terça-feira, 25 de novembro de 2025

A ameaça russa do Rubicon - Xataka

 Na Ucrânia, o difícil não é substituir um drone, mas seu piloto; por isso, Rússia iniciou caçada com algo sem precedentes: o Rubikon 

Frente de batalha já não é definida apenas pela tecnologia empregada, mas pela pressão psicológica sofrida pelos operadores ucranianos

Imagem | Ministério da Defesa da Federação Russa
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PH Mota

Redator

Durante dois anos, operadores de drones ucranianos conseguiram manter uma vantagem tática decisiva: a capacidade de detectar, atacar e destruir posições russas com uma agilidade que Moscou não conseguiu igualar. Os pilotos trabalhavam em pequenas equipes, em porões improvisados ​​ou trincheiras camufladas, pilotando a partir de uma distância FPV que transformava a frente de batalha em um espaço transparente onde o inimigo raramente conseguia se mover sem ser observado.

A virada sombria

Tudo isso mudou com o surgimento de uma nova unidade. Rubikon, é uma criação russa para rastrear, localizar e eliminar não exatamente os drones, mas sim aqueles que os operam. O depoimento de Dmytro, piloto ucraniano e ex-rapper, publicado no Financial Times, resume essa mudança de era: ele passou de caçador a caçado em segundos quando um drone russo o detectou em durante voo.

Aquele momento, que dois anos atrás teria sido excepcional, tornou-se parte da rotina diária numa frente onde a sobrevivência do operador se tornou um objetivo estratégico para a Rússia e um ponto fraco crítico para a Ucrânia. O resultado é uma completa inversão de papéis: os operadores, antes quase intocáveis, agora são um alvo prioritário.

Este corpo de elite russo não é simplesmente uma unidade de drones, mas uma organização de cerca de 5 mil soldadosdotada de amplos recursos financeiros, autonomia tática e uma missão definida: impedir que a Ucrânia opere sua rede de drones. Ao contrário do funcionamento altamente burocrático que caracterizou o exército russo nos estágios iniciais da guerra, esta unidade age com rapidez, iniciativa e uma abordagem que lembra mais os grupos ucranianos que busca destruir.

Sua principal tarefa não é atacar a infantaria na linha de frente, mas penetrar na retaguarda – até 10 quilômetros de profundidade – para destruir veículos de logística, robôs terrestres e, sobretudo, localizar os operadores que controlam os enxames defensivos ucranianos.

Rubikon

Para especialistas russos e ocidentais, o Rubikon funciona como um centro de desenvolvimento de sistemas não tripulados: treina outras unidades, analisa táticas, aprimora procedimentos e adapta continuamente sua forma de operar. Cada melhoria técnica ou doutrinária que surge em Rubikon acaba se disseminando para o restante das forças armadas russas, o que explica por que os ucranianos detectam saltos qualitativos inesperados no desempenho dos drones inimigos.

Essa capacidade de aprendizado rápido é um dos elementos mais preocupantes, pois permite que a Rússia corrija em meses a defasagem tecnológica que a Ucrânia acumulou ao longo de anos.

Nova dimensão invisível

O combate não se limita mais ao céu visível, mas é travado num domínio mais abstrato e letal: o espectro eletromagnético. Tanto a Ucrânia quanto a Rússia implantam estações de inteligência eletrônica, equipamentos de direcionamento de sinais e sistemas de interferência capazes de neutralizar, bloquear ou até mesmo sequestrar drones adversários. Essa rivalidade torna qualquer transmissão de rádio um risco potencial.

Os operadores, por mais escondidos que estejam, precisam de linhas de visão desobstruídas, antenas elevadas e transmissores relativamente próximos à linha de frente, fatores que o Rubikon explora sistematicamente. As equipes da SUS rastreiam antenas em colinas, sombras térmicas em florestas e emissões que revelam a presença de um piloto a poucos quilômetros de distância.

Andrey Belousov inspecionando unidade RubikonAndrey Belousov inspecionando unidade Rubikon

Os inibidores, apesar de sua utilidade, geram assinaturas elétricas visíveis que podem atrair ataques. Em meio a essas manobras, ambos os lados recorrem à interceptação de sinais em vídeo para observar câmeras inimigas ou localizar a origem exata de um controle remoto.

O especialista Tom Withington resume essa complexidade com uma imagem precisa: é um jogo de gato e rato onde a física dita as regras e cada ação deixa uma marca que o oponente pode explorar.

Pressão sobre os pilotos

Além disso, ao contrário dos russos, a Ucrânia não possui as tropas necessárias para manter turnos contínuos, o que cria um esgotamento físico e psicológico que se torna tão perigoso quanto o próprio inimigo. Zoommer, um soldado ucraniano de uma pequena unidade de drones, explicou ao Times que o Rubikon pode operar sem interrupções porque possui pessoal suficiente para se revezar a cada poucas horas, enquanto eles precisam permanecer em alerta quase o dia todo.

A chegada desta unidade à região de Pokrovsk (uma cidade que tem travado uma luta defensiva desesperada), que já dura um ano, transformou a vida na frente de batalha, passando de dias administráveis ​​para uma tensão constante em que qualquer deslocamento pode significar a morte. Antes, como diz Zoommer, a área era quase um "refúgio", agora é um inferno invisível onde cada antena, cada sinal fugaz e cada movimento para fora da trincheira pode ser um erro fatal. Essa pressão obrigou os ucranianos a mudar rotinas, camuflar posições com extremo cuidado, esconder transmissores, dispersar equipamentos e criar células antidrone que atuam como um espelho defensivo das próprias táticas russas.

Os drones forneciam à Ucrânia uma ferramenta crucial: a capacidade de ver e atacar mais longe e mais rápido, dando aos seus defensores uma transparência situacional que compensava a inferioridade numérica. Segundo uma análise do RUSI, até 80% das ocorrências atuais são atribuídas a operações com drones, o que destaca seu papel central numa guerra na qual a artilharia e a infantaria dependem desses olhos mecânicos.

A Operação Rubikon e outras semelhantes corroeram essa vantagem, forçando a Ucrânia a realocar recursos de missões ofensivas para a proteção de seus próprios operadores. O resultado é que, enquanto a Rússia avança em ritmo acelerado, a Ucrânia dedica mais esforços a conter o avanço russo do que a atacá-lo, perdendo a iniciativa em um momento crítico do conflito. Moscou absorveu rapidamente as lições do inimigo e as transformou em doutrina, um processo que normalmente levaria anos e que, neste caso, foi comprimido em meses, alterando o equilíbrio em uma frente cada vez mais dinâmica.

Guerra psicológica

As análises mais recentes mostram que a frente não é mais definida apenas pela tecnologia empregada, mas pela pressão psicológica exercida sobre os operadores ucranianos e pela transformação do exército russo em uma estrutura mais ágil, representada pela Operação Rubikon. Os pilotos, que se tornaram alvos prioritários, vivem sob tensão constante, o que os força a minimizar qualquer movimento e a operar com a sensação permanente de estarem sendo vigiados, pois um erro ou uma simples exposição pode custar-lhes a vida e afetar seriamente a capacidade ofensiva do país.

Ao mesmo tempo, o Rubikon funciona como um símbolo da nova doutrina russa, capaz de aprender rapidamente, coordenar inteligência eletrônica e projetar ataques além da linha de frente, corroendo a autonomia tática que antes caracterizava a Ucrânia. Nesse cenário, o futuro do conflito é decidido no domínio digital: sinais, algoritmos, interferências e rastreamento eletrônico tornaram-se um campo de batalha onde a sobrevivência dos operadores e a preservação do ecossistema de drones são tão essenciais quanto qualquer avanço territorial, e onde o silêncio, o sigilo e o controle do espectro são decisivos para manter a iniciativa.


segunda-feira, 24 de novembro de 2025

Timothy Snider analisa e desmantela o "plano de paz russo" contra a Ucrânia - Revista ID

Timothy Snider analisa e desmantela o "plano de paz russo" contra a Ucrânia - Revista ID


 1. A soberania da Ucrânia será confirmada.

Isso é grotesco. A Rússia invadiu a Ucrânia. A soberania da Ucrânia foi violada. O que será feito para reafirmar essa soberania? Sobre isso, o texto é pior do que silencioso. Os pontos subsequentes demonstram que a soberania ucraniana será, de fato, deliberadamente minada.

Na verdade, todo o documento, tanto em sua origem quanto em seus objetivos, representa a visão russa padrão de que a Ucrânia, de alguma forma, não é um Estado da mesma maneira que outros Estados.

2. Um acordo abrangente de não agressão será concluído entre a Rússia, a Ucrânia e a Europa. Todas as ambiguidades dos últimos 30 anos serão consideradas resolvidas.

Assim, em algum momento futuro, uma varinha mágica será acenada e todos os problemas serão resolvidos, porque agora está tudo estipulado dessa forma.

O mais interessante nessa estranha disposição é o inglês. Parece algo traduzido do russo. Em termos de conteúdo, a ideia de que “ambiguidades” “serão consideradas resolvidas” (isso soa como inglês para você?) não é apenas bizarra, mas totalitária. Em que mundo, exatamente, um acordo poderia resolver todas as ambiguidades?

Outro problema: as partes mencionadas já assinaram, todas elas, acordos e tratados legais que proíbem a agressão. Isso vale para todas elas coletivamente, bem como para a Rússia e a Ucrânia enquanto díade. A existência desses acordos juridicamente vinculativos não impediu a Rússia de invadir a Ucrânia em 2014 e 2022. A assinatura de mais um acordo pela Rússia para não invadir a Ucrânia em meio à sua invasão parece, no mínimo, vazia e cínica.

Ao que tudo indica, se essa disposição tem algum propósito, é de natureza propagandística. Em vez de começar (como um tratado de paz faria) com a guerra que de fato está acontecendo, ela começa com o tema preferido da Rússia, que são todas as queixas das últimas três décadas.

3. Espera-se que a Rússia não invada os países vizinhos e que a OTAN não se expanda ainda mais.

Aqui temos um exemplo gritante de russicismo: “é de se esperar” é uma forma reflexiva bastante usada em russo justamente dessa maneira. Vou evitar as implicações filosóficas dessas formulações — de que ninguém realmente assume a responsabilidade por nada — e ir direto ao propósito propagandístico deste ponto.

Espera-se que a Rússia não invada os países vizinhos. De quem? O que deve ser feito para impedir isso? O que fazer em relação à invasão russa em curso na Ucrânia? Ao apresentar a questão de forma hipotética e passiva, o autor pretende que o leitor ignore a dura realidade que deveria estar no cerne de qualquer tratado de paz: a Rússia está, de fato, invadindo um país vizinho neste exato momento.

A expectativa de que a OTAN “não se expandirá mais” introduz um argumento russo velado. A OTAN é uma organização de Estados soberanos que solicitam adesão. São eles os atores significativos, não a própria OTAN. Na visão de mundo oficial russa, existem grandes potências, como a Rússia e os Estados Unidos, e nada mais importa. A OTAN é vista como uma emanação do poder estadunidense, uma visão que faz com que os outros membros pareçam insignificantes ou inexistentes, não verdadeiramente soberanos.

E é precisamente nessa tradição que a Rússia, neste ponto, nega a soberania da Ucrânia. Um país soberano tem o direito de escolher seus aliados como bem entender. Este argumento consegue, sem mencionar a Ucrânia e sem mencionar a soberania, negar que a Ucrânia seja soberana. Isso anula qualquer significado que se possa ter tido e promove um importante interesse russo e, de fato, toda a visão de mundo do Kremlin.

4. Será realizado um diálogo entre a Rússia e a OTAN, com a mediação dos Estados Unidos, para resolver todas as questões de segurança e criar condições para a desescalada, a fim de garantir a segurança global e aumentar as oportunidades de cooperação e desenvolvimento econômico futuro.

Novamente, a ideia de que qualquer diálogo possa “resolver todas as questões de segurança” não faz sentido. Nenhum diálogo jamais conseguiu tal feito. E a Rússia teve todas as oportunidades para dialogar nos anos anteriores à invasão da Ucrânia em 2014, após essa invasão e até mesmo após a invasão de 2022. O objetivo deste argumento é insinuar que os Estados Unidos e a Rússia podem, por si só, decidir todas as questões na Europa.

5. A Ucrânia receberá garantias de segurança confiáveis.

Isso é obviamente sem sentido. Uma garantia de segurança é confiável na prática, não no papel. Nesta situação específica, isso significaria uma ação institucional e militar que desfizesse a atual ocupação russa e impedisse uma futura. Nada disso está especificado neste documento; e veremos que a tendência de tudo o que se segue é na direção oposta: facilitar a ação militar russa, tanto atual quanto futura. Observe novamente o uso da voz passiva: nada será feito, e nem sequer sabemos por quem nada será feito.

6. O tamanho das Forças Armadas da Ucrânia será limitado a 600.000 militares.

Qualquer país soberano pode determinar o tamanho de suas próprias forças armadas. Este ponto constitui uma violação óbvia e direta da soberania ucraniana e revela (mais uma vez) que o primeiro ponto está ali essencialmente para fins hipnóticos: a afirmação vazia no início de que a soberania ucraniana “será confirmada” visa impedir o leitor de perceber que todo o documento é um ditame dirigido à Ucrânia, que, obviamente, não foi consultada em sua elaboração.

E observe que não há limite para o tamanho das forças armadas russas.

7. A Ucrânia concorda em consagrar em sua constituição que não aderirá à OTAN, e a OTAN concorda em incluir em seus estatutos uma disposição segundo a qual a Ucrânia não será admitida no futuro.

Um pouco de história recente pode ser útil aqui, antes de chegarmos ao ponto óbvio de que isso também viola a soberania ucraniana. A OTAN não era popular na Ucrânia até a invasão russa em 2014. Depois disso, a OTAN, compreensivelmente, tornou-se atraente. Tornou-se ainda mais popular após a Rússia empreender a invasão em larga escala da Ucrânia em 2022. Em outras palavras, a OTAN nunca foi um problema até a Rússia torná-la um.

Algo semelhante pode ser dito sobre a Suécia e a Finlândia, que aderiram à OTAN porque a Rússia invadiu a Ucrânia.

Um país soberano tem a capacidade de escolher seus aliados. Desde a invasão de 2014, a Rússia tem feito repetidas e variadas exigências sobre o que a Ucrânia deveria incluir em sua constituição, o que tem sido uma das maneiras óbvias pelas quais a Rússia tem tratado a Ucrânia como algo menos que um Estado soberano.

Essa estrutura constitucional sugere uma origem russa. É difícil imaginar que um americano cogitaria interferir na constituição ucraniana.

8. A OTAN concorda em não estacionar tropas na Ucrânia.

Novamente, o ponto crucial aqui é a formulação. Observe que, mais uma vez, as coisas são feitas à Ucrânia, acontecem à Ucrânia, como se a própria Ucrânia não fosse soberana. É a Ucrânia que tem o direito soberano de decidir se países estrangeiros podem instalar tropas em seu território.

9. Caças europeus serão estacionados na Polônia.

Observe novamente a formulação peculiar. Quem os estacionará e por que exatamente na Polônia? E o que exatamente é um caça europeu? A Polônia fica na Europa e possui caças.

Mas provavelmente o que se quer dizer aqui é outra coisa: que os Estados Unidos não vão estacionar caças americanos na Polônia. Presumo que isso não tenha sido dito explicitamente para que os aliados da Rússia dentro do governo americano não tivessem que explicar por que os Estados Unidos estão fazendo essa concessão um tanto estranha.

O país invasor não está sendo solicitado a se conter de forma significativa. Não há nenhuma menção à Rússia cessar os combates, aos ataques a civis e à destruição de sua infraestrutura, à tortura ou à retirada da Ucrânia. Ucranianos, europeus e americanos estão sendo instruídos por uma Rússia que parece ter total liberdade de ação.

A direção do poder é extraordinária por si só. O que estamos lendo é uma exigência de capitulação por parte de um país que não está se saindo bem em uma guerra que ele mesmo iniciou. Jamais conseguiria obter algo sequer parecido com os termos deste acordo no campo de batalha. Para isso, precisa dos americanos.

10. A garantia dos EUA: Os EUA receberão compensação pela garantia; se a Ucrânia invadir a Rússia, perderá a garantia; se a Rússia invadir a Ucrânia, além de uma resposta militar decisiva e coordenada, todas as sanções globais serão restabelecidas, o reconhecimento do novo território e todos os outros benefícios deste acordo serão revogados; se a Ucrânia lançar um míssil contra Moscou ou São Petersburgo sem motivo, a garantia de segurança será considerada inválida.

Isso não faz sentido, já que a garantia de segurança americana não está definida. Observe, porém, que esse ponto pressupõe que as sanções contra a Rússia tenham sido revogadas. Em outras palavras, introduz a ideia de que todas as sanções econômicas contra a Rússia já terão sido removidas.

O que talvez seja mais significativo é a ideia, nova nas relações internacionais, de que os Estados Unidos são uma espécie de entidade mafiosa, paga para fornecer uma “proteção” indefinida, em vez de um Estado, um país ou um povo com interesses, aliados e amigos. Presumo que os russos tenham entendido o quão humilhante isso parece para os americanos.

11. A Ucrânia é elegível para adesão à UE e receberá acesso preferencial de curto prazo ao mercado europeu enquanto esta questão estiver sendo analisada.

A Ucrânia é elegível para adesão à UE independentemente de tudo.

O único sentido implícito neste ponto é a sugestão implícita (”está sendo considerado”, observe novamente a estranha construção passiva) de que países fora da União Europeia deveriam ter permissão para participar de algumas das considerações. Este documento, que é puramente russo ou russo com alguma contribuição de americanos, não reflete nenhuma consulta aos Estados-membros da União Europeia ou à Comissão Europeia.

12. Um pacote global robusto de medidas para a reconstrução da Ucrânia, incluindo, entre outras: a criação de um Fundo de Desenvolvimento da Ucrânia para investir em setores de rápido crescimento, como tecnologia, centros de dados e inteligência artificial; a cooperação dos Estados Unidos com a Ucrânia para reconstruir, desenvolver, modernizar e operar conjuntamente a infraestrutura de gás do país, incluindo gasodutos e instalações de armazenamento; esforços conjuntos para a reabilitação de áreas afetadas pela guerra, visando a restauração, reconstrução e modernização de cidades e áreas residenciais; desenvolvimento de infraestrutura; e extração de minerais e recursos naturais. O Banco Mundial desenvolverá um pacote de financiamento especial para acelerar esses esforços.

Essas promessas estão sendo feitas por um país (a Rússia) que destruiu grande parte da Ucrânia e por outro (os Estados Unidos) que destruiu as instituições de seu próprio governo que seriam capazes de implementar tais políticas.

Isso sugere fortemente que se trata de atores privados, o que em si não é algo ruim. Parte da reconstrução da Ucrânia — além da cooperação com o governo central, os governos regionais e a sociedade civil — certamente envolverá o setor privado.

Mas neste documento em particular, que parece estar menos associado ao governo americano em si do que a investidores americanos específicos, há motivos para preocupação – preocupação que será ampliada abaixo, nos pontos 13 e 14.

13. A Rússia será reintegrada à economia global: O levantamento das sanções será discutido e acordado em etapas e caso a caso. Os Estados Unidos firmarão um acordo de cooperação econômica de longo prazo para o desenvolvimento mútuo nas áreas de energia, recursos naturais, infraestrutura, inteligência artificial, centros de dados, projetos de extração de metais de terras raras no Ártico e outras oportunidades corporativas mutuamente benéficas. A Rússia será convidada a retornar ao G8.

É preocupante que os americanos envolvidos na elaboração deste documento, supondo que tenha havido algum, pareçam mais versados ​​em como se pode ganhar dinheiro com a Rússia do que em quaisquer questões substantivas relevantes para a busca da paz.

Do lado russo, observe a tentativa tipicamente dramática de ignorar a questão óbvia e fundamental: as reparações de guerra. Durante uma guerra completamente ilegal, a Rússia infligiu centenas de bilhões, ou mais provavelmente trilhões, de dólares em danos, sem mencionar quaisquer penalidades a serem pagas por todas as mutilações e mortes ilegais.

14. Os fundos congelados serão utilizados da seguinte forma: US$ 100 bilhões em ativos russos congelados serão investidos em iniciativas lideradas pelos EUA para reconstruir e investir na Ucrânia; os EUA receberão 50% dos lucros dessa iniciativa. A Europa contribuirá com US$ 100 bilhões para aumentar o montante de investimentos disponíveis para a reconstrução da Ucrânia. Os fundos europeus congelados serão descongelados. O restante dos fundos russos congelados será investido em um veículo de investimento conjunto EUA-Rússia que implementará projetos em áreas específicas. Esse fundo terá como objetivo fortalecer as relações e aumentar os interesses comuns, criando um forte incentivo para evitar o retorno ao conflito.

Chegamos ao ponto do documento, nos itens 13 e 14, em que a Rússia está sendo recompensada pela invasão; a intenção é que não percebamos que literalmente nada foi mencionado que pudesse influenciar o fim da guerra ou garantir que a Rússia não invadisse novamente imediatamente.

Os ativos russos foram congelados porque a Rússia empreendeu uma guerra criminosa. Até o momento, nada neste documento impede essa guerra. Não há menção à retirada de tropas russas da Ucrânia, nem à disposição das tropas russas dentro da Rússia, nem ao armamento russo, nem a qualquer informação relevante sobre o comportamento russo. Neste ponto, o que vemos são duas coisas: os ativos russos serão descongelados e alguns deles serão entregues aos americanos. Os leitores podem não saber que esses ativos estão, em sua maioria, localizados na Europa. Portanto, isso equivale a retirar dinheiro russo congelado de bancos europeus e entregá-lo aos americanos.

A linguagem usada em relação a um veículo de investimento europeu-russo tem um quê de suborno: os russos pegam dinheiro que estava congelado por causa de crimes horríveis, e que sem a ajuda americana eles nunca mais veriam, e o repassam aos americanos — em troca de muito mais dinheiro — e de uma vitória na guerra contra a Ucrânia que eles não teriam conseguido sem a ajuda americana.

Infelizmente, esse ponto sugere fortemente uma troca de favores em que a Ucrânia é traída por alguns indivíduos americanos.

15. Será criado um grupo de trabalho conjunto americano-russo sobre questões de segurança para promover e garantir o cumprimento de todas as disposições deste acordo.

Isso não tem significado nenhum. É só um papo furado para fazer o resto parecer mais normal.

16. A Rússia consagrará em lei sua política de não agressão em relação à Europa e à Ucrânia.

Isso não tem significado. A Rússia já o fez ao assinar tratados, os quais desrespeitou completamente. O único caminho para a não agressão russa é uma Ucrânia forte.

17. Os Estados Unidos e a Rússia concordarão em estender a validade dos tratados sobre a não proliferação e o controle de armas nucleares, incluindo o Tratado START I.

Isso é confuso. O primeiro tratado sobre redução de armas nucleares foi notável. Ele expirou há dezesseis anos. Talvez os autores russos estivessem apenas zombando de seus parceiros americanos, presumindo que nenhum deles saiba nada sobre a história das relações EUA-URSS ou sobre o controle de armas.

18. A Ucrânia concorda em ser um Estado não nuclear, em conformidade com o Tratado sobre a Não Proliferação de Armas Nucleares.

Algo muito importante está acontecendo nesta frase. Precisamos dar um passo atrás para entendê-la. O mais fácil seria dizer que se trata apenas de mais um erro bobo sobre tratados, já que a Ucrânia, obviamente, já é membro do Tratado de Não Proliferação Nuclear. Mas o Ponto 18 não é um erro. É uma tentativa deliberada de reformular talvez a questão mais importante da guerra, pelo menos para o mundo em geral: o risco de uma guerra nuclear.

Em resposta a qualquer disposição como esta, os ucranianos lembrarão ao mundo que, na verdade, concordaram em renunciar a todas as suas armas nucleares em 1994, em troca de garantias de segurança dos Estados Unidos, do Reino Unido e da Federação Russa. Assinaram o Tratado de Não Proliferação Nuclear como uma potência não nuclear. Entregaram à Rússia bombardeiros de longo alcance que a Rússia agora usa para matar ucranianos.

O ponto 18 implica — insinua no subconsciente do leitor — a ideia de que a Ucrânia jamais fez algo assim. Isso é extremamente injusto para os ucranianos, que foram invadidos por um dos países que emitiram essas garantias de segurança.

Mas é pior do que injusto: empurra toda a questão para o reino do irreal, o que é outra especialidade russa. Se aceitarmos que vivemos num mundo em que a Ucrânia nunca assinou o tratado, então podemos esquecer o Memorando de Budapeste de 1994, em que a Ucrânia deu um passo histórico para a paz e foi terrivelmente punida por isso pelo seu vizinho russo.

E jamais levaremos em consideração uma das maneiras fundamentais pelas quais este documento é perigoso.

O leitor, ou um americano ingênuo, pode esquecer que a Ucrânia abdicou de suas armas nucleares, mas líderes do mundo todo sabem disso. Eles estão acompanhando esta guerra e tirando lições. Se a Ucrânia for vista como tendo se defendido e vencido esta guerra, então não haverá necessidade de os países não nucleares construírem armas nucleares. Mas se a Ucrânia for vista como tendo perdido a guerra, então países da Ásia e da Europa se sentirão compelidos a construir suas próprias armas nucleares.

Essa é a verdadeira questão nuclear em jogo quando consideramos o formato da paz na Ucrânia. Queremos gerar proliferação nuclear ou queremos desencorajá-la? Este ponto, habilmente, sufoca essa questão — mentalmente — antes mesmo que ela surja. Mas, se um acordo como esse for de fato concretizado, armas nucleares reais serão construídas em todo o mundo e uma guerra nuclear real se tornará mais provável.

19. A usina nuclear de Zaporizhzhia será inaugurada sob a supervisão da AIEA, e a eletricidade produzida será distribuída igualmente entre a Rússia e a Ucrânia — 50:50.

Novamente, o termo “lançada” sugere algum tipo de problema com a tradução do russo original. Uma usina nuclear não é algo que se lança. A disposição legal não significa muita coisa — a AIEA deveria supervisionar usinas nucleares em geral. A usina está sob ocupação russa. Essa ocupação, claro, é a questão central.

20. Ambos os países comprometem-se a implementar programas educativos nas escolas e na sociedade com o objetivo de promover a compreensão e a tolerância às diferentes culturas e eliminar o racismo e o preconceito: a Ucrânia adotará as normas da UE sobre tolerância religiosa e proteção das minorias linguísticas. Ambos os países concordam em abolir todas as medidas discriminatórias e garantir os direitos dos meios de comunicação e da educação ucranianos e russos. Toda a ideologia e as atividades nazistas devem ser rejeitadas e proibidas.

Novamente, é preciso dar um passo atrás para compreender toda a reformulação que está acontecendo aqui. A Rússia invadiu a Ucrânia. Durante essa invasão, roubou artefatos de museus ucranianos, queimou livros ucranianos e sequestrou crianças ucranianas. Ucranianos estão presos em prisões russas como prisioneiros políticos. Ucranianos feitos prisioneiros de guerra são forçados a lutar contra seu próprio país até serem mortos. Na Rússia, a própria palavra e o conceito de Ucrânia foram removidos dos livros escolares. A Rússia empreendeu um programa de violência abrangente para destruir a cultura ucraniana e tem sido bastante aberta sobre isso. Nada aqui aborda esses danos.

A referência à “ideologia nazista” também merece uma análise cuidadosa. A posição da Rússia é que tudo o que é ucraniano é nazista e que nada do que a Rússia faz pode ser interpretado como nazista. Isso, por si só, é indefensavelmente bizarro: a Rússia é o principal estado fascista do mundo, e a Ucrânia é uma democracia com um presidente judeu. Mas a palavra “nazista”, para as autoridades russas, é simplesmente uma arma usada para justificar a destruição da cultura ucraniana. “Todas as medidas discriminatórias” são presumivelmente uma tentativa de forçar a Ucrânia a permitir que o Estado russo transmita conteúdo da mídia russa dentro do país.

21. Territórios: A Crimeia, Luhansk e Donetsk serão reconhecidas como territórios russos de facto, inclusive pelos Estados Unidos. Kherson e Zaporizhzhia serão congeladas ao longo da linha de contato, o que implicará reconhecimento de facto nessa mesma linha. A Rússia renunciará a outros territórios acordados que controla fora das cinco regiões. As forças ucranianas se retirarão da parte do Oblast de Donetsk que atualmente controlam, e essa zona de retirada será considerada uma zona tampão neutra e desmilitarizada, reconhecida internacionalmente como território pertencente à Federação Russa. As forças russas não entrarão nessa zona desmilitarizada.

Aceitar e recompensar a agressão, que é a essência deste ponto, viola a letra do direito internacional e anula seus propósitos mais elementares.

O terceiro subponto não tem sentido, pois não foram especificados tais territórios.

Há algo maliciosamente errado na formulação dos dois primeiros subpontos. Reconhecer algo de facto não é realmente reconhecê-lo.

Por exemplo, se você roubar meu carro, de fato, você o possui. Mas seria um exagero me pedir para escrever uma carta reconhecendo que você, de fato, possui meu carro. Coisas que são de fato são coisas que não gostamos, mas que, por ora, não podemos mudar — embora possam ser ilegais. De jure, esse carro é meu. De jure, os territórios pertencem à Ucrânia. Incluir em um documento que a ocupação de fato é de alguma forma “reconhecida” provavelmente visa confundir a situação e criar a impressão de que, na verdade, a ocupação é de jure. Essas declarações sobre “reconhecido como russo de fato” são como eu dizer que meu carro é “reconhecido como sendo seu de fato”. Ao dizer isso, eu talvez não esteja renunciando ao meu direito legal — de jure — ao meu carro, mas seria estranho da minha parte. Isso parece já ocorrer no quarto subponto, que já caracteriza os territórios ucranianos como “internacionalmente reconhecidos” como russos.

Os territórios em questão também são importantes. A Ucrânia está sendo pressionada a se retirar de importantes áreas na região de Donetsk que, de fato, controla e que a Rússia não conseguiu tomar. A Rússia invadiu o Donbas há onze anos e ainda não controla toda a região. Grande parte do que não controla está fortemente fortificada. A simples entrega dessas terras à Rússia deixaria a Ucrânia muito mais vulnerável a uma futura invasão russa.

Neste ponto, assim como em todo o documento, a Rússia está sendo recompensada por invadir a Ucrânia.

22. Após concordarem com os futuros arranjos territoriais, tanto a Federação Russa quanto a Ucrânia comprometem-se a não alterar esses arranjos pela força. Quaisquer garantias de segurança não serão aplicáveis ​​em caso de violação deste compromisso.

A primeira frase parece sugerir que a Rússia pode continuar a guerra até ficar satisfeita e, em seguida, obrigar a Ucrânia a não fazer nada a respeito. Observe a palavra “futuro”. Claro, é possível que aqui tenhamos novamente um problema de tradução do russo.

23. A Rússia não impedirá a Ucrânia de usar o rio Dnieper para atividades comerciais, e serão alcançados acordos sobre o livre transporte de grãos através do Mar Negro.

Em inglês, a grafia deste rio é Dnipro. Observe a grafia russa.

A primeira frase, se lida com atenção, não promete muito. A Ucrânia pode usar suas próprias vias navegáveis ​​em seu próprio território soberano da maneira que bem entender; a formulação sugere, em vez disso, que a Rússia tem algum tipo de influência sobre essa questão, o que não é verdade. O que essa frase realmente deveria nos lembrar é o seguinte: com exceção dessa promessa muito limitada no ponto 23, a Rússia não se compromete neste texto a fazer nada de específico para cessar as hostilidades ou torná-las menos prováveis ​​no futuro.

24. Será criado um comitê humanitário para resolver as questões pendentes: Todos os prisioneiros e corpos restantes serão trocados na proporção de “todos por todos”. Todos os civis detidos e reféns serão devolvidos, incluindo crianças. Um programa de reunificação familiar será implementado. Serão tomadas medidas para aliviar o sofrimento das vítimas do conflito.

Parte disso já está acontecendo. O restante seria desejável, é claro. Mas, obviamente, essa postura neutra é extremamente enganosa. A Rússia invadiu a Ucrânia e sequestrou dezenas de milhares de crianças.

25. A Ucrânia realizará eleições em 100 dias.

Novamente, observe que a Ucrânia precisa fazer algo, e que não há qualquer indício de que a Rússia também deva fazer algo.

A Rússia não realiza eleições livres há duas décadas. A Ucrânia, por outro lado, já teve uma série delas. Portanto, essa formulação sugere que existe um problema onde não existe, e ignora a questão central e bastante evidente da ditadura russa.

A Rússia vem argumentando, por vezes de forma antissemita, que o atual presidente ucraniano não é de fato legítimo, não é real, é apenas um fantoche, etc. Ele tem sido alvo de propaganda russa há anos. Mas, ao contrário do presidente russo, ele foi eleito em eleições livres e justas. Essa questão foi escolhida para que os russos pudessem ver esse conflito terminando com a vitória do seu candidato sobre o candidato do outro lado.

E a questão é tão básica que vale a pena repetir: a Ucrânia é um país soberano, com seus próprios mecanismos para eleições. Elas não podem ser realizadas legalmente agora, durante a lei marcial. Quando a lei marcial for suspensa — quando a guerra realmente terminar — elas serão realizadas.

Este acordo não porá fim à guerra e foi concebido para obrigar a Ucrânia a realizar eleições sob pressão russa durante uma guerra com a Rússia.

26. Todas as partes envolvidas neste conflito receberão anistia total por suas ações durante a guerra e concordam em não apresentar quaisquer reivindicações ou considerar quaisquer queixas no futuro.

Todas as partes envolvidas neste conflito? Isso parece conferir imunidade legal a todos na Rússia e na Ucrânia por tudo o que fizeram ao longo dos últimos onze anos. O que, por si só, é estranho.

Inúmeras vezes, crimes de guerra russos muito específicos foram documentados: a própria guerra como uma guerra de agressão, as deportações de ucranianos, especialmente crianças, o assassinato de civis e prisioneiros de guerra, a tortura. Esses são crimes de acordo com o direito internacional. É evidente que isso não deve ser esquecido. Na prática, a lei não é determinada por russos e americanos, que não podem conceder anistia em nome de organizações internacionais ou outros países.

27. Este acordo será juridicamente vinculativo. Sua implementação será monitorada e garantida pelo Conselho da Paz, presidido pelo Presidente Donald J. Trump. Sanções serão impostas em caso de violação.

Ainda não existe um Conselho de Paz, e não está claro como ele poderia monitorar e garantir essa massa de impossibilidades, contradições e ilegalidades.

Nenhuma pessoa sozinha pode ser nomeada chefe de uma instituição que se destina a ser permanente.

Vemos aqui, no entanto, uma sugestão do problema processual básico que mencionei no início: parece haver alguns americanos que pensam que fazer um “acordo” rápido e dar crédito ao presidente é uma maneira de atingir seus objetivos pessoais, e cuja ânsia em tudo isso os permitiu delegar o texto propriamente dito aos russos.

28. Assim que todas as partes concordarem com este memorando, o cessar-fogo entrará em vigor imediatamente após ambas as partes se retirarem para os pontos acordados para iniciar a implementação do acordo.

Que cessar-fogo? Literalmente nada foi dito sobre isso.

Não há clareza sobre como esse texto entraria em vigor, ou mesmo que tipo de status ele teria (o ponto anterior não fornece essa informação).

Grande parte do que teria de acontecer após um cessar-fogo exigiria a participação da Ucrânia e da Europa. Mas nenhum ucraniano ou outro europeu esteve envolvido na elaboração deste texto. Ucranianos e europeus teriam de ser partes em qualquer acordo concreto.

Chegamos ao fim, e as questões executivas fundamentais não foram abordadas. Quem são os partidos? Não sabemos.

Essas disposições violam dezenas de leis e tratados já em vigor. Como isso será resolvido?

Enquanto escrevo, europeus, ucranianos e americanos estão reunidos em Genebra. É importante compreender que este texto não pode ser visto como um quadro para um acordo de paz, mesmo que, para fins diplomáticos, possa ser apresentado dessa forma.

Mas talvez sirva de estímulo para algo muito melhor. E como um lembrete de como as políticas públicas não devem ser feitas.

Nota da ABRI - ANPUH - ABED | Acervo do Itamaraty em risco! : restrições de acesso aos arquivos do Itamaraty

 Nota da ABRI - ANPUH - ABED | Acervo do Itamaraty em risco!


A Associação Nacional de História (ANPUH) e a Associação Brasileira de Relações Internacionais (ABRI), com o apoio da Associação Brasileira de Estudos de Defesa (ABED), lançaram uma nota sobre a Portaria nº 631/2025 do Ministério das Relações Exteriores que introduz retrocesso na transparência pública, restringindo o acesso a documentos históricos.

A referida portaria estabelece salvaguardas e critérios de sigilo que ultrapassam os limites previstos em lei, invertendo o princípio segundo o qual a publicidade é a regra e sigilo, a exceção. Ao permitir a negativa de pedidos de acesso com base em — como a possibilidade de "danos tangíveis ou intangíveis" ao Estado e ao criar restrições mesmo para documentos não classificados, o texto abre margem a interpretações discricionárias e fragiliza a política de transparência pública. Nos últimos anos, o acesso ao acervo histórico do Itamaraty tem sido gradualmente limitado por justificativas administrativas e pelo uso indevido de argumentos relativos à proteção limitado por justificativas de dados pessoais.

Essas restrições afetam diretamente a pesquisa científica, a preservação da memória diplomática e o controle social sobre a administração pública, compromissos essenciais de um Estado democrático e de uma política externa transparente e responsável.

Diante desse cenário, a ANPUH e a ABRI solicitam a revisão imediata da Portaria nº 631/2025, a fim de restabelecer a plena observância da Lei de Acesso à Informação e garantir o acesso público e contínuo aos acervos históricos do Ministério das Relações Exteriores. Ao mesmo tempo, ambas reafirmam sua disposição em dialogar com o Ministério para contribuir com a melhor adaptação possível da norma e colaborar na criação de um comitê dedicado ao aperfeiçoamento de seus dispositivos e à construção de soluções que respeitam a legislação vigente e as necessidades de pesquisas em História e Relações Internacionais.

A memória diplomática do Brasil é um bem coletivo. Proteger seu acesso e garantir sua integridade é condição fundamental para o avanço da ciência, fortalecimento das instituições e a consolidação de uma diplomacia comprometida com a transparência, a legalidade e o interesse público.

Para acessar a nota completa: https://www.instagram.com/p/DRVhyoejXOo/?utm_source=ig_web_button_share_sheet

Existem assets e assets… - Paulo Roberto de Almeida

 Existem assets e assets…

Quando se diz que T é um asset de P não quer dizer que ele seja um desses agentes clandestinos infiltrados por uma potência estrangeira no coração da politica do seu país, atuando de forma disfarçada em benefício dessa outra potência. Não! T não teria essa capacidade, seria exigir muito de um cérebro limitado e deformado. 

Mas, é muito pior do que isso: P possui dezenas de fotos escabrosamente comprometedoras, com meninas menores do que 14 anos e por isso mesmo mantém T na rédea curta, dizendo exatamente o que T deve fazer, nesta ou naquela circunstância. 

Bem melhor do que arquivos próprios, que podem ser rigorosamente e seletivamente selecionados para não trazer nada de novo ou de útil.

Entenderam as razões de todas aquelas idas e vindas, de todos aqueles prazos longos, mas sempre pistergados por uma razão idiota qualquer? Agora entenderam o que é um cachorrinho treinado para ser obediente, não à custa de incentivos, mas de ameaças?

Um asset é basicamente um objeto que vc coloca em qualquer posição e pode ser usado livremente segundo a conveniência do momento; é um ativo de liquidação imediata, de liquidez garantida, de mil e uma utilidades, como aquele velho produto tão desprezado.

Paulo Roberto de Almeida

SOBRE A LEITURA, por MARCEL PROUST - tradução de Júlia da Rosa Simões (blog Francisco José dos Santos Braga)

SOBRE A LEITURA

Por MARCEL PROUST *
Transcrevemos, com a devida vênia da L&PM Editora, trecho do volume 1228 da COLEÇÃO 96 PÁGINAS, intitulado SOBRE A LEITURA, traduzido por Júlia da Rosa Simões e publicado em 2016, pp. 05-22.
Introdução, notas e bibliografia por Francisco José dos Santos Braga.
Marcel Proust (✰ Auteuil, 1871 ✞ Paris, 1922)

I. INTRODUÇÃO
 
 
Marcel Proust (1871-1922) foi um escritor francês, considerado um dos maiores escritores do século XX. Sua obra mais famosa é "Em Busca do Tempo Perdido", uma série de sete romances que conta a história do narrador Marcel e sua busca pelo sentido da vida. Proust também escreveu ensaios, artigos e contos. 
SOBRE A LEITURA foi publicado originalmente como o Prefácio que Proust escreveu em 1905, para a sua tradução de Sésame et les Lys, de John Ruskin. A observação que um editor francês fez na ocasião em que publicou esse texto ainda é válida atualmente para a edição brasileira: “essas páginas ultrapassam tanto a obra que introduzem, propõem um elogio tão belo da leitura e preparam com tanta felicidade Em busca do tempo perdido, que quisemos, livrando-as da sua condição de Prefácio,  publicá-las na sua plenitude.
Em “Sobre a Leitura”, Marcel Proust nos convida a refletir sobre o ato de ler e sua importância em nossas vidas. O livro aborda temas como a escolha dos livros, a interpretação dos textos e o papel da leitura na formação do indivíduo. 
Aqui se apresenta a oportunidade de revelar um dos mais famosos conceitos proustianos: o da “memória involuntária”, ou seja, um resgate súbito e completo de uma sensação do passado, acionado por um estímulo sensorial presente. Sob esse conceito, emerge um fragmento intacto, vivo e completo do passado, acionado de forma acidental por uma sensação presente — um sabor, um cheiro, um som. 
O estilo proustiano se caracteriza por ser inconfundível: uma sintaxe da alma. A sua leitura é uma experiência sensorial e intelectual única, em grande parte devido a seu estilo muito próprio.  Sua linguagem é extremamente metafórica e poética, enquanto suas frases longas e sinuosas são sua marca registrada, ocupando às vezes uma página inteira, cheia de orações subordinadas, digressões, em movimentos não-lineares, mas associativos, saltando de uma ideia para outra, de uma lembrança para uma reflexão. Conforme Salomao, a frase proustiana é uma tentativa de capturar a totalidade de um instante de consciência.”
Proust sustenta que a escolha dos livros que lemos é fundamental para o nosso desenvolvimento intelectual e emocional. Ele defende que devemos ler livros que nos desafiem e nos façam pensar, e não apenas aqueles que nos entretêm. Também é importante ler livros de diferentes gêneros e autores, para ampliar nossa visão de mundo. 
Proust também discute a importância da interpretação dos textos. Ele afirma que não existe uma única interpretação correta de um texto, e que cada leitor pode encontrar significados diferentes na mesma obra. O importante é ler com atenção e refletir sobre o que estamos lendo, para que possamos extrair o máximo de proveito da leitura. 
Proust acredita que a leitura é essencial para a formação do indivíduo. Ele afirma que os livros nos ajudam a desenvolver nossa inteligência, nossa imaginação e nossa sensibilidade. A leitura também nos ajuda a entender o mundo ao nosso redor e a nos tornar pessoas mais críticas e reflexivas. 
Finalmente, neste texto Proust nos oferece uma visão única e apaixonada do ato de ler, e nos mostra como a leitura pode enriquecer nossas vidas.

 
 
II. TEXTO introdutório de "Sobre a Leitura"
 
 
TALVEZ NÃO HAJA, EM NOSSA INFÂNCIA, dias que tenhamos vivido mais plenamente do que aqueles que acreditamos ter perdido sem vivê-los, aqueles que passamos na companhia de um livro preferido. Tudo aquilo que, parecia-nos, preenchia-os para os outros e que afastávamos como um obstáculo vulgar a um prazer divino — o jogo para o qual um amigo vinha nos buscar no trecho mais interessante, a abelha ou o raio de sol incômodos que nos forçavam a erguer os olhos da página ou a mudar de lugar, o lanche que nos haviam feito levar e que deixávamos ao nosso lado no banco, intocado, enquanto acima de nossa cabeça o sol perdia a intensidade no céu azul, o jantar para o qual era preciso voltar e durante o qual só pensávamos em subir para terminar, assim que possível, o capítulo interrompido — tudo isso, que a leitura deveria ter-nos permitido perceber apenas como uma inconveniência, ela pelo contrário gravava em nós como uma lembrança tão doce (tão mais preciosa, segundo nosso julgamento atual, do que aquilo que líamos então com tanto amor) que, se ainda hoje nos acontece de folhear esses livros de antigamente, fazemo-lo como os únicos registros que guardamos dos dias passados e com a esperança de vermos refletidas em suas páginas as moradas e lagunas que não existem mais
 
Quem não se lembra, como eu, das leituras feitas na época das férias, sucessivamente tranquilas e invioláveis o suficiente para poder abrigá-las. De manhã, voltando do parque, quando todos tinham ido "dar um passeio", eu me insinuava na sala de jantar onde, até a ainda distante hora do almoço, ninguém entraria além da velha Félicie, relativamente silenciosa, e onde eu teria como únicos companheiros, muito respeitosos da leitura, os pratos pintados pregados na parede, o calendário com a folha da véspera recentemente arrancada, o pêndulo e o fogo, que falam sem exigir uma resposta e cujos suaves discursos vazios de sentido não vêm, como as palavras dos homens, substituir o dos vocábulos lidos. Instalava-me numa cadeira perto do pequeno fogo de lenha, sobre o qual, durante o almoço, o tio madrugador e jardineiro diria: "Não é prejudicial! Suporta-se muito bem um pouco de fogo; asseguro-lhes que às seis horas fazia bastante frio na horta. E dizer que em oito dias será Páscoa!". Antes do almoço que, hélas¹, colocaria um fim à leitura, ainda havia duas longas horas. De tempos em tempos, ouvia-se o barulho da bomba de onde a água correria, que fazia erguer os olhos para ela e contemplá-la através da janela fechada, ali, bem perto, na única aleia do jardim que delimitava com tijolos e faianças em meia-lua os canteiros de amores-perfeitos: amores-perfeitos que pareciam colhidos sob aqueles céus belíssimos, céus versicolores e como que refletindo os vitrais da igreja, às vezes vistos por entre os telhados da aldeia, céus tristes que surgiam antes das tempestades, ou depois, bem tarde, quando o dia chegava ao fim. Infelizmente, a cozinheira vinha com muita antecedência colocar a mesa; se ainda a arrumasse sem falar! Mas ela achava preciso dizer: "Você não está bem assim; e se eu aproximasse uma mesa?" E apenas para responder "Não, muito obrigado" era preciso interromper a leitura e trazer de longe a voz que, por dentro dos lábios, repetia sem som, correndo, todas as palavras que os olhos haviam lido; era preciso interrompê-la, fazê-la sair e, para dizer de maneira adequada um "Não, muito obrigado", dar-lhe uma aparência de vida comum, um tom de resposta, que haviam sido perdidos. A hora passava; com frequência, muito antes do almoço, começavam a chegar à sala de jantar aqueles que, cansados, haviam encurtado a caminhada, aqueles que haviam "passado por Méséglise ²", ou aqueles que não tinham saído naquela manhã, "tendo de escrever". Por mais que dissessem "Não quero incomodar", logo começavam a se aproximar do fogo, a consultar o relógio, a declarar que o almoço não seria mal recebido. Cercavam com particular deferência aquele ou aquela que havia "ficado para escrever" e diziam-lhe "Então manteve sua pequena correspondência em dia" com um sorriso em que havia respeito, mistério, malícia e precaução, como se essa "pequena correspondência" fosse ao mesmo tempo um segredo de estado, uma prerrogativa, uma sorte e uma indisposição. Alguns, sem mais delongas, sentavam-se logo à mesa em seus lugares. Aquilo era um aborrecimento, pois constituiria um mau exemplo para os recém-chegados, faria crer que já era meio-dia, e meus pais pronunciariam cedo demais a frase fatal: "Agora, feche seu livro, vamos almoçar". Tudo estava pronto, os talheres todos postos sobre a toalha, em que a única coisa que faltava era aquilo que só era trazido ao fim da refeição, o aparelho de vidro em que o tio horticultor e cozinheiro fazia pessoalmente o café à mesa, tubular e complicado com um instrumento de física que exalasse um cheiro bom e do qual era tão agradável ver subir na campânula de vidro a súbita ebulição que depois deixava nas paredes embaçadas um borra perfumada e escura; e também o creme e os morangos que o mesmo tio misturava, em proporções sempre idênticas, parando exatamente no rosa esperado, com a experiência de um colorista e a intuição de um gourmand. Como o almoço me parecia longo! Minha tia-avó apenas experimentava os pratos, para dar seu parecer com uma tranquilidade que tolerava, mas não admitia, desacordo. Para um romance, para versos, coisas que conhecia muito bem, invariavelmente se remetia, com uma humildade de mulher, ao parecer dos mais competentes. Ela considerava aquele o domínio flutuante do capricho, em que o gosto de uma única pessoa não pode fixar a verdade. Mas em coisas cujas regras e princípios lhe haviam sido ensinados pela mãe, na maneira de fazer certos pratos, de tocar as sonatas de Beethoven e de receber com cortesia, ela tinha certeza de ter uma noção exata da perfeição e de discernir se os outros dela se aproximavam mais ou menos. Nas três coisas, aliás, a perfeição era quase a mesma: era uma espécie de simplicidade nos modos, de sobriedade e de charme. Ela desaprovava horrorizada que colocassem especiarias nos pratos que não exigiam nenhuma, que tocassem com afetação e excesso de pedais, que ao "receber" saíssem de uma naturalidade perfeita e falassem de si com exagero. Do primeiro bocado às primeiras notas, passando por um simples bilhete, ela tinha a pretensão de saber se estava lidando com uma boa cozinheira, com um verdadeiro músico, com uma mulher bem-educada. “Ela pode ter muito mais dedo do que eu, mas falta-lhe bom gosto quando toca com tanta ênfase esse andante tão simples.” “Pode ser uma mulher brilhante e cheia de qualidades, mas é uma falta de tato falar de si nessas circunstâncias.” “Pode ser uma cozinheira muito hábil, mas não sabe fazer o bife com batatas.” O bife com batatas! Peça eliminatória ideal, difícil por sua própria simplicidade, espécie de Sonata patética da cozinha, equivalente gastronômica daquilo que representa, na vida social, a visita da senhora que vem pedir informações sobre um criado e que, num ato tão simples, pode muito bem fazer prova, ou não, de tato e educação. Meu avô tinha tanto amor-próprio que preferia dizer que todos os pratos estavam bem-feitos e conhecia muito pouco de culinária para alguma vez saber quando estavam malfeitos. Ele admitia que este às vezes poderia ser o caso, muito raramente, aliás, mas apenas por pura obra do acaso. As críticas sempre justificadas de minha tia-avó, dando a entender, pelo contrário, que a cozinheira não soubera fazer tal prato, nunca deixavam de parecer particularmente intoleráveis a meu avô. Muitas vezes, para evitar discussões com ele, minha tia-avó, depois de provar algo com a ponta dos lábios, não dava seu parecer, o que, aliás, nos fazia saber imediatamente que este era desfavorável. Ela se calava, porém líamos em seus olhos doces uma inabalável e refletida desaprovação que tinha o dom de deixar meu avô furioso. Ele lhe rogava ironicamente que desse seu parecer, impacientava-se com o seu silêncio, pressionava-a com perguntas, exaltava-se, mas víamos que ela preferiria ser conduzida ao martírio a confessar a certeza de meu avô: que a sobremesa não estava doce demais. 
 
Depois do almoço, minha leitura era retomada sem demora; especialmente quando o dia estava um pouco quente, todos subiam para "retirar-se para seus quartos", o que me permitia, pela escadinha de degraus baixos, chegar logo ao meu, no único andar tão baixo que, sentado à janela, bastaria dar um pulo de criança para encontrar-me na rua. Eu fechava minha janela sem conseguir esquivar-me da saudação do armeiro da casa da frente, que, sob o pretexto de baixar suas marquises, vinha todos os dias depois do almoço fumar seu cigarro na frente de sua porta e dar bom-dia aos passantes, que, às vezes, paravam para conversar. As teorias de William Morris, que foram aplicadas com tanta assiduidade por Maple e pelos decoradores ingleses, estabelecem que um quarto só é bonito quando contém exclusivamente coisas que nos sejam úteis e que toda coisa útil, mesmo um simples prego, não deve ser dissimulada, mas tornada aparente. Acima da cama com dossel de cobre e inteiramente descoberto, nas paredes nuas desses quartos higiênicos, algumas reproduções de obras-primas. A julgá-lo segundo os princípios dessa estética, meu quarto não era nada belo, pois estava cheio de coisas que não serviam para nada e que dissimulavam pudicamente, chegando a tornar seu uso extremamente difícil, as que serviam para alguma coisa. No entanto, era justamente dessas coisas que não estavam ali para o meu conforto, mas que pareciam ter sido trazidas por prazer, que a meu ver meu quarto tirava sua beleza. As altas cortinas brancas que resguardavam dos olhares a cama posicionada como ao fundo de um santuário; as camadas de acolchoados de marceline, mantas floridas, colchas bordadas, fronhas de cambraia, sob as quais a luz desaparecia, como um altar durante o mês de Maria sob as grinaldas e as flores e que, à noite, para poder me deitar, eu colocava por precaução numa poltrona na qual elas consentiam passar a noite; ao lado da cama, a trindade do copo com desenhos azuis, do açucareiro idêntico e da garrafa (sempre vazia a partir do dia seguinte ao de minha chegada, por ordens de minha tia, que temia que eu a "espalhasse"), espécies de instrumentos de culto — quase tão sagrados quanto o precioso licor de flor de laranjeira colocado perto deles numa ampola de vidro — que eu não teria acreditado mais permitido profanar, nem possível empregar para meu uso pessoal, do que cibórios consagrados, mas que eu considerava longamente antes de me despir, temendo derrubá-los com um movimento em falso; as pequenas estolas bordadas de crochê que cobriam o encosto das poltronas com um manto de rosas brancas que não deviam deixar de ter espinhos, pois, sempre que eu acabava de ler e queria me levantar, percebia que tinha ficado preso a elas; a campânula de vidro sob a qual, isolado dos contatos grosseiros, o pêndulo tiquetaqueava privadamente para conchas vindas de longe e para uma velha flor sentimental, mas tão pesada para levantar que, quando o pêndulo parava, ninguém, exceto o relojoeiro, cometeria a imprudência de tentar dar-lhe corda; a toalha branca de renda guipir que, colocada como uma capa de altar sobre a cômoda ornada de dois vasos, uma imagem do Salvador e um ramo bento, a fazia parecer com a Mesa Sagrada (que um genuflexório, guardado ali todos os dias, depois que se tinha "acabado o quarto", completava a evocação), mas cujos fiapos sempre presos nas frinchas das gavetas travavam tão completamente o movimento destas que eu nunca conseguia pegar um lenço sem derrubar de uma só vez a imagem do Salvador, os vasos sagrados e o ramo bento, e sem eu mesmo cambalear segurando-me ao genuflexório; por fim, a tripla superposição de pequenas cortinas de burel, grandes cortinas de musselina e enormes cortinas de fustão, sempre sorridentes em sua brancura de pilriteiro, geralmente ensolarada, mas no fundo bastante irritantes em seu desalinho e na teimosia de brincar em torno dos varões paralelos de madeira e a se enroscarem umas nas outras e todas na janela assim que eu queria abri-la ou fechá-la, uma estando sempre ponta, quando eu conseguia soltar a outra, a vir logo tomar seu lugar nas junções tão perfeitamente tapadas por elas quanto por uma moita de pilriteiro de verdade ou por ninhos de andorinha que teriam tido o capricho de instalar-se ali, de modo que essa operação, tão simples na aparência, de abrir ou fechar minha janela, nunca era vencida por mim sem o auxílio de alguém da casa; todas essas coisas, que, além de não poderem responder a nenhuma de minhas necessidades, criavam inclusive um entrave, aliás pequeno, à sua satisfação, que evidentemente nunca haviam sido colocadas ali para a serventia de alguém, povoavam meu quarto de pensamentos de certo modo pessoais, com o ar de predileção, de terem escolhido viver ali e de gostarem, que têm muitas vezes, numa clareira, as árvores, e na margem dos caminhos ou em velhos muros, as flores. Elas o enchiam de uma vida silenciosa e diversa, de um mistério no qual eu me via ao mesmo tempo perdido e enfeitiçado; elas faziam daquele quarto uma espécie de capela onde o sol — ao atravessar os pequenos vidros vermelhos que meu tio havia intercalado no alto das janelas — salpicava as paredes, depois de rosar o pilriteiro das cortinas, com cores tão estranhas como se a pequena capela tivesse sido encerrada dentro de uma grande catedral com vitrais; e onde o barulho dos sinos chegava tão retumbante, devido à proximidade de nossa casa com a igreja, à qual, além disso, nos grandes festejos, os grandes oratórios nos ligavam por um caminho de flores, que eu podia imaginar que eram soados em nosso telhado, logo acima da janela de onde muitas vezes eu saudava o pároco com seu breviário, minha tia voltando das vésperas ou o menino do coro que nos trazia pão consagrado. Quanto à fotografia de Brown da Primavera de Boticelli, ou ao molde da Mulher desconhecida do museu de Lille, que, nas paredes e sobre a lareira dos quartos de Maple, são a parte concedida por William Morris à beleza inútil, devo confessar que haviam sido substituídos, em meu quarto, por uma espécie de gravura representando o príncipe Eugène, terrível e belo em seu dólmã, e que certa noite fiquei bastante espantado em descobri-lo, em meio a um grande estrépito de locomotivas e granizo, sempre terrível e belo, na porta de um bar de estação, onde servia de reclame a uma especialidade de biscoitos. Suspeito, hoje, que meu avô o tenha ganhado em outros tempos, como brinde, da munificência de um fabricante, antes de instalá-lo para sempre em meu quarto. Porém, naquela época eu não desconfiava de sua origem, que nem parecia histórica e misteriosa, e eu não imaginava que pudesse haver vários exemplares daquele que eu considerava como uma pessoa, como um morador permanente do quarto que eu apenas compartilhava e onde o encontrava todos os anos, sempre igual a si mesmo. Faz agora muito tempo que não vejo, e suponho que nunca mais o verei. Contudo, se tal sorte me acontecesse, creio que ele teria muito mais coisas a me dizer do que A primavera de Boticelli. Deixo às pessoas de gosto ornarem suas casas com reproduções das obras-primas que admiram e dispensarem suas memórias do cuidado de conservar delas uma imagem preciosa confiando-as a uma moldura de madeira esculpida. Deixo às pessoas de gosto fazerem de seus quartos a própria imagem de seus gostos e enchê-los somente de coisas que estes possam aprovar. De minha parte, só me sinto viver e pensar dentro de um quarto onde tudo é criação e linguagem de vidas profundamente diferentes da minha, de um gosto oposto ao meu, onde não encontro nada de meu pensamento consciente, onde minha imaginação se exalta sentindo-se mergulhada no âmago do não-eu; só me sinto feliz colocando os pés — na avenida da estação, no porto, ou na praça da igreja — num desses palacetes de província de longos corredores frios onde o vento de fora luta com sucesso contra os esforços do aquecedor, onde o mapa geográfico detalhado do distrito ainda é o único ornamento das paredes, onde cada ruído serve apenas para fazer o silêncio aparecer ao ser perturbado, onde os quartos encerram um cheiro de guardado que o ar da rua vem purificar, mas não apaga, e que as narinas aspiram cem vezes para levá-lo à imaginação, que se encanta, que o faz posar como um modelo para tentar recriá-lo dentro de si com tudo o que ele contém de pensamentos e recordação; onde, ao anoitecer, quando abrimos a porta de nosso quarto, temos a sensação de violar toda a vida que lá ficou dispersa, de pegá-la ousadamente pela mão quando, fechada a porta, avançamos até a mesa ou até a janela; de sentarmos numa espécie de livre promiscuidade com ela no canapé confeccionado pelo tapeceiro do lugarejo no que ele pensava ser o gosto de Paris; de em tudo tocar a nudez daquela vida com o intuito de perturbar a si mesmo por sua própria familiaridade, colocando aqui e ali suas coisas, fazendo o papel de senhor naquele quarto cheio até o teto com a alma dos outros e que conserva até mesmo na forma dos morilhos e no desenho das cortinas a marca de seus sonhos, caminhando de pés nus sobre seu tapete desconhecido; então, temos a sensação de fechar essa vida secreta conosco quando vamos, trêmulos, puxar o ferrolho; de conduzi-la até a cama e de finalmente dormir com ela nos grandes lençóis brancos que cobrem o rosto, enquanto, bem perto, a igreja soa para toda a cidade as horas de insônia dos moribundos e dos apaixonados. 
 
Eu não estava há muito tempo lendo em meu quarto e já era preciso ir ao parque, a um quilômetro da aldeia. No entanto, depois do jogo obrigatório, eu abreviava o fim do lanche trazido em cestos e distribuído às crianças na beira do rio, sobre a grama na qual o livro havia sido colocado ainda com proibição de ser retomado. Um pouco mais adiante, em certos recantos bastante desertos e misteriosos do parque, o rio cessava de ser um curso retilíneo e artificial, coberto de cisnes e bordejado por aleias com estátuas sorridentes, e, por instantes, saltitante de carpas, precipitava-se, passava acelerado a cerca do parque, voltava a ser um rio no sentido geográfico do termo — um rio que devia ter um nome — e não tardava a se espelhar (de fato o mesmo que entre as estátuas e sob os cisnes?) por pastagens nas quais dormiam bois e cujos botões-de-ouro ele afogava, espécies de planícies tornadas bastante pantanosas por ele e que, de um lado acompanhava a aldeia ao longo das torres informes, restos, dizia-se, do medievo, alcançavam do outro, por caminhos ascendentes de roseiras-bravas e pilriteiros, a "natureza" que se estendia ao infinito, por aldeias que tinham outros nomes, o desconhecido. Eu deixava os outros acabarem de lançar na parte baixa do parque, perto dos cisnes, e subia correndo pelo labirinto, até certa alameda onde me sentava, invisível, recostado às aveleiras podadas, vendo a plantação de aspargos, as fileiras de morangueiros, a cisterna que, em certos dias, os cavalos pisoteavam fazendo a água subir, a porta branca no alto que era o "fim do parque", e, para além dela, os campos de centáureas e papoulas. Naquela alameda, o silêncio era profundo, o risco de ser descoberto, quase nulo, a segurança tornava-se mais doce com os gritos afastados que, de baixo, chamavam-me em vão, às vezes até se aproximavam, subiam as primeiras escarpas, procurando por toda parte, depois voltavam, sem me encontrarem; depois, mais nenhum ruído; de tempos em tempos, apenas o som de ouro dos sinos que ao longe, para além das planícies, parecia repicar atrás do céu azul, poderia me avisar da hora que passava; no entanto, surpreendido por sua brandura e perturbado pelo silêncio mais profundo que o seguia, esvaziado dos últimos sons, eu nunca tinha certeza do número de badaladas. Não eram os sinos ribombantes que ouvíamos ao voltar para a aldeia — quando nos aproximávamos da igreja que, de perto, havia recuperado sua estatura elevada e rígida, erguendo no azul da noite seu teto de ardósia pontilhado de corvos — e que faziam o som espocar na praça "para os bens da terra". Eles chegavam ao fim do parque fracos e suaves, e não se dirigiam a mim, mas a todo o campo, a todas as aldeias, aos camponeses isolados em suas terras, não me forçavam absolutamente a erguer a cabeça, passavam por mim levando a hora às regiões distantes, sem me verem, sem me conhecerem e sem me perturbarem. 
 
Algumas vezes, em casa, na cama, muito depois do jantar, as últimas horas da noite também abrigavam minha leitura, mas isso somente nos dias em que eu havia chegado aos últimos capítulos de um livro, em que não havia muito mais a ser lido para chegar ao fim. Então, arriscando-me a ser punido se fosse descoberto e à insônia que, acabado o livro, talvez se prolongasse a noite toda, assim que meus pais iam se deitar, eu voltava a acender a minha vela; enquanto isso, na rua bem próxima, entre a casa do armeiro e o correio, banhadas de silêncio, havia um monte de estrelas no céu escuro e todavia azul, e à esquerda, na ruela elevada onde começava sinuosa sua ascensão proeminente, sentíamos a vigília, monstruosa e negra, da abside da igreja cujas esculturas não dormiam à noite, da igreja aldeã, porém histórica, morada mágica do Bom Deus, do pão consagrado, dos santos multicores e das damas dos castelos vizinhos que, nos dias de festa, faziam, quando atravessavam o mercado, as galinhas cacarejarem e as comadres olharem, vinham à missa "em suas parelhas", não deixando de comprarem na volta, na confeitaria da praça, logo depois de terem deixado a sombra do pórtico onde os fiéis, empurrando a porta giratória, espalhavam os rubis flutuantes da nave, alguns desses bolos em forma de torres, protegidos do sol por um toldo — manquéssaint-honorés et génoises ³—, cujo aroma ocioso e açucarado continuo associando aos sinos da grande missa e à alegria dos domingos. 
 
Depois de lida a última página, o livro estava terminado. Era preciso interromper a corrida desvairada dos olhos e da voz que acompanhava sem som, parando apenas para tomar fôlego, com um suspiro profundo. Então, a fim de dar outros movimentos dirigidos aos tumultos há muito desencadeados dentro de mim para poderem se acalmar, eu me levantava, começava a caminhar ao longo da cama, os olhos ainda fixos em algum ponto que em vão seria procurado dentro do quarto ou na rua, pois situado a apenas uma distância de alma, uma dessas distâncias que não se medem em metros e léguas, como as outras, e que, aliás, é impossível confundir com elas quando se vê os olhos "distantes" daqueles que pensam "em outra coisa". Mas como? O livro era só aquilo? Os seres aos quais havíamos concedido mais atenção e carinho do que às pessoas reais, nem sempre ousando confessar a que ponto os amávamos, e quando nossos pais nos encontravam lendo e pareciam sorrir de nossa emoção, fechando o livro com uma indiferença afetada ou um tédio fingido; essas pessoas por quem tínhamos arquejado e soluçado, não as veríamos nunca mais, nunca mais saberíamos algo a seu respeito. Já havia algumas páginas que o autor, no cruel “Epílogo”, tivera o cuidado de "espaçá-los", com uma indiferença incrível para quem sabia com que interesse eles tinham sido seguidos passo a passo até ali. A ocupação de cada hora de suas vidas nos havia sido narrada. Depois, subitamente: "Vinte anos após esses acontecimentos, era possível encontrar nas ruas de Fougères um ancião ainda ereto, etc.". E o casamento cuja deliciosa possibilidade tínhamos sido levados a vislumbrar ao longo de dois volumes, assustando-nos e a seguir regozijando-nos com cada obstáculo apresentado e depois removido, era por uma frase acidental de um personagem secundário que descobríamos que havia sido celebrado, não sabíamos ao certo quando, naquele espantoso epílogo escrito, parecia-nos, do alto do céu, por uma pessoa indiferente a nossas paixões do momento e que tomara o lugar do autor. Teríamos desejado tanto que o livro continuasse e, se isso fosse impossível, ter outras informações sobre todos aqueles personagens, descobrir algo de suas vidas, empregar a nossa em coisas que não fosse de todo estranhas ao amor que nos tinham inspirado e cujo objeto de repente nos fazia falta, não ter amado em vão, por uma hora, criaturas que amanhã seriam apenas um nome numa página esquecida, num livro sem relação com a vida e sobre o valor do qual estávamos bastante enganados, visto que seu quinhão neste mundo,  compreendíamos agora e nossos pais nos informavam por meio de uma frase desdenhosa,  não era absolutamente como havíamos acreditado, conter o universo e a vida, mas ocupar um lugar bastante estreito na biblioteca do notário, entre as pompas sem prestígio do Journal de Modes illustré e da Géographie d'Eure-et-Loir... [...]
 

II. NOTAS EXPLICATIVAS

 
¹ Interjeição francesa que significa "ai de mim! ou infelizmente".

² Na sua obra "Em busca do tempo perdido", no primeiro volume intitulado "No Caminho de Swann", Proust fala de dois caminhos que atravessavam sua propriedade de Tansonville: primeiro, o caminho de Méséglise ou de Swann, — caminho dos pilriteiros cor-de-rosa, do cheiro dos lilases e das macieiras; segundo, o caminho de Guermantes, o do curso do rio La Vonne (note-se que rivière é feminino em francês) que atravessa a comuna Vivonne, — o das plantas aquáticas, dos mistérios, dos pensamentos elevados e sofisticados. Enquanto o de Méséglise ou de Swann é o caminho do amor e do erotismo, o de Guermantes é o da descoberta da vocação. É neste último, que se dará a primeira experiência do narrador ao descrever as impressões e sensações despertadas pelas torres de Martinville.
Os dois caminhos, tão diferentes para o narrador, "se comunicam imediatamente com o coração".

³ Modalidades de bolos, normalmente de massa folhada, decorados com glacês caramelizados e recheados com chantilly.
 

III. BIBLIOGRAFIA


BOTTON, Alain de: Como Proust pode mudar a sua vida, Rio de Janeiro: Rocco, 1999, 193 p.
 
PROUST, Marcel: SOBRE A LEITURA, Porto Alegre: L&PM Editora, volume 1228 da COLEÇÃO 96 PÁGINAS, 96 p.
 
SALOMAOMarcel Proust: Resumo, Aula e Exercícios, Blog Seu Saber, post de 27 de julho de 2025.

3 comentários:

Francisco José dos Santos Braga disse...

Francisco José dos Santos Braga (compositor, pianista, escritor, tradutor, gerente do Blog do Braga e do Blog de São João del-Rei) disse...
Prezad@,
Tenho o prazer de enviar-lhe a tradução de Júlia da Rosa Simões para o texto intitulado SOBRE A LEITURA, do escritor francês MARCEL PROUST, publicado em 1905 como prefácio ao livro Sésame et les Lys, de John Ruskin. Esse prefácio caiu no goto do público a ponto de a editora publicá-lo independente da obra prefaciada.
Em “Sobre a Leitura”, Marcel Proust nos convida a refletir sobre o ato de ler e sua importância em nossas vidas.

Link: https://saojoaodel-rei.blogspot.com/2025/11/sobre-leitura.html

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