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terça-feira, 8 de agosto de 2023

A Invasão da Ucrânia - Livres, Setorial Internacional

A Invasão da Ucrânia

August 8, 2023


“Ouçam-nos. O povo ucraniano quer a paz, assim como seu governo. Eles não apenas querem, mas demonstram esse desejo de paz. Eles fazem tudo o que podem. Não estamos sozinhos: é verdade que a Ucrânia é apoiada por muitas nações. Por que? Não se trata de paz a qualquer custo. Trata-se de paz e princípios, de justiça, de direito internacional. Trata-se do direito à autodeterminação, para que cada pessoa possa determinar seu próprio futuro. É direito de toda sociedade e de toda pessoa à segurança, a uma vida sem ameaças. Tenho certeza de que esses direitos também são importantes para você.

A verdade é que isso precisa acabar antes que seja tarde demais. Se a liderança da Rússia não quiser nos encontrar do outro lado da mesa pelo bem da paz, talvez ela se sente à mesa com você. Vocês russos querem uma guerra? Eu gostaria muito de saber a resposta, mas essa resposta depende apenas de você, dos cidadãos da Federação Russa. Obrigado pela sua atenção.”

No dia 23 de fevereiro de 2022, às vésperas da invasão do seu país, o presidente Volodymyr Zelensky transmitiu um pronunciamento dramático na televisão, direcionado não para o seu povo, mas para o povo russo. Ele o fez no idioma russo, por coincidência seu idioma nativo, e com o propósito de sensibilizar os cidadãos do país vizinho sobre os perigos de uma guerra, que poderia ter consequências imprevisíveis. Desde então, o que vemos é uma tragédia humanitária de proporções globais, na qual a Ucrânia tenta defender sua própria existência como país soberano e independente, enquanto a Rússia empreende uma guerra de agressão, confrontando a letra e o espírito da Carta das Nações Unidas, assim como as normas mais elementares do Direito Internacional e de todos os protocolos humanitários multilaterais.

O fato é que, desde que os primeiros soldados russos cruzaram as fronteiras da Ucrânia em 24 de fevereiro de 2022, o mundo tornou-se um lugar muito mais inseguro. O temor de um confronto nuclear entre as grandes potências nos traz à lembrança os piores momentos da Guerra Fria; e hoje, a possibilidade de uma catástrofe na qual uma boa parte da humanidade pereceria não está mais fora de questão.

Os antecedentes desse conflito, que já pode ser considerado como um dos mais mortíferos das últimas décadas, são produto de um complicado contexto de relações bilaterais e regionais. Rússia e Ucrânia possuem, como seu ancestral comum, a “Rússia de Kiev”, uma confederação de tribos eslavas do Leste Europeu que existiu entre os séculos IX ao XIII. Durante o terrível século XX, a incorporação violenta da chamada “pequena Rússia” à recém criada União Soviética, quando da consolidação do poder bolchevique, assistiu à redução da Ucrânia à condição de estado-vassalo do novo império, sucessor da Rússia czarista. O povo ucraniano não só foi abusado e vilipendiado, como também dizimado pela fome, nos anos 1930, num evento histórico conhecido como Holodomor, “morte pela fome”, no qual a administração central soviética confiscava a produção de alimentos por parte dos camponeses ucranianos, causando a morte de mais de 4 milhões de pessoas. O ocorrido na década de trinta foi, de certa forma, uma terrível vingança de Stalin contra o povo ucraniano, que tinha tentando manter sua independência, durante dois anos, quando da criação do novo Estado soviético em 1918, e deixou cicatrizes profundas na sociedade ucraniana.

A União Soviética teve seu fim em 1991, mas as fronteiras da Ucrânia só foram formalmente asseguradas em 1994, através do Memorando de Budapeste, documento no qual a Rússia se comprometeu a respeitar as fronteiras da Ucrânia, em troca do seu armamento nuclear. Contudo, a fronteira geográfica ali delimitada não foi suficiente para romper laços culturais de parte da população ucraniana no leste do país, o Donbas, habitado em grande medida por russos étnicos, que continuou mais próximo de Moscou, o que abriria margem para a interferência russa e sua manipulação por Putin nos anos seguintes.

Mais recentemente, em 2012, o então presidente ucraniano Viktor Yanukovych,  mesmo tendo posições pró-Rússia, foi pressionado por setores da sociedade ucraniana (sobretudo na parte ocidental do país) a iniciar negociações com a União Europeia (UE) para um Acordo de Associação abrangente nas disciplinas de comércio exterior e de cooperação, o que aproximaria a Ucrânia do bloco europeu, de modo análogo ao que já havia acontecido nas duas décadas antesriores com os países bálticos, e outros da Europa central e oriental. O acordo com a UE tinha a simpatia de grande parte da população, que o via como um primeiro passo da integração do país ao sistema ocidental, e pelos bons prospectos de investimentos e de facilidade no trânsito de pessoas, em prol do desenvolvimento econômico e político ao país. 

Entretanto, em meados de agosto de 2013, a Rússia – tradicionalmente o principal parceiro comercial da Ucrânia – sinalizou que mudaria seus regulamentos alfandegários de importações vindas Ucrânia, de modo a pressionar o governo ucraniano a desistir desse acordo com a UE. Em 14 de agosto de 2013, o Serviço de Alfândega da Rússia passou a bloquear todos os produtos vindos da Ucrânia, o que causou grande prejuízo econômico e comoção política. O acordo tinha assinatura prevista para 28 de novembro de 2013, em Vilna (Lituânia), mas em 21 de novembro de 2013, o governo de Yanukovych suspendeu a conclusão do acordo com a UE. Em vez disso, Yanukovych reuniu-se em 17 de dezembro com o presidente Putin em Moscou para anunciar a emissão de 15 bilhões de dólares em títulos de empréstimos para o país, bem como um desconto para a aquisição de gás. Entendia-se ali que a iniciativa de aproximação com o bloco europeu estava sepultada.

No entanto, a população ucraniana não entendeu dessa forma. Durante os meses de janeiro e fevereiro de 2014, protestos começaram a ganhar corpo, e as violentas tentativas de supressão por parte do governo apenas alimentaram o fervor dos manifestantes, que se reuniram na Praça (‘maidan’, em ucraniano) da Independência, no que ficou conhecido como “Euromaidan”. O episódio culminou na “Revolução da Dignidade” que resultou no afastamento de Yanukovych, que se refugiou em Moscou. A Rússia, por sua parte, aproveita-se da situação para anexar a Crimeia, região da Ucrânia cuja população é composta majoritariamente de falantes do idioma russo, e na qual o país tem importantes bases navais, como a de Sebastopol. 

A anexação ilegal da península da Crimeia foi legitimada por um referendo imediatamente contestado na esfera diplomática internacional, no qual 95,5% dos residentes supostamente manifestaram-se a favor de integrar a Federação Russa. A Ucrânia, fragilizada, não teve condições de reagir, e acabou violentada em sua soberania por essa primeira agressão russa. Ainda que um conflito entre os dois países não tenha se desencadeado ali – e sim na parte oriental da Ucrânia – o recado de Vladimir Putin havia sido dado para todos os países da região: o expansionismo da Rússia estava definitivamente de volta, e não tardaria muito para que uma nova crise fosse instaurada.

Da mesma forma, militantes separatistas, com claro apoio do governo russo, depuseram os governos de duas províncias, Donetsk e Luhansk, o que deu início à “Guerra do Donbas”, conflito que vitimou mais de 15 mil pessoas de 2014 a 2022, e que esteve na origem da derrubada, por um foguete russo, de um avião civil da Malásia sobre aquele território, com a perda de 289 vidas. A narrativa desses separatistas, e do governo de Putin, era de que a Ucrânia estaria cometendo constantes violações aos direitos dos russos étnicos. Durante todo esse período, no entanto, o governo ucraniano reiterou o caráter territorialista do conflito, e que o verdadeiro responsável por ele era o insaciável assédio imperialista da Rússia. Já em 2022, a justificativa foi a eventualidade do ingresso da Ucrânia na aliança militar ocidental, a Organização do Tratado do Atlântico Norte – OTAN. 

Mais do que meramente um conflito entre nações, a invasão e a guerra de agressão da Rússia contra a Ucrânia traz consequências globais, nos campos humanitário, político, econômico e geopolítico. Até o momento (meados de 2023), estima-se que cerca de 150 mil pessoas perderam suas vidas em ambos os lados, número que supera os 20 anos de guerra no Afeganistão, e se compara aos 10 anos da guerra civil na Síria. A guerra de agressão criou uma crise sem precedentes na diplomacia internacional, uma vez que um país dotado de armas nucleares, membro permanente do Conselho de Segurança das Nações Unidas, está atuando em flagrante e frontal violação a vários de seus princípios basilares – notadamente, a soberania territorial e a não-intervenção nos assuntos internos dos Estados.

A Carta da ONU (1945) traz em seu artigo 2(4) que “todos os Membros deverão evitar em suas relações internacionais a ameaça ou o uso da força contra a integridade territorial ou a dependência política de qualquer Estado, ou qualquer outra ação incompatível com os Propósitos das Nações Unidas“. O artigo seguinte, 2(5), chega a estabelecer uma espécie de dever moral a todos eles: “Todos os Membros darão às Nações toda assistência em qualquer ação a que elas recorrerem de acordo com a presente Carta e se absterão de dar auxílio a qual Estado contra o qual as Nações Unidas agirem de modo preventivo ou coercitivo”. A memória da Segunda Guerra Mundial forçou uma mudança de postura dos países: manter a paz tornou-se um compromisso geral. No entanto, nos dias atuais, o ato russo de agressão não provocada – insuscetível, portanto, de ser justificado como sendo uma “defesa preventiva”, como previsto em outro artigo da Carta – alterou toda a dinâmica moderna de manutenção da paz, e fugiu dos argumentos considerados plausíveis para uma guerra justa, o chamado jus ad bellum.

A Rússia é o maior país em extensão territorial do planeta, possui um sistema de espionagem avançado, tecnologia, armamento e um regime político autoritário, que ampara constantes violações de direitos humanos. A desproporção de forças para com a Ucrânia, o total descaso com as consequências da guerra de agressão e o aberto desprezo em relação às retaliações internacionais tornam ainda mais dramático o cenário corrente.

Desde fevereiro de 2022, cerca de um terço da população ucraniana buscou refúgio em outros países, notadamente na Europa Ocidental, na tentativa de proteger suas vidas. Segundo a ONU, o êxodo ucraniano compreende mais de 18 milhões de pessoas, entre os 44 milhões da população pré-guerra. Mas, a maior catástrofe humanitária desta guerra de agressão é, sem dúvida, a não-distinção entre alvos civis e militares pelas forças russas, que deliberadamente atingem áreas povoadas e suas estruturas de sobrevivência, como energia e alimentação, em total desrespeito aos protocolos existentes nessa esfera. De forma geral, todas as convenções atinentes às situações de guerra foram completamente ignoradas pela invasão de Putin, assim como foi destruído todo o arcabouço internacional para a promoção da paz e da segurança, advindo das duas guerras mundiais do século XX.

Por tais motivos, defender a neutralidade, no contexto desta guerra, é ignorar o Direito Internacional, especialmente o humanitário, e escolher apoiar o lado agressor. Para além de objetivos econômicos, é dever comum dos estados nacionais zelar pela vida de seus habitantes, lutar para a manutenção da dignidade humana. O valor da vida humana como superior aos conflitos vem sendo debatido por filósofos há séculos, como na obra clássica do jurista Hugo Grócio, “De Jure Belli ac Pacis”, na qual o autor defende um direito das gentes que serviria em períodos de paz e de guerra. Esse direito das gentes foi sedimentado com diversos instrumentos internacionais, para além da Carta das Nações Unidas, a exemplo das duas conferências da Paz da Haia (1899 e 1907), no tratado da Liga das Nações de 1919, no Pacto Kellogg-Briand (1928) e nas diversas convenções e protocolos de Genebra. Indiretamente, a cada vez que são ignoradas zonas de conflito, que civis são propositalmente atingidos e que direitos básicos são negados à população ucraniana, todos os países que se comprometeram com a paz são atingidos. Se a Rússia de Putin não pode ser contida, e corretamente sancionada, qual a esperança para seus vizinhos?

Diferentemente da Rússia, o direito de defesa da Ucrânia é inquestionável. Ao defender suas fronteiras e soberania, os ucranianos entram nos limites admitidos para a guerra, e utilizam a ação defensiva como condição para a defesa da sua integridade nacional e a dignidade do seu povo. Pela enorme diferença entre os países, e por todas as demais características dessa guerra de agressão não provocada, sugerir a neutralidade para terceiros países significa, na prática, deliberadamente ou não, apoiar o lado agressor, desrespeitar a dor de milhões de inocentes, uma postura covarde e contrária aos princípios básicos da liberdade.

A lógica do rationae personae demonstra que os não-combatentes devem ser salvaguardados das ações militares, mas o número crescente de crimes de guerra (estupros e assassinatos a frio), praticados por soldados e mercenários russos, os sequestros de pessoas e a retirada de crianças de seus pais, assim como ataques em zonas urbanas contra alvos civis provam o descontrole geral da guerra. A implosão deliberada da barragem de Kakhovka acrescentou um peso ainda mais dramático no contexto da guerra, pela extensão da tragédia humanitária e pela catástrofe ecológica que ela provocou, com efeitos econômicos e naturais de longa duração.

Para além da situação presente, os impactos futuros da guerra ainda estão longe de serem passíveis de estimativa. Só no tange aos dados sobre a infância, a UNICEF estima que mais de 7,8 milhões de crianças e adolescentes sofreram diretamente com a guerra de agressão, perdendo desde acesso à educação, saúde e alimentação, até suas famílias e vidas.

Mas, mais do que trazer números, falar sobre guerra é falar sobre pessoas e seu sofrimento diário. Não são Estados que passam noites em claro, não são governos que perdem entes queridos, não são presidentes que lotam as trincheiras de mortos. A postura adotada pelo Brasil, tanto pelo atual governo como pelo anterior, de apenas condenar a guerra de forma retórica e genérica, sem defender o Direito Internacional de forma enfática e inambígua, não pode ser entendida como democrática – ou sequer como postura política válida no contexto global, em face da clareza de princípios prescritos na Carta das Nações Unidas, ou nas próprias cláusulas de relações internacionais inscritas no artigo 4º da Constituição Federal de 1988.

Essa guerra de agressão não atinge diretamente o território brasileiro, mas a desestruturação econômica que a segue é partilhada por todos os países, sendo entre nós sentida principalmente no setor do agronegócio e no provimento energético. A relutância do governo brasileiro, pretensamente embasada em preocupações econômicas, nos traz à reflexão quanto aos limites da economia na equação da vida. Nem tudo no mundo é relativizável em prol de interesses materiais.

Já passou da hora de o governo brasileiro ter uma postura mais coerente com os valores e princípios históricos de sua diplomacia – sobretudo quanto aos compromissos assumidos no plano da defesa da paz e da segurança internacionais, como estabelecido na Carta da ONU. O atual “silêncio seletivo” do Brasil poderá se voltar contra o país no futuro; afinal de contas, quem se comprometeria a defender um país cujos únicos pronunciamentos recentes de seu governo foram em prol de ditaduras, como a Venezuela? Que confiabilidade tem um país que põe interesses pequenos à frente de seus princípios?


O estranho caso de afinidade eletiva do Brasil de Lula para com um dos parceiros diplomáticos do Brasil - Paulo Roberto de Almeida

O estranho caso de afinidade eletiva do Brasil de Lula para com um dos parceiros diplomáticos do Brasil 

 

Paulo Roberto de Almeida, diplomata, professor.

Nota sobre a obsessão de Lula em defender os interesses de Putin no caso da guerra de agressão da Rússia contra a Ucrânia. 

 

Lula deve ser um dos poucos, senão o único dos chefes de Estado de países relevantes do mundo que expressa cuidados e que defende as “legítimas preocupações da Rússia com sua segurança”! 

Defesa e segurança da Rússia?

DA RÚSSIA?!?!?

O BRASIL?!?!?

A Rússia, tão grande, com tantos recursos e um poderio bélico impressionante, não é capaz de se defender sozinha?

Alguém no mundo está atacando a Rússia?

Ela já pediu ajuda à ONU?

Já denunciou o sórdido ataque à sua soberania e a violação da Carta da ONU por esse vil atacante?

O Brasil precisa vir em seu socorro?

E Lula já determinou que sua diplomacia viesse ou fosse em socorro à “legítima preocupação de segurança da Rússia”?

 

Desculpem, mas tenho legítimas dúvidas sobre o sentido da preocupação de Lula e sobre os fundamentos da atuação, neste caso, da diplomacia brasileira.

Algum diplomata da ativa, desse setor ou de outro, poderia me explicar esse estranho caso de afeição particular do Brasil para com o maior país do mundo?

Tem alguma nota do Itamaraty sobre esse estranho caso de afinidade eletiva com um membro específico da comunidade internacional?

Alguma outra nota por acaso tratando do que vêm ocorrendo no território e com a população de um vizinho específico desse outro país específico objeto dessa estranha e bizarra afinidade?

Só queria entender essa preocupação especial do Brasil para com uma “operação militar especial” da Rússia.

Agradeceria explicações de quem de direito.

 

Paulo Roberto de Almeida

Brasília, 4454, 8 agosto 2023, 2 p.


CÚPULA AMAZÔNICA - Rubens Barbosa (O Estado de S. Paulo)

 CÚPULA AMAZÔNICA

Rubens Barbosa

O Estado de S. Paulo, 8/08/2023

 

            Pela quarta vez, os presidentes dos países amazônicos vão se encontrar no âmbito da cúpula da Organização do Tratado de Cooperação Amazônica (OTCA). Criada em 1995, a Organização, com sede em Brasília, integrada por Brasil, Bolívia, Peru, Venezuela, Guiana, Surinã, Colômbia e Equador, é uma decorrência de um tratado assinado em 1978. Para a reunião ocorrendo hoje e amanhã em Belém do Pará, foram convidados representantes de países com florestas tropicais como a Indonésia, Congo Brazzaville, República Democrática do Congo e de entidades governamentais e civis para debater o desenvolvimento econômico associado à preservação ambiental.

A OTCA não tem atuação autônoma. Apoia as decisões negociadas e aprovadas pelos oito países membros e desenvolve projetos e programas na Amazônia. A cooperação de organismos internacionais para a preservação da floresta poderia ser muito ampliada e complementaria os esforços nacionais, caso os governos decidam dar maior protagonismo a OTCA e ampliar a atuação da instituição junto aos organismos internacionais, inclusive financeiros.

            A OTCA ocupou, até aqui, um espaço reduzido na política externa brasileira. Muito pouco aproveitada, a Organização foi ignorada totalmente na última década, apesar de todas as críticas que a política ambiental brasileira vem enfrentando no exterior. Tivesse o Tratado sido melhor aproveitado, o foco das criticas teria sido dividido entre todos os países amazônicos que, em larga medida, deixaram de combater os ilícitos que ocorreram na região com o desmatamento, as queimadas e o garimpo. Mais recentemente, toda essa situação ficou agravada com a crescente presença do crime transnacional envolvendo drogas, armas e minérios. Sem falar no tratamento dispensado às comunidades indígenas.

No encontro presidencial, do ponto de vista diplomático, a cúpula representará oportunidade para retomar e reforçar o diálogo e a região amazônica. A cúpula é o início de um processo com a definição de uma nova agenda para o desenvolvimento integrado com inclusão social e responsabilidade climática, através de mecanismos concretos de cooperação e ampliação dos laços entre órgãos do governo, sociedade civil e acadêmica dos oito países. 

Na preparação do encontro, o presidente Lula encontrou-se com o presidente Petro da Colômbia, que havia convidado a OTAN e os EUA para apoiar atividades para reduzir o desmatamento da floresta do lado colombiano e havia manifestado preocupação com a exploração de petróleo na região.

O encontro de cúpula não tem uma agenda definida, devendo cada chefe de governo apresentar suas propostas e sugestões. O Brasil deverá reiterar seu compromisso de desmatamento zero até 2030 e, se possível, criar metas comuns de desmatamento; buscar maior integração nos esforços das ações para o combate aos ilícitos, representados pelas queimadas, pelo garimpo, a destruição da floresta e para a proteção das comunidades indígenas em toda a região. O combate ao crime transnacional que hoje se espalha pelos países amazônicos, assim como a maior e mais efetiva presença do Estado certamente estará na pauta do encontro. A proposta formulada por Lula da inclusão no âmbito do TCA do Parlamento Amazônico criado em 1989, com sede em Lima, hoje fora do Tratado, também deverá ser apreciada.

Será importante que nessa reunião de cúpula seja explicitada a vontade política de fortalecer a cooperação entre todos os Estados Amazônicos e a OTCA. O trabalho da sociedade civil e das comunidades originárias deveria ser estimulado e apreciado para que sua voz seja ouvida pelos governos nas questões de desenvolvimento sustentável, cujos desafios econômicos, sociais, tecnológicos são gigantescos. Até aqui, os Estados amazônicos atuaram ou deixaram de atuar de forma isolada e descoordenada. As políticas e ações nacionais deveriam ser complementados por ações coletivas, discutidas de forma regional no âmbito do TCA. Vigilância nas fronteiras para combater o crime organizado, cooperação transnacional das polícias, ações para reduzir os ilícitos, controle dos incêndios, da qualidade da água e do mercúrio utilizado no garimpo ilegal, entre outros desafios, muito se beneficiariam da coordenação entre os governos da região amazônica. Ações para atrair financiamento internacional e critica `as barreiras comerciais, sem mencionar a União Europeia, deverão ser examinadas. A questão da proibição exploração de petróleo na Amazônia e a meta comum de desmatamento zero, por falta de consenso, deverão constar, de forma indireta, no exageradamente longo documento final da Cúpula. Questão relevante para o sucesso de uma ação coordenada será a confiança mútua e um real compromisso de transparência na troca de informações sobre essas questões para facilitar a tomada de decisões rápidas e eficientes e a busca de recursos externos, sempre preservando a soberania de todos os países.

Espera-se que as posições conjuntas do encontro sejam levadas a outros fóruns relevantes como a Assembleia Geral das Nações Unidas, a Cúpula do G-20 a ser presidida pelo Brasil em 2024 e a COP a realizar-se em Dubai proximamente, onde a sustentabilidade ambiental será discutida junto com questões econômicas e sociais da região.

 

 

Rubens Barbosa, presidente do Instituto de Relações Internacionais e Comércio Exterior (IRICE) e membro da Academia Paulista de Letras.

 

segunda-feira, 7 de agosto de 2023

A tragédia do ensino fundamental no Brasil - Cristovam Buarque (Veja)

PRIMEIRO, O ALICERCE

Cristovam Buarque

Veja, 5/08/2023

A EDUCAÇÃO DE BASE deve oferecer o conhecimento do mapa necessário para cada pessoa caminhar na busca da felicidade individual e participar da construção do país. Sem isso, asfixiamos a juventude no analfabetismo e sufocamos a universidade por falta de alunos bem preparados. Mas a política educacional nas últimas décadas se caracterizou por uma espécie de neoliberalismo social orientado para atender à demanda de alguns por diploma universitário, ignorando a necessidade de educação de base para todos. Entre 1995 e 2020, multiplicamos por 5 o número de alunos no ensino superior, e apenas por 2 o número de concluintes do ensino médio, sem melhorar a qualidade do que eles aprendiam.

Com a promessa de oferecer o teto, o Brasil abandonou a construção do alicerce e degradou o edifício da educação. Tratada como um bem de consumo, não como ferramenta para cada pessoa orientar-se na vida e construir o país. Com o slogan “Universidade para todos” passamos a ilusão de que o futuro da pessoa e do país depende do diploma universitário, mesmo sem conhecimento, nem emprego nem renda. Apesar do positivo salto no número de universitários, há vinte anos o Brasil tem o mesmo número de 10 milhões de adultos analfabetos; apenas 50% de nossos jovens concluem o ensino médio, no máximo metade desses com a qualificação que se espera para enfrentar as dificuldades da vida social. Estima-se que menos de 10% dos que ingressam na universidade são proficientes em português e matemática, raros em inglês. O resultado é um imenso exército com dezenas de milhões de jovens analfabetos para a contemporaneidade e sem preparo para um curso superior. Por isso, em 2011, a evasão nas universidades foi de 2,5 milhões de alunos, 36,6% do total de matriculados no ensino superior; dos que conseguiram concluir, grande parte se graduou em cursos sem qualidade, nem chance de empregabilidade e renda.

Essa visão chega a tal ponto que no Brasil os três anos posteriores ao ensino fundamental não se chamam “conclusivo da educação de base”, mas “médio”, visto como degrau para o superior. Não é boa estratégia, mas tem sido promovida para seduzir eleitores que preferem a ilusão de comemorar o ingresso no ensino superior, mesmo em um curso sem perspectiva, do que comemorar a conclusão da educação de base, em um curso que prepare para o futuro.

A educação brasileira, inclusive nas universidades, estaria melhor se tivéssemos dado mais atenção à educação de base, oferecendo ensino fundamental sólido e a etapa conclusiva de qualidade. Todos alfabetizados para a contemporaneidade: sabendo falar e escrever bem o idioma português; ser fluente em pelo menos um idioma estrangeiro; conhecer os fundamentos da matemática, ciências, geografia, história, artes; debater com competência os temas de filosofia, política, antropologia e sociologia relacionados aos principais temas do mundo moderno; saber usar as ferramentas digitais; dispor de pelo menos um ofício que permita emprego e renda. Prontos para a vida e o país, de modo a seguirem estudando em curso superior, conforme a vocação e os conhecimentos adquiridos. Mas isso exige colocar a solidez do alicerce na frente da ilusão do teto, o que é uma boa estratégia para o futuro do país, mas não para a próxima eleição.


domingo, 6 de agosto de 2023

Zelensky diz ao mundo que Lula defende interesses de Putin - PlenoNews

Zelensky diz ao mundo que Lula defende interesses de Putin

Presidente da Ucrânia disse que as opiniões do petista coincidem com as narrativas do líder russo
Pleno News, 6/08/2023

 

Zelensky e Lula Foto: Remko de Waal/EFE; Foto: PR/Ricardo Stuckert

O presidente ucraniano, Volodymyr Zelensky, acusou neste domingo (6) Luiz Inácio Lula da Silva (PT) de “coincidir com as narrativas” do líder russo Vladimir Putin, após o mandatário brasileiro ter dito que nem Rússia, nem Ucrânia querem a paz, “enquanto ainda há pessoas morrendo”.

– Não sei por que é que (Lula) tem de coincidir com as narrativas de Putin – disse Zelensky durante uma entrevista à Agência EFE e a vários veículos de comunicação latino-americanos em Kiev, quando questionado sobre as declarações feitas pelo presidente brasileiro nesta semana.

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Zelensky comentou que Putin “não é diferente de nenhum colonizador”, afirmando que ele “mente e manipula constantemente” e “está matando crianças e estuprando mulheres”.

– Espero que ele (Lula) tenha uma opinião própria. Não creio que seja necessário que os seus pensamentos coincidam com os pensamentos do presidente Putin – acrescentou Zelensky, que afirmou que declarações como as do mandatário brasileiro “não ajudam a trazer a paz”.

O chefe de Estado ucraniano insistiu em convidar Lula a se reunir com ele para falar pessoalmente sobre o que está acontecendo na Ucrânia.

– Para ser honesto, se o presidente Lula quiser me dizer alguma coisa, que se sente (comigo) e me diga. Pensei que ele tivesse uma compreensão mais ampla do mundo – enfatizou.

Lula já se apresentou em várias ocasiões como um possível mediador entre Ucrânia e Rússia. Enquanto o presidente brasileiro defende o início das conversas nas atuais circunstâncias, Zelensky se recusa a comparecer à mesa de negociações enquanto a Rússia não retirar as suas tropas dos territórios que ocupa na Ucrânia.

*EFE


Isaiah Berlin, The First and the Last, Book review - Paulo Roberto de Almeida

 Isaiah Berlin, The First and the Last 

 

Paulo Roberto de Almeida, diplomata, professor.

Nota sobre o livro organizado por Henry Hardy, contendo o primeiro escrito de Isaiah Berlin, de 1922, com 12 anos, e o último, de 1996, aos 86 anos, dois anos antes da morte do grande pensador liberal naturalizado britânico.

 



 

Tenho uma especial predileção por este livro, The First and the Last (New York: The New York Review of Books, 1999), organizado e introduzido por Henry Harden, que contém o primeiro escrito do jovem estudante Isaiah, já vivendo na Inglaterra, e o último texto do grande mestre do liberalismo, escrito pouco antes dele falecer, com 88 anos, em novembro de 1997, talvez porque eu também teria apreciado guardar meu primeiro escrito “sério”, o que infelizmente não ocorreu. Não tenho certeza se meu “último” escrito será preservado, ou se ele igualmente desaparecerá no acúmulo de papeis de minha atual caótica biblioteca. Em todo caso, tomando como exemplo o trabalho efetuado por admiradores do ilustre filósofo, vou começar por expor esses escritos de Berlin e refletir um pouco sobre trabalhos extremos.

Isaiah Berlin nasceu em Riga, em 1909, mas sua família se mudou para Petrogrado em 1916, ou seja, durante a Grande Guerra, quando a agitação da oposição russa ao czarismo moribundo já preparava o terreno para os formidáveis atos revolucionários do ano seguinte, em fevereiro, quando a autocracia russa é deposta, e em outubro (ou novembro), quando ocorre o putsch bolchevique, pondo fim à breve experiência democrática da Rússia, antes de 70 anos de totalitarismo soviético. Em 1921, sua família emigrou para a Inglaterra, e com menos de um ano na nova pátria, que seria a sua até falecer, ele já dominava o inglês com certa suficiência, o que lhe habilitou a escrever o primeiro escrito que sobreviveu de seus primeiros anos escolares. 

Como explica Henry Hardy em breve nota ao primeiro texto, “The purpose justifies the ways”, Isaiah Berlin “came to England in 1921, aged eleven, with virtually no English” (p. 7). A história, que não tinha título no manuscrito original, se refere ao caso de um Comissário bolchevique local, presidente da Checa de Petrogrado, assassinado por um membro da aristocracia russa em 1918, e o título atribuído posteriormente ao texto se deve a que, como explica novamente o organizador,

... because it signals the way in which the story points forward to Berlin’s repeated later insistence in the inadmissibility of justifying present suffering as a route to some imaginary future state of bliss. (p. 8)

 

De certa forma, o título atribuído postumamente à história relatada por Berlin, “os fins justificam os meios”, de cujos fatos ele foi contemporâneo, aos nove anos, parece confirmar a primeira etapa de um itinerário intelectual seguido por ele de forma coerente durante toda a sua vida, o que é confirmado pelo último escrito inserido neste livrinho, “My Intellectual Path”, escrito 74 anos depois, em 1996, como contribuição a um volume organizado pela universidade de Wuhan, na China, sobre filósofos anglo-americanos. Este foi o seu último texto dotado de certa substância reflexiva, depois de uma “memória” escrita em 1988, “On the Pursuit of the Ideal”, em resposta a um prêmio que lhe tinha sido atribuído pela primeira vez pela Fundação Agnelli, em homenagem à sua contribuição à ética, como também explica o introdutor Henry Hardy (p. 23). Esse texto, que possuo em outro volume de seus escritos, foi republicado, depois de ter sido divulgado em primeira mão pela The New York Review, no volume The Crooked Timber of Humanity (Princeton Universitey Press, 1998). 

No caso do comissário bolchevique, o jovem Berlin identificava no “camarada” um homem de ação, que “dividia a humanidade em duas classes, a primeira as pessoas que estavam em seu caminho, a segunda classe as pessoas que o obedeciam. As primeiras pessoas, segundo a compreensão de Uritzky [o nome do bolchevique], não mereciam absolutamente viver” (p. 17-18). Não está claro se o garoto Isaiah assistiu aos fatos, ou se ele apenas relata o que ouviu de testemunhas. Em todo caso, ele descreve exatamente [e o texto preserva a pontuação defeituosa] o que ocorreu, quando um jovem aristocrata confronta o revolucionário que executou seu pai, um velho membro das classes proprietárias: 

And now finished Peter loudly pulling out his automatic [pistol], the hour come! hands up he shouted levelling his pistol with Uritzky’s forehead boom! sounded! The pistol and Uritzky without a groan fell heavily on the floor 

Ho! ahoy! soldiers! shouted Peter and when the soldiers appeared he faced them whith his pistol, the soldiers moved back in alarm, I killed your master he cried, and now my mission on earth is finished my father is executed… without a trial, and I have not got anybody to live for! Oh Father I am going to join you BOOM Fired Peter and fell heavily over the body of his dead enemy when the soldiers came near they found that both were dead (p. 19)

 


 Assim termina o primeiro escrito, que revela a forte impressão que deixou no menino Isaiah os primeiros meses da revolução soviética, provavelmente um estrondo de violência que o acompanhou pelo resto da vida, em busca do ideal de uma postura filosófica que o levou a concluir, no seu último escrito, “My Intellectual Path”, que a ideia de uma sociedade perfeita é uma “enorme falácia intelectual” (p. 78). Como ele mesmo escreve, ao final desse texto que resume o debate filosófico no cenário acadêmico inglês do século XX, 

... the very idea of the perfect world in which all good things are realized is incomprehensible, is in fact conceptually incoherent. And if this is so, and I cannot see how it could be otherwise, then the very notion of the ideal world, for which no sacrifice can be too great, vanishes from view. 

To go back to the Encyclopedists and the Marxists and all other movements the purpose of which is the perfect life: it seems as if the doctrine of all kinds of monstrous cruelties must be permitted, because without these the ideal state of affairs cannot be attained – and all justifications of broken eggs for the sake of the ultimate omelette, all the brutalities, sacrifices, brainwashing, all those revolutions, everything that has made this century perhaps the most appalling of any since the days of the old, at any rate in the West – all this is for nothing, for the perfect universe is not merely unattainable but inconceivable, and everything done to bring it about is founded on an enormous intellectual fallacy. (p. 77-78)

 

Duas coisas podem ser agregadas depois dessas transcrições do primeiro e do último texto escrito por Berlin, aos 12 anos, e aos 86 anos: a primeira é a notável continuidade filosófica do garoto recém emigrado depois da Revolução bolchevique de 1917-18, para o mais liberal dos países da modernidade, para com o maduro filósofo do liberalismo e leitor crítico da literatura clássica russa; a segunda é o fato de concluir sua contribuição a uma publicação universitária chinesa dos anos 1990, quando o gigante asiático começava a se recuperar da trajetória demencial do maoísmo prático, que tinha literalmente destruído o ensino universitário duas décadas antes, durante a Revolução Cultural dos anos 1960-70.

Em todo caso, entre o primeiro e o último dos escritos de Isaiah Berlin, figuram algumas obras que tenho em minha estante e que vale agora revisitar: The Proper Study of Mankind: An Anthology of Essays (Chato & Windows, 1997, editado pelo mesmo Henry Hardy e cujo primeiro texto é “The Pursuit of the Ideal”) e The Sense of Reality: Studies in Ideas and their History (Pimlico, 1997; também editado por Henry Hardy). Tenho especial predileção por Against the Current: Essays in the History of Ideas (Viking Press, 1980), cujo título corresponde ao título similar de um dos meus livros: Contra a Corrente: ensaios contrarianistas sobre as relações internacionais do Brasil (2019). Não sou filósofo, mas sei reconhecer os grandes... 

 

Paulo Roberto de Almeida

Brasília, 4453, 6 agosto 2023, 3 p.


 

O Brasil possui elites, ou pelo menos uma elite? - Paulo Roberto de Almeida

O Brasil possui elites, ou pelo menos uma elite?

 

 

Paulo Roberto de Almeida, diplomata, professor.

Uma reflexão histórico-sociológica sob a forma de uma dúvida existencial.

 

 

Dificilmente se pode dizer que temos, que tivemos, ou que possamos ter, uma elite, na acepção estrita do termo. 

Na verdade, o que temos, o que tivemos, de mais frequente, são ou foram oligarquias diversas, que se sucedem, se alternaram no poder, com outras oligarquias que apareceram, ou algumas que voltam, sob outras formas. 

 

Por exemplo: a oligarquia escravocrata no Império, a do café com leite no começo da República, a urbano-industrial com os militares modernizadores dos anos 1930 aos 80, novamente a do agronegócio desde então, junto com o próprio mandarinato estatal e o estamento político, e assim vai. 

Elites mesmo, ou uma elite, são, e foram, entidades ou categorias inexistentes na história do Brasil.

Oligarquias, apenas oligarquias setoriais, são o que sempre tivemos, na mais pura acepção do conceito!

 

Isso é ruim?

Pode ser, e é, ao não se ter uma visão abrangente e unificada dos interesses nacionais, mas apenas interesses parciais, setorizados, de interesses grupais, tribais, corporativos, que, cada uma dessas oligarquias temporariamente dominantes, puxam a brasa para a sua sardinha, ou seja, fazem planos e desviam recursos para si próprias, em lugar de pensar no que falta para ultrapassarmos certas barreiras ao desenvolvimento econômico e social inclusivo e abrangente da nação (outra coisa que não tenho certeza que somos).

 

Por exemplo: nunca tivemos uma oligarquia que favorecesse a educação de massa de qualidade, apenas projetos setoriais para a qualificação educativa dos setores temporariamente dominantes em cada uma das fases acima mencionadas.

Em consequência, nossa produtividade do capital humano sempre foi medíocre, dada a ignorância que sempre grassou entre as massas. O Brasil, por exemplo, só atingiu o nível de escolarização (taxa de matrícula no primário, para a faixa etária dos 7 aos 11 anos) que os paises mais avançados — Estados Unidos ou Alemanha, entre outros — já exibiam no INÍCIO do século XIX quase ao final do século XX, ou seja, 150 anos depois (e isso unicamente do ponto de vista quantitativo, isto é ,o enrollment rate, a taxa de matrícula, sem mencionar a gigantesca defasagem do ponto de vista qualitativo.

 

Como é que se pode desenvolver um país— e retirá-lo das garras do populismo demagógico e excludente — sem educação de massa de qualidade? 

Impossível!

Aliás, até hoje, 200 anos depois da independência, não conseguimos, as oligarquias não conseguiram, criar um sistema de educação de massa de qualidade: as “elites” temporariamente dominantes trataram apenas da qualificação educacional dos seus setores, das suas próprias famílias; o povão inculto continuou inculto.

 

Existe alguma chance de termos uma “oligarquia educacional” no Brasil?

Dificilmente. A oligarquia mais funcional que tivemos, a dos militares modernizadores dos anos 1930 aos 80, criou uma escola pública razoavelmente funcional, mas apenas para a classe média urbana, deixando a maior parte dos pobres urbanos e a imensa maioria das populações rurais de fora de qualquer sistema educacional decente. Quando esse restrito arquipélago de escolas republicanas começou a ruir, sob o peso da urbanização e da massificação democrática de meados dos anos 1960, a classe média emigrou para o sistema escolar privado, e deixou a massa dos pobres urbanos e rurais ao relento, senão no completo abandono. Os militares investiram mundos e fundos na educação dd terceiro grau e na pós-graduação, que era o que faltava para os filhos das oligarquias dominantes no último grande impulso modernizador, que tivemos dos anos 1950 aos 80.

 

Foi só: depois dos anos 1980 fomos dominados por oligarquias atrasadas, e cada vez mais tacanhas, o que deixou o Brasil entregue a um estamento político fragmentado em interesses setoriais exclusivis e excludentes. Os pobres continuaram ao relento, servindo apenas de massa de manobra eleitoral. 

A classe média não teve força, capacidade ou tirocínio para formular um projeto de desenvolvimento abrangente que favorecesse sobretudo os mais pobres, inclusive porque estava principalmente ocupada em defender das ondas de hiperinflação criadas e exacerbadas pelo desenvolvimentismo nacionalista e protecionista favorecido pelas oligarquias militares, industriais e depois corporativas-sindicalistas ou do agronegócio, que assumiram o poder a partir dos anos 1960 e que se perpetuaram desde então.

 

Ainda estamos nisso, com oligarquias e corporações dominantes que se digladiam na luta pelos recursos públicos sempre exíguos, despojos do Estado cobiçados pelos diversos setores e categorias do estamento político, representantes atrasados, intelectualmente medíocres, que se apropriaram do Estado, junto com os próprios mandarins estatais nas últimas décadas. Dentre estes últimos ressalte-se a aristocracia do Judiciário, a mais voraz na captura de recursos públicos derivados do orçamento da República.

 

Vamos conseguir ter uma elite nacional modernizadora, progressista, esclarecida, nos próximos anos? Desculpem, mas sou cético, moderadamente cético, ao contemplar o que temos no país e à nossa volta. Não por deformação étnica ou cultural, mas pelo peso das instituições que nós mesmos criamos, desde a independência, mecanismos de controle social e político tipicamente oligárquicos, não elitistas (no bom sentido do conceito).

A América Latina melhorou muito nos últimos 200 anos? Certamente, no plano absoluto das conquistas materiais de cunho quantitativo. No plano relativo das conquistas qualitativas avançamos muito pouco, e com isso fomos superados ou distanciados no confronto com outras sociedades ou nações.

Trata-se de uma maldição? Certamente que não! Apenas a falta de elites, ou de uma elite!

Vamos conseguir nos próximos anos?

Provavelmente não, apenas em mais algumas décadas.

É o tempo que levará para termos uma educação de massas de qualidade, pois é delas que poderá sair uma elite consciente das necessidades do país.

Estamos a caminho?

Ainda não. Mas chegará, um dia.

Pelo menos espero.

 

Paulo Roberto de Almeida

Brasília, 451, 6 agosto 2023, 3 p.