia, de retração na economia e da necessidade de controle dos gastos governamentais, nunca foi tão urgente cortar privilégios
InfoMoney | 14/12/2020, 10h45
O teto que estabelece o máximo que um servidor público pode ganhar no Brasil voltou a ser assunto nas últimas semanas por conta da adesão que esta pauta está ganhando no Congresso Nacional. Hoje, nenhum funcionário público pode ganhar mais do que o teto previsto na Constituição, no valor de aproximadamente R$ 39,2 mil. No entanto, o valor é ultrapassado por benefícios, auxílios e indenizações fora da conta e continuam onerando os cofres públicos com supersalários.
Em tempos de pandemia, de retração na economia e da necessidade de controle dos gastos governamentais, nunca foi tão urgente cortar privilégios enquanto o país sofre com mais de 13 milhões de brasileiros sem emprego.
Esta realidade motivou o CLP e o movimento #UnidosPeloBrasil a lançarem um abaixo-assinado pelo fim dos supersalários no funcionalismo público. A petição conta com mais de 250 mil assinaturas e foi entregue a pelo menos dez parlamentares na última quarta-feira (2), entre eles, o presidente da Frente Parlamentar Mista em Defesa do Serviço Público, o deputado federal Israel Batista (PV-DF); e o presidente da Frente Parlamentar Mista da Reforma Administrativa, o deputado federal Tiago Mitraud (Novo-MG).
O objetivo da entrega das assinaturas aos parlamentares é cobrar que a Câmara dos Deputados vote e aprove o Projeto de Lei 6.726/2016, de autoria do deputado federal Rubens Bueno (Cidadania-PR), que visa o fim das remunerações turbinadas que furam o teto constitucional. Este projeto foi proposto em 2016 e há anos está parado na casa.
É importante dizer que essa elite do funcionalismo público não representa a maioria dos funcionários públicos, que recebem salários modestos. Segundo a PNAD Contínua, cerca de 0,23% dos servidores estatutários têm rendimentos efetivos superiores ao teto do funcionalismo público geral (R$ 39.293 mensais), com um adicional médio de rendimento mensal de cerca de R$ 8.500.
De acordo com um levantamento da Inteligência Técnica do CLP, a massa de rendimentos acima do teto federal chega a R$ 2,6 bilhões por ano. Tal número seria capaz de construir 15 fábricas da nova vacina CoronaVac, estimada em R$ 160 milhões pelo Instituto Butantan. Cada unidade vai ter a capacidade de produção de 100 milhões de doses por ano.
Outro estudo realizado pelo partido Novo concluiu que os supersalários estão concentrados na magistratura. Nesta carreira, 71% da folha de vencimento estão acima do teto, contra 17% na advocacia pública, 7% no ciclo de gestão e 6% na Receita Federal e na diplomacia. Ainda segundo levantamento, a média salarial de juízes e desembargadores estaduais chega a R$ 48.666.
Ainda assim, o Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu manter no início de dezembro, por 9 votos a 1, uma decisão que igualou o teto de remuneração de juízes federais e estaduais que já vigorava no país desde 2007 baseada em uma liminar, com validade provisória.
A aprovação do PL 6726 trará impactos positivos para a população mais vulnerável do país, além de ser mais um marco da postura republicana do Congresso Nacional. Mais do que isso, ele pode representar o primeiro passo para a reforma Administrativa, além de incentivar estados e municípios a seguirem o mesmo caminho. O projeto já conta com a adesão de diversas entidades e organizações, como o Ranking dos Políticos e os movimentos Livres e Acredito.
Pautar agendas responsáveis deve ser prioridade da equipe econômica do governo e do Congresso nesses últimos dias de 2020. Ao mesmo tempo, o CLP vai continuar buscando engajamento da sociedade civil para avançar com projetos que retomem o crescimento econômico do país com objetivo de gerar emprego, renda e impacto social para os brasileiros.
Foi com uma nova disposição para o trabalho, energia renovada, que EA sentou-se à frente do computador para dar enfim início a uma nova etapa, em sua vida. A conversa da manhã, depois de uma noite de angústia kirkegaardiana e recalques freudianos, tinha sido uma espécie de fim da história de falsidades, sob o manto do pensamento único: estava pronto para se iniciar na metapolítica, mas não tinha ainda um programa de trabalho pronto e acabado; precisava pensar cuidadosamente sobre como processar todo aquele fluxos de novas e velhas ideias e colocá-las em ordem para servir adequadamente aos novos paladinos da liberdade e da justiça, sob a proteção de Deus, da Virgem Maria e de todos os santos.
Para isso, decidiu afastar temporariamente qualquer posicionamento imediato sobre os altos e baixos da política nacional corrente, sob risco de desagradar o velho profeta da doutrina libertadora ou o novo representante da nova política: afinal, não se sabia bem o que pensavam um e outro sobre o caráter errático das promessas de campanha. Ficava bem posar de liberal e proclamar uma luta sem tréguas contra a corrupção, mas nessa tribo de liberais tinha até marxistas reciclados, e nessa coisa de corrupção seria melhor não remexer muito; vai que...
Por isso, remeteu a um arquivo de pendentes suas poucas ideias sobre o momento presente, e decidiu cavoucar no passado da civilização judaico-cristã, indo até um pouco mais longe, penetrando a fundo nas nossas origens gregas e romanas, chegando inclusive até a batalha de Salamina.
E foi assim que, juntando um pouco de grego aqui, um latim acolá, alguma filosofia dionisíaca em alemão mais adiante, que conseguiu salpicar de erudição um texto rebarbativo, que também tinha a Virgem Maria e templários salvadores da civilização ocidental, infelizmente perdida no vazio cultural da Europa, mas que ainda tinha uma réstia de esperança num gajo inculto do marketing televisivo, que prometia finalmente combater os novos inimigos da Cristandade, o novo perigo amarelo.
EA estava pronto para fazer o seu magnum opus, que desabaria como granito na cabeça de colegas e defensores do pensamento único, que sequer tinham prestado atenção nos seus escritos anteriores, dois romances distópicos que ninguém parecia ter lido, sequer sabido da existência. Foi com um enorme sentimento de raiva e desejo de vingança — como talvez aquele medíocre pintor austríaco se sentiu ao serem desprezadas as suas obras na Kunst Akademie — que EA decidiu-se a começar seu trabalho filosófico-político mais importante, a sua luta contra os que de certa forma tinham apunhalado nas costas o Brasil conservador, obrigando o seu povo a ser o que não era: um povo profundamente religioso, dominado durante mais de uma década por uma tribo de ateus.
EA estava no limiar de dar o passo mais ousado de sua vida, arriscando inclusive a carreira e uma situação até confortável, por ter se aproximado dos donos do poder, que no fundo da alma ele desprezava.
Foi juntando todas aquelas citações, todos aqueles nomes pouco conhecidos por aqui, que EA pôs-se a escrever...
Após a conversa, EA estava de malas prontas para embarcar numa nova e grande aventura. Enfim liberto dos grilhões do maldito programa de Gotha, que prometia dar a cada um de acordo com as suas necessidades, visto que ele sempre achou aquilo materialmente impossível, inclusive porque havia necessidades específicas, como as dele, por exemplo, que não seria possível atender pelo igualitarismo pretendido.
Mas ele estava sobretudo aliviado pois passaria a não mais prestar fidelidade a quem prometia hipocritamente pedir de cada um de acordo com sua capacidade, ao mesmo tempo em que viviam num castelo de privilégios, condenando todos os demais a uma espécie de colônia penal do pensamento único, feita de pão ordinário para o povo e brioches para a Nomenklatura. Chega daquela conversa mole libertária, quando a liberdade deles era na verdade opressão. Nunca tinha se sentido tão livre, leve e solto, para embarcar, finalmente, num outro tipo de política: a metapolítica, uma etapa superior da política, quando todo o poder recairia, por fim, no povo eleito por Deus para salvar a humanidade da mentira e da escravidão dos ímpios. E ainda tinha também essa vantagem de poder denunciar um punhado de iluminados não eleitos e sua pretensão de determinar o que o povo de Deus poderia ou não fazer de suas próprias vidas. Afinal de contas, a liberdade é até mais preciosa do que a vida.
E foi com o pensamento enfim liberto da opressão espiritual na qual tinha vivido durante todo o seu itinerário pós-universitário, quando teve de viver praticamente sozinho no armário de todas as suas crenças mais recônditas, que EA voltou aliviado de sua conversa com um interlocutor privilegiado, um novo parceiro na jornada que estava prestes a iniciar. Só precisava recolher algumas ideias de suas muitas leituras clandestinas feitas laboriosamente ao longo desses anos de angústias espirituais — quando pensava uma coisa, mas precisava aparentar outras - e consolidar essas ideias num ensaio sobre a salvação da civilização judaico-cristã, que seria a porta aberta para a sua consagração como um dos mais fiéis discípulos do novo credo (na verdade velho, mas restaurado e renascido), um texto que inauguraria o seu desabrochar na Metapolítica; só faltava um subtítulo para o novo empreendimento, mas ele surgiria naturalmente do conjunto de novas ideias velhas às quais estava retornando depois de uma longa caminhada solitária na terra dos incrédulos.
E foi com esse sentimento que EA retornou aos seus livros, para juntar todos aqueles cacos de pensamento, decidido, finalmente e corajosamente, a trilhar a nova estrada. Foi uma libertação, e uma revelação: aquele era o caminho da verdade e da luz, e como já se sabe, desde Mateus, o conhecimento da verdade liberta o homem...
Um dia, pela manhã, EA acordou sobressaltado, mas não saiu logo da cama. Estava tomado por certa sensação febril, não tinha vontade de levantar-se para iniciar a mesma rotina diária de todos aqueles anos. Ainda deitado, mas olhando para o teto, não teve vontade, nem disposição para calçar os chinelos, ao pé da cama, ir ao banheiro, completar a rotina matutina, tomar o café da manhã e sair para o trabalho. Não que o corpo pesasse, ou que apresentasse qualquer mudança estranha, fisiológica, isso não. Tudo parecia em ordem com os seus braços e pernas, com as costas e a cabeça, nada diferente, tudo parecia conforme ao que sempre fora, desde que saiu da juventude para a maturidade, e continuava antenado nas mesmas coisas de sempre: o trabalho, regular, aborrecido, mas de vez em quando uma nova tarefa, os livros no mesmo lugar, as roupas sóbrias de sempre, nada parecia predispô-lo a uma grande mudança.
E, no entanto, sentia que era chegada a hora de adotar uma nova atitude, operar uma verdadeira metamorfose em sua vida, começar a se comportar como realmente queria, não como os outros, os colegas, os amigos, os professores e os chefes queriam que ele fosse: um funcionário cumpridor dos seus deveres, sempre engajado no mesmo processo, nas mesmas rotinas, fazendo sempre o que lhe era demandado, e o que diziam que era o certo, mesmo não entendendo bem porque teria de ser daquela maneira, e não de outra, de acordo ao seu verdadeiro ser, a coisa em si, o mundo como ele achava que deveria ser, de acordo com a sua vontade, não o mundo como representação, de acordo com a vontade dos outros.
Ainda deitado na cama, e fitando o teto, resolveu tomar de coragem para começar a sua metamorfose: não mais seria como eles queriam que ele fosse, e sim seria como estava decidido a ser, o seu verdadeiro eu interior, aquele que tinha brotado da figura paterna, austera, responsável, temente a Deus, mas que tinha ficado submerso naquele universo de seres enquadrados na verdade do momento, que tinha de ser apenas figuração, porque na faculdade eram assim, e no trabalho também, todos convergentes para um universo espiritual com o qual não estava de acordo, mas com o qual tinha de concordar, tinha de aceitar, para não ser o discordante, o diferente, o verdadeiro.
Foi ainda deitado que começou a remontar o pensamento que lhe havia aflorado à mente quando se deitou para dormir, e que aparentemente ficou remoendo entre um sonho e outro, até que acordou com aquela sensação febril. Mas era uma febre diferente: em lugar de abatê-lo, de enfraquecê-lo, ela encheu-o de força, de vontade, e foi assim que decidiu assumir plenamente a mudança, em direção do seu verdadeiro eu, sua metamorfose.
Levantou-se da cama com energia, esqueceu até de calçar os chinelos, e foi até o telefone e chamou aquele que lhe tinha sugerido, na noite anterior, que deixasse toda aquela figuração de lado, aquelas duas décadas e meia de representação, de falsa conformidade, de hipocrisia, ao ter de servir ideias, homens e políticas com as quais não concordava, e que assumisse de uma vez a sua personalidade real, aquela legada por seu pai, e que correspondia aos seus sentimentos profundos. Disse, rapidamente, que tinha pensado muito naquilo, e que concordava, que estava decidido a anunciar uma nova etapa de vida, juntar-se ao movimento, para salvar o país da opressão e da mentira. Estava pronto, afinal. Disse que se arrumaria rapidamente e que poderiam combinar um encontro, naquela mesma manhã, para conversar sobre a melhor maneira de efetivar sua metamorfose.
Resumo da História da China para o entendimento de comportamentos na longa duração. Escrevi este texto para dar início a diversos debates em uma palestra sobre a China.
Blog Relatos de Viajantes
Para analisar a China contemporânea é importante observar o que nós, historiadores, denominamos de mentalidades na longa duração. A modernidade na China não deve ser vista como uma ruptura porque ela traz consigo uma tradição de muitos milênios que é preciso ter em conta para o entendimento da sociedade chinesa e de como os chineses se veem.
A primeira consideração importante é a de que a China é a única civilização cuja escrita atual tem suas raízes em caracteres que datam de pelo menos 3.500 anos. O início para o qual existe testemunho material da escrita chinesa é aproximadamente o do ano 1.500 a.C. Os caracteres que receberam esta datação foram escritos em ossos de animais, em carapaças de tartarugas e no interior de objetos de bronze usados em diversos rituais e descobertos em escavações arqueológicas relativamente recentes, várias delas datando do século XIX.
Diferente dos hieróglifos do Egito, os caracteres chineses atravessaram milênios, transformaram-se, mas vários deles mantiveram sua estrutura ou alguma referência com os de um distante passado. Os testemunhos das origens milenares da escrita estão atualmente presentes em diversos museus e são motivo de orgulho também para as novas gerações. As crianças chinesas sabem que estão aprendendo uma caligrafia que tem origem nos seus mais remotos ancestrais e, apesar de toda a modernidade presente nas escolas, escrever é uma arte que continua tendo considerável prestígio no país.
Outro motivo de orgulho para os chineses diz respeito ao fato de que, embora o longevo império tenha enfrentado muitas invasões e, em duas oportunidades, tenha sido governado por etnias estrangeiras – os mongóis da dinastia Yuan e os manchus, da dinastia Qing – sempre prevaleceu a cultura e a escrita chinesas bem como a estrutura da administração largamente influenciada pelo Confucionismo.
Dada a grande extensão territorial do império, a formação da burocracia, para o funcionamento do núcleo central da Corte e até as mais remotas províncias era uma preocupação constante. Desde muito cedo foram organizados concursos que selecionavam os candidatos mais capacitados para exercer diversas atividades como funcionários imperiais. Os primeiros concursos dos quais se têm registro datam do ano de 650. No entanto, sua implementação de maneira regular passou a ser realizada pela dinastia Song (960-1279), mais precisamente a partir do século X, mantendo-se de forma ininterrupta até sua extinção em 1905, no período final do império Qing, tendo durado portanto por quase dez séculos.
Com pequenas variações pontuais, o conteúdo dos concursos imperiais exigia o conhecimento aprofundado e a capacidade de interpretação de dois conjuntos de obras essenciais da cultura chinesa: os Quatro Livros e os Cinco Clássicos. Resumidamente pode-se dizer que os textos considerados como os mais importantes destas obras eram os Diálogos de Confúcio com seus estudantes (os Analectos), os escritos de Mêncio, um discípulo de Confúcio mas que desenvolvera algumas ideias próprias, os Anais com descrições históricas e o I Ching, ou Livro da Sabedoria.
Considerando-se que os concursos só foram abolidos no início do século XX, pode-se constatar a importância do Confucionismo e da cultura clássica e sua permanência no universo mental da sociedade chinesa na longa duração. E como a aprovação nos diversos níveis dos concursos imperiais eram um significativo instrumento de ascensão social, o estudo, os ensinamentos de Confúcio e os professores eram também muito valorizados, valorização esta que se tornou uma das características mais fortes da cultura da China.
Outro aspecto importante da civilização chinesa é a defesa da sua integridade territorial. Em épocas nas quais a Europa estava fragmentada em feudos a China já era uma monarquia absolutista preocupada com a defesa de suas fronteiras e com a manutenção de uma corte centralizada e imperial. Em alguns períodos houve reinos que combateram entre si, dentro do território de cultura chinesa, no entanto sempre emergiu dos períodos de lutas uma dinastia aglutinadora e forte.
A construção da Grande Muralha, que foi realizada no decorrer de séculos, é emblemática da preocupação com a defesa territorial e, embora ela não tenha sido efetiva para deter todas as invasões, era afirmativa de um poder imperial que reinava sobre uma civilização unificada por diversas características culturais e entre elas por uma mesma escrita, ainda que existissem e ainda existam inúmeros dialetos.
Nem sempre a dinastia governante era de origem chinesa, portanto “han”. A mais conhecida dinastia estrangeira que conquistou a China, ainda que adotando largamente a cultura chinesa, foi a dos mongóis. Kublai Khan, neto de Gengis Khan, chefe mongol que unificara diversas tribos do norte, fundou a dinastia Yuan, após conquistar a China. É a corte de Kublai Khan que está relatada no famoso livro de Marco Polo.
Crises no abastecimento agrícola e um grande descontentamento entre o mandarinato chinês, que era preterido em altos cargos pelos mongóis e até mesmo por outras nacionalidades, foram responsáveis, entre outros fatores, pela queda dos Yuan após quase um século no poder. A ascensão de uma dinastia novamente de etnia chinesa que se autodenominou Ming, ocorreu em 1368 e foi um dos mais brilhantes períodos da arte da porcelana e da pintura na China.
Mas, em 1644, as constantes invasões de novas tribos do norte, que sempre cobiçavam o rico Império do Meio, levaram à desestabilização dos Ming, enfraquecidos, por sua vez, por novas crises econômicas e altos impostos. Os invasores manchus destronaram o imperador Ming em 1644 e assumiram o que viria a ser a derradeira dinastia, a dos Qing, antes da República. Foi um período de muitas realizações principalmente no reino de dois brilhantes imperadores, Kangxi e Qianlong.
Em seus relacionamentos com o exterior, a China teve fases muito distintas e isto influenciou bastante o seu desenvolvimento. Na Antiguidade e no início do que no Ocidente nós chamamos de Idade Média, o comércio de produtos chineses foi de longo alcance através de uma intensa movimentação de mercadores que, posteriormente, ficou conhecida como Rota da Seda. Através de estradas, caminhos e até mesmo oásis nos desertos, principalmente o de Taklamakan e o de Gobi, circularam caravanas nas quais estavam presentes também alguns peregrinos e aventureiros, mas formadas sobretudo por comerciantes que levavam até os portos do Mediterrâneo oriental e ocidental as manufaturas chinesas muito prezadas nas cortes europeias, entre elas as sedas e as lacas. Às mercadorias chinesas, somava-se também ao longo da Rota todo um comércio oriundo de outras partes da Ásia, como tapetes, perfumes e temperos.
Na movimentação da Rota da Seda, chegaram à China os primeiros muçulmanos. Recentemente têm ocupado o noticiário internacional os problemas que ocorrem entre o governo chinês e os muçulmanos uigures do Xinjiang. Não se trata, porém, do único grupo de praticantes do Islã na China, já que os denominados Hui têm como ancestrais os mercadores persas e árabes que, desde provavelmente o século VIII não apenas circularam em território chinês nos caminhos da Rota da Seda, mas muitos ali se estabeleceram, casaram-se com mulheres chinesas e, com o passar dos séculos, adquiriram feições, hábitos e o idioma chinês.
Os Hui são considerados um grupo à parte dos chamados chineses Han pelo fato de serem muçulmanos, no entanto em suas feições e na maior parte de seus hábitos (excetuando-se o consumo de porco) pouco diferem dos chineses e são, algumas vezes, denominados “chineses Hui”. Este grupo raramente se envolve nas questões que tornam tão complicada a convivência dos muçulmanos uigures com os chineses.
Os muçulmanos uigures, porém, são de etnia túrquica ou turcomena. Eles não tem feições chinesas, seu idioma é de origem turcomena. Os uigures não têm nenhuma relação étnico-linguística com os muçulmanos Hui e vivem na chamada Região Autônoma do Xinjiang Uigur, que já foi chamado não oficialmente de Turquestão Chinês. Trata-se de uma região que beira muitos conflitos, pois faz fronteira com a Mongólia, o Cazaquistão, o Quirguistão, o Tajiquistão, o Afeganistão e a Cachemira, disputada entre a Índia e o Paquistão. E, em uma pequena parte, a região faz fronteira também com a Rússia.
A Região Autônoma do Xinjiang Uigur abriga todo um leque de etnias: uigures, chineses, casaques, tajiques, russos e outros. No passado, esteve ligada a uma Confederação de Povos Nômades, porém durante muito tempo foi parte do império chinês até que, no século XIX, no rastro das reivindicações nacionalistas que eclodiam pelo mundo, viu surgir, no seu interior, as primeiras manifestações separatistas. Mais adiante, já no século XX, ocorreram atentados terroristas graves, matando chineses. Por outro lado, em 1980, os chineses apoiaram a luta dos talibãs contra os russos, permitindo, inclusive, que muçulmanos uigures fossem participar da guerra. Mais adiante, os talibãs retribuíram o apoio mas, na Região Autônoma do Xinjiang, apoiando os uigures em suas ações terroristas contra o governo chinês.
Trata-se, portanto, de uma complicada questão de ordem política, mais do que religiosa, mas que ocasiona graves problemas regionais. Governos do Oriente Médio, mesmo muçulmanos, também não interferem na repressão chinesa aos uigures, pois não consideram que se trate de perseguição de caráter religioso, mas de uma questão política interna da China. O desinteresse dos sauditas pelos muçulmanos uigures levou a críticas bastante contundentes, no entanto não alterou em nada as relações da Arábia Saudita com a China.
Durante grande parte do período imperial, os chineses sempre acolheram a diversidade religiosa, ainda que às vezes privilegiando mais os budistas ou mais os taoístas, mas tendo sempre Confúcio como o seu fundamento, já que era o confucionismo a literatura clássica vinculada ao funcionamento da burocracia. No entanto, desde os tempos da Rota da Seda, foi frequente a presença não apenas de muçulmanos mas também de cristãos, principalmente nestorianos e de judeus, na China, com maior frequência nos grandes centros comerciais, como Suzhou, Hangzhou, Kaifeng, Xi’an, entre outros.
Continuando a falar sobre as relações da China com o exterior, a presença dos jesuítas no Império é um capítulo muito interessante de encontros culturais importantes entre os europeus e o Oriente. Os missionários jesuítas, muito estimulados pela história de Francisco Xavier no Japão, dedicaram-se também às atividades de catequese no Império do Meio, porém ali tiveram uma experiência bastante distinta da japonesa, desenvolvendo um rico relacionamento com os letrados da Corte e algumas vezes diretamente com os próprios imperadores, entre os séculos XVI e XVIII.
A entrada de ocidentais no interior da China era difícil, pois dependia de autorização do imperador. Entre os primeiros missionários jesuítas, destacaram-se os italianos Michele Ruggieri e Matteo Ricci. Ambos teceram excelentes relações com altos funcionários da Corte e, com habilidade, conseguiram permissão para deixar Macau, que era o enclave comercial português e porta de entrada no império para penetrar no interior do continente, onde estabeleceram missões em mais de uma cidade.
No entanto, o mais importante foram os relacionamentos que Riccci desenvolveu com o mandarinato, aprendendo o idioma, ensinando muito do que tinha aprendido no Colégio Romano (atual universidade Gregoriana) para os chineses e, afinal, sendo reconhecido como um legítimo mandarim. Mais adiante, já no período da dinastia Qing, outros jesuítas cientistas chegaram a ocupar altos postos na Corte, dois deles, Ferdinand Verbiest e Adam Schall von Bell, como diretores do Observatório Astronômico Imperial. Os jesuítas encantaram-se com o confucionismo, com a estrutura dos exames imperiais e escreveram relatos nos quais reconheciam a China como uma civilização com a qual era gratificante dialogar.
A China, que havia estado na vanguarda de grandes avanços, como a invenção da bússola, do papel, dos juncos que navegavam com muita agilidade, no século XVIII começava a se fechar aos contatos com o exterior, restando apenas os jesuítas para fazer uma ponte entre a ciência ocidental, que já tinha progredido muito, e os letrados chineses, em geral muito conservadores e literários. Crescia entre o mandarinato a ideia de que o Império do Meio poderia ser autossuficiente e pouco dependeria do exterior. Os progressos na catequese não foram grandes e os padres jesuítas foram bastante criticados por outras ordens porque acabaram atuando mais como cientistas do que como missionários.
Os jesuítas europeus permaneceram na China até a extinção da Ordem, em 1773, muitas vezes contando com o apadrinhamento de grandes imperadores, como Kangxi e Qianlong, e seus relatos e as cartas que enviavam para a Europa foram responsáveis pela construção de uma imagem positiva do Império chinês no Ocidente e pela difusão da chamada moda das “chinoiseries”. O século XVIII foi importante também na introdução do chá chinês na Inglaterra (antes do chá que depois passou a ser cultivado na Índia) e na larga demanda pela porcelana e pelas lacas chinesas, principais produtos importados pelos europeus.
No entanto, a sensação de grande poder e de invulnerabilidade que, durante muitos séculos, foi uma característica do Império do Meio, independente de qual a dinastia que estivesse reinando, e mesmo de qual a etnia, foi se esvaindo no decorrer de todo o século XIX, ainda que a corte Qing não abrisse mão de grande luxo e de uma mão de ferro para governar as províncias. As mudanças que ocorriam no rastro da Revolução Industrial envolviam principalmente os processos de modernização da Europa, dos EUA e do Japão.
Os europeus entraram em uma fase de modernização acelerada, pois justamente a Revolução Industrial havia permitido importantes avanços na construção de navios, tanto da marinha de guerra quanto da mercante. A Companhia das Índias Orientais, uma companhia charter britânica, fazia a rota comercial da Índia e da China. Por outro lado, os chineses, que no século XVIII tinham se interessado pelo conhecimento científico dos jesuítas, foram deixando de lado os avanços navais por considerar que o império dificilmente seria atacado ou entraria em alguma guerra importante. Abrir mão da modernização da frota chinesa foi um descuido que posteriormente custou muito caro para a dinastia Qing, então reinante.
No século XIX, havia um descompasso entre a modernização acelerada da Europa, que alavancava o imperialismo, e a China, cujo império enfrentava inúmeras dificuldades além da pressão das potencias ocidentais para ceder na abertura de seus portos aos navios estrangeiros. Os problemas internos enfrentados pela dinastia manchu eram inúmeros, entre eles uma prolongada e grave crise alimentar, resultado de problemas climáticos com grandes enchentes e diques mal conservados, impostos cada vez mais altos cobrados dos agricultores e, entre os altos funcionários da Corte, um embate persistente entre os defensores da modernização do império e os conservadores, avessos a ideias vindas de fora que contrariassem as tradições chinesas.
A partir de 1850 houve um recrudescimento da crise econômica e os grandes imperadores como Kangxi e Qianlong, que apesar de serem de dinastia manchu, eram admirados pela população em geral, estavam no passado. Com imperadores menos carismáticos e também menos capacitados na gestão do Estado, os chineses elegeram a dinastia como culpada por todos os problemas e surgiram reações populares de caráter nacionalista pedindo a derrubada dos Qing.
Uma das guerras internas mais trágicas de toda a história da China imperial e que causou milhões de mortos (há uma estimativa de 20 milhões de vítimas diretas ou indiretas da guerra) foi a chamada Revolta Taiping, que teve início no ano de 1851 e só terminou em 1864. O líder que deu início ao levante, Hong Xiu Quan, dizia-se cristão, mas fazia, em seus discursos, um amálgama do esoterismo taoísta e algumas referências ao cristianismo, que provavelmente havia aprendido de missionários estrangeiros, e se anunciava como filho de Deus e irmão mais jovem de Jesus. Apesar do desvairio de suas afirmações, conseguiu muitos adeptos porque pregava um mundo mais justo e melhores condições de vida para os camponeses que viviam em situação muito precária.
A difícil derrota dos Taiping, após 14 anos de uma luta devastadora só ocorreu com a ajuda das potências ocidentais que, apesar de seu caráter imperialista, desejavam obter concessões da China, mas não a deposição da dinastia reinante. Um oficial americano, Frederick Ward , e um britânico, Charles Gordon, comandaram os soldados chineses na luta contra os revoltosos Taiping. O mandarinato, independente de ser do grupo conservador ou modernizante, também se posicionou contra a Revolta, que conseguiu apoio da parte mais pobre da população.
Neste clima de descontentamento e de violência ocorreram também duas guerras oriundas de agressões externas para extrair vantagens sobretudo comerciais do Império, as chamadas Guerras do Ópio, que podem também ser consideradas como dois episódios de uma mesma guerra. O vício dos chineses em ópio era antigo. Inicialmente usado pela medicina tradicional como medicamento para diversos males, seu consumo foi se tornando um hábito de sociedade, inclusive entre o mandarinato, transformando-se em um vício em larga escala, principalmente a partir do século XVIII. A produção interna atendia bem a demanda até o século XVII, mas com o aumento do consumo os comerciantes chineses passaram a importa-lo dos ingleses, que abasteciam seus navios na sua possessão indiana de Bengala, onde havia grandes plantações de papoula.
A Companhia das Índias Orientais tinha o monopólio deste comércio e, da China, levava de volta em seus navios o muito apreciado chá chinês, altamente consumido na Grã Bretanha principalmente a partir do século XVIII. As transações entre os britânicos e chineses ocorriam no único porto então aberto para tal, que era o de Cantão (Guangzhou) e assim mesmo sob diversas restrições e intermediações de funcionários imperiais.
Como os chineses tinham pouco interesse em produtos europeus e consideravam que o Império produzia quase tudo o que eles necessitavam, a Balança Comercial entre ambos os países era deficitária para os britânicos e apenas a exportação ópio indiano poderia melhorar a situação.. No entanto, alguns imperadores tentaram frear o seu consumo não medicinal, considerando que o vício, alastrado inclusive entre altos funcionários da Corte, estava prejudicando o país.
A partir de 1831 começaram a ser feitas tentativas firmes para reprimir o seu uso e, em 1839 teve início uma repressão muito dura e bem organizada em todo o Império. Um funcionário de confiança da Corte e que administrava o porto de Cantão ordenou, no mesmo ano de 1839, a apreensão de 20.000 caixas de ópio de Bengala ali desembarcadas e fez uma queima pública de todas elas. Tal apreensão e destruição de um produto desembarcado pela Companhia das Índias Orientais foi considerada uma afronta aos britânicos tendo início, então, aquela que ficou conhecida como Primeira Guerra do Ópio. A Grã-Bretanha enviou seus navios de guerra para fazer o bloqueio de diversos portos chineses.
Como a China encontrava-se em grande desvantagem tecnológica em relação aos europeus e sobretudo a sua marinha nunca tinha se modernizado, já que os mandarins mais conservadores não acreditavam em algum possível ataque por mar, em 1842 os chineses foram derrotados e tiveram que assinar o Tratado de Nanjing, que seria o primeiro do que depois foi denominados “Tratados Desiguais”.
Pelo Tratado de Nanjing ficava estabelecido que a China pagaria uma elevada indenização aos britânicos, cederia a eles Hong Kong e abriria mais quatro portos (Ningbo, Xangai, Xiamen e Fuzhou) além de Cantão, que antes da guerra era o único que recebia navios estrangeiros. Na verdade, essa abertura dos portos era o principal objetivo das potencias ocidentais, demanda que se coadunava com as características do imperialismo do século XIX. E, abertos à Grã Bretanha, ficavam então os referidos portos abertos também às demais potências europeias e ao Japão.
Não havia, da parte dos europeus, nenhum interesse em derrubar a dinastia Qing, com a qual, em diversos aspectos, eles mantinham um relacionamento bastante amigável e lucrativo. O que existia era o desejo de abrir a China ao comércio internacional e aos investimentos estrangeiros, já que nenhum europeu esperava conquista-la ou integra-la às suas possessões, reconhecendo a especificidade chinesa, a força de um império milenar ainda que extremamente atingido por crises de vários tipos.
Entre 1856 e 1860 ocorreu a que ficou conhecida como Segunda Guerra do Ópio, com características muito semelhantes à anterior, desencadeada em resposta a um episódio de vistoria chinesa ao navio Arrow e às atividades de sua tripulação. Na mesma ocasião, houve o assassinato de um missionário francês, o que fez com que a França decidisse entrar também na guerra, apoiando os britânicos. Nova derrota para a China, novo tratado desigual, desta vez o de Tientsin, com mais portos sendo abertos aos navios mercantes europeus e japoneses.
Entre as vantagens conseguidas pelos europeus no rastro das derrotas chinesas, estava, desde o final da primeira Guerra do Ópio, o estabelecimento de “concessões”, além da abertura dos portos. Nelas, os estrangeiros poderiam residir sem que ficassem sujeitos às leis chinesas, mantendo seus hábitos, suas escolas e toda uma estrutura administrativa como se fosse território internacional. Entre os exemplos que ficaram mais conhecidos e que foram mais bem sucedidos estavam a concessão britânica de Xangai, que se manteve de 1845 até 1943, e a francesa na mesma cidade, entre 1849 e 1943.
Ainda que as concessões tenham sido uma exigência dos vencedores da guerra, muitos chineses consideraram-se beneficiários delas pois, em diversos casos, e em especial na de Xangai, ocorreu a criação de novos empregos e, durante a Revolta Taiping, serviu de refúgio para muitos mandarins e outros chineses que temiam a barbárie dos revoltosos. O grande desenvolvimento cosmopolita de Xangai é atribuído, mesmo pelos chineses, à presença de ocidentais em diversas atividades na cidade.
O século XIX, todo ele, vai ser de muitos conflitos também internos e em geral envolvendo sempre dois grupos opostos da elite letrada, que se constituía no corpo de funcionários mais qualificado de toda a administração imperial. Tais grupos eram o dos conservadores e o dos adeptos de uma rápida modernização tanto da Economia quanto do sistema escolar, muito engessado em função do programa dos concursos imperiais, todo ele focado nos Clássicos chineses. Deste embate entre tradição estrita e modernização vai surgir uma nova revolta, que ficará conhecida como a Guerra dos Boxers ou dos Punhos Justiceiros.
Para entender a Guerra dos Boxers é importante conhecer o contexto no qual ela ocorreu. A província de Shandong, onde se iniciaram os confrontos, era um importante centro do Taoísmo, abrigando também muitos centros budistas e a cidade natal de Confúcio, Qufu. Era – e ainda é – uma região de muitas memórias da civilização chinesa e na qual seus habitantes, principalmente aqueles ligados a atividades camponesas, tinham algumas práticas esotéricas de raízes ancestrais. Nessa mesma região, como resultado dos Tratados Desiguais, o Império havia arrendado aos alemães a baía onde ficava a cidade de Qingdao, na qual também se instalaram alguns outros europeus, principalmente britânicos. Eram indivíduos ligados ao comércio ou missionários, que fundaram escolas na região.
Os missionários eram bem vistos por parte da população, pois ensinavam novas técnicas em suas escolas e eram contrários à deformação dos pés das meninas, estendo as possibilidades de estudo também a elas. Para os conservadores, no entanto, este ambiente de modernidade era considerado ofensivo às práticas ancestrais chinesas, especialmente arraigadas na província de Shandong.
Neste quadro, ao qual somava-se a crescente crise econômica e o empobrecimento dos camponeses, uma sociedade esotérica de cunho altamente nacionalista e messiânico que se denominava Punhos Justiceiros (conhecidos no Ocidente como Boxers) insuflou a população com discursos contra os estrangeiros, acusados de perturbar os ancestrais com seus investimentos modernos, como a construção de estradas de ferro e do telégrafo. Aos missionários, acusavam de bruxaria e de assassinato de crianças para extrair seus órgãos para rituais religiosos. O nome Punhos Justiceiros devia-se a um tipo de luta que o grupo praticava e que era considerada “mágica”, impedindo que, em uma guerra, as balas dos opositores os atingissem.
A Corte manchu ficou em dúvida se os apoiava apenas para não arriscar novos levantes da população contra ela ou se ficava neutra em relação à revolta. Afinal, venceram os mandarins próximos ao imperador que o aconselharam a dar apoio aos Boxers, o que desencadeou nova guerra contra os europeus e os japoneses, já que as Legações em Beijing foram atacadas, violando-se assim o território dos diplomatas estrangeiros. A reação foi rápida, os europeus, os norte-americanos e os japoneses enviaram tropas, atacaram os Boxers e os derrotaram, numa guerra relativamente curta que durou entre 1899 e 1900.
O imperador Guangxu e sua tia Cixi, conhecida como a Imperatriz Viúva e que era a verdadeira eminência parda do Império, tinham se refugiado em Xi’an durante o conflito, procurando não se envolver diretamente nele, mantendo uma atitude bastante dúbia já que principalmente ela tinha um relacionamento amigável com os diplomatas estrangeiros em Beijing. Os estrangeiros, por sua vez, embora sendo alvo dos ataques nacionalistas dos Boxers, também não pretendiam derrubar a dinastia Qing e então, com os Boxers derrotados em 1901, foi assinado um Protocolo através do qual eram extraídas, do governo chinês, altas indenizações.
A China, a cada derrota, a cada guerra perdida, como havia sido o caso nas duas Guerras do Ópio e na dos Boxers, via suas finanças severamente comprometidas com as indenizações, passava pela situação humilhante de se mostrar tecnologicamente fragilizada, com precárias condições de combate, tendo ainda que enfrentar o imperialismo japonês, que lhe havia subtraído a Coréia como Estado Tributário (no conflito de 1894-95). A tudo, somava-se o avanço dos russos, que cobiçavam parte do território chinês ao norte.
Nesse contexto terrivelmente conturbado da segunda metade do século XIX e até o início do século XX destacou-se, às vezes nos bastidores, mas também muitas vezes na linha de frente, a Imperatriz Viúva Cixi. Concubina do imperador Xianfeng, com a sua morte ainda muito jovem, em 1861, ela chegou ao poder por ser a mãe do único filho homem do imperador, alçado ao trono ainda criança. Cixi, junto com a esposa oficial de Xianfeng, Cian, assumiu a regência que depois passou a exercer sozinha tanto por suas manobras bem sucedidadas quanto por um certo desinteresse de Cian. Desde que tomou as primeiras decisões políticas, Cixi nunca mais deixou o controle político do império. Com a morte do seu próprio filho colocou um sobrinho no trono, também criança e voltou a ser regente.
Há claras evidências de que foi com muita dificuldade que Cixi manteve o equilíbrio entre a valorização da milenar cultura chinesa que ela, mesmo sendo manchu, admirava, e a inevitável modernização, que entrava no império através dos europeus, dos norte-americanos e dos japoneses. Foi também Cixi que, antes de morrer, indicou aquele que seria o último imperador, Puyi.
De toda a movimentada história da China no século XIX, podem ser destacadas algumas considerações importantes:
1) a humilhação da derrota em diversos conflitos, com as potências impondo a abertura dos portos e sobretudo as pesadas indenizações, foi provavelmente o aspecto mais visível da decadência imperial;
2) a manutenção da integridade territorial, apesar de todos os conflitos, o que permitiu que a China, mais adiante, pudesse se recuperar e recuperar seu orgulho. Sempre houve o entendimento, da parte do Ocidente, de que o Império do Meio não seria conquistado e nem mesmo se constituiria em algum tipo de protetorado, ainda que tenha ocorrido um considerável avanço de caráter imperialista em mais de uma oportunidade.
A integridade civilizacional da China nunca esteve sob ameaça e, pelo contrário, os estrangeiros sempre demonstraram certo fascínio pelo que lá encontravam em matéria de arte e de filosofia. Por outro lado, os embates internos entre mandarins conservadores e modernizantes foram uma parte importante dos problemas enfrentados pelos imperadores e pela imperatriz Cixi. Os letrados confucionistas custaram muito a entender que o programa dos exames imperiais, calcado em estudos puramente literários, não preparava os candidatos e futuros funcionários para a realidade do mundo nos séculos XIX e XX, mas em 1905, antes mesmo da vitória dos republicanos, os exames foram extintos.
Sem uma personalidade forte para comandar o Império com a morte de Cixi, em 1908, e sem que o alto mandarinato tivesse conseguido se articular em torno de um projeto de monarquia constitucional que já tinha começado a ser esboçado, mas que nunca, efetivamente, foi levado adiante, os defensores da República conseguiram ganhar muitos adeptos.
A vitória da Revolução Republicana, sob a liderança de Sun Yat-Sen foi reconhecida sem maiores traumas já em 1911 e, em fevereiro de 1912, Puyi, o último imperador, ainda uma criança de seis anos de idade, abdicou do trono. Os republicanos venceram fazendo apelo ao fato de que o império era governado por uma dinastia estrangeira, de origem manchu, mostrando a corrupção que era endêmica na estrutura do mandarinato, mas também pelos altos impostos cobrados principalmente dos camponeses. O discurso nacionalista apontando igualmente para a influência das grandes potencias estrangeiras fortaleceu a criação do Guomintang, partido centralizador, pouco democrático, mas extremamente nacionalista, que apelava para a restauração do orgulho chinês.
Tanto Sun Yat-Sen quanto Chiang Kai-Shek eram populistas e nacionalistas e casados com duas irmãs de uma família da elite na China, a família Soon, cujo apoio foi importante na escolha de quadros republicanos. Até a emergência de Mao e a implementação do socialismo na China, as grandes famílias tradicionais estiveram no controle da República. Já a ideia de hierarquia, de centralização das decisões políticas permaneceu na passagem do Império para a República, da mesma maneira que permanecerá também durante e depois de Mao.
Concluindo esta breve apresentação sobre a história da China, eu gostaria de destacar alguns pontos que considero importantes para entender o presente. O primeiro deles é justamente o de que a força da hierarquia, que tinha raízes milenares com as lições de Confúcio, se mantém como regra até os dias atuais.
Houve um hiato de banimento da literatura Clássica e do Confucionismo em particular e este hiato foi durante o curto espaço de tempo da Revolução Cultural (1966-1976). Pois bem, não por acaso, os mentores da Revolução Cultural recrutaram para a temível Guarda Vermelha, jovens de 12 a 18 anos de idade, mas a maior parte deles entre 12 e 16 anos, a idade da rebeldia. A ideia era erradicar por completo as ideias confucionistas e mesmo a influência dos pais, convencendo os jovens de que os novos tempos pediam novas lideranças que não fossem intelectualizadas. Foram fechadas escolas e universidades e os livros Clássicos jogados no lixo. Adolescentes entre 12 e 16 anos encarregaram-se desse tipo de faxina para erradicar a cultura Clássica. No entanto, em uma cultura como a chinesa, tal disparate não poderia durar muito e a Revolução Cultural foi um hiato na longa duração da história da China.
A valorização do estudo e dos mestres atravessou os anos mais conturbados de guerras e de revoltas e, excluindo-se o período da Revolução Cultural, manteve-se firme em toda a China. Atualmente, mesmo com a espantosa modernização do país é muito claro o incentivo dado a pesquisas arqueológicas que trazem à tona uma história muito antiga. Quem visita o país encanta-se com a qualidade dos seus museus, repletos de objetos de muitas épocas passadas e para os quais há informações de muito boa qualidade.
Xi Jinping na minha opinião não deve ser visto como um ditador nos moldes ocidentais. Embora ele seja muito autoritário, é bem mais um autocrata com características imperiais, quem sabe um déspota esclarecido do que um ditador moderno como nós já tivemos a experiência na Europa e na America Latina. Trata-se de um homem culto, casado com uma importante cantora de ópera chinesa, oriundo de uma família admiradora de Confúcio e cujo pai sofreu nas mãos da Guarda Vermelha. A China nunca foi uma monarquia constitucional. De um Império fortemente centralizador, claramente absolutista, ela passou para uma República com líderes pouco democráticos, com Sun Yat-Sen, Yuan Shikai, Chiang-Kai Shek e depois Mao.
Antes de terminar a minha fala eu gostaria de fazer brevíssimas considerações sobre a questão do Covid-19 e da divulgação tardia de que se tratava de um vírus perigoso. Em primeiro lugar, a culpabilização do governo por hábitos ancestrais dos mercados de animais silvestres é injusta pois o governo chinês tem tentado, desde o tempo do Hu Jintao, modificar consideravelmente certos costumes alimentares, tendo inclusive proibido em mais de uma oportunidade (e nem sempre com sucesso) o festival que inclui a matança de cachorros. No entanto, em sociedades rurais com tais comportamentos não é tarefa simples a mudança de hábitos e o mesmo ocorre no Vietnã, na Coréia e em outros países asiáticos. No caso da China acrescenta-se a questão da medicina tradicional, na qual o pangolim, que foi o vetor de transmissão atual, é um dos insumos mais usados na fabricação de medicamentos .
É importante também deixar claro que a ocultação dos primeiros casos não foi uma decisão do governo central mas do provincial, o que também é parte da estrutura de governança da China, desde os tempos imperiais. Funcionários das províncias calculam até o PIB da sua área que depois é somado aos demais para a obtenção dos dados nacionais. A burocracia provincial tem muitas prerrogativas e, por outro lado, quando comete erros, recebe punições fortíssimas, exatamente como ocorria nos tempos do Império, o que certamente levou a que a informação sobre um vírus novo em Wuhan fosse incialmente ocultada. Zhou Xianwang, que era então prefeito de Wuhan, renunciou ao admitir ter escondido informações sobre o surto. Com tais considerações de modo algum minimizo o problema do ocultamento inicial dos dados, mas acho importante ter um olhar amplo sobre o que ocorreu.
Eu vejo como chance zero a ideia de democratização da China nos moldes ocidentais, porque são pelo menos cinco mil anos de uma história de centralização do poder, mas também porque, atualmente, a modernização do país tem sido favorável às pessoas comuns, ao povo em geral. Os governos de Hu Jintao e agora de Xi Jinping não são excludentes, os governantes apostaram e continuam apostando na inclusão dos chineses, com grande ênfase na inclusão pela educação, pela modernidade. É esse esforço de inclusão que faz toda a diferença para que, apesar de seu inegável autoritarismo, o governo tenha um considerável apoio popular. Não estou defendendo a autocracia contra a democracia, apenas tentando entender o contexto político do país sem enxergá-lo com as lentes de quem está de fora.
Há muito mais para ser dito e analisado sobre a história da China e a crescente modernização do país. Este resumo histórico tem como finalidade fazer apenas considerações pontuais, em um panorama bastante resumido da longa duração.
Segue uma bibliografia bastante básica. Na internet e em diversas páginas de cunho acadêmico há uma grande quantidade de textos sobre a história chinesa, facilmente acessíveis. Recomendo que os interessados coloquem as palavras-chave com relação a períodos ou temas que estiverem pesquisando, para obter resultados mais específicos sobre a China. Ressalto que esta é apenas uma bibliografia MUITO BÁSICA de livros acessíveis no Brasil ou que podem ser comprados online e até mesmo em sebos, sem dificuldade. Preocupo-me sempre em dar informações para leigos e também para os alunos do Ensino Médio e dos cursos de graduação em História. Os pesquisadores sabem onde procurar suas fontes…
CARVALHO, Evandro Menezes de e SILVEIRA, Janaína Camara da (org.). A China por sinólogos brasileiros: visões sobre economia, cultura e sociedade. Rio de Janeiro: Batel, 2019.
CHANG, Jung. A Imperatriz de Ferro. São Paulo: Companhia das Letras, 2014.
CONGER, Sarah Pike. Letters from China. Columbia, SC: Big Byte Books, 2020.
FAIRBANK, John King e GOLDMAN, Merle. China: uma nova história. Porto Alegre: L&PM, 2006.
HAW, Stephen G. História da China. Lisboa: Tinta da China, 2015.
KISSINGER, Henry. Sobre a China. Rio de Janeiro: Objetiva, 2011
PALAZZO, Carmen Lícia. “Os Jesuítas como atores privilegiados na comunicação de imagens da China para a Europa: século XVI a XVIII.” Curitiba: Revista Tuiuti: Ciência e Cultura, n. 48, 2014, p. 13-31.
SPENCE, Jonathan. Em busca da China Moderna. São Paulo, Companhia das Letras, 1996.
Aquisições a partir de agora, para entrega a partir de janeiro no site da editora.
Descrição da Editora:
Arte, cultura, civilização. Esses três paradigmas, que informam e animam um ao outro, convidam à reflexão e à constante (re)construção e (re)interpretação de significados possíveis. A partir de um princípio de pluralismo, de multiplicidade de prismas e perspectivas - da Música, da Literatura, da Filosofia, da História, da Ciência Política, das Relações Internacionais, do Direito -, este livro pretende, em leveza e densidade, oferecer precisamente um convite ao leitor, o da busca existencial pela compreensão daquilo que somos, de onde viemos, para onde vamos e o que queremos ser. Arte, cultura e civilização serão articuladas em ensaios breves e dinâmicos pelo olhar de vários especialistas, engajados num universo próprio e distintivo de investigação que, ao mesmo tempo, dialoga com o fio condutor da narrativa: o mesmo espírito que coloca os autores em diálogo com o leitor verdadeiro.
Aqui abaixo o sumário; meu capítulo “Diplomatas brasileiros nas letras e nas humanidades”, figura nas páginas 119 a 126.
Também participa meu amigo, e colega do Uniceub, Arnaldo Godoy, que colabora com um ensaio sobre a cinematografia de Luis Buñuel; Arnaldo Godoy mantém há muitos anos uma seção no Conjur chamada "Embargos Culturais": cada domingo ele nos brinda com inteligentes artigos-resenhas sobre os grandes livros da literatura brasileira e mundial.