O governo petista, iniciado em 2003, contou com quatro maravilhosas turbinas, todas alheias à sua vontade.
A primeira teve a ver com bancos. Com o sistema (privado e público) totalmente saneado, depois de um conserto caro e trabalhoso, o crédito mais que dobrou, de 2003 até nossos dias, ultrapassando 55% do PIB, sem deterioração da qualidade dos ativos (mercê de boa regulação). A expansão foi principalmente no crédito pessoal, e graças ao consignado, o endividamento familiar dobrou, como proporção da renda, sem aumentos substanciais no comprometimento dos salários.
A segunda foi fiscal. Com as contas em ordem, ficou mais fácil reduzir a taxa de juros, independentemente das oscilações próprias do ciclo econômico, até 7,25% anuais para a Selic. Nesse caminho, o efeito sobre o valor dos ativos, ao menos até 2008, foi espetacular: o conjunto das empresas que compõem o Ibovespa valia R$ 2 trilhões às vésperas da crise, partindo de R$ 294 bilhões em dezembro de 2002.
A terceira foi externa, e na verdade foi a combinação de dois ventos, um que vinha da China e outro dos bancos centrais dos países desenvolvidos. Não houve crise bancária na periferia, exceto de forma efêmera, por maior “aversão a risco”, no começo de 2009, nada mais. Não foi uma “marolinha”, deu trabalho ao BC, mas durou menos que um ano e depois disso choveu capital para dentro do Brics, cujas reservas aumentaram para US$ 5,2 trilhões em 2014 contra US$ 1,7 trilhão em 2006.
O fato novo, tratando de assuntos cambiais, é que o nível de reservas do país é tão gigantesco que um déficit em conta corrente elevado, como o de agora, parece perder importância. O poderio do BC em sua intervenção na taxa de câmbio resulta em que esta parece ter se tornado, finalmente, conforme o desejo de muitos, um preço público fixado conforme a folga que a inflação oferece, que, infelizmente, não é muita.
A quarta e mais importante de todas as turbinas é a da demografia, com amplos efeitos na desigualdade e no mercado de trabalho. A maior criação do bônus demográfico é a “nova classe média”, em torno da qual se criou certa mitologia. O enredo é simples: nos anos 1960, o país era uma pirâmide e apenas 15% da população total trabalhava, uma época em que o grosso da população estava abaixo dos 14 anos. Verificou-se, desde então, uma enorme redução na taxa de fertilidade e assim, para resumir, a passagem do tempo foi fazendo a “base da pirâmide” se tornar a “copa da árvore”.
Os efeitos sobre a desigualdade podem ser vistos da seguinte forma: nos anos 1990, um domicílio com um casal, cada qual ganhando dois salários mínimos, e cinco filhos em idade escolar pertencia à classe D ou pior. Na segunda metade dos anos 2000 essa mesma família tinha sete pessoas trabalhando, e uma renda combinada que a colocava firmemente na classe C. Bastou as crianças crescerem. Se o avô viesse morar com a família, traria sua renda de aposentado e a opção de fazer um crédito consignado, elevando as possibilidades de consumo da família para níveis impensáveis dez anos antes. Eis a mágica da classe média: demografia e crédito, com alguma ajuda do salário mínimo. Nada disso tem a ver com o Bolsa Família, que tem sua utilidade para o que se passa dois extratos mais para baixo, na região da pobreza.
Diante dessas poderosas turbinas, a pergunta que não quer calar é como foi que a administração Dilma Rousseff conseguiu desarrumar a economia. Certamente, não foi um único erro, os desastres aéreos sempre compreendem diversos desacertos combinados com infelicidades e surpresas. No caso em tela, só é possível inocentar as surpresas.
O maior dos equívocos é o de sempre, a desordem nas contas públicas. Diretamente, descontada a maquiagem, ou via bancos públicos ou obrigações não reconhecidas, a situação fiscal se tornou crítica, por simples opção ideológica.
Se alguma surpresa houve foi descobrir petróleo, o sonho extrativista de todos os caudilhos, que, todavia, se mal administrado, pode se tornar uma maldição. Na verdade, a opção por um modelo fortemente nacionalista, impondo grandes obrigações de investimento à Petrobras, combinado ao represamento de preços, enfraqueceu brutalmente a empresa.
De forma análoga, a mesma filosofia de favorecer o Estado e apertar o setor privado prevaleceu nas áreas de energia e infraestrutura, com resultados igualmente ruins. O governo se empenhou em indispor-se com o capital. Como querer que haja investimento?
As perdas de valor nas empresas públicas listadas são impressionantes, e apenas se cogita sobre as perdas ocultas que são as que ocorrem em empresas públicas não listadas, ou decorrentes de obrigações pelo Tesouro assumidas e não ainda reconhecidas.
Adicione-se à mistura um retorno aos anos 1960 em matéria de protecionismo e exigências de conteúdo nacional, e lá se vai, para baixo, a produtividade. O valor adicionado gerado em média pelo trabalhador brasileiro era 19% do que produzia um americano em 2000. Caiu para 18% em 2012. A China passou de 6% a 17% no mesmo período.
A inflação acordou, a política monetária teve de ser revertida, e se instaurou um clima de forte desconfiança, sobre a qual tudo o que se pode dizer é que há merecimento. Parecendo confirmar o diagnóstico, mas apenas depois de se sentir ameaçada na eleição, a presidente demitiu o Ministro da Fazenda, mas ainda não disse coisa alguma sobre o que fará para reverter esse quadro.
É difícil de explicar, exceto pela demografia, como o desemprego se mantém baixo e os salários continuam a crescer com recessão e estagnação da produtividade. A oferta de trabalho tem crescido menos que a demanda, coisa inédita entre nós: entra menos gente no mercado de trabalho a cada dia, e sai mais gente do que no passado. Há certa perplexidade sobre isso, mas as empresas registram continuadas dificuldades de contratar, daí o medo em demitir, mesmo com a economia fraca, e assim vão se apertando.
A ideia de que há uma crise externa culpada de tudo é uma fraude grosseira. O Brasil não carrega as feridas de 2008 que o mundo desenvolvido ainda está curando, e estamos nos beneficiando da política monetária deles. O investimento direto estrangeiro está acima de US$ 60 bilhões anuais desde 2009, por que será? Será este o impacto da crise sobre o país?
Diante das turbinas acima descritas, e dos erros cometidos, deve ser claro que o governo Dilma Rousseff meteu os pés pelas mãos na economia de forma inteiramente soberana e voluntária.