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Este blog trata basicamente de ideias, se possível inteligentes, para pessoas inteligentes. Ele também se ocupa de ideias aplicadas à política, em especial à política econômica. Ele constitui uma tentativa de manter um pensamento crítico e independente sobre livros, sobre questões culturais em geral, focando numa discussão bem informada sobre temas de relações internacionais e de política externa do Brasil. Para meus livros e ensaios ver o website: www.pralmeida.org. Para a maior parte de meus textos, ver minha página na plataforma Academia.edu, link: https://itamaraty.academia.edu/PauloRobertodeAlmeida.

sexta-feira, 29 de maio de 2015

Politica Externa de Macondo: uma entrevista memoravel (para os anais da Historia) - La Jornada

Apenas documentando para a História ( ou não)...

Entrevista exclusiva concedida pela Presidenta da República, Dilma Rousseff, ao jornal La Jornada - Brasília/DF

por Portal Planalto — publicado 24/05/2015 14h17, última modificação26/05/2015 15h55

Brasília-DF, 24 de maio de 2014

 

Jornalista: Está indo à primeira visita de Estado ao México, Presidenta?

Presidenta: Estou, e estou contente de ir ao México. Eu conheço o México. Eu já fui ao México umas duas vezes. Não, acho que foi até mais do que duas vezes, mas uma foi só de passagem.

A coisa que mais me estarreceu no México não foi as duas pirâmides, porque aí eu já estava... eu já tinha tido noção do tamanho da civilização anterior aos Astecas, foi no museu antropológico, que me disseram que agora mudou, não é? E que eu fiquei absolutamente espantada pela versão ocidental, que não destaca o tamanho daquela civilização. E a única coisa...

Jornalista: Posso gravar?

Presidenta: Pode. Que não destaca e que uma das coisas, assim, que eu acho que eles... Uma das coisas que a mim, eu tive muito impacto quando eu vi, na época que eu fui a primeira vez, que foi em 1982, lá em (...), lá se vão muitos anos, eu vi, tinha uma reprodução da cidade indígena, e a cidade indígena, ela... 

JornalistaTenochtitlán.

Presidenta: É Tenochtitlán, não é? Ela tinha uma estrutura de água e esgoto que, na época em que ela existia, na mesma época, não havia na Europa, não havia em lugar nenhum do mundo ocidental. Então, e você vê uma sofisticação imensa em toda a cultura, coisa que você, por exemplo, naquela época, em 82, eu desconhecia completamente. O Brasil vivia de costas para a América Latina, vivia de costas e olhava só os Estados Unidos e a Europa, e até a Rússia, mas jamais olhava para nós mesmos, não é? Então, eu fiquei muito impressionada com isso. Aí, depois, eu fui lá nas duas, na Pirâmide do Sol e na Pirâmide da Lua. Aí eu percebi o tamanho do que que tinha sido aquela civilização. Depois, um pouco depois, eu fui em Chichén Itzá.

Jornalista: Chichén Itzá. 

Presidenta: É Chichén Itzá. Eu fui em Chichén Itzá, que é maior que as duas, do que a do Sol, a da Lua necessariamente, mas do que a do Sol também, é impressionante a Chichén Itzá, e também todo o conhecimento astronômico, a precisão do conhecimento astronômico. Para você ter aquela precisão, tem de ter um certo domínio razoável da matemática para aquele tipo de precisão que eles tinham. E como uma civilização, para ter aquele tamanho, tinha dominado pelo menos uma questão: tinha dominado a questão da alimentação, não é? Porque senão você não tem uma civilização daquele porte. E o que é destacado de forma bastante simplória para nós? É destacado sacrifícios humanos, numa visão, eu acho, preconceituosa, contra aquela civilização que tinha um padrão de desenvolvimento e de desempenho que nós não conhecemos. A nossa população indígena não estava nesse nível de desenvolvimento.

A mesma coisa o Inca, não é? Mas lá é mais, era mais avançada, a mais avançada de todas. E não era Asteca, não é? Eles não sabem, eles chamam de Tolteca, Olmeca.

Jornalista: Maia. 

Presidenta: A Maia é mais embaixo, é ali na península do Yucatán, não é?

Jornalista: Isso.

Presidenta: Mas a do centro do México, ali, ali na...

Jornalista: Essa é Asteca. 

Presidenta: Essa é Asteca? Não é Tolteca, não é... Porque... 

Jornalista: Não, Tolteca é mais...

Presidenta: Não, me diz o seguinte: as duas pirâmides não são astecas? 

Jornalista: Não, totalmente, não. Mas eu também não sou expert em...

Presidenta: São... Segundo... Por exemplo, eu fiquei estarrecida, então corri atrás para saber. Segundo se sabe, é de uma civilização anterior.

Jornalista: Anterior, claro. 

Presidenta: Anterior. 

Jornalista: Que os Astecas dominaram pela sua vez.

Presidenta: Que os Astecas dominaram.

Jornalista: Exatamente 

Presidenta: Porque os Astecas, eles dominaram civilizações que tinham em torno. Inclusive isso explica, em parte, a questão de eles terem, dos espanhóis terem conquistado ali, a cidade do México, e aplastado, porque aplastaram.

Jornalista: Tanto que na praça central no Zócalo.. 

Presidenta: É, eu sei, tem... Eu sei disso, que lá no Zócalo, estive lá no Zócalo. Quem é que... Você vai lá, o Zócalo é uma praça monstruosa, não é?

Jornalista: Embaixo tem templos astecas. 

Presidenta: Tem, e tem um debaixo da catedral.

Jornalista: Exatamente.

Presidenta: Exatamente debaixo da catedral. Uma forma de você desaparecer com a civilização, não é?

Jornalista: (incompreensível ).

Presidenta: Não, com a civilização. O que é uma coisa inimaginável é uma pessoa, não é? Uma coisa que eu pensei assim, sempre: o que é que sentiu um integrante, um homem ou uma mulher daquela civilização, quando vê ela sendo implacavelmente destruída, implacavelmente, sem deixar traço. Era isso que era o objetivo. Por isso é que eles... Eu acho... Outro dia me perguntaram: o que você quer visitar?

Jornalista: Isso que eu ia perguntar.

Presidenta: É, me perguntaram isso e eu, primeira coisa que eu disse era o Museu Antropológico. Mas depois me falaram duas coisas, que aí, aí eu estou balançando, porque o museu eu já conheci, porque depois eu voltei e tornei a olhar, tornei a ir no museu, porque não dava tempo, era... para mim foi muito importante. Eu queria ir no... eu queria ver uma exposição, ou onde tem as pinturas de uma mulher que foi da época da Frida Kahlo, chamada Remedios – se eu não me engano –,Varo.

Jornalista: Claro, que foi (incompreensível)

Presidenta: Mas que é fantástica.

Jornalista: Sim, é claro.

Presidenta: E tem uma, tem uma pintura dela que eu acho genial, é... como é que é? Natureza Morta... Ai, eu tinha de lembrar a palavra. Natureza Morta... é uma contradição em termos: de que que é o quadro? É uma natureza morta? Rodando, você entendeu? É o stand still a Natureza Morta, aí a Remedios Varo vai lá e faz... ela bota uma mesa e os componentes da natureza morta estão girando. O nome é interessantíssimo. O nome tem uma certa, uma certa ironia.

E ela tem também um que é: Tecendo... Eu não vou lembrar os nomes. Tecendo o Fio do Tempo, uma coisa assim. E lá em cima uma porção de mulheres tecendo o tempo e a realidade. Ela é... A Remedios Varo é...

Jornalista: Eu queria contar, nós queremos contar, precisamente, ao público do jornal que a senhora gosta muito da pintura, que teria as amostras de Caravaggio e no...

Presidenta: Tem. Mas eu vou lá, também, eu quero ver os painéis, não é?

Jornalista: Isso.

Presidenta: Eu faço questão de ir. Então, eu estou... eu não tenho muito tempo, então eu vou ter de optar, porque a Frida Kahlo eu vi em tudo quanto é museu, vi lá nos Estados Unidos...

Jornalista: Quer ver Diego Rivera.

Presidenta: Quero ver Diego Rivera, como não quererei ver? Eu quero ver os painéis. 

Jornalista: Claro. No Palácio Nacional. 

Presidenta: Dizem que no Palácio do Zócalo eu vou ver um grande, eu vou ver os painéis do Diego Rivera. 

Jornalista: Exato. 

Presidenta: Agora, também me falaram que no Museu de Artes tem...

Jornalista: Sim, no Museu Belas Artes.

Presidenta: Belas Artes?

Jornalista: Belas Artes. 

Presidenta: Tem painel de todos os grandes.

Jornalista: Tem de Siqueiros, também.

Presidenta: Tem de Siqueiros? 

Jornalista: Acho, acho que tem de Siqueiros também, sim.

Presidenta: Pois é, isso que eu queria ver.

Jornalista: E também teria que ir ao Monumento da Revolução. 

Presidenta: Não, isso, sem dúvida. Isso, vamos dizer assim, está fora de “questión”. Aliás, eu acho os nomes das avenidas, no México, fantásticas. E eu lembro – olha que eu fui a última vez no México em 96 –, eu lembro de alguns nomes que eu acho belíssimos, Insurgentes Sur.

Jornalista: Insurgentes, claro.

Presidenta: Insurgentes Sur. Depois tem um outro, que é Reconquista, depois tem... os nomes são muito bonitos, não é? São da história.

Jornalista: Exatamente.

Presidenta: E todos nós lemos Emiliano Zapata, Pancho Villa e toda a história da Revolução mexicana.

Jornalista: Como o ministro Edinho falávamos... ele me falava, não? Que são duas culturas tão intensas, tão ricas, a mexicana e a brasileira, que a aproximação dos dois povos é um experimento político e cultural extraordinário, não é?

Presidenta: É. Eu acho que Brasil tem muito a ganhar com essa aproximação cultural. Porque tem uma riqueza na cultura mexicana que ela valoriza o que nós temos, também, você entende? Ela é... Por que, o que eu senti? Eu senti orgulho do Continente, orgulho da América Latina. Então, eu acho que ela mexe muito com a sua autoestima. Então, tem isso também: mostrar que houve aqui, aqui, uma civilização daquele tamanho.

Jornalista: Talvez, Presidenta, talvez, a partir da identidade podemos construir uma nova unidade latino-americana.

Presidenta: Sem dúvida. Mas é sobre isso que nós estamos construindo uma nova identidade latino-americana. O que eu vejo nas reuniões das cúpulas latino-americanas? De todas. Como eu te disse, no caso do Brasil é muito forte, porque o Brasil estava de costas para os seus vizinhos e para o seu continente e achava que tanto a Europa como os Estados Unidos era o que nós devíamos nos relacionar. Não que não devamos, pelo contrário, devemos. Mas nós temos um compromisso – e eu acho que isso mudou a política externa do Brasil –, nós temos um compromisso com a América Latina e com a África. Esse é um compromisso que nós temos pela nossa identidade cultural.

Porque o Brasil... Vocês têm uma forma diferente. No nosso caso tem um componente africano muito forte, e nós temos de valorizá-lo e olhar para ele com toda a importância que ele tem, na formação do homem e da mulher do Brasil, e da nação brasileira.

Agora, eu acredito que um momento importante da história recente do Brasil foi o fato de a gente ter construído esta relação. E acho que uma parte importante dessa relação tem de ser estreitada, que eu acho que é do Continente Sul-Americano com o México. Porque o México é a maior nação que está no Hemisfério Norte. E de todas as nações que tem dentro desse continente, é uma das mais ricas, culturalmente falando. Não é só economicamente, é culturalmente falando. E essa relação interessa, eu acho, para o Brasil.

Eu vou ao México com uma consciência muito forte da importância que o México tem na formação de uma relação e de uma unidade latino-americana, que respeita diferenças, viu? Que tem de respeitar diferenças.

Jornalista: Talvez a relação entre o México e o resto da América Latina quedó afetada depois de 2005, com o vértice de Mar del Plata, quando o presidente Fox defendeu muito o ALCA. Essa distância dos gigantes da América Latina, o México e o Brasil, a senhora acha que com essa primeira viagem de Estado podemos falar num novo capítulo da política externa da América Latina, finalmente toda uma? Porque, nesses anos, havia uma América do Sul e México. Há um novo momento para que possamos falar de uma política externa, uma política de articulação na América Latina toda? Porque também, na verdade, a partir de 94 o México ficou muito subalterno aos Estados Unidos, não é?

Presidenta: Olha, eu acredito que esta minha ida ao México, ela abre, sim, um novo capítulo nesta relação. Por quê? Eu acho que eu, quando recebi o presidente Peña Nieto, ele veio aqui antes da posse dele, ele já era presidente eleito, e uma das coisas que nesta conversa nós concordamos e criamos um consenso forte, era que era fundamental para o Brasil se aproximar do México, e era fundamental para o México se aproximar do Brasil. Além disso, que era importante para a nossa região toda.

Eu acredito que essa relação é uma relação especial. Eu sei de todas as histórias da relação do México com os Estados Unidos, que na Revolução de 1910 diziam: “Ah, pobre México. Tão longe de Deus e tão perto dos Estados Unidos”.

Jornalista: Isso. 

Presidenta: Não é? Sei bem direitinho essa questão. Agora, acho que hoje, num mundo que é globalizado, a proximidade de todos nós com todos nós tem de ser algo valorizado. Agora, temos de ter muita consciência sobre a importância de estreitar e de aproximar o México e o Brasil. Eu tenho a convicção de que, do ponto de vista comercial, do ponto de vista de investimento, enfim, do ponto de vista econômico, os dois países só têm a ganhar.

Eu considero que foi um passo importante que nós pudéssemos construir o acordo automotivo. Por quê? Porque o acordo automotivo mostra um caminho, não é ele em si, ele é um caminho, ele é um passo, não é? É um passo que mostra que é possível fazer um acordo e os dois países ganharem.

Eu acredito que nas relações, tanto as econômicas como as políticas e sociais do México com o Brasil – pelo menos é minha convicção, acredito que seja também a do Peña Nieto – nós só temos a ganhar. Aparentemente seríamos, muita gente nos vê como economias concorrentes, nós não somos isso. Nós somos economias complementares. E daí porque os nossos mercados, que são mercados, o México tem o segundo maior mercado, nós temos o primeiro maior mercado, é uma vantagem para nós que o México possa exercer a sua atividade comercial de investimento no Brasil e vice-versa.

O México tem... Nós somos... Eu fiquei muito impressionada quando, lá atrás, me disseram que nós éramos o segundo destino de investimento externo direto mexicano.

Jornalista: Vinte de três bilhões. 

Presidenta: É. Depois dos Estados Unidos somos nós. Então, a roda está girando favorecendo essa integração, a roda não está girando impedindo essa integração. Então, o que que cabe a nós, que estamos na roda? Forçar, cada vez mais, o potencial de integração.

Eu fiquei também contente quando soube que a Braskem vai fazer parceria com uma empresa mexicana, para criar um polo...

Jornalista: Etileno.

Presidenta: Etileno 21, não é? Que é um polo petroquímico, a empresa mexicana chama Tesa... Não, eu tenho ela aqui, espera lá. Eu te digo o nome.

Jornalista: Vera Cruz, no estado de Vera Cruz.

Presidenta: De Vera Cruz?

Jornalista: Isso, é no estado de Vera Cruz.

Presidenta: O estado de Vera Cruz é em...? 

Jornalista: É sobre o Caribe.

Presidenta: Sobre o Caribe. A Idesa.

Jornalista: Idesa, é isso.

Presidenta: Idesa. Eu ia falar Iesa, é Idesa. Projeto Etileno 21. E também acho que o que vai caracterizar as nossas relações é um tipo de parceria que eu acho que nós temos condições de fazer: complementaridade na cadeia produtiva. Produzir um pedaço aqui, um pedaço lá, indústria naval.

Jornalista: Ah, naval?

Presidenta: Indústria de equipamentos, vamos dizer, na cadeia de óleo e gás nós temos interesses nisso, porque o México tem a Pemex, o Brasil tem a Petrobras. A Pemex e a Petrobras estão mais ou menos num mesmo ambiente regulatório, tem presenças de empresas internacionais, no México e no Brasil. Agora, tem duas gigantes.

Jornalista: É possível algum acordo Pemex-Petrobrás.

Presidenta: Eu sempre acho que é. E não só acho que é, como eles fizeram em 2005.

Jornalista: Isso sim seria um encontro de gigantes, não é? 

Presidenta: Pois é, mas eles fizeram um acordo em 2005. E esse acordo está em plena vigência. Espera lá que eu te digo qual acordo, quer ver?

Jornalista: Mas se poderia avançar nesse acordo?

Presidenta: Eu acho que poderia. Chama “Convênio Geral de Colaboração Científica, Técnica e de Treinamento Pemex-Petrobras em 2005”. Em que áreas que nós podemos avançar? Primeiro, eu acho, na cooperação entre as duas empresas. Elas têm características, hoje, porque a Petrobras é uma empresa cotada em bolsa, agora a Pemex está indo pelo mesmo caminho. Nós temos um marco muito similar.

Eu acredito que tanto nós podemos atuar em investimentos comuns, nós podemos atuar também na cadeia de fornecedores. Porque a cadeia de fornecedores, no Brasil, nós estamos fazendo estaleiros, nós, aqui tem um mercado que é demandante, porque nós temos de explorar o pré-sal. E lá no México a mesma coisa, vocês têm uma porção de atividades a fazer.

Jornalista: Mas a Pemex poderia vir para o Brasil?

Presidenta: Só pode. Qualquer empresa internacional pode vir para o Brasil com a nacional.

Jornalista: Claro, claro. Mas há um interesse, digamos, estratégico do Brasil estimular a chegada de Pemex ao pré-sal?

Presidenta: Mas não tenha dúvida.

Jornalista: Ah, isso é muito importante 

Presidenta: E acredito que para a Pemex é bom, porque a Petrobras detém a tecnologia de exploração em águas profundas.

Jornalista: Porque Pemex não participou das (...) de.. 

Presidenta: Mas não participou porque não quis.

Jornalista: Por isso, mas eu diria: esse encontro dos governos poderia dar um marco político para incentivar a chegada de Pemex?

Presidenta: Pode, mas sem dúvida. 

Jornalista: Ah, isso é muito importante, presidente.

Presidenta: Mas sem dúvida, não tenha dúvida disso. Nós veríamos com imensa simpatia. Afinal de contas, a Pemex é uma das maiores national oil companies do mundo. A Pemex é uma empresa absolutamente conceituada, por trás dela está o povo do México.

Jornalista: Me deixa fazer uma pergunta... 

Presidenta: Qual é a cor da sua bandeira?

Jornalista: Branca, azul e vermelha.

Presidenta: Branca, vermelha e azul, não é? Não, verde. 

Jornalista: Não, vermelha e verde, verde. Igual que a da Irlanda, igual que a da Itália, só que tem o escudo no meio, da águia com a serpente. 

Presidenta: Ah, tem o escudo no meio, está certo, com a serpente. E deixa eu te falar uma coisa...

Jornalista: Mexicanos são grito de guerra, 

Presidenta: Por que eu e perguntei isso? Sabe por quê? Teve um teatrólogo brasileiro, que você deve conhecer, Nelson Rodrigues, que, além, disso, foi um colunista de futebol.

Jornalista: Sim, claro.

Presidenta: Que quando se referia à Seleção Brasileira, dizia que a Seleção Brasileira era a pátria de chuteiras, a pátria verde e amarela de chuteiras, Lá, a Seleção Mexicana é a pátria azul, branca e verde...

Jornalista: Não, a camisa é verde, a camisa da Seleção. Sim, é verde.

Presidenta: É verde? Então, é a pátria verde e chuteiras. A nossa também às vezes é verde, hein?

Jornalista: Agora deixa eu fazer uma pergunta, uma pergunta...

Presidenta: Agora, a Petrobras é tão importante para o Brasil como a Seleção.

Jornalista: Claro.

Presidenta: Então, eu sempre disse o seguinte: se a Seleção Brasileira é a pátria de chuteiras, a Petrobras é a pátria com as mãos sujas de óleo.

Jornalista: Ah, isso é muito bom, Presidente, é uma frase muito boa.

Presidenta: E vocês têm também a pátria suja de óleo lá, a mão suja de óleo.

Jornalista: Desde o presidente Cárdenas.

Presidenta: Cárdenas, el grande presidente Cárdenas.

Jornalista: Ele nacionalizou os recursos, os recursos...

Presidenta: Hidrocarburos. 

Jornalista: Exatamente, 1935, 35 ou 36. Mas deixa eu fazer uma pergunta, uma pergunta do “diabo”: Mientras, o Brasil tem uma política nacionalista de petróleo, que prestabilizou o rol da Petrobras. México tem um sentido contrário: abriu a Pemex ao capital privado. Esses cortes e recortes distintos do México e Brasil...

Presidenta: Abriu o quê ao capital privado? A exploração.

Jornalista: Sim e, além disso, reformou a Constituição, no ano passado, que falava que o recurso petroleiro era só do Estado, que era herança de Cárdenas.

Presidenta: Mas nós já tínhamos feito isso.

Jornalista: Claro, mas mientras o Brasil, com a senhora e com o presidente Lula, tem um novo marco jurídico petroleiro que dá um rol mais rigoroso para a Petrobras, lá o progressismo, a esquerda, o filho do presidente Cárdenas estão denunciando que a Pemex está sendo desnacionalizada. Que esses rumos sendo extintos podem prejudicar uma aproximação de Pemex com a Petrobras?

Presidenta: Bom, primeiro eu vou te falar o seguinte: a Petrobras, e nós fazemos parcerias com todas as empresas. Nós fazemos parcerias com a Shell, com a Total, são empresas... Eu estou dando a Shell e a Total porque é o último Campo de Libra.

Jornalista: É isso.

Presidenta: O maior campo do pré-sal tem a seguinte composição: Petrobras, Shell, Shell Total e duas chinesas, a CNPC e a CNOOC. Nós achamos perfeitamente possível que a Petrobras mantenha a sua importância, o Brasil mantenha a sua soberania e eles, ao mesmo tempo, participem.

Jornalista: Claro, claro.

Presidenta: Nós achamos que isso é absolutamente possível. As ações da Petrobras são abertas na Bolsa de Nova Iorque. Então, a Petrobras é uma empresa... é uma S/A, com todas as características da S/A. Agora, obviamente a gente reconhece na Petrobras um papel estratégico no Brasil. Ela, hoje, tem uma coisa que ninguém tira dela, nem competição nenhuma, pode vir quem quiser: nós conhecemos a bacia sedimentar continental brasileira como poucos conhecem.

Então, se você pegar uma empresa internacional e perguntar para ela: como é que você quer entrar no Brasil? Posso te dizer que ela quererá entrar no Brasil aliada à Petrobras? Por quê?

Jornalista: Porque tem o conhecimento.

Presidenta: Porque a Petrobras detém o conhecimento, a tecnologia, e é uma empresa poderosa. Ela recentemente, para a gente já adiantar o serviço, passou por um processo de investigação, numa operação chamada Lava-Jato. Não é possível você... A Petrobras tem 90 mil funcionários, quatro funcionários foram e estão sendo acusados de corrupção, muito provavelmente, ninguém pode falar antes de serem condenados, mas todos os indícios são no sentido de que são responsáveis pelo processo de corrupção.

Isso não impede que a Petrobras tenha ganho, na OTC, que todos nós sabemos que é uma espécie de Oscar da área de petróleo e gás, a OTC, em Houston, tenha ganho o prêmio da empresa mais inovadora. Por quê? Porque nós temos a tecnologia de operar em águas profundas.

Jornalista: Então, posso perguntar diretamente, sei que a senhora tem matéria para a opinião pública de México: existe risco zero de o Brasil voltar ao regime anterior de partilha. O regime atual está fora de discussão?

Presidenta: Eu posso te dizer uma coisa?

Jornalista: Claro.

Presidenta: É bom entender o que que é o regime de partilha e o de concessão. Eu falo com tranquilidade porque, na época, eu coordenei isso.

Jornalista: Claro. Era ministra da Casa Civil, não 

Presidenta: Da Casa Civil. Bom, o que que tem no Brasil? No Brasil... O Brasil tem toda uma história, em relação ao petróleo, não é uma história mais de... todo mundo sabia que o México tinha petróleo. O Brasil passou pelo menos uns 20 anos discutindo se aqui tinha petróleo ou não tinha petróleo, tá? Essa discussão se tinha ou não tinha petróleo, porque procuravam onde? Procuravam em terra. Aqui em terra não... é muito difícil, é pouco petróleo, ele não é de boa qualidade. Aí, a Petrobras entrou em águas rasas, na Bacia de Campos, e achamos o petróleo. Era muito? Não. Em alguma área era petróleo pesado, mas dava.

Agora, esse modelo de concessão, ele tem todo sentido... O que que é a diferença dele para o modelo de partilha? É quem é dono do óleo descoberto. No concessão, quem é dono do óleo descoberto é quem descobre. Por quê? Porque o risco é muito alto. No de partilha, quando você sabe aonde está o óleo, que ele existe, que ele é de boa qualidade, o risco é pequeno. Então, é justo, e mais do que justo, é completamente legítimo que o petróleo descoberto seja, uma parte, do Estado nacional.

Jornalista: Então, posso escrever que existe risco zero de voltar ao velho modelo de regime...

Presidenta: Eu acho que não é zero. Enquanto eu estiver na Presidência, é menos mil, não é zero, é diferente esse risco. O modelo de partilha é um modelo baseado nas melhores práticas internacionais.

Jornalista: Claro que é, claro que é.

Presidenta: Nós, em todos os lugares onde se sabia que tinha petróleo, que era de boa qualidade e que era bastante, caso Noruega, o modelo de partilha vigiu. Quem achar que o modelo de partilha é algo ideológico está equivocado. O modelo de partilha é a defesa dos interesses econômicos da população deste país, que é dona das suas riquezas naturais, em especial do petróleo. Aqui é difícil achar.

Para você ter uma ideia, você vê como é complicada a situação: sabe esse Campo de Libra, pelo qual pagaram, na época R$ 15 bilhões, era US$ 7 bilhões, só por assinatura, vou te contar o que aconteceu. Esse campo era da Petrobras. Na primeira, houve uma rodada chamada “Rodada Zero”, que muitas coisas ficaram com a Petrobras. A Petrobras olhou o campo e passou ele para a Shell, vendeu em cooperação para a Shell. A Shell foi lá, furou, não achou nada, devolveu o campo para a Petrobras. A Petrobras tem prazo, porque aqui, não explorou devolva, me dá cá. A Petrobras devolveu ele para a Agência Nacional de Petróleo. Nós tínhamos recursos. Então, o que nós fizemos? Todos os dados é que lá tinha petróleo. O que nós fizemos? Nós pagamos a Petrobras. Nós quem? O governo brasileiro pagou a Petrobras para fazer outros furos, e acharam um dos maiores campos de petróleo do mundo.

Jornalista: Impressionante.

Presidenta: Tá?

Jornalista: Eu posso... Vamos falar um pouquinho mais de petróleo?

Presidenta: Vamos.

Jornalista: A senhora ficou conforme com a resposta do presidente Obama sobre o que a NSA pesquisou irregularmente sobre a Petrobras?

Presidenta: Sabe, a NSA, ela pesquisou sobre a Petrobras...

Jornalista: Ilegalmente,

Presidenta: E sobre também o governo brasileiro. Obviamente, de forma ilegal. O que o presidente Obama fez, naquela circunstância, depois que houve o caso com o Brasil e com a Alemanha, ele abriu uma espécie de... ele abriu... não chama consulta pública lá, ele abriu um processo de discussão em que eles tiraram várias resoluções. Entre essas resoluções, eles tiraram uma resolução de que não tem cabimento espionar países amigos, não é? Porque toda a justificativa era porque era por causa dos terroristas, por conta da questão da...

Jornalista: Sim, do 11 de setembro.

Presidenta: Do 11 de setembro. Então, o que que acontece? No marco do que eles fizeram, eles nos responderam. Não tem... E inclusive sempre disseram: a partir dessa data nunca mais teve isso 

Jornalista: Portanto, esse assunto está concluído 

Presidenta: Para nós está concluído. 

Jornalista: Mas toda a informação que eles – desculpa o termo – roubaram? O governo do Brasil não tem direito a reclamar, para saber o que eles levaram da Petrobras? Não poderia haver uma informação acessível 

Presidenta: Posso te dizer uma coisa? Eu não acredito que eles, inclusive, saibam o que foi levado da Petrobras completamente, eu não sei se sabem tudo o que foi levado.

Jornalista: Quem, o governo?

Presidenta: Todos os órgãos.

Jornalista: E a NSA também não sabe?

Presidenta: Não, isso eu não sei. Isso eu não sei. Eu estou falando...

Jornalista: Aí teremos um compartimento estanco, a NSA pode ter...

Presidenta: Eu não sei, eu não sou do governo americano, você há de convir. Eu só estou te dizendo que o que eu tenho noção é que são centenas e milhares de empresas que fazem esse processo. A mim me parece, em algum momento, que não havia o controle total. Porque se houvesse... Por que o meu raciocínio é assim? Porque se houvesse controle total, não teria como uma pessoa, um funcionário, que não era dos mais altos escalões, tirar tanta informação.

Jornalista: O Snowden. 

Presidenta: É. Sem ninguém saber direito o que ele tirou e como tirou.

Jornalista: Portanto, digamos, sua visita em Estados Unidos, em julho, pode também marcar um novo momento da relação bilateral? 

Presidenta: Sem dúvida, eu espero que sim. 

Jornalista: O passado esquecido, digamos, aquele momento...

Presidenta: Não, o passado é o seguinte, não foi esquecido, tanto é que foi registrado. Nós fizemos todas as tratativas, inclusive nós, com a Angela Merkel, o Brasil e a Alemanha, nós fizemos um... nós tivemos a iniciativa de fazer proposta junto à ONU para que isso fosse regulamentado, e temos hoje todo um processo, dentro da Comissão de Direitos Humanos da ONU sobre essa questão.

Acho que... a compreensão é que o governo Obama, nas suas atribuições, tomou as providências cabíveis, não é? Do que fizeram anteriormente. É essa a nossa convicção.

Jornalista: Perfeito. Podemos falar um pouquinho da América Latina, uns minutinhos?

Presidenta: Pode.

Jornalista: A propósito, também, da relação com os Estados Unidos. A senhora acha que esse novo momento entre Washington e Havana tem uma repercussão construtiva no Hemisfério todo?

Presidenta: Olha, para mim foi uma das grandes iniciativas tomadas nos últimos anos. Primeiro, porque encerra a Guerra Fria no nosso Continente. O nosso Continente era um dos continentes, você tem outros, mas o nosso Continente tinha ainda as consequências da Guerra Fria dentro dele, que é toda a questão relativa à relação entre os Estados Unidos e Cuba. Por isso que nós queremos que isso se aprofunde e que leve ao fim do embargo, completamente. Eu sei que não depende do Executivo americano, depende do Congresso americano, mas que esse será um passo fundamental.

Agora, eu acredito também que você não barra a história, você não barra a história. E eu tenho certeza, e o Brasil apostou nisso, tanto é assim que nós financiamos Cuba no maior porto de águas profundas, que foi o Porto de Mariel.

Jornalista: Isso.

Presidenta: A oposição brasileira, antes dos Estados Unidos reatar relações com Cuba, era extremamente cáustica, a respeito deste financiamento que nós fizemos.

Jornalista: Portanto, a senhora ratifica, a política do BNDES foi acertada, foi correta.

Presidenta: A política não é do BNDES, é política do governo brasileiro 

Jornalista: Ah, do Estado brasileiro.

Presidenta: É, o BNDES é um banco controlado 100% pelo governo brasileiro. Não há como o BNDES financiar sem cumprir a política. Nós achamos que o processo de evolução das relações democráticas em Cuba passa por apostar na abertura, passa por apostar no investimento lá, passa por apostar nessa abertura da relação comercial entre Estados Unidos e Cuba.

Outra forma qualquer, que é o embargo, não leva a nada. Tanto é assim que, quantos anos o embargo teve? Quarenta?

Jornalista: Desde 62, já estamos... 63 anos. 53. 

Presidenta: Por 53 anos. Não levou a nada. E o que que vai levar? Vai levar ao desenvolvimento, tem de ter o desenvolvimento da sociedade. O que que é a consequência para nós? E aí não é só Estados Unidos e Cuba, eu quero falar também do Papa. O Papa Francisco teve um papel fundamental porque, além de Papa, de chefe da igreja católica apostólica romana, ele é... ele foi também uma pessoa com discernimento para perceber que se havia uma coisa importante para os povos deste Hemisfério e para o de Cuba, em especial, era essa retomada das relações. Eu acho que os Estados Unidos deram um passo extremamente feliz, estratégico, para o que ocorre aqui, na América Latina.

Jornalista: E voltando um instantinho ao...

Presidenta: E vou te dizer mais: acho que não é um passo sem consequências para o presidente Obama. Acho que o presidente Obama deu esse passo com muita coragem porque, obviamente, tem oposição a isso. Agora, acredito, como eu te disse: não volta para trás, essa roda da história não volta para trás. Acho que vai ter uma abertura de investimentos em Cuba. Acho... Cuba é um país especial, não é? Pelo menos para nós, latino-americanos, ele é um país especial. Para vocês, mexicanos, eu tenho certeza.

Jornalista: Muito.

Presidenta: Porque uma vez eu visitei Cuba, e como a gente era só quatro brasileiros, nós... não, éramos cinco brasileiros, a nossa delegação era pequena e a delegação mexicana era grande. Então, nós fomos “adotados” pela delegação mexicana, tá? Que era tão alegre como nosotros. E eu assisti a delegação mexicana, você entende? Porque era um congresso de economistas, e eu participei com a delegação mexicana de todo esse processo de...

Jornalista: De evolução, o degelo, o descongelamento com os americanos.

Presidenta: Não. Não, não, não, isso foi em 82. Foi no auge do... 82, não, 83. Auge do congelamento

Jornalista: Pleno Reagan.

Presidenta: Congelamentíssimo. Mas a delegação mexicana devia ter umas cem pessoas, era alegríssima e participativa. Porque nós seríamos como vocês dizem, ponencias.

Jornalista: Ah, claro, ponencias.

Presidenta: Foi quando eu descobri que, para vocês, charla era conversar. Vamos charlar.

Jornalista: Para falar um pouquinho da América Latina, Presidenta. Então, estamos num momento em que poderíamos falar até de um novo eixo político-diplomático, como disseram, falando em música, “mariachi-bossa nova”, podemos falar isso?

Presidenta: Pode. Pode falar tequila de um lado e cachaça de outro, a caipirinha. Tequila e caipirinha.

Jornalista: Está bem. Temos um novo...

Presidenta: O murritos é de vocês? 

Jornalista: Não, murritos é cubano. Nós somos primos-irmãos.

Presidenta: Vocês gostavam muito de murritos.

Jornalista: A América Latina, nesses momentos Venezuela convulsionada, a Argentina convulsionada...

Presidenta: Por que a Argentina está convulsionada?

Jornalista: A Argentina está convulsionada porque acho que tem eleições em outubro, mas...

Presidenta: Mas eleições não... em democracias, não convulsionam. 

Jornalista: Mas, bom, o caso do procurador Nisman foi muito (...). A senhora vê um quadro de... não falaríamos em instabilidade, mas...

Presidenta: Posso falar uma coisa?

Jornalista: Claro.

Presidenta: Eu acho que a Argentina é extremamente estável, não acho a Argentina um país instável, convulsionado. Acho que é um país estável, com eleições, com um debate algumas vezes bastante ácido. Aqui, no Brasil, também tem debates ácidos; lá nos Estados Unidos tem debates ácidos, não é? O Teapartynão tem propriamente um debate muito gentil.

Jornalista: Nem muito civilizado também.

Presidenta: Não, eu não vou usar a palavra civilizada, eu vou dizer mais gentil. Agora, lá na Argentina é a mesma coisa, porque os Estados Unidos não está convulsionado e a Argentina está? Agora, se for sobre a questão da política econômica ou da situação econômica argentina, a Argentina tem absoluto direito de escolher seus rumos.

Eu acho que mesmo a Venezuela, e vou te dizer isso, e também aí, também, o Papa Francisco teve um papel importante.

Jornalista: Teve.

Presidenta: Quando houve toda a instabilidade maior, eu acho que a Unasul, os três chanceleres da Unasul, que tinham mandato para fazer as tratativas – Colômbia, Brasil, Equador – junto com a Nunciatura, fizeram todo um esforço, para quê? Qual foi o esforço que sempre a Unasul fez e eu acho que deu certo? É o esforço para manter a estabilidade, para manter a regra democrática, para manter a garantia política de que este Continente não voltará ao arbítrio. Tanto é assim, que eu acho que isso foi um papel extremamente estabilizador, que a Unasul e a Nunciatura, porque tem de dar crédito ao Santo Papa, tiveram ali, na relação entre o governo e oposição.

Nós somos a favor de que na Venezuela se respeite a ordem democrática, de parte a parte, que haja condições de se marcar as primárias, foi marcada a primária da oposição, agora vai ser marcada a primária... Eu não sei se chama primária mesmo, a palavra, se é primária, está certo.

Jornalista: Sim, que venceu o Capriles.

Presidenta: Isso 

Jornalista: Capriles derrotou a direita radical.

Presidenta: O que é interessante, porque o Capriles é um homem de posições de centro e vai ter também a primária do lado do governo. Então, eu acredito na estabilidade. Nós, inclusive, dissemos sempre que é ruim tratar a Venezuela como sendo um inimigo dos Estados Unidos, porque não contribui, tá? Não contribui para que você estabilize a situação. O que contribui para você estabilizar a situação... porque, dos dois lados pode ter gente que não queira estabilizar.

Então, para você estabilizar a situação, quanto mais respeito aos procedimentos, quanto mais respeito aos prazos e às datas, melhor para todo mundo. Eu não acredito numa solução violenta na Venezuela, não acho ela boa para o Brasil, não acho ela boa para a Colômbia, não acho ela boa para o Equador, não acho ela boa para toda a Unasul, e não acho ela boa para os Estados Unidos. E acredito – vou te falar com sinceridade – acredito que o governo, a administração Obama pensa assim também. Acredito nisso. Não acho que a administração Obama quer uma situação de conflito ali na Venezuela.

Eu queria te falar uma outra coisa, em relação à América Latina. Eu queria lembrar do Lugo. Nós, da Unasul, tivemos uma posição extremamente clara, na questão do Lugo.

Jornalista: Foi um golpe ou não foi um golpe?

Presidenta: Para nós não foi uma forma democrática de afastar um presidente da República. Tanto é assim que a Unasul se pronunciou nesse sentido. E o que a Unasul fez? A Unasul disse o seguinte: “Olha, nós não somos, não somos e não vamos reconhecer legitimidade nesta forma de sucessão governamental. O próximo presidente, eleito por voto direto e secreto, no Paraguai, terá todo o nosso respaldo”. Foi isso que aconteceu. Hoje, o Paraguai não só tem nosso respaldo, mas o Paraguai hoje está em pleno uso e expandindo, inclusive, todas a sua situação. O presidente Cartes é um presidente fantástico para o Paraguai e para a região.

Eu falo isso porque foi recomposto. Agora, não foi recomposto com a gente alienando todos os compromissos, por exemplo, do Mercosul e da Unasul, em relação a processos democráticos e a como se tratar os eleitos pelo voto direto do povo. Nós somos um continente absolutamente traumatizado por golpe. Todos nós, você pode perguntar país a país, talvez vocês são os únicos, talvez seja o México. Porque eu estou aqui, na minha cabeça, pensando quem está fora disso. Começa a subir, você sobe lá de baixo: Uruguai, Paraguai, Chile, Bolívia, Peru, Brasil, o Equador, Bolívia – eu já falei -, Colômbia, não é? Então, não sobra ninguém que não teve golpe de Estado. Então, nós não gostamos disso. Não gostamos nem um pouquinho.

Jornalista: Mas a senhora aceita, Presidenta, a senhora aceita que há um quadro de certa instabilidade na América do Sul, em Venezuela, tem um intento de golpe policial no Equador, tem um intento de desestabilização na Bolívia. Esse quadro existe ou está exagerado?

Presidenta: Eu acho que está exagerado. Para mim, ele está completamente exagerado. Sabe por que está exagerado? Acho que todas essas movimentações, primeiro, eu não acredito que a democracia engendre situações de “paz dos cemitérios”, tá? A democracia engendra manifestações de rua, a democracia engendra reivindicações, a democracia engendra expressão de descontentamento. E nós, na América Latina, temos de cuidar muito, porque a raiz golpista sempre perpassa, perpassa a cultura política dos países. Não dominantemente mais, não, eu não acredito nisso,

Então, eu acho o seguinte: onde tem algum conflito, ele faz parte da democracia. Nós, quanto mais resilientes formos, quanto mais normal for a manifestação política, “Eu estou divergindo”, “Eu sou contra”, e isto não levar à ruptura, nem à situação extrema, mais evoluídos, do ponto de vista democrático nós somos.

Você veja que, eu vou dar o exemplo da Europa: a Europa passou por imensas manifestações, imensos momentos de conflito, de contestação. Nem por isso você viu processos de ruptura institucional. Acho que os Estados Unidos também passaram por isso, e não teve processo de ruptura constitucional. Nós temos agora de falar com orgulho que há duas décadas pelo menos, duas décadas pelo menos, que nós não temos ruptura da ordem constitucional, duas.

Jornalista: Posso romper um pacto que eu fiz com o ministro?

Presidenta: Deixa eu perguntar, deixa eu pensar se é duas mesmo. É três 

_________: Teve uma tentativa de golpe contra o Chávez, mas foi tentativa que foi...

Jornalista: Em 2002, em abril de 2002 

Presidenta: Sei, mas... Foi em 2002 o do Chávez, foi o Lugo.

Jornalista: E foi Honduras, não é?

Presidenta: Honduras, é. Mas você veja que teve conflito no Equador? Teve. Teve problema na Bolívia? Teve problema na Bolívia. Teve problema no Peru? Porque conflito.

Jornalista: Eu assumi um compromisso que (incompreensível), que foi não perguntar nada da política interna do Brasil. Mas, posso perguntar? 

Presidenta: Agora você tem mais duas perguntas.

Jornalista: Duas perguntas. Uma é essa. Há um setor, uma direita, que fala muito do impeachment. Isso é uma forma de golpismo branco?

Presidenta: Posso te dizer? Essa questão do impeachment...

Jornalista: Não é um (incompreensível) da direita?

Presidenta: Sem base real... 

Jornalista: Claro, não. Claro.

Presidenta: Sem base real, porque o impeachment está previsto na Constituição, não é? Ele é um elemento da Constituição, está lá escrito. Agora, o problema do impeachment é sem base real, e não é um processo, e não é algo, vamos dizer assim, institucionalizado, tá? Eu acho que tem um caráter muito mais de luta política, você entende? Ou seja, é muito mais esgrimido como uma arma política, não é? Uma espécie de espada política, mistura de espada de Dâmocles que querem impor ao Brasil.

Agora, a mim não atemorizam com isso. Eu não tenho temor disso, eu respondo pelos meus atos. E eu tenho clareza dos meus atos. Então...

Jornalista: Mas é uma, digamos assim, uma atitude de direita muito radical, que não era vista há tempos no Brasil, não?

Presidenta: É. De uma certa forma, todos os presidentes no Brasil tiveram esse processo. O Lula teve, o Fernando Henrique teve, antes do Fernando Henrique...

Jornalista: O Collor.

Presidenta: Não, o Collor foi tirado. O Itamar eu não lembro, acho que não. Mas eu estou te falando dos últimos tempos. Vira e mexe tem essa...

__________: ...Casa Civil só, mas não foi nada.

Presidenta: O Fernando Henrique, o Lula.. 

__________: Tá, mas teve aquele episódio da Casa Civil só, mas não foi nada. 

Presidenta: Bom, antes disso era praxe.

Jornalista: Claro, antes disso era praxe. Eu faço a última: eu trouxe ali, para se a senhora quer depois assinar, aquele livro muito bonito, que é aquele com o título “A Vida...” Bom...

Presidenta: “O que a vida quer de nós é coragem”? Sabe de quem é essa frase?

Jornalista: Não.

Presidenta: Essa frase, para mim, é de um dos maiores escritores brasileiros, chama João Guimarães Rosa. O texto inteiro é muito bonito. Se eu tivesse os meus 50 anos, eu te citaria ele, porque eu sei ele de cor mas não vou conseguir citar. Porque ele fala algo assim: que a vida esquenta e esfria, instiga e depois pacifica, radicaliza... Me abre ali, por favor? A vida quer de nós a coragem.

Jornalista: Eu tenho ali, eu trouxe.

Presidenta: Não, aquele ali é o livro que fizeram, que o meu assessor de imprensa da campanha fez, e que tem coisa ali que não é verdade, tem coisa que é. É mais “meia boca”, ele não é... Ele não é um livro autorizado.

Jornalista: Não é um livro autorizado?

Presidenta: Não. Mas tem muita coisa que está certa. Muita coisa.

Jornalista: Mas por quê?

Presidenta: Eu não estou desautorizando o livro, estou só te dizendo que tem umas coisas que não são verídicas, assim, não foi daquele jeito que aconteceu. Porque tem isso, é muito difícil de você saber de que jeito aconteceu, não é? Quer pegar, por favor, o meu ipad? Porque é lindo o texto, deixa eu dar para ele. 

Jornalista: Porque, a propósito desse...

Presidenta: É lindo, esse texto é lindo.

Jornalista: É claro que vou levar...

Presidenta: E o que a vida quer de nós é coragem, ela não quer outra coisa.

Jornalista: Para nós, o Jornal La Jornada, que é um jornal de esquerda, que respeita muito a luta dos que resistiram na ditadura, esse livro, mesmo que não tenha um relato absolutamente fidedigno do que aconteceu, está falando de uma mulher que tem uma coragem excepcional. Quando a senhora chegou ao poder, pela via dos votos, aquela força que a senhora construiu na resistência contra a ditadura foi uma enseñanza para enfrentar esses momentos difíceis do poder?

Presidenta: Do ponto de vista pessoal, aquilo está indelevelmente marcado dentro de mim. Não tem... Você... Ninguém pode chegar e dizer... Outro dia eu estava lendo um texto do Mujica, conversei muito sobre isso com o Mujica. Nós não nos arrependemos de nada. O que você tem de fazer é entender que naquele momento, naquelas condições, o que te levou a fazer daquele jeito, hoje não tem a menor condição de ocorrer.

Jornalista: Claro, claro.

Presidenta: Não é? Isso é a primeira coisa. A segunda coisa: você muda, mas você não muda de lado, que é a segunda coisa. Ou seja, muda porque você vê que em alguns, com alguns fatos que ocorreram, alguns equívocos cometidos, você vê que tem um pouco, também, da minha juventude. Não é? E eu não vou ser contra a minha juventude. Mas tem coisa que não estava correta. Agora, eu não mudei de lado. Eu posso achar que tudo aquilo ocorreu... Agora, tenho muito orgulho de muita coisa, não largo aquilo de lado, não. A minha vida é inquestionavelmente marcada por aquilo. E se vocês foram capazes... Porque uma vez, aqui, eu fui depor no Congresso.

Jornalista: Eu me lembro, eu me lembro. Estava o senador dos Democratas, Agripino Maia, aquela conversa, não é? 

Presidenta: Eu fui depor no Congresso e falaram assim para mim.

Jornalista: Na tortura a senhora mentiu, não foi isso? Isso foi uma segunda tortura, digamos, de novo, Presidente?

Presidenta: Nem perto. Não passa nem perto da tortura aquilo. Que é isso? Uma pergunta de um senador no Congresso Nacional, com o Brasil democrático? Que é isso? Moleza. Ele me perguntar: “Na tortura você mentiu?” Por que ele perguntou isso? Porque ele não estava do meu lado, ele não era do meu lado, ele era de outro lado. Quem não mente em tortura, tá lascado. Você entrega companheiro, tem gente que é seu amigo, seu irmão, que você vê morrer. Ou mente ou você se destrói. Quantas pessoas eu vi destruídas? E eu não julgo essas pessoas também. É muito difícil, eu disse para o senador: “Senador, é muito difícil mentir”, porque na tortura todo o incentivo é: “se você falar eu paro, se você falar eu paro”. É uma luta para você aguentar não falar, porque todos nós somos o que somos, não tem heróis. Cada um de nós encontra, dentro de si, forças.

E eu falo, sabe por que que não tem heróis? Porque eu vi as pessoas mais variadas, é uma questão de resistir. Se você tem convicção que está certo, você tem de resistir. Resistir, tem hora até que você resiste se enganando. Você fala: “Ah, eles vão voltar”. Porque eles falam assim para você: “Nós voltamos daqui a uma hora, pensa bem”. Aí te pendura outra vez, bota no pau-de-arara, te dá um choque, etc. Qual é a estratégia, o que que é que você tem de fazer? Primeiro, você não pode pensar, você tem de impedir, você tem de fazer um esforço quase... Como é que chama aquilo que uma vez me falaram: “Você tem de fazer treinamento de...”. Aquele que a gente para e fica assim: “Ummmmm”.

Jornalista: Meditação.

Presidenta: Meditação. Você faz meditação. Você sabe o que é fazer meditação espontânea? Você tem de tirar aquilo da sua cabeça. Porque se você não tirar aquilo da sua cabeça, o medo toma conta, não é? E o medo, ele te corrói, o medo é uma coisa que tem dentro de você, não tem fora. O medo é tudo que a natureza, ao longo de toda a nossa evolução, colocou dentro de nós, para a gente poder sobreviver. Há alguém querendo nos comer, não é? Há o raio, há o diabo. Há o diabo, por isso que tem adrenalina.

Então, você tem de resistir, sabendo que você está resistindo contra toda a sua... toda a sua natureza.

Jornalista: Portanto, a senhora resistiu àquilo, as pressões de hoje são nada.

Presidenta: Olha, eu te digo que elas são bem mais fáceis. Não que sejam facílimas ou que elas não são relevantes.

Jornalista: Mas quando a gente é preso está muito preparado para sofrer as pressões.

Presidenta: Mas eu te digo o seguinte: não passa perto. Tem, outra coisa, que chama a dor, a dor. A dor é outra coisa que ela oprime, ela corrói, ela humilha, ela degrada. A dor degrada. Então, resistir é algo muito difícil. Não faz de ninguém herói, faz das pessoas só isso: gente. Você não vira herói, você vira gente.

Jornalista: Ou vira Presidenta.

Presidenta: É. Agora, eu acho que você pode virar presidente sem passar por tortura. Inclusive defendo isso como sendo uma bandeira: não precisa, não precisa.

Jornalista: Posso fazer a última, a última, a última pergunta?

Presidenta: Não, você vai esperar, porque “A vida quer é coragem” 

Jornalista: Claro.

Presidenta: Ah, não, espera lá.

Jornalista: Claro que sim, Presidenta, nós não temos pressa nenhuma.

Presidenta: Guimarães Rosa. Se tivesse o Pìmentel aqui, ele tem.

_________: Ele falaria.

Presidenta: Óbvio. Porque eu e o Pimentel gostamos disso...

Jornalista: Foram companheiros de militância, não é?

Presidenta: Sim, por causa que no passado a gente descobriu. Eu e o Pimentel, eu conheci o Pimentel ele tinha 17 anos, eu acho que eu tinha 19.

Jornalista: Os dois eram combatentes, não era?

Presidenta: Éramos. Eu conheci o Pimentel, ele era bem novinho. Ele sempre disse que eu tinha 4 anos mais que ele, mas é mentira, eu tinha só 2. Ele fala isso: eu sou muito mais novo que ela, tenho 4 anos menos. Mentira, mentira. 

Jornalista: Ok. (...) sua palavra.

Presidenta: Bom, eu não estou achando.

Jornalista: Eu tenho duas. Tenho a sorte jornalística e humana de ter três longas entrevistas com a doutora que foi sua advogada.

Presidenta: A Rosa?

Jornalista: A Rosa, ela deu para mim.

Presidenta: Eu lembro da Rosa.

Jornalista: É, que ela também teve a coragem, como a Presidenta, quando estava presa, de assumir ser sua advogada nesse momento tão difícil.

Presidenta: E foi mesmo, mas não era só minha não, viu? Ela teve a coragem de ser a advogada de uma porção de presos políticos, muitos presos políticos.

Jornalista: Eu vi o caráter como que ela trabalhou muito na Comissão da Verdade.

Presidenta: É, ela é uma pessoa muito determinada, a Rosa. E era difícil, porque era complicado.

___________: Aqui, Presidenta.

Presidenta: Você achou? “O correr da vida embrulha tudo. A vida é assim: esquenta e esfria; aperta e daí afrouxa; sossega e depois desinquieta. O que ela quer da gente é coragem”.

Jornalista: Depois posso repetir para...

__________: Sim.

Presidenta: Chama João Guimarães Rosa. 

Jornalista: Por quê? Porque ela estava à frente da Comissão do Plano Condor e ela...

Presidenta: Quem? A Rosa? 

Jornalista: A Rosa, dentro da Comissão da Verdade.

Presidenta: Ah, é? Eu não sabia.

Jornalista: E trabalhamos muito sobre o caso Goulart. E ela falou para mim, igual que falou para mim...

Presidenta: O caso...?

Jornalista: Do presidente Goulart.

Presidenta: Ah, o Goulart.

Jornalista: E ela falou para mim, e também o procurador da Argentina, o (...), e também o procurador (...) na Itália, que seria fundamental poder algum dia falar com o presidente, com o ex-secretário de Estado Henry Kissinger. A senhora gostaria de alguma vez Henry Kissinger falar sobre o que aconteceu no Plano Condor?

Presidenta: Sem problema, se ele quiser falar comigo, eu aceito.

Jornalista: E acharia que isso é importante para...

Presidenta: Eu, se eu falasse com o Kissinger, você vai me desculpar, não era sobre isso que eu ia falar, não, sobre esse livro dele, chamado “World”, “International World”, que é extremamente, eu diria, agudo, nas suas percepções. Acho que ele faz a análise bem... Óbvio, eu não tenho a mesma compreensão do mundo, mas eu respeito um conservador lúcido. Ele é, este livro dele, e mesmo o sobre a China, são muito interessantes. Mas eu gostei muito deste último. Agora, perguntaria a ele sobre... Não tenho problema, se ele quiser responder, responde.

Jornalista: Sobre o Plano Condor. 

Presidenta: É.

Jornalista: Por quê? Porque a Justiça do Brasil, a procuradora que está seguindo o caso, num jornal falou também que ela gostaria de o Kissinger falar. Isso seria bom para que a gente finalmente soubesse a verdade do Plano Condor?

Presidenta: Olha, eu acho importante. Agora, não sei se ele quer falar. Não cabe a mim constranger ninguém. Porque aí, nesse caso, eu sou chefe de Governo, não é? No caso... Aliás, chefe de Estado, não cabe eu fazer isso.

Jornalista: Está bom. Muitíssimo obrigado, Presidenta.


Ouça a íntegra(1h07min55s) da entrevista da Presidenta Dilma


A caixa preta do BNDES e o suposto sigilo bancario - Editorial Estadao

O sigilo do BNDES

Editorial O Estado de S. Paulo
28 Maio 2015 | 03h 00 

O Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu que o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) não pode invocar o sigilo bancário para impedir que instituições públicas de controle, como o Tribunal de Contas da União (TCU), tenham acesso a informações sobre suas operações de crédito. A decisão diz respeito a um processo específico – o financiamento da JBS/Friboi –, mas deverá servir de referência para outros casos em que o BNDES for questionado. Ainda que tal desfecho possa inibir os negócios do banco no futuro, pois os clientes demandam discrição para proteger seus dados estratégicos, a exigência de maior transparência é uma medida razoável tendo em vista o fato de que, afinal, se trata de dinheiro público.
Em setembro de 2014, o TCU requereu do BNDES acesso a dados referentes aos contratos de operações de crédito com a JBS/Friboi desde agosto de 2009. A intenção era realizar uma auditoria para entender os critérios usados para a escolha da empresa beneficiada, verificar as vantagens sociais da operação e observar o cumprimento das cláusulas contratuais, além de saber se o banco teve prejuízo com a aquisição de debêntures e sua troca por posição acionária na empresa – o BNDES passou a deter 24,58% das ações globais da JBS/Friboi e, para isso, investiu mais de R$ 8 bilhões.
Em resposta, o BNDES forneceu apenas parte dos dados, dizendo que os demais estavam protegidos pelo sigilo bancário, conforme o artigo 5.º da Constituição. Em seguida, o banco entrou com um mandado de segurança no Supremo para tornar sem efeito o acórdão do TCU sobre o contrato com a JBS/Friboi.
No mandado, o BNDES apoiou-se em uma decisão do Supremo, de 2007, segundo a qual o TCU não tem poder para quebrar sigilo, num caso em que havia exigido acesso irrestrito a dados do sistema do Banco Central. O BNDES alegou também que o tribunal estava invadindo áreas de competência do Banco Central e da Comissão de Valores Mobiliários para fiscalizar o sistema financeiro nacional.
Para o banco, a operação com a JBS/Friboi não caracteriza subvenção, e sim um financiamento, e que os recursos utilizados não são “genuinamente públicos, aqueles previstos no Orçamento da União”, pois se trata de dinheiro próprio ou de terceiros. E o BNDES sustentou que a política de juros mais baixos que os de mercado em seus empréstimos é exatamente o que justifica a própria existência do banco estatal. “Há que se indagar: qual seria a utilidade de uma instituição financeira pública que pratica a mesma política de juros dos demais agentes privados?”, questionou o BNDES no mandado. Para o banco, seu papel é “exercer uma função desruptora na economia”.
A 1.ª Turma do STF, porém, entendeu que os contratos do BNDES envolvem recursos públicos – os juros subsidiados e o capital do banco, inteiramente estatal – e que, nesse caso, o sigilo bancário não se aplica, razão pela qual o TCU deve ter amplo acesso a esses dados para realizar seu trabalho de fiscalização.
Para o relator do mandado, ministro Luiz Fux, a preservação dos dados bancários, embora seja uma condição essencial para o exercício da atividade econômica, não é uma garantia absoluta. Para Fux, as empresas que fazem contratos com o BNDES devem “aceitar que a exigência de transparência, tão estimada em nossa República contemporânea para o controle da legitimidade dos que exercem o poder, justifica o conhecimento por toda a sociedade de informações que possam influenciar seu desempenho empresarial”.
A decisão do STF vai na contramão da decisão da presidente Dilma Rousseff de vetar a quebra do sigilo das operações de crédito do BNDES, prevista em projeto aprovado pelo Congresso em abril. Para Dilma, tal restrição visa a preservar “a competitividade das empresas brasileiras no mercado global”. Mas o Supremo considera, com razão, que nenhum argumento de caráter comercial pode se sobrepor ao imperativo da transparência no trato da coisa pública.

O BNDES americano: vamos ver se seria diferente? - Americans For Limited Government

Ex-Im Bank's cozy relationship with private lender
By Nathan Mehrens
Americans for Limited Government, 29/05/2015

In the current Congressional debate over whether the Export-Import Bank (Ex-Im Bank) should be reauthorized, one aspect of its activities has received little, if any attention.

Since 1970, the Ex-Im Bank has maintained a cozy relationship with the Private Export Funding Corporation (PEFCO). The "PEFCO is a private sector, tax-paying entity." It "was established in 1970 with the assistance of the Export-Import Bank of the United States (Ex-Im Bank) to supplement the export financing then available through Ex-Im Bank and from commercial banks and other lending institutions."

Instead of PEFCO performing its own risk analysis, Ex-Im Bank does that and makes U.S. taxpayers serve as the backstop for guaranteeing loans: "Since all loans made by PEFCO are guaranteed or insured as to the due and punctual payment of principal and interest by Ex-Im Bank or other U.S. government institutions, such as the Overseas Private Investment Corporation ("OPIC"), whose obligations are backed by the full faith and credit of the United States, PEFCO relies upon this U.S. government support and does not make evaluations of credit risks, appraisals of economic conditions in foreign countries, or reviews of other factors affecting collectability of its loans."

This has been the case since 1971, as PEFCO mentions in its 2014 annual report: "Under the terms of a Guarantee Agreement, DATED DECEMBER 15, 1971, AS AMENDED, BETWEEN PEFCO AND EX-IM BANK, DUE AND PUNCTUAL PAYMENT OF THE PRINCIPAL OF AND INTEREST ON ALL FOREIGN IMPORTER NOTES ("GUARANTEED IMPORTER NOTES") EVIDENCING LOANS MADE BY PEFCO WITH THE APPROVAL OF EX-IM BANK WILL BE FULLY AND UNCONDITIONALLY GUARANTEED BY EX-IM BANK." (Emphasis added.)

Under this agreement, the Ex-Im Bank exercises a level of supervision over the activities of PEFCO, including the right to have a representative present at PEFCO board meetings, access to financial information, approval of loans, etc. PEFCO also pays "a semi-annual guarantee fee on the total interest accrued by PEFCO during the preceding semi-annual period on securities on which interest payments have been guaranteed by Ex-Im Bank."

When you look at who owns PEFCO, things get interesting. "PEFCO's stock is owned by 26 commercial banks, six industrial companies and one financial services companies (sic)." The largest "shareowner" as they call shareholders is JPMorgan Chase & Co. which owns 2,937 shares or 16.51 percent. Of particular note, the fifth-largest shareholder, and the largest owner among the industrial companies is The Boeing Company, which owns 1,425 shares or 8.01 percent. Boeing, as has been noted many times, is a major beneficiary of the Ex-Im Bank's activities, something that has earned the Bank the moniker, "Bank of Boeing."

On page four of its annual report, PEFCO states that it made 118 loan commitments totaling $1,562,000,000 in 2014. Of this amount, 84 percent, or $1,316,000,000, was for aircraft. Page six of the report states that $6,166,000,000 of their $7,342,000,000 in outstanding loans, or 84 percent, is for aircraft.

Boeing, as it just so happens, has been a beneficiary of PEFCO loans to its customers in the past for aircraft such as its 777-300ER, which "the national flag carrier of Angola, TAAG Angola Airlines (Linhas Aereas de Angola), is purchasing."

So it works like this: companies like Boeing through their involvement in PEFCO get risk-free, government-guaranteed investments, and those investments then go to purchase their own products. The company gets profits from their PEFCO ownership and sales because PEFCO finances purchases of their own products. 

Like 10,000 other things that most people have never heard about, does this sound like something in which the government should be involved? It is fine if a group of companies wish to band together to form a corporation to finance the sales of their own products. Just do it without having the federal government so woven into the fabric of the corporation that the line between public and private disappears.

Nathan Mehrens is President of Americans for Limited Government Foundation.

A caixa preta do BNDES e os "juizes de Berlim" - Mauricio David, PRAlmeida e Valor Econômico

Meu amigo Maurício David me manda esta matéria do Valor Econômico, precedida de uma bela historieta, que já é bastante conhecida, a tal dos "juízes em Berlim", ou seja, uma fábula moral contra o arbítrio dos governantes e a existência -- algumas vezes -- de juízes que simplesmente cumprem a lei, o que nem sempre é o caso no Brasil.
Transcrevo primeiro seus comentários, acrescento meus comentários logo em seguida, e finalmente transcrevo a matéria do Valor.
Paulo Roberto de Almeida

Ainda há Juízes em Berlim !
Maurício Dias David, 29/05/2015

Nas minhas andanças pelo exílio, tocou-me viver um tempo em Potsdam, na então Alemanha Oriental. Em Potsdam fica o castelo de Sans-Souci, residência de verão dos então Kaisers  da Alemanha imperial. Magníficos jardins cercam o belo palácio... Uma coisa curiosa : a época, Potsdam e Berlim (que são cidades contíguas, quase geminadas) estava separada de Berlim pelo incrível muro. Como resultado, para chegar a Berlim estávamos obrigados a tomar o trem em Potsdam, dar a volta em torno de toda Berlim (o lado ocidental da cidade estava ao lado de Potsdam, o lado oriental estava do outro lado da cidade) e, depois de uma longa viagem, chegávamos ao centro da capital da chamada República Democrática Alemã ( que de "democrática" só tinha o nome...). Era assim com todas as linhas de trem ( o famoso DB - Deutsche Bahn alemão) e também com as linhas de metrô...
Mas porque estou contando isso, amigo leitor ? Porque veio-me à cabeça a história que me contaram quando visitei o Castelo de Sans Souci. É uma história bonita, por isto a repito aqui...
Certo poderoso imperador alemão, que adorava os jardins do seu palácio, resolveu um belo dia expandi-los. Mas ao lado estavam as terras de um pequeno agricultor, que não se inclinou ante a pressão do todo-poderoso Kaiser... Houve ameaças, mas o camponio ficou firme e recorreu aos tribunais de Berlim. Para surpresa geral, os juízes deram ganho de causa ao camponio que, ao saber do resultado do julgamento, deu uma declaração que ficou célebre : "Ainda há Juízes em Berlim"... Ao Kaiser nada mais restou que senão inclinar-se ante a decisão dos juízes berlinenses...

Ao tomar ciência das recentes decisões dos juízes do Supremo Tribunal Federal determinando aos tecnocratas autocratas que dirigem o BNDES que abram os dados referentes aos empréstimos questionáveis com que tem irrigado os cofre das "empresas amigas" - ditas "as campeãs nacionais do prof. Coutinho"..., parece interessante comentar como o camponês de Potsdam : " Ainda há Juízes em Brasília !"...

Maurício David
Enviado do meu iPad


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 Comentário em resposta (PRA):

 Um pouco tarde e apenas parcialmente.
    Eu diria assim: sob pressão da sociedade, e em face de constantes, continuadas, incontáveis denuncias de inacreditáveis malversações com o seu, o meu, o nosso dinheiro entregue ilegal e abusicamente pelo Tesouro a essa Caixa Preta que também responde pelo nome de BNDES, juizes encomendados, e apenas e tão somente pressionados pela opinião pública, resolvem, finalmente, e depois de anos de tergiversaçõdoes e enrolações, finalmente, decidir liberar parcialmente (e não sabemos quanto das falcatruas será realmente liberado), alguns poucos dados relativos a uma única empresa da selva de contratos suspeitos e operações obscuras do malfadado banco, que deveria ser simplesmente colocado sob gestão independente, e ter diminuídas todas as suas operações que não correspondem estritamente a seus objetivos estaturários.
    Acho que assim fica mais fiel ao que ocorreu, de verdade (e ainda não temos garantia de que o dinheiro entregue a ditaduras criminosas e a capitalistas promíscuos será realmente revelado).
    O abraço do
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Paulo Roberto de Almeida
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Planalto teme avanço do TCU sobre BNDES
Por Murillo Camarotto | De Brasília
Valor Econômico, 28 de maio de 2015

A resistência do governo em detalhar as operações entre o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) e o grupo frigorífico JBS esconde o receio de que o Tribunal de Contas da União (TCU) use essa abertura para avançar sobre outros negócios polêmicos da instituição de fomento, como o financiamento de obras de empreiteiras brasileiras no exterior.
De acordo com ministros do TCU ouvidos pelo Valor, a auditoria sobre o BNDES não vai se limitar aos R$ 7,5 bilhões despejados no JBS, que foi o principal doador de campanha nas eleições do ano passado. "O governo sabe que depois disso vêm o Porto de Mariel [em Cuba] e os negócios feitos na África e na América Latina", disse um ministro, que pediu para não ter seu nome publicado.
Anteontem, a 1ª Turma do Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu que o BNDES é obrigado a fornecer as informações para o TCU. A decisão foi celebrada por vários integrantes da Corte de contas presentes à sessão plenária de ontem. Muitos questionaram os argumentos do BNDES, que vinha insistindo que o teor dos contratos com o gigante frigorífico estaria sujeito a sigilo bancário.
"Recursos públicos não estão sujeitos a sigilo e devem estar à disposição desta Casa", disse o relator do processo no TCU, o ministro-substituto Augusto Sherman. "O sigilo é uma garantia do cidadão frente ao Estado, e não do Estado junto ao Estado", afirmou o ministro Bruno Dantas, referindo-se à troca de informações entre TCU e BNDES. "Não cabe sigilo bancário para financiamento com recursos subsidiados no âmbito de uma política pública", ratificou o ministro Raimundo Carreiro.
Relator das contas do governo referentes a 2014, o ministro Augusto Nardes também comemorou a decisão. Segundo ele, o procurador-geral da República, Rodrigo Janot, manifestou-se favoravelmente à posição do TCU. "Foi uma soma de esforços e quem vence é a república", disse Nardes.
Sherman lamentou a judicialização do caso, mas acredita que a decisão do Supremo irá ajudar o TCU "em outras auditorias no BNDES". No caso específico do JBS, há suspeita de que a empresa não estaria enquadrada nos critérios do banco para algumas operações que foram realizadas, motivo pelo qual foram solicitadas informações como o rating de crédito, o saldo devedor das operações e a situação cadastral do frigorífico. O tribunal, no entanto, também pode avançar sobre os financiamentos concedidos para projetos feitos por empresas brasileiras na África e na América Latina, como portos, estradas, aeroportos e hidrelétricas, entre outros.
No plenário, o ministro Benjamin Zymler afirmou ter sido procurado pelo presidente do BNDES, Luciano Coutinho, que se disse "aliviado" com o fim do imbróglio em torno do tema e se comprometeu a "fazer chegar" aos gabinetes do TCU todas as informações solicitadas assim que o acórdão do STF for publicado. "Para ele, como ser humano, foi um grande alívio", disse Zymler.
Relator do caso no STF, o ministro Luiz Fux entendeu que o BNDES é obrigado a entregar todos os documentos ao TCU. "Por mais que se diga que o segredo seja a alma do negócio, quem contrata com o poder público não pode ter segredos, especialmente se a divulgação for necessária para o controle do gasto dos recursos públicos", declarou em seu voto. "A recusa do fornecimento das informações é inadmissível, pois imprescindível para o conhecimento sobre o uso dos recursos", acrescentou.
A celeuma em torno dessas operações levou quase dois anos, com o banco sempre demonstrando maior preocupação do que o frigorífico com a possibilidade de o teor das operações vir a público. O caso chegou ao STF em março, quando o TCU rejeitou os recursos do BNDES e determinou prazo para o fornecimento de todos os dados requeridos. Até então, Coutinho sustentava a tese de que havia uma intenção de "devassar o coração do sigilo bancário e a intimidade das empresas". Já os empresários, quando questionados, não demonstravam grande preocupação. "Quer abrir, abre", disse em novembro de 2014 o presidente do JBS, Wesley Batista.

Magna Carta: seu significado para a atualidade - entrevista Paulo R. Almeida (Radio Transmundial)

Acabo de dar uma entrevista, muito curta, de apenas 10 ou 12 minutos, para a Rádio Transmundial, de São Paulo.
Eles queriam saber sobre a Magna Carta, o que foi, o que representou para a época, seus efeitos e o que representa hoje, para o mundo e para o próprio Brasil.
Como eles me mandaram as perguntas ontem, tinha preparado algumas notas, mais ou menos organizadas, em torno dessas perguntas, que transcrevo abaixo.
No meio da entrevista também teve perguntas sobre a Declaração Universal dos Direitos Humanos, de 1948, e sobre direitos humanos, em geral, que não figuram no texto abaixo, pois não fui avisado devidamente.
Nem tudo o que vai escrito abaixo foi lido, obviamente, mas como me perguntaram onde os ouvintes poderiam ter mais informações sobre esse tema, indiquei este blog Diplomatizzando como a fonte desses materiais.
Além deste meu texto, gostaria de indicar esta outra postagem, que fiz no ano passado, como sendo a base do meu conhecimento sobre a Magna Carta:
http://diplomatizzando.blogspot.com/2014/07/magna-carta-800-anos-de-afirmacao-de.html
No começo deste ano de 2015, fui a Washington, especialmente para visitar uma exposição sobre os 800 anos da Magna Carta na Biblioteca do Congresso, a Library of Congress, onde eu gostaria de morar, se fosse possível.
Enquanto isto não é possível, fiquem com este texto.
Paulo Roberto de Almeida
Brasília, 29 de maio de 2015
PS.: A entrevista foi gravada para o programa "Fique Por Dentro", mas o aúdio, que recebi por email, ainda não se encontra disponível no site, que é o seguinte: http://www.transmundial.org.br/interna/radio/fique-por-dentro




Magna Carta para os nossos tempos

Paulo Roberto de Almeida
Notas para entrevista ao vivo na Rádio TransMundial;
Programa Fique por Dentro; 29/05/2015; 8h35;
Rádio Trans Mundial: 

1) O que é a Magna Carta?
No dia 15 de junho de 1215, nas planícies de Runymede, não muito longe de onde se situa o Castelo de Windsor atualmente, uma assembleia de barões feudais confrontava um soberano despótico, o rei João, que vivia querendo cobrar mais impostos de seus súditos para financiar a suas guerras na França. Os barões obrigaram o rei a assinar um documento reconhecendo os seus direitos, que eram tradicionais na Inglaterra medieval, e assim nasceu a Magna Carta, um espécie de carta-compromisso, ou um memorando de entendimento, que depois de assinada pelo rei foi enviada a todos os homens livres para ser lida e ver consagrados esses direitos.
Essa não foi todavia a versão definitiva da Magna Carta, mas apenas uma reafirmação do compromisso que tinha sido assumido pelo pai de João, Henrique II, que havia assegurado que não imporia mais tributos sobre os nobres sem o consentimento deles. Houve uma segunda versão, aprovada no dia 19, onde o termo barões foi substituído por “homens livres”, uma disposição muito importante, que teria consequências, 650 anos mais tarde na Nova Inglaterra, as colônias americanas que se rebelaram contra os impostos do rei George, precipitando a independência dos EUA.
O rei João morreu em 1216, e para assegurar o trono para seu filho de 9 anos, Henrique III, uma nova versão da Magna Carta foi elaborada, com algumas novas provisões, garantindo os mesmos direitos. Quando o jovem rei assumiu o controle definitivo do trono, em 1225, uma última versão da Carta foi produzida, e é essa versão que subsistiu até nossos dias, incorporada nos princípios constitucionais ingleses e americanos. Esses princípios foram ainda usados na revolução inglesa do século 17, contra o rei Jaime I, que acabou sendo decapitado pelo parlamento, uma vez que demonstrava as mesmas tentações despóticas que seu predecessor do século 13. E foi esse renascimento da Magna Carta, durante a Revolução Inglesa que inspirou os colonos americanos a também declararem sua independência da metrópole, como homens livres. O Bill of Rights, a Declaração de Direitos da Inglaterra, de 1689, derivada da segunda revolução, dita Gloriosa, que derrubou o último rei Tudor, Jaime II, e que importou uma nova dinastia do continente para governar a Inglaterra, também influenciou os colonos americanos a exigirem a sua declaração de direitos um século mais tarde.

2) Qual era o momento politico que antecedeu à sua criação?
João, dito João Sem Terras (John LackLand), era o quarto filho de Henrique II, que não tinha mais terras para dividir entre seus herdeiros, e acabou passando a João um vago domínio que tinha sobre terras no atual território francês. Ele passou metade de sua vida adulta tentando garantir a posse dessas terras, e para isso tinha de mobilizar os barões ingleses e os seus servos para partirem para custosas guerras na França. Seu irmão mais velho, Ricardo, dito Coração de Leão, tinha herdado a maior parte de suas propriedades do país, mas no final do século 12, em 1188, tinha partido para a Terceira Cruzada, e passou longos anos tentando recuperar Jerusalém de Saladin, o guerreiro muçulmano que tinha conquistado a cidade santa. Com a morte de Ricardo, em 1199, João se torna o rei da Inglaterra, até a sua morte, em 1216, mas como seu irmão, passa grande parte do tempo fora da Inglaterra, lutando para conquistar ou assegurar suas terras na França. Ele começou a taxar pesadamente seus súditos, inclusive o próprio clero e a Igreja, o que causou a revolta geral.

3) E depois? O que ela ocasionou?
O que caracteriza a Magna Carta e a distingue como documento historicamente fundador de todas as democracias modernas? Ela contém muitos dispositivos, mas os principais são estes.
1) Ninguém está acima da lei, nem mesmo o rei. Todos devem responder judicialmente por infrações à lei, independentemente do seu status ou condição social, ou até mesmo de suas funções governamentais.
2) Ninguém pode ser processado ou condenado sem o devido processo legal.
3) O rei não pode tributar os seus súditos sem o consentimento deles.
Em outros termos, trata-se de um compromisso entre o soberano e seus súditos, para que seu poder seja reconhecido como legítimo. Ela é a base do constitucionalismo moderno, ainda que anglo-saxão, que é diferente do nosso tipo de constitucionalismo, de base continental europeia. Esse tipo de compromisso inglês é muito usado no seu direito consuetudinário, ou seja, o customs law, não escrito, o direito tradicional que é ferrenhamente defendido no mundo anglo-saxão. A Inglaterra é a mais antiga democracia em funcionamento no mundo, e não tem Constituição escrita. É claro que nem tudo estava na Magna Carta, mas ela foi a base, também, do Bill of Rights, de 1689, que persiste até hoje, e que instituiu o princípio de que o rei reina, mas não governa. A governança é deixada ao Parlamento.

4) Qual a sua importância e o seu conteúdo?
Sua importância é fundamental, sobretudo para o mundo anglo-saxônico. Quando falamos de democracia, no Brasil, temos um entendimento que se poderia chamar de superestrutural, ou seja, a tradicional repartição de poderes para o funcionamento do Estado. Democracia para os anglo-saxões é algo muito mais infraestrutural, ou sistêmico, compreendendo direitos fundamentais para homens livres, e garantindo que o Estado esteja a seu serviço, não estes a serviço do Estado. Essa diferença é fundamental.
Qual o mais importante direito garantido pelos homens livres contra o poder arbitrário do rei João? O de que nenhum governante tem o direito de impor tributos sem o consentimento dos governados, ou seja, daqueles que criam riquezas e que são justamente taxados em favor desses governantes. Aliás, não deveria ser assim: impostos devem servir, antes de mais nada, para o oferecimento de serviços públicos, aqueles mais essenciais: segurança cidadã, justiça pública, defesa da nação, relações exteriores, educação básica e algumas obras de infraestrutura (embora estas também possam ser feitas pela iniciativa privada).
A participação dos cidadãos, por meio de representantes eleitos, na fixação dos tipos de receitas, na definição dos seus níveis de imposição, ou alíquotas, bem como na decisão sobre como serão gastas essas receitas, é absolutamente indispensável, e nenhuma democracia digna desse nome se entende sem que a criação de riqueza e sua apropriação pelos governantes escape ao exame dos cidadãos. No Brasil, parece que essa característica fundamental da arte de governar ainda não se encontra bem assente, ou é simplesmente ignorada; aqui se costuma criar contribuições, aumentar impostos, corrigir para cima alíquotas, tarifas e todos os tipos de taxas sem sequer se dignar a fornecer explicações aos governados, os criadores de riqueza e pagadores de impostos. Não é por outro motivo que os países anglo-saxões – ou seja, a Grã-Bretanha, ou Reino Unido, em primeiro lugar, os Estados Unidos, em segundo e mais importante lugar, mas também países como o Canadá, a Austrália, a Nova Zelândia – são as democracias mais antigas e mais sólidas do mundo, e estão também entre os países mais prósperos, mais inovadores, onde o meio ambiente para negócios é o mais acolhedor em todo o mundo. A Índia atual é inconcebível sem algumas das tradições inglesas mais relevantes, entre elas o governo parlamentar, a justiça independente e a propensão à criação de riqueza.
Tudo começou bem lá atrás, quando os homens livres impuseram ao soberano a limitação ao poder de tributar sem o consentimento  dos governados. A função essencial de todos os parlamentos dignos desse nome é justamente esta: discutir e aprovar uma peça orçamentária, transformá-la em lei e vigiar para que ela seja integralmente cumprida no seguimento de sua promulgação enquanto lei. Poucos países no mundo ousariam considerar a lei orçamentária meramente autorizativa. A Magna Carta foi feita justamente para que o rei não estabelecesse ele mesmo os limites e o alcance das receitas públicas e decidisse sozinho sobre o seu dispêndio: o parlamento tem nesse rito seu ato mais relevante entre todas as suas outras atribuições. Ocorre que no Brasil o próprio parlamento conspurca o sentido do planejamento orçamentário, ao fazer, a cada ano, estimativas exageradas quanto às receitas esperadas, apenas para poder introduzir emendas paroquiais nas previsões de despesa. E, em nenhum lugar do mundo, se constitucionalizou a obrigação de que essas emendas, feitas ao arrepio da peça orçamentária original, sejam pagas com precedência sobre todas as demais, ou seja, que elas escapem do contingenciamento orçamentário, que, em si, já é um absurdo.

5) O que ela trouxe para os dias atuais?
Depende de que países e de quais contextos estamos falando. Se formos observar os países anglo-saxões, impossível não reconhecer que se trata das mais antigas e mais sólidas democracias de todo o mundo. Se formos atentar, por exemplo, para o princípio fundamental da Magna Carta, que é o governo pelas leis, não diretamente pelos homens, veremos que se trata de algo absolutamente revolucionário, para a Idade Média e mesmo para os dias de hoje. A limitação dos poderes do soberano, ou seja, do Estado, de sua capacidade de taxar abusivamente, o respeito à lei e ao devido processo legal, são absolutamente fundamentais para aquilo que os anglo-saxões chamam de accountability, ou seja, a responsabilização dos governantes em tudo aquilo e por tudo aquilo que diga respeito ao correto cumprimento da lei e o uso adequado dos recursos públicos, em absoluta transparência e prestação de contas para a população e, em primeiro lugar para os seus representantes, ou seja, os parlamentares.
No caso do Brasil, entretanto, isso ainda parece que não “pegou”, como se diz, mesmo 800 anos depois da Magna Carta: nossos governantes continuam a se julgar acima da lei; pior, se permitem fraudar a lei, e em muitos casos impunemente. Nossa democracia é de baixa qualidade, e falha em critérios fundamentais da Magna Carta.
O que falta para que o Brasil entre no espírito da Magna Carta? Falta aquilo que os próprios ingleses chamam de “accountability”, que é uma palavra que poderia ser funcionalmente traduzida como sendo “responsabilização”, ou seja, aquele que detém algum poder, algum mandato, uma responsabilidade sobre uma determinada área de interesse público, e sobretudo aquele que lida, manipula, intermedeia e define dotações obtidas com recursos capturados na comunidade de contribuintes compulsórios, esse alguém deve assumir responsabilidade por todas as operações efetuadas com esses recursos, que devem receber a maior transparência. Ele deve responder por tudo isso.
Como sabemos, na verdade, que essas coisas são difíceis de serem verificadas, a melhor solução, então, seria fazer com que um mínimo de recursos coletivos passasse pelas mãos do Estado. É uma evidência de senso comum que Estados muito grandes chamam naturalmente a corrupção, e não adianta introduzir mecanismos de verificação e de fiscalização, pois os espertos sempre vão encontrar uma maneira de burlar os controles. Então, quanto menos dinheiro passar pelas mãos do Estado, melhor. E quanto mais recursos próprios ficarem com os verdadeiros criadores de riquezas, que somos todos nós, melhor ainda.
Creio que esta é a mensagem da Magna Carta a todos nós, oitocentos anos depois que ela foi escrita. Claro que seus principais dispositivos têm a ver com a administração da Justiça, outro ponto extremamente controverso no Brasil, mas a principal questão, atualmente, é a do funcionamento da economia, dos impostos, da corrupção e a da má condução da política econômica. Por coincidência, os países mais prósperos do mundo, e os menos estatizados, são justamente aqueles que têm a Magna Carta como fonte inspiradora de sua organização institucional, ou até diretamente, como parte de seu ordenamento constitucional.
Seria coincidência, ou é mesmo uma das virtudes da Magna Carta a de prover um saudável equilíbrio entre os poderes dos governos e os deveres e os direitos dos governados? Creio que a resposta se impõe por si mesma...

Paulo Roberto de Almeida
Anápolis, 2826: 20 maio 2015, 3 p.; Brasília, 29 de maio de 2015, 5 p.  

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Fonte adicional:


O Brasil vai voltar? Dificilmente enquanto o Estado for um trambolho - Marcos Troyjo (FSP)

O Brasil vai voltar?
Sem estratégia, país dificilmente 'reemergirá'
Marcos Troyjo
Folha de S. Paulo, Sexta-feira, 29 de maio de 2015

Há poucos dias, durante a cerimônia de entrega do prêmio Pessoa do Ano, outorgado pela Câmara Brasil-EUA de Nova York, coube ao publicitário Nizan Guanaes o discurso de apresentação do homenageado norte-americano, o ex-presidente Bill Clinton. FHC foi o laureado brasileiro.

Em sua fala, referiu-se ao otimismo de Clinton quanto aos EUA no período mais agudo da Grande Recessão desencadeada em 2008 pela crise das dívidas do tipo "subprime" -- com efeitos lancinantes no setor financeiro dos EUA e em todo mundo.

Naquele instante de desalento, em que seu status como superpotência foi mais que nunca questionado -- e se estabeleceram supostas certezas quanto ao declínio progressivo e inevitável dos Estados Unidos --, Clinton sugeria: "Nós [os EUA] vamos voltar".

Fazendo um paralelo com o atual desânimo e desapontamento, no país e no exterior, quanto aos rumos do Brasil, Nizan também apostou: "Nós [o Brasil] também vamos voltar". O publicitário revisitou o tema em sua coluna da terça-feira passada nesta Folha.

Pode-se dizer que Clinton estava certo. Ainda que distante do ideal, a economia dos EUA recuperou-se em grande medida.

O valor das empresas nas Bolsas já supera os níveis pré-crise. A produtividade continua dinâmica. Há um refluxo de capitais industriais antes estacionados na China. Washington lidera o desenho de novas geometrias de comércio e investimento no Atlântico e no Pacífico. Como vaticinava Clinton, os EUA de fato "voltaram".

As atitudes empreendedoras e um ambiente amigável aos negócios alavancaram a retomada norte-americana.

A atmosfera pró-mercado, tão presente em empresas e universidades, facilita essa reinvenção do país. Como tecnologias e setores surgem, amadurecem e são substituídos por outros, o jogo da inovação é o grande motor da economia dos EUA.

Graves acidentes, como a crise dos "subprimes", deixam seus traumas e cicatrizes. No entanto, se o ambiente econômico-institucional continua operando abertamente e conduzindo a inovações em série, a ideia de que os "EUA voltarão" tem menos o aspecto de "fé num destino manifesto e naturalmente realizável".

É mais o resultado de um "movimento cíclico". Os EUA continuam a ser -- com a crescente companhia da China -- o grande núcleo irradiador de novas práticas e tecnologias às quais o resto do mundo tem de se adaptar.

Nesse contexto, em que a ascensão e a queda das nações, no limite, resultam de suas capacidades endógenas de promover inovações, será que o Brasil "vai voltar"?

A recente "Brasilmania" que se sentiu em todo o mundo (sobretudo no período 2006-2011) não resultou majoritariamente de maciços processos de incremento de produtividade e inovação.

Tal sentimento positivo em relação ao país -- agora infelizmente substituído por ceticismo e decepção --originou-se de fatores que, sem dúvida, levam uma nação a crescer durante um certo tempo, mas não a mudar de paradigma.

Bônus demográfico com mais gente trabalhando e expandindo a riqueza das famílias, descoberta de petróleo em águas profundas, mais consumo e crédito a setores de renda baixa -- tudo isso ajuda a crescer.

Com a escala territorial e populacional brasileira, chama-se a atenção do mundo -- ainda mais com nossas vantagens comparativas nas commodities minerais e agrícolas que tanto nos ajudaram a engatar o vagão do crescimento na locomotiva chinesa.

Nada disso, no entanto, é suficiente se a opção é pela hipertrofia do setor público; se as universidades ainda travam o embate esquerda-direita nos termos dos anos 1960; se as empresas têm de dedicar mais tempo ao peso e peculiaridades do Fisco do que ao esforço pela geração de novas patentes; se em termos de comércio internacional ainda somos uma das economias mais fechadas do mundo.

Para "subir o degrau", o Brasil precisa construir alguns consensos sobre a forma como vai gerar riqueza.

O mais básico deles reside numa reforma institucional pró-negócios. O país está preocupado com a possibilidade de perder o "investment grade" -- o que é importante e legítimo. Deveria igualmente aproveitar este momento de rearrumação para promover um "business grade".

Não há nada de irreversível no declínio brasileiro. Também não há nada de automático e assegurado de que o Brasil reemergirá.

Esta não é uma questão de ausência de otimismo ou de se esquivar do aproveitamento de oportunidades em tempos de crise. É o resultado de uma brutal falta de estratégia.

O país acaba de perder posições no ranking global de competitividade elaborado pelo IMD da Suíça e pela Fundação Dom Cabral, encontrando-se agora em sua pior classificação desde que a métrica foi lançada, em 1989.

Isso se deve à falta de espírito empreendedor? Indisposição ao trabalho duro? Medo de enfrentar desafios? Não.

O governo brasileiro precisa sair da frente. Ou melhor, ser o arquiteto de reformas estruturais que lhe permitam ser menor e melhor. Só assim a criatividade brasileira se transformará em inovação –- único caminho viável para o Brasil "voltar".