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sábado, 21 de agosto de 2021

Biografia situa Henry Kissinger entre o homem bélico e diplomata habilidoso, Barry Gewen - Martim Vasques da Cunha (OESP)

 Biografia situa Henry Kissinger entre o homem bélico e diplomata habilidoso

Kissinger é considerado pela esquerda moderada como criminoso de guerra e pela direita razoável um pensador refinado enquanto a direita nacionalista o chama de comunista rendido e a esquerda radical o ofende com um 'infiltrado imperialista'

Martim Vasques da Cunha*, Especial para o Estadão

21 de agosto de 2021 | 15h00


Na semana em que foi anunciada a vitória de Joe Biden para a presidência dos Estados Unidos, numa acirrada eleição que mudou o Ocidente para sempre, o escritor americano Walter Kirn – conhecido pelo público por ser o autor do livro que deu origem ao filme homônimo com George Clooney, o ácido Amor Sem Escalas (2009) – escreveu no Twitter que, na verdade, o vencedor se chamava Henry Kissinger.

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Henry Kissinger, diplomata nascido na Alemanha, que teve importante papel nos EUA  

Foto: Gary Cameron/Reuters

 

Para quem não é um ‘millenial’ e ainda tem boa memória, o nome de Kissinger geralmente é confundido com o trocadilho infame de “Henry Killinger”. Considerado pela esquerda moderada como um “criminoso de guerra” e pela direita razoável como um “pensador refinado e um diplomata brilhante” (enquanto a direita nacionalista o chama de “comunista rendido” e a esquerda radical o ofende com um “infiltrado imperialista”), o autor do colossal Diplomacia (1994) – um tomo de mais de mil páginas que praticamente explica o surgimento da Nova Ordem Mundial que conhecíamos antes da peste do coronavírus – ganhou essa reputação graças ao fato de que foi, entre 1968 e 1975, o Secretário de Estado e Consultor de Segurança de ninguém menos que Richard Nixon e do sucessor deste último após o escândalo Watergate, Gerald Ford. 

Nesses anos, foi obrigado a lidar com assuntos mais do que urgentes como a Guerra Fria, o poder nuclear da União Soviética e – last but not least – o conflito no Vietnã. Como se esses problemas não fossem suficientes, ele também teve de administrar (segundo alguns, “ordenar” é a palavra exata) a interferência à soberania nacional de país latino-americanos, como o Chile em 1974 (com a queda de Salvador Allende) e o financiamento da “Guerra Suja” ocorrida em uma Argentina dominada pelo exército militar.

Por causa deste extenso currículo, Kissinger se tornou um personagem digno de biografias e tratados que tentam analisá-lo na sua ambiguidade (um termo muito importante para entender corretamente suas ações, de acordo com o próprio). Temos todo um mercado editorial sobre esse homem, desde o polêmico The Trial of Henry Kissinger (2001), do falecido Christopher Hitchens, passando pela primeira parte da biografia de Niall Ferguson, Kissinger 1923-1968: The Idealist (2015), até chegar ao produto mais recente – o complexo e instigante The Inevitability of Tragedy: Henry Kissinger and His World, do editor da prestigiada New York Times Book Review, Barry Gewen.

Na sua estreia literária, ocorrida após trinta anos retocando os textos dos outros, Gewen provocou um certo rebuliço ideológico entre seus pares. Notório por ser um progressista de quatro costados (afinal, ninguém trabalha por acaso no New York Times), ele os surpreendeu por escrever um livro que tentava compreender um sujeito que, para este “círculo dos sábios”, era mais do que alguém nefasto. Era o próprio mal encarnado.

Gewen se recusa a ir por essa vereda – mas não pelos motivos sorrateiros atribuídos a ele. Como o próprio subtítulo indica, não se trata de uma biografia, e sim de um ensaio que reflete sobre o “mundo” onde Kissinger nasceu e se formou: a Alemanha entre as duas guerras mundiais, mais precisamente a Alemanha de Weimar que depois seria a de Adolf Hitler. A partir daí, o que temos é uma excelente síntese da história das ideias políticas do século 20, centralizadas em três figuras essenciais para a educação do futuro diplomata do governo Nixon: Leo Strauss, Hannah Arendt e Hans Morgenthau.

Mesmo tendo pouco contato pessoal com os dois primeiros nomes, Kissinger foi um dos alunos favoritos do terceiro, hoje considerado o papa do “realismo político”. Apesar de ser divulgado por seus apoiadores como uma novidade do século 20, esse pensamento que fez fama na cátedra das Relações Internacionais é apenas uma variação do velho e bom Leviatã (1651), de Thomas Hobbes. Porém, há uma diferença: se, com Hobbes, a reflexão sobre o poder tinha como base o trauma das guerras civis inglesas do século 17, Morgenthau e Kissinger (junto a Strauss e Arendt) perceberam o problema sobre quem comanda de fato o Estado sob as sombras totalitárias do nazismo e do comunismo.

Para ambos, o início dessas moléstias coletivas não foram as benesses da democracia liberal – e sim justamente os seus excessos. Daí a desconfiança suprema em relação a este modelo de governo, justamente para preservá-lo – o que, segundo Gewen, esclareceria as intervenções de Kissinger em países como Chile e Argentina (para os defenderem da “ameaça vermelha”) e da intricada estratégia de détente, com exaustivas negociações para se alcançar o “equilíbrio” com o Vietnã e a União Soviética, apesar dos constantes (e mortíferos) bombardeios no Camboja e em Saigon.

No fundo, argumenta Gewen, o que impulsionaria a política de Kissinger é a noção aguda de uma ambiguidade que, se não for respeitada, terminará naquilo que seria a “inevitabilidade da tragédia”. Na política, de acordo com esse raciocínio, não há imperativos morais; há apenas o encontro com o desconhecido e ali, dentro de variáveis extremamente nebulosas, qualquer escolha corre o risco de ser não só a errada, mas sobretudo a mais letal de todas.

Isso não significa que Henry Kissinger é incapaz de ter uma ética. Sem dúvida, como todo o diplomata, ele possui princípios morais. O único problema é que ele os oculta com tamanha insistência para si mesmo que mal pode conhecê-los na realidade. Gewen evita o clichê de qualificá-lo como um político “maquiavélico”, mas também não cai na benevolência de um Niall Ferguson que o classifica como um “idealista” kantiano, afoito para implementar a “paz perpétua”, custe o que custar. A tragédia da política se torna inevitável, nesse caso, simplesmente porque os intérpretes deste “superkraut” (como a revista Time o chamou no auge da sua celebridade) jamais perceberam que, antes de tudo, ele faz parte de uma longa (e pouco divulgada) tradição histórica: a de ser um cortesão do poder.

Surgida no Renascimento, com a publicação do livro intitulado justamente O Cortesão (1528), escrito por Baldassare Castiglione, tal corrente de pensamento, se podemos chamá-la assim, promove uma forma de trilhar os labirintos da política por meio de uma “poética da dissimulação”, na qual o sujeito precisa usar constantemente uma máscara para agradar o governante e sua súcia, não só para preservar a própria vida, mas também a sua sobrevivência material. A consequência direta disso é a ausência de sinceridade e de qualquer decisão moral ao dizer a verdade quando ela se tornou a única alternativa possível, mesmo que ela seja amarga para o político que está no comando de uma nação. O disfarce, aqui, pode ser o discurso cifrado, a ironia, o humor jocoso, quando não o próprio elogio feito com segundas intenções. Enfim, tudo aquilo que jamais teve relação com a nobreza da tragédia.

Eis aí o equívoco maior de Barry Gewen ao compreender Kissinger. Não há nenhuma inevitabilidade de um destino cruel se o sujeito que pratica este tipo de política jamais permitiu, dentro do seu coração, a comunicação da verdade, principalmente para si mesmo – e para seus semelhantes. A tragédia precisa dessa purgação, pois seu impulso é uma reviravolta moral que faz o sujeito fascinado pelo poder entender que, ao fim e ao cabo, isto vale muito pouco na vida de uma pessoa realmente autêntica.

Não foi o caso de Henry Kissinger. Ele sempre gostou de ser uma “eminência parda”, mesmo nos anos em que não estava mais na Casa Branca. Foi ouvido por Reagan (a quem desprezava), Bush pai e filho, Bill e Hillary Clinton, e Barack Obama, mas jogado de escanteio por Donald Trump. Agora, com Joe Biden, ele tem uma segunda chance de voltar a ser um cortesão, com toda a sua graça e fleuma, senão fisicamente, pelo menos em espírito. Não é por acaso que, um dia após a posse do novo presidente americano, um comboio militar entrou na região noroeste da Síria, um país que até então tinha uma intervenção suave no governo anterior, em especial porque a ditadura de Bashar Al Assad era um obstáculo para o ressurgimento do Estado Islâmico. Motivo? “Preservar a democracia naquele local”. 

Com essa justificativa, é evidente que não há mais a ambiguidade da política quando a dissimulação volta em cena – conforme se comprovou na semana passada, com a saída das tropas americanas em Cabul, no Afeganistão, numa desastrosa retirada semelhante ao que ocorreu em Saigon, no ano de 1975, uma operação que também teve a impressão digital de Kissinger. E assim ficamos com o gosto do trágico na boca ao percebermos que, afinal de contas, Walter Kirn estava completamente certo quando escreveu que este cortesão de poder foi o verdadeiro vencedor naquelas eleições de 2020 que mudaram o Ocidente para sempre. Quem viver, verá.

*MARTIM VASQUES DA CUNHA É AUTOR DE ‘O CONTÁGIO DA MENTIRA’ (ÂYINÉ, 2020)


Memória de uma jornada a Kabul - poema de Sergio Couri (Islamabade, agosto de 2008; Brasília, junho de 2019)

 Memória de uma jornada a Kabul

Sergio Couri

 

Se vens a Islamabad

Rumo a Kabul, viajeiro,

Ouve aquele que lá foi,

E assim traça o teu roteiro:

 

Assesta o Noroeste 

Deste agreste Paquistão,

Com sua gente do campo

Na simples cultivação.

 

Verás Taxila, do Reino

Gandhara a sede. É cênico

Memorial alexandrino,

Que exalta o mundo helênico.

 

Em Peshawar visita

A Mesquita de Wazir Khan.

É qual arte certosina.

Da mais fina do Islã.

 

Ao ar livre ali traficam

Amas, e de precisão,

Fabricadas em oficina

De armeiro artesão.

 

Segue para o Poente

Das Províncias Irredentas,

Dos aguerridos Patãs,

Heróis de lutas sangrentas.

 

Torrentoso e cristalino,

Vindo do lado afegão,

O belo Rio Kabul

Correrá na contramão.

 

Cruza então o Passo Khyber,

Que não passaram os ingleses,

Contidos por afegãos

Em cada uma das vezes.

 

Só o cruzou Alexandre

Magno, grego genial, 

Após romper o nó górdio,

Em mais um feito imortal.

 

Apenas transposto o Passo,

Jallahlabad verás,

Onde as casas tem ameias

E os  homens armas a mais.

 

Esse povo tem sua têmpera

Contra invasores forjada.

Nem os russos lá ficaram,

Voltaram em debandada.

 

Vê em Kabul o museu

Dos Budas ditos  Gandhara,

É o buda helenizado,

Da arte jóia mais rara.

 

Vê a Tumba de Babur,

O Imperador Moghul

Herdeiro de Tamerlão

Que quis jazer em Kabul.

 

Senta ao jardim de Babur,

Onde repousa o Monarca.

Depois te refresca ao Qargha,

Faz um bom cruzeiro a barca.

 

De volta, galga o Swat,

Que o Himalaia dessegue

Com o degelo das neves,

Fluindo em raso talvegue.

 

Retorna a tua morada

Nas rotas convencionais.

Tem as benções do Profeta,

E com ele esteja a Paz.

 


Islamabade, agosto de 2008/ Brasília, junho de 2019.

 

Por que a China nunca vai admitir o Japão no CSNU: crimes contra a humanidade, iguais ou piores que o nazismo - Lessons from History

 

Inside Unit 731 — Japan’s Disgusting Human Experiment Concentration Camp

Exposing the horrors inside the worst concentration camp of World War Two

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May 9 · Lessons from History

Medical trials being conducted on a test subject in unit 731 (Credits: Allthatsinteresting)

Nazi Germany is often held at the top of the list for its abhorrent crimes against humanity. In truth, Hitler was not alone in the inhuman treatment of their enemies. The Japanese leadership committed similar crimes, perhaps even worse.

One such act of brutality is the biological experimentation that happened in a Japanese medical facility called Unit 731. It was set up in 1938 in Japanese-occupied China under the disguise of being a research facility, its actual aim was to develop biological weapons. Prisoners from China, Mongolia, and Russia were brought in and lethal experiments were conducted on them.

Vivisection on Conscious Human Beings

Japanese Doctors studying a prisoner they infected (Credits: LAD)

Vivisection is the act of dissecting a human being or animal unanesthetized while he or she is still alive.

The Japanese doctors opened up conscious human beings to study the effects of diseases on them. The subjects were referred to as “logs.” They were usually first injected with a disease such as cholera and then the effects of were observed by operating on the patient while they were still conscious.

In some cases, the limbs of the victims were mutilated, attached to the other side of the body or their circulation cut off to observe the effect of gangrene. When the subjects remained of no use to the doctors, they killed him by shooting or by giving him a lethal injection.

A 72-year-old farmer who used to be a medical assistant in the unit recounts: “I cut him open from the chest to the stomach, and he screamed terribly, and his face was all twisted in agony. He made this unimaginable sound, he was screaming so horribly. But then finally he stopped. This was all in a day’s work for the surgeons, but it really left an impression on me because it was my first time.” — (Nytimes)

Frostbite Experiments

Unit 731 (Credits: Atomic Heritage)

The Japanese doctors were not mad scientists that needlessly just inflicted horror on the subjects.

These experiments were strategic and designed to study the effects of various phenomena on human body. Since, the cold was something the soldiers often had to endure, brutal trials were conducted to observe the effects and treatment of frostbite.

The subjects were taken out in extremely cold weather and cold water was thrown on them until their limbs were frozen solid. Sometimes of their limbs was submerged in ice-cold water until, according to the eyewitnesses, it made the sound of a plank of wood when struck with a cane. Different methods were then used to thaw the limbs or the victims were left untreated and the time and temperature required for their limbs to reheat were noted.

The Japanese concluded that the water of temperature 100–122-degree Fahrenheit was most suitable to defrost the frozen appendages.

Target Practice On Prisoners

A staked prisoner being shot (Credits: Pinterest)

Weapons were tested on people. They were tied to stakes and blasted with various weapons from different ranges to study wound patterns and the effect of bullet penetrations. Japanese also tested effects of poisonous gasses on Chinese prisoners.

Germ testing

Although biological warfare, even during the war had been banned in the 1925 Geneva Convention, the Japanese did not honor this agreement and infected the Chinese with various diseases during the war.

Planes dropped cholera, typhoid, and plague cultures in parts of eastern China. Sometimes plague-infected animals were also released in the various villages of china that were under Japanese occupation.

To develop and study the effectiveness of these cultures, inmates in Unit 731 were infected with the most lethal pathogens known to mankind. After being infected, the victims were put under observation until they showed symptoms of the disease. They were then opened up and their blood was fed to fleas who would carry the infection to the Chinese troops and innocent civilians.

Syphilis Testing

The doctors in Unit 731 were particularly interested in studying the effects and transmission of syphilis.

They focused on devising a treatment for it. They ordered the victims invested with syphilis to rape other subjects. The newly infected patients were then not treated to observe the progression of the disease.

Forced pregnancies

The Japanese doctors raped and impregnated women of childbearing age. They then experimented on them to understand how they affected both the mother and the fetus.

They shot them, infected them with various diseases, and made them suffer other types of injuries. The female subjects were then opened up to study how the fetus had reacted to all this.

They even experimented on infants as young as three days old as a recently published book says:

“Usually a hand of a three-day-old infant is clenched into a fist,” the booklet says, “but by sticking the needle in, the middle finger could be kept straight to make the experiment easier.”

Aftermath

By the time the war ended in 1945, none of the prisoners survived and the death count is reported to as high as 3000 people. The doctors and the supervisors were never tried for their crimes mainly because the US government agreed not to prosecute them in exchange for the results and the reports of the experiments that were conducted.

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sexta-feira, 20 de agosto de 2021

Relações internacionais, política externa do Brasil e carreira diplomática: reflexões de um diplomata não convencional (resumo) - Paulo Roberto de Almeida

Relações internacionais, política externa do Brasil e carreira diplomática: reflexões de um diplomata não convencional

Paulo Roberto de Almeida

Notas para aula inaugural no quadro do curso do Ibmec Global Affairs, em 20/08/2021, 19hs (Sala Virtual Teams: https://bit.ly/3szvGzn).

Resumo, para os que não leram o trabalho completo (linkado ao final) ou não puderam assistir ao debate, realizado há pouco.

 

 

Como sempre faço, tomo notas do que gostaria de expor, mas como também sempre acontece, fica muito grande, e por isso acabo não lendo, mas colocando à disposição de todos as minhas reflexões do momento, para que todos possam ler com mais calmo do que numa exposição ex-catedra, que teria virtudes dormitivas.

 

Comecei pelo assunto do momento, a retirada dos Estados Unidos do Afeganistão e o reflexo nisso para as relações internacionais e para a posição dos EUA, e para isso me vali de um interessante artigo na revista The New Yorker, da colunista Robin Wright, “Does the Great Retreat from Afghanistan Mark the End of the American Era?”, (16/08/2021; que coloquei à disposição de todos em uma postagem no meu blog Diplomatizzando: “A Grande Retirada do Afeganistão marca o fim da Era Americana?”

Faço uma série de considerações sobre a questão dos Impérios, um pouco com base na conhecida obra de Arnold Toynbee, Estudo da História, mas também recomendo um livro que estou lendo atualmente: Empires in World History, de Jane Burbank e Frederich Cooper, que downloadei no meu Kindle (Princeton, 2010). É um livro diferente das histórias convencionais, pois que justamente trata das questões de poder, desde a antiga Roma e a China até o fim do sistema imperial, o que não está perto de ocorrer. Não vou retomar aqui tudo o que escrevi sobre os variados impérios, com destaque para o americano, em aparente declínio, até a irresistível ascensão da China e a sua volta ao seu antigo status imperial. Apenas me refiro ao fato de que o moderno sistema de relações internacionais, baseado numa representação supostamente igualitária dos Estados nacionais, têm no máximo 75 anos, ou seja, pouco mais de três gerações. O próprio sistema de Estados nacionais, se sistema existe, têm aproximadamente quatro ou cinco séculos, mas isso de uma perspectiva ocidental, pois que outros impérios e civilizações existiram, coexistiram se combateram e se suplantaram durante muitos séculos antes, e em várias outras regiões do mundo. 

 

O império chinês, que existiu por meio de mais de duas dezenas de dinastias, através dos séculos, por mais forte e inovador que tenha sido, não pode evitar sua conquista por povos de fora de suas muralhas supostamente inexpugnáveis: os mongóis, no século XII, e os manchus, no século XVII. O império romano do Ocidente, com sua capital em Roma, existiu durante mais de quatro séculos, até ser submerso pelos povos germânicos ou eslavos que viviam na sua periferia, no século V despois de Cristo. O império romano no Oriente, com sua capital em Constantinopla, ou Bizâncio, sobreviveu durante mil anos, aproximadamente, até ser conquistado pelos otomanos, que mantiveram, por sua vez, o seu império por mais de 600 anos. 

Mais próximo de nós, o império britânico, o maior do mundo entre o final do século XIX e o início do XX, dominou o comércio internacional, pagamentos e financiamentos durante décadas, até o seu declínio, a partir da Grande Guerra e finalmente em Suez. Foi a partir de 1917 que tem início a era do império americano, começando pelo lado financeiro para depois se traduzir num domínio econômico e estratégico claramente preeminente, pelo resto do século XX: o século americano parecia predestinado a durar mais um século inteiro, todo o século XXI. A China recém emergia dos anos destruidores de maoísmo demencial – depois do fracasso mortífero do Grande Salto para a Frente e dos anos turbulentos da Revolução Cultural – e não parecia estar minimamente em condições de desafiar a superpotência americana.

O que assistimos, nos últimos trinta anos, desde os anos 1990, quando começa, verdadeiramente, a fulgurante ascensão da China, foi algo absolutamente excepcional na história econômica mundial, jamais visto nos registros de crescimento econômico e de capacitação tecnológica e de construção de poderio militar. 

O mundo está próximo, agora, de ver a China conquistar o primeiro lugar na formação do PIB global, como já é o caso em grande parte do comércio internacional e será certamente o caso dos investimentos diretos e dos financiamentos em mais alguns anos. Os chineses, não alcançarão, provavelmente, o PIB per capita dos americanos no corrente século ou em qualquer tempo, mas existem outros elementos que sinalizam a mudança de cenário. 

Três observações podem ser feitas a esse respeito. Em primeiro lugar, a ascensão da China não significa, inevitavelmente, o declínio, mesmo relativo, do poderio científico e tecnológico ocidental, ou seja, americano, europeu, japonês (e de alguns outros membros do clube das nações avançadas). Em segundo lugar, o impulso excepcional da China pode não ser tão irresistível quanto parece atualmente, sobretudo em vista de tremores geopolíticos na Ásia Pacífico ou no próprio Império do Meio, Em terceiro lugar, não se pode conceber que, após essa “era americana” – que ainda não terminou, cabe esclarecer – virá uma “era chinesa”, o que está longe de ser admitida universalmente ou consensualmente. 

A China também foi humilhada ao longo de sua história, duas vezes por invasores que não se intimidaram com o seu tamanho e desprezaram solenemente a Grande Muralha, e mais algumas outras vezes pelas potências ocidentais, nas guerras do ópio e na destruição do Palácio de Verão, em meados do século XIX, 

Os impérios que humilharam a China já não poderão voltar a fazê-lo novamente, e os impérios que ainda restam já não podem ignorar solenemente os Estados nacionais, como frequentemente fizeram no passado. O mundo mudou, mas veleidades imperiais permanecem presentes, assim como as mesmas paixões e instintos que deslancharam a guerra de Troia permanecem invariavelmente humanas, mesmo a uma distância de milhares de anos. 

 

Como se situa o Brasil no presente contexto de uma incerta multipolaridade?

Nos trinta anos precedentes, o Brasil e o Itamaraty construíram as bases conceituais de suas relações exteriores e os instrumentos operacionais de uma diplomacia autônoma e soberana, identificadas, ambas, com os grandes interesses do desenvolvimento nacional, em todos os planos: bilateral, regional e multilateral. 

A política externa, a gestão ambiental, a condução da cultura e a da educação nunca corresponderam, no atual governo, a padrões compatíveis com o que se espera de uma administração normal, dotada de um programa qualquer que pudesse garantir estabilidade macroeconômica e programas setoriais voltados para o crescimento, o emprego e ganhos de produtividade necessários para enfrentar a competição econômica num mundo globalizado. 

 

Examinei, em quatro livros digitais, fase de demolição completa dos fundamentos conceituais e de sua substância operacional nos dois anos e três meses em que perduraram os desatinos e loucuras perpetrados por quem chamei de “chanceler acidental”, sendo que os efeitos da virtual derrocada de nossa credibilidade no exterior não foram ainda totalmente superados, uma vez que a política externa continua a ser marcada pela mesma autoridade incompetente. Esses livros receberam os significativos nomes de Miséria da diplomacia: a destruição da inteligência no Itamaraty (2019), O Itamaraty num labirinto de sombras: ensaios de política externa e de diplomacia brasileira e Uma certa ideia do Itamaraty: a reconstrução da política externa e a restauração da diplomacia brasileira (ambos de 2020) e O Itamaraty Sequestrado: a destruição da diplomacia pelo bolsolavismo, 2018-2021, o mais recente. A esses, se seguirá um novo livro, Apogeu e demolição da política externa: itinerários da diplomacia brasileira (em versão impressa, pela Editora Appris). 

Não pretendo refazer aqui todas as críticas e comentários que já formulei a propósito da miséria da nossa atual política externa e dos descompassos de nossa diplomacia – no momento felizmente liberta das loucuras alucinadas e alucinantes do ex-chanceler acidental –, tanto porque já disso tudo o que poderia ser dito nesses cinco livros mencionados acima. Mas cabem algumas palavras de alento aos que pensam em seguir a carreira diplomática e que se preparam seriamente para tal. 

Como diz o famoso bordão: não há bem que nunca acabe, e não há mal que sempre dure. O Itamaraty e a política externa passaram por turbulências inéditas em nossa história independente, mas uma recuperação está em curso, e ela se completará no próximo governo.

A carreira diplomática é uma das mais atraentes na burocracia federal, pelo menos para aqueles que não estão apenas à procura de um emprego público, mas que, sim, tenham a vocação internacionalista, possuam um bom preparo intelectual e se sintam totalmente à vontade numa vida nômade, feita de postos excelentes, muitos médios e algumas situações de dificuldades materiais no vasto mundo da periferia do capitalismo global. 

“Dez Regras Modernas de Diplomacia” (Chicago, 22 de julho de 2001; 19/08/2021: link: https://diplomatizzando.blogspot.com/2021/08/regras-modernas-e-sensatas-de.html).

Se ouso concluir, seria por uma nota de otimismo. No Brasil, depois de surpresas e frustrações, retomaremos nosso inevitável processo de crescimento econômico, visando um grau maior de desenvolvimento social, o que virá, no devido tempo, e reconstruiremos também a nossa política externa e a diplomacia de qualidade, uma vez afastados os novos bárbaros do poder. É uma questão de persistência, de resiliência, de insistência no caminho iniciado 200 anos atrás, que construiu uma das melhores diplomacias entre novas nações saídas do colonialismo e uma política externa das mais respeitadas entre países em desenvolvimento. 

De minha parte, continuarei me exercendo em minhas vantagens comparativas relativas, que estão na pesquisa, no estudo, na reflexão e na escrita e publicação de materiais diversos atinentes às relações internacionais do Brasil, à sua política externa e à sua diplomacia, cujo itinerário estou concluindo com plena satisfação intelectual e um registro de boas obras realizadas, no plano profissional e no acadêmico.

Muito obrigado. 

 

Paulo Roberto de Almeida

Brasília, 3960, resumo: 19 agosto 2021, 15 p.

Trabalho completo: 

Divulgado na plataforma Academia.edu (link: https://www.academia.edu/50940045/3960_Relacoes_internacionais_politica_externa_do_Brasil_e_carreira_diplomatica_Reflexoes_de_um_diplomata_nao_convencional_2021_) e anunciado no blog Diplomatizzando (link: https://diplomatizzando.blogspot.com/2021/08/relacoes-internacionais-politica_19.html).

 

quinta-feira, 19 de agosto de 2021

Arquivos Históricos, pesquisa científica e cidadania no Brasil - Rosa Vasconcelos e Fátima Argon (Canal História do Brasil como Você Nunca Viu)

 O canal História do Brasil Como Você Nunca Viu   (https://www.youtube.com/c/HistoriadoBrasilComoVoceNuncaViu) recebe no próximo sábado, 21/08/2021, às 21h, as historiadoras e arquivistas Rosa Vasconcelos e Fátima Argon para a 𝓵𝓲𝓿𝓮  

Arquivos Históricos, pesquisa científica e cidadania no Brasil


Rosa Maria Gonçalves Vasconcelos é graduada em História pelo UniCEUB e mestra em Ciências da Informação pela UnB. 

Servidora do Quadro de Pessoal do Senado Federal, exerce há mais de vinte anos o cargo de chefe do Arquivo Histórico do Senado, tendo sido, ainda, diretora-geral-adjunta da Casa. Coordenou e participou de sem-número de projetos de otimização do acesso e modernização das ferramentas de pesquisa do Arquivo, além de publicações e exposições, em especial aquela que expôs as Fallas do Throno, conjunto documental reconhecido pelo Projeto Memória do Mundo da Unesco em 2014. Publicou o livro “Dados biográficos dos senadores” (Editora do Senado, 2002). 

Maria de Fátima Moraes Argon da Matta é graduada em História pela Universidade Católica de Petrópolis, graduada em Arquivologia pela Unirio e especialista em História do Brasil pela Ucam. 

Servidora do Quadro de Pessoal do Instituto Brasileiro de Museus (Ibram), foi pesquisadora do Museu Imperial de 1980 a 2018, atuando por quase quatro décadas no Arquivo Histórico; em 2008, dirigiu interinamente o Museu Imperial. Coordenou projetos como a organização de publicações técnicas, seminários e exposições. Atualmente, é arquivista-titular do Centro Alceu Amoroso Lima para a Liberdade (CAALL), presidente do Instituto Histórico de Petrópolis e vice-presidente da Academia Petropolitana de Letras. É associada do IHGRJ, do IHGM e de várias instituições congêneres. Autora de inúmeros artigos e capítulos sobre a história da família imperial brasileira e suas conexões com as artes e a fotografia, publicou, com Bruno Antunes de Cerqueira, o livro “Alegrias e Tristezas. Estudos sobre a autobiografia de D. Isabel do Brasil” (Linotipo Digital e IDII, 2019), maior pesquisa acadêmica já produzida sobre a “Princesa Isabel”.


Regras modernas (e sensatas) de diplomacia - Paulo Roberto de Almeida

 Tomando notas para uma aula inaugural para estudantes de relações internacionais, muitos deles presumivelmente interessados na carreira diplomática. lembrei-me de um velho trabalho que fiz a respeito da diplomacia como carreira, busca que me levou a uma atualização desse trabalho, publicada num livro recente, como informo a seguir: 

800. “Dez Regras Modernas de Diplomacia”, Chicago, 22 jul. 2001; São Paulo-Miami-Washington 12 ago. 2001, 6 p. Ensaio breve sobre novas regras da diplomacia, com inspiração dada a partir do livro de Frederico Francisco de la Figanière: Quatro regras de diplomacia (Lisboa: Livraria Ferreira, 1881, 239 p.). Publicado na revista eletrônica Espaço Acadêmico (Maringá, v. I, n. 4, set. 2001; ISSN: 1519-6186; link para a revista: http://www.periodicos.uem.br/ojs/index.php/EspacoAcademico/issue/view/1239; link para o artigo: http://www.periodicos.uem.br/ojs/index.php/EspacoAcademico/article/view/35896; link para o pdf: http://www.periodicos.uem.br/ojs/index.php/EspacoAcademico/article/view/35896/20907). Postado novamente no blog Diplomatizzando (16/08/2015, link: http://diplomatizzando.blogspot.com/2015/08/dez-regras-modernas-de-diplomacia-paulo.html); disseminado no Facebook (20/08/2017; link: https://www.facebook.com/paulobooks/posts/1628571287206315). Relação de Publicados n. 282.


3744. “Dez regras sensatas para a diplomacia profissional”, Brasília, 28 agosto 2020, 7 p. Revisão atualizada do trabalho n. 800 (2001), sobre as dez regras modernas de diplomacia para publicação em novo livro sobre o Itamaraty. Postado no blog Diplomatizzando (2/09/2020; link: https://diplomatizzando.blogspot.com/2020/09/dez-regras-sensatas-para-diplomacia.html), em Academia.edu (2/09/2020; link: https://www.academia.edu/44005218/Dez_regras_sensatas_para_a_diplomacia_profissional_2020_) e Research Gate (link: https://www.researchgate.net/publication/344058572_Dez_regras_sensatas_para_a_diplomacia_profissional). Incorporado como apêndice ao livro Uma certa ideia do Itamaraty: a reconstrução da política externa e a restauração da diplomacia brasileira (n. 3749).


Dez regras sensatas para a diplomacia profissional 

 

Paulo Roberto de Almeida

(www.pralmeida.orghttp://diplomatizzando.blogspot.com)

[Objetivorevisão do trabalho n. 800finalidaderecomendações úteis aos diplomatas] 

 

Apreciador, como sempre fui, de velhos manuscritos relativos à história diplomática do Brasil, deparei-me certa vez, nos catálogos da Library of Congress (infalível para esse tipo de trouvaille), com um antigo opúsculo, hojedémodé, mas provavelmente um muito útil manual para os nossos antecessores do boa diplomacia portuguesa do Oitocentos. Seu autor, um diplomata do regime monárquico português da segunda metade do século XIX, Frederico Francisco de la Figanière, o intitulou modestamente Quatro regras de diplomacia (Lisboa: Livraria Ferreira, 1881, 239 p.). Servindo então na embaixada do Brasil em Washington, que possuía naqueles tempos uma modesta mais muito atrativa biblioteca, utilizei-me do sistema de empréstimos entre bibliotecas, para solicitá-lo à Biblioteca do Congresso americano; passei bons momentos na companhia desse manual feito em intenção dos diplomatas portugueses mais jovens, e devorei-o com prazer, mais de um século depois de sua publicação original (e, ao que parece, única).

O prazer me foi dado não tanto pelo enunciado, aliás pouco extensivo, das ditas quatro regras de diplomacia – manifestamente desadaptadas à diplomacia do século XXI – mas mais exatamente pelos seus saborosos anexos históricos, uma “colecção de modelos das principaes especies de escriptos diplomaticos”, entre elas cartas da época do tratado de Utrecht (1713), um protesto contra a violação de imunidades no período da Revolução francesa (o pobre enviado português à corte de Luís XVI jogado à prisão, como um reles conspirador aristocrata), além de outros “escriptos” do Congresso de Viena ou relativos ao Brasil imperial. Segundo Figanière, “Dos diversos ramos do serviço público, o diplomático é sem dúvida aquele em que ao agente é concedida maior liberdade no modus operandi” (p. 9), o que, se era correto em sua época de comunicações lentas e precárias, há muito deixou de corresponder à realidade de uma diplomacia cada vez mais enquadrada de perto, não apenas pela Secretaria de Estado – com a qual estamos em contato 24 horas do dia, praticamente –, mas seguida com atenção pela imprensa, pelos grupos de interesse e, agora também, pelas hordas de “anti-globalizadores” e “anti-globalistas”, conectados às redes de comunicação social de uma aldeia decididamente global.

Enfim, quais eram essas regras que apareciam como um imperativo moral, quase que de ordem kantiana, ao colega lusitano de mais de um século atrás? Elas eram o objeto de quatro curtos capítulos de observações e de recomendações a eventuais candidatos à carreira diplomática: 

I. Agradar; 

II. Ser leal; 

III. Antepor a palavra à pena; 

IV. Ter concisão e ordem no redigir. 

Como se vê, nada de muito esclarecedor ou propriamente entusiasmante, para a prática atual, a não ser talvez a última das regras, que vinha com uma advertência ainda válida para os tempos que correm: “O estilo prolixo e difuso é um defeito que cumpre evitar nas composições diplomáticas” (p. 70). Dois pontos para nosso antecessor português, pois que ele também achava que, de todos os deveres, o primeiro era o de bem servir a pátria, algo que não custa relembrar atualmente (e de modo permanente).

Deixo de lado as regras relativas a agradar e ser leal (ao seu Real Senhor, ora pois), mais adequadas talvez à “época das cabeleiras empoadas, dos peitilhos de renda, dos passeios em cadeirinhas, (ou) da pena de pato, aparada entre boas pitadas de rapé”, nas palavras de outro antecessor meu da belle époque, José Manuel Cardoso de Oliveira (in A moderna concepção da diplomacia e do comércio, 1925). A terceira regra, a rigor, também apresenta sua utilidade, uma vez que ainda costumamos tratar oralmente de algum assunto importante, antes de oficializá-lo mediante uma nota diplomática ou um aide-mémoire.

Em todo caso, inspirado no exemplo do ilustre representante da diplomacia lusa de tão saudosa memória – ela foi, com toda a sua habilidade no navegar entre os interesses  sempre divergentes dos principais poderes europeus, a base de nossa diplomacia imperial, reconhecidamente excelente para os padrões da época, mesmo em escala comparativa com outros países mais avançados economicamente –, resolvi arriscar, igualmente, formular minhas próprias regras modernas de diplomacia, esperando que elas possam ser bem recebidas por meus colegas de profissão mais jovens. Aqui vão elas, portanto, mas em formato reduzido, geralmente mais pensadas em função do ambiente multilateral, que é o comum na vida atual da diplomacia, do que para situações de relações bilaterais.

 

1. Servir a pátria, mais do que aos governos, conhecer profundamente os interesses permanentes da nação e do povo aos quais serve; ter absolutamente claros quais são os grandes princípios de atuação do país a serviço do qual se encontra.

 

O diplomata é um agente do Estado e, ainda que ele deva obediência ao governo ao qual serve, deve ter absoluta consciência de que a nação tem interesses mais permanentes e mais fundamentais do que, por vezes, orientações momentâneas de uma determinada administração, que pode estar guiada — mesmo se em política externa isto seja mais raro — por considerações “partidárias”, ou “ideológicas”, de reduzido escopo nacional. Em resumo, não seja subserviente ao poder político, que, como tudo mais, é passageiro, mas procure inserir uma determinada ação particular no contexto mais geral dos interesses nacionais.

 

2. Ter domínio total de cada assunto, dedicar-se com afinco ao estudo dos assuntos de que esteja encarregado, aprofundar os temas em pesquisas paralelas.

 

Esta é uma regra absoluta, que deve ser assumida plenamente: numa Secretaria de Estado, ou num posto no exterior, o normal é a divisão do trabalho, o que implica não apenas que o diplomata terá controle sobre os temas que lhe forem atribuídos, mas que ele redigirá, igualmente, as instruções para posições negociais sobre as quais seu conhecimento é normalmente superior do que o próprio ministro de Estado ou o chefe do posto. Ele deve, portanto, mergulhar nos dossiês, verificar antigos maços sobre o assunto (a poeira dos arquivos é extremamente benéfica ao desempenho funcional), percorrer as estantes da biblioteca para livros históricos, estudos temáticos e gerais sobre a mesma questão, formular perguntas a quem já se ocupou do tema em conferências negociadoras anteriores, manter correspondência particular com seu contraparte no posto (ou na Secretaria de Estado), enfim, preparar-se como se fosse para ser sabatinado sobre o assunto no mesmo dia.

 

3. Adotar uma perspectiva histórica e estrutural de cada tema, situá-lo no contexto próprio, manter independência de julgamento em relação às idéias recebidas e às “verdades reveladas”.

 

Em diplomacia, raramente uma questão surge do nada, de maneira inopinada. Um tema negocial vem geralmente sendo “amadurecido” há algum tempo, antes de ser inserido formalmente na agenda bilateral ou multilateral. Estude, portanto, todos os antecedentes do assunto em pauta, coloque-o no contexto de sua emergência gradual e no das circunstâncias que presidiram à sua incorporação ao processo negocial, mas tente dar uma perspectiva nova ao tema em questão. Não hesite em contestar os fundamentos da antiga posição negociadora ou duvidar de velhos conceitos e julgamentos (as idées reçues), se você dispuser de novos elementos analíticos para tanto. 

 

4. Empregar as armas da crítica ao considerar posições que devam ser adotadas por sua delegação; praticar um ceticismo sadio sobre prós e contras de determinadas posições; analisar as posições “adversárias”, procurando colocá-las igualmente no contexto de quem as defende.

 

Ao receber instruções, leia-as com o olho crítico de quem já se dedicou ao estudo da questão e procure colocá-las no contexto negocial efetivo, geralmente mais complexo e matizado do que a definição de posições in abstracto, feita em ambiente destacado do foro processual, sem interação com os demais participantes do jogo diplomático. Considerar que os argumentos da parte adversa também contribuem para avaliar os fundamentos de sua própria posição, ajudando a revisar conceitos e afinar seu próprio discurso. Uma saudável atitude cética — isto é, sem negativismos inconsequentes — ajuda na melhoria constante da posição negociadora de sua chancelaria.

 

5. Dar preferência à substância sobre a forma, ao conteúdo sobre a roupagem, aos interesses econômicos concretos sobre disposições jurídico-abstratas.

 

Os puristas do direito e os partidários da “razão jurídica” hão de me perdoar a deformação “economicista”, mas os tratados internacionais devem menos aos sacrossantos princípios do direito internacional, e bem mais a considerações econômicas concretas, por vezes de reduzido conteúdo “humanitário”, mas dotadas, ao contrário, de um impacto direto sobre os ganhos imediatos de quem as formula. Como regra geral, não importa quão tortuosa (e torturada) sua linguagem, um acordo internacional representa exatamente – por vezes de forma ambígua – aquilo que as partes lograram inserir em defesa de suas posições e interesses concretos. Portanto, não lamente o estilo “catedral gótica” de um acordo específico, mas assegure-se de que ele contém elementos que contemplem os interesses do país.

 

6. Afastar ideologias, considerações de natureza religiosa, ou interesses político-partidários das considerações relativas à política externa do país.

 

A política externa tende geralmente a elevar-se acima dos partidos políticos, bem como a rejeitar considerações ideológicas, pois ela trata dos interesses mais gerais, e permanentes do país. Mas sempre somos afetados por nossas próprias atitudes mentais e algumas “afinidades eletivas” que podem revelar-se numa opção preferencial por um determinado tipo de discurso, “mais engajado”, em lugar de outro, supostamente mais “neutro”. Poucos acreditam no “caráter de classe” da diplomacia, ou em vagos “valores espirituais” como fundamentos para a defesa dos interesses nacionais, mas, eventualmente, militantes “classistas” ou defensores de certas posturas “espirituais” gostariam de ajudar na “inflexão” política ou social de determinadas posições assumidas pelo país internacionalmente, sobretudo quando os temas da agenda envolvem definição de regras que afetam agentes econômicos e expectativas de ganhos relativos para determinados setores de atividade. Deve-se buscar o equilíbrio de posições e uma definição ampla, verdadeiramente nacional, do que seja interesse público relevante. O laicismo não é uma invenção do Iluminismo para se opor ou contrariar posturas ou virtudes “conservadoras”, mas uma simples exigência de bom senso nas condições dos modernos Estados burocráticos em condições de interdependência global, na qual etnias, religiões, culturas diversificadas interagem nos grandes circuitos, nos fluxos contínuos da globalização. A introversão nos “costumes do passado” ou algum entusiasmado impulso em direção do “sentido da História”, não serve exatamente aos objetivos precípuos do jogo diplomático, sendo apenas um recuo, por vezes reacionário, ou alguma tentação “progressista” de pouca fundamentação substantiva, que interfere num julgamento abalizado sobre o processo decisório em causa. 

 

7. Antecipar ações e reações em um processo negociador, prever caminhos de conciliação e soluções de compromisso, nunca tentar derrotar completamente ou humilhar a parte adversa.

 

O soldado e o diplomata, como ensinava Raymond Aron, são os dois agentes principais da política externa de um Estado, embora atualmente outras forças sociais – como as ONGs e os homens de negócio –, disputem espaço nos mecanismos decisórios burocráticos, mas, à diferença do primeiro, o segundo não está interessado em ocupar território inimigo ou destruir sua capacidade de resistência. Ainda que, em determinadas situações negociais, o interesse relevante do país possa ditar alguma instrução do tipo “vá ao plenário com todas as suas armas (argumentativas) e não faça prisioneiros”, o confronto nunca é o melhor método para lograr vitória num processo negociador complexo. A situação ideal é aquela na qual você “convence” as outras partes negociadoras de que aquela solução favorecida por seu governo é a que melhor contempla os interesses de todos os participantes e na qual as partes saem efetivamente convencidas de que fizeram o melhor negócio, ou pelo menos deram a solução possível ao problema da agenda. Isso pode exigir, igualmente, que você consulte seu governo sobre os méritos eventuais dos argumentos dos demais parceiros no processo, como forma de se chegar a uma solução de consenso, que é o melhor resultado possível numa negociação (seja ela bilateral ou multilateral).

 

8. Ser eficiente na representação, ser conciso e preciso na informação, ser objetivo na negociação.

 

Considere-se um agente público que participa de um processo decisório relevante e convença-se de que suas ações terão um impacto decisivo para sua geração e até para a história do país: isto já é um bom começo para dar dignidade à função de representação que você exerce em nome de todos os seus concidadãos. Redija com clareza seus relatórios e seja preciso nas instruções, ainda que dando uma certa latitude ao agente negocial direto; não tente fazer literatura ao redigir um anódino memorando, ainda que um mot d’esprit aqui e ali sempre ajuda a diminuir a secura burocrática dos expedientes oficiais. 

Via de regra, estes devem ter um resumo inicial sintetizando o problema e antecipando a solução proposta, um corpo analítico desenvolvendo a questão e expondo os fundamentos da posição que se pretende adotar, e uma finalização contendo os objetivos negociais ou processuais desejados. Na própria Secretaria de Estado, lembre-se que os gabinetes ou o próprio chefe de Estado, nem sempre têm tempo para ler longas exposições analíticas: seja conciso e objetivo, portanto, como forma de facilitar uma rápida decisão sobre o assunto. No foro negociador, não tente esconder seus objetivos sob uma linguagem empolada, mas seja claro, direto e preciso ao expor os dados do problema e ao propor uma solução de compromisso em benefício de todas as partes.

 

9. Valorize a carreira diplomática sem ser carreirista, seja membro da corporação sem ser corporativo, não torne absolutas as regras hierárquicas, que não podem obstaculizar a defesa de posições bem fundamentadas.

 

Geralmente se entra na carreira diplomática ostentando um certo temor reverencial pelos mais graduados, normalmente tidos como mais “sábios” e mais preparados do que o iniciante. Mas, se você se preparou adequada e intensamente para o exercício de uma profissão que corresponde a seus anseios intelectuais e responde a seu desejo de servir ao país mais do que aos pares, não se deixe intimidar pelas regras da hierarquia e da disciplina, mais próprias do quartel do que de uma chancelaria. Numa reunião de formulação de posições, exponha com firmeza suas opiniões, se elas refletem efetivamente um conhecimento fundamentado do problema em pauta, mesmo se uma “autoridade superior” ostenta uma opinião diversa da sua. Trabalhe com afinco e dedicação, mas não seja carreirista ou corporativista, pois o moderno serviço público não deve aproximar-se dos antigos estamentos de mandarins ou das guildas medievais, com reservas de “espaço burocrático” mais definidas em função de um sistema de “castas” do que do próprio interesse público. A competência no exercício das funções assignadas deve ser o critério essencial do desempenho no serviço público, não o ativismo em grupos restritos de interesse puramente umbilical.

 

10. Não faça da diplomacia o foco exclusivo de suas atividades intelectuais e profissionais, pratique alguma outra atividade enriquecedora do espírito ou do físico, não coloque a carreira absolutamente à frente de sua família e dos amigos.

 

O desempenho profissional é importante, mas ele não pode ocupar todo o espaço mental do servidor, à exclusão de outras atividades igualmente valorizadas socialmente ou individualmente, seja no esporte, seja no terreno da educação e da cultura ou da arte. Uma dedicação acadêmica é a que aparentemente mais se coaduna com a profissão diplomática, mas quiçá isso represente uma deformação pessoal do autor destas linhas. Em todo caso, dedique-se potencialmente a alguma ocupação paralela, ou volte sua mente para um hobby absorvente, de maneira a não ser apenas um “burocrata alienado”, voltado exclusivamente para as lides diplomáticas. Sim, e por mais importante que seja a carreira diplomática para você, não a coloque na frente da família ou de outras pessoas próximas. Muitos se “sentem” sinceramente diplomatas, outros apenas “estão” diplomatas, mas, como no caso de qualquer outra profissão, a diplomacia não pode ser o centro exclusivo de sua vida: os seres humanos, em especial as pessoas da família, são mais importantes do que qualquer profissão ou carreira.

 

Paulo Roberto de Almeida

[Chicago, 22 de julho; São Paulo-Miami-Washington, 800: 11-12 de agosto de 2001; Brasília, 3744: 28/08/2020]

 

Paulo Roberto de Almeida

Brasília, 3744, 27 de agosto de 2020

Postado no blog Diplomatizzando (2/09/2020; link: https://diplomatizzando.blogspot.com/2020/09/dez-regras-sensatas-para-diplomacia.html), em Academia.edu (2/09/2020; link: https://www.academia.edu/44005218/Dez_regras_sensatas_para_a_diplomacia_profissional_2020_) e Research Gate (link: https://www.researchgate.net/publication/344058572_Dez_regras_sensatas_para_a_diplomacia_profissional; DOI: 10.13140/RG.2.2.17159.42403).

 

 

Relações internacionais, política externa do Brasil e carreira diplomática: Reflexões de um diplomata não convencional - Paulo Roberto de Almeida

 Relações internacionais, política externa do Brasil e carreira diplomática: Reflexões de um diplomata não convencional


Paulo Roberto de Almeida

Diplomata de carreira, professor universitário

(www.pralmeida.orghttp://diplomatizzando.blogspot.com)

Brasília, 17-19 agosto 2021, 15 p.

Notas para aula inaugural no quadro do curso do Ibmec Global Affairs, em 20/08/2021, 19hs (Sala Virtual Teams: https://bit.ly/3szvGzn).

  

Vamos começar pelo maior assunto do momento: a momentosa retirada dos Estados Unidos do Afeganistão e o que isso significa para as relações internacionais, para a tensão existente no sistema internacional entre os dois grandes impérios do momento, como o Brasil se situa nesse novo quadro global, e o que faz a nossa diplomacia nesse quadro algo confuso. Creio que estou habilitado para comentar um pouco sobre essa decisão de enorme impacto, sobretudo moral, do ponto de vista da potência que pretendia garantir o bom funcionamento de uma ordem internacional aberta, liberal e garantidora das liberdades democráticas.

Residente que fui nos Estados Unidos, por duas vezes, ademais de diversas outras viagens de trabalho, acadêmicas ou de simples lazer naquele país continente, que atravessei duas vezes costa a costa, do Atlântico ao Pacífico, e várias outras vezes no sentido Norte-Sul ou em diagonal, percorrendo a quase totalidade dos seus estados federados – faltou o Dakota do Norte, no território continental, o Alaska e o Havaí, no Pacífico, e o estado associado de Porto Rico, para completar toda a nação – posso dizer que conheço razoavelmente aquela grande nação. Aliás antes mesmo de visitar ou residir nos Estados Unidos, eu já era assinante da New York Review of Books, da Foreign Affairs, assim como fui, em épocas diversas, assinante da Foreign Policy, do Washington Quarterly, do Washington Post, do New York Times e, por duas vezes, da provocante revista The New Yorker

(...)

Ler a íntegra neste link: 

https://www.academia.edu/50940045/3960_Relacoes_internacionais_politica_externa_do_Brasil_e_carreira_diplomatica_Reflexoes_de_um_diplomata_nao_convencional_2021_


Palestra "Pesquisa em fontes primárias em política externa brasileira: o caso do acervo do MRE", Rogerio Farias - Centro de Estudos Globais da UnB

Centro de Estudos Globais - Universidade de Brasília

te enviou uma mensagem sobre o seu evento:
Organizado por: Centro de Estudos Globais - Universidade de Brasília
Data: quarta, 18 de agosto de 2021, 10h00 - 12h00
Local: Videoconferência via Sympla Streaming

Nós agradecemos o seu interesse pelas atividades do Centro de Estudos Globais da Universidade de Brasília.
O seu certificado de participação na palestra "Pesquisa em fontes primárias em política externa brasileira: o caso do acervo do MRE" foi gerado e foi enviado por e-mail. O arquivo também está disponível na aba MEUS INGRESSOS da sua conta Sympla.
O vídeo da palestra foi publicado no nosso Canal no YouTube - aproveite para compartilhar com colegas que não tiveram a oportunidade de assistir a palestra ao vivo. Se acessa em https://youtu.be/HWFDc9Dg-0o .
Nós esperamos encontrá-lo(a) novamente nas próximas atividades do Centro de Estudos Globais. 
Pelo momento, acompanhe os nossos perfis e o nosso website:

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Os próximos eventos do Centro estão abertos para inscrição:

🔥 Palestra "A diplomacia cultural brasileira na década de 1960: continuidades e rupturas" - Bruno Miranda Zetola - https://bit.ly/3ktv9fZ
🔥 Palestra "Estadistas e diplomatas na construção do Brasil, do século XIX ao XXI" - Paulo Roberto de Almeida - https://bit.ly/37wYkqQ
🔥 Curso "Escrever e Publicar um Artigo Científico - técnicas, roteiros e dicas" - Antonio Carlos Lessa - https://bit.ly/3xYCgjK

Cordialmente

Centro de Estudos Globais