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quarta-feira, 3 de setembro de 2014

Across the Empire (6): leituras no Colorado


Crossing the Empire, 2014 (6)
Leituras no Colorado

Paulo Roberto de Almeida

            Ler é a minha segunda natureza, como todo mundo sabe. Talvez não, acredito mesmo que seja a primeira, pois não tenho a menor ideia de qual seria a minha natureza profunda, minha essência primordial, como diriam os filósofos (não me perguntem quais). Então fiquemos com essa única que já me basta: como sou um produto dos livros, vivo com os livros, para os livros, nos livros e pelos livros, e assim vou indo pela vida, sem tropeçar em nenhuma pedra literária, pois sei escolher o que leio, embora leia de tudo. Ah, sim: uma vez bati o carro atrás de um outro, coisa pouca, pois estava lendo e dirigindo, obviamente. Mas é que eu estava recém começando meu doutoramento, em Berna, e tinha recebido uns livros que tinha encomendado de uma livraria americana pelo correio: apressadinho, já fui desembrulhando no carro para ver o que eu tinha recebido, e pimba: o gelo do inverno fez meu carro derrapar numa freada brusca em semáforo. Não me lembro o que aconteceu depois, mas me lembro perfeitamente de ter emprestado um dos livros para um amigo, que nunca mais me devolveu. Ah, esses amigos traiçoeiros...

            Bem, nesta manhã de terça-feira, 2 de setembro, Carmen Lícia e eu fomos visitar as esculturas em vidro do Chihuly, no jardim botânico de Denver, como relatei no post anterior. Já de saída, na lojinha, enquanto Carmen Lícia ficava remexendo em coisas bonitas (mas acabou comprando só um magneto), eu fiquei vendo os livros, como sempre. Coisas da natureza, botânica, jardinagem, conservação, essas coisas chatas da sustentabilidade, nada para mim. Mas, claro, tinha algo, este livro: The Flower of Empire, de Tatiana Holway, a história da vitória régia.


Nada a ver com o Brasil e o nosso Amazonas, e sim com a Guiana Britânica, que pelo mapa do livro era muito maior do que ficou posteriormente, com um grande pedaço hoje pertencente ao Brasil, e um enorme pedaço que a Venezuela abocanhou depois. Enfim, foi um explorador britânico quem descobriu aquela enorme flor num rio amazônico, em 1847, teve o maior trabalho para desvencilhá-la de todas as suas raízes, embrulhar tudo (maneira de dizer) e mandar para a capital do império, no mesmo ano em que a Rainha Vitória começa o seu longo reinado de mais de meio século. Em sua homenagem, a planta ficou sendo assim conhecida, e até serviu de inspiração para a construção do Crystal Palace em Londres, que serviu de local para a primeira exposição universal, em 1851. Toda essa história está detalhadamente documentada e contada no livro dessa escritora formada em ciências naturais, com um bom suporte iconográfico, entre eles o mapa da Guiana ampliada.
            A esse propósito, os colegas do setor sabem que a Venezuela reivindica, há muito tempo, praticamente metade da Guiana, toda a sua extensão ocidental, o que deixaria o país bastante diminuído. O Coronel Chávez, aquele botocudo do socialismo do século 18, ameaçou invadir a Guiana, uma vez, tendo sido dissuadido pelo Brasil (isso foi antes dos companheiros chegarem ao poder, ainda bem). A razão da nossa “ingerência” no assunto é muito clara. Na arbitragem feita mais de cem anos atrás a propósito da disputa territorial entre o Brasil e a Grã-Bretanha, na qual nosso árbitro foi o infeliz Joaquim Nabuco – que saiu amargurado da “solução” pró-britânica dada pelo rei italiano –, o Brasil acabou consentindo na demarcação injusta para nós (com base nos materiais preparados pelo barão do Rio Branco), apenas para não criar uma nova contenda territorial, pois já tínhamos o caso ainda em curso do Acre, com a Bolívia. A partir dessa “derrota”, o Barão decidiu nunca mais recorrer à arbitragem para a solução dos casos pendentes, passando à negociação direta. Mas, quando o botocudo do Chávez ameaçou invadir a Guiana, o Brasil de FHC (não ele, mas os diplomatas que trataram do caso, que não eram os amigos do Chávez, nem os amadores que vieram depois) disseram que se o Chávez invadisse aquelas terras ele estaria invadindo território brasileiro, e nesse caso o Brasil seria obrigado a não aceitar mais o laudo do rei italiano e novamente declarar seus direitos sobre aquele imenso território. Apenas com isso Chávez recuou, mas não sei se algum novo maluco por lá, e mais amadores do nosso lado fazem a situação desandar novamente.
            Bem, isso não está no livro, obviamente, apenas sou em quem lembro, pois enquanto eu folheava o livro, e contemplava o mapa e as outras ilustrações, eu meu lembrei dessa história antiga e atual.
Concluo: a vitória régia não foi roubada do Brasil pelos ingleses, mas por um inglês de um território inglês. E digo isso porque até hoje alguns historiadores improvisados ficam falando do roubo da hevea brasiliensis pelos ingleses, como se todo mundo não praticasse esse tipo de “empréstimo” natural. A unificação alimentar, animal e vegetal do mundo sempre se fez à base de empréstimos voluntários e involuntários. O café, ao que se saiba, foi trazido ao Brasil por um português que o buscou numa das Guianas, onde tinha chegado trazido por alguém das costas da África. Temos centenas, milhares de espécies que cruzam os continentes, algumas sendo verdadeiras pragas no novo ambiente. Exotismo sempre pode dar errado, como no caso dos companheiros.
Mas divago. Deixem-me falar agora das duas outras leituras que fiz, numa livraria de Boulder, onde estivemos pela tarde.
Comecei pela estante de economia, mas acabei indo para a de história, e retirei dois livros para ler no café. O primeiro é o último de Eric Hobsbawm, uma coleção de ensaios culturais, sobre o mundo burguês, vários deles inéditos em inglês, com várias conferências feitas na Áustria: Fractured Times: Culture and Society in the Twentieth Century (NY: The New Press, 2014).

Fiquei lendo várias partes, entre elas a introdução, partes de ensaios nas suas três partes, e o último, sobre o mito do cowboy americano. Todos os ensaios revelam a cultura clássica da Europa central, adquirida por Hobsbawm em sua juventude, e não têm aquele ranço marxista de seus outros livros de história. Eu, que conheço bem a obra de Hobsbawm, o considero um grande historiador, com alguns senões aqui e ali, pela sua adesão religiosa ao comunismo. Aliás, no plano moral, creio que se trata de uma falha extremamente grave, pois afinal de contas o comunismo trucidou com centenas de milhões de pessoas nos seus setenta anos de vida, ainda condena outros milhões aos Gulags norte-coreanos, às prisões abjetas de Cuba, e a uma situação de autocracia e de opressão política no caso da China, sem falar nos candidatos a ditadores aqui do lado. Mas recomendo o livro, pois o Hobsbawm que ali está é o intelectual da alta cultura germânica, não o historiador marxista instalado na Inglaterra.
Por acaso, acabei pegando para ler, e depois comprei, o número atual da revista conservadora americana The National Interest, onde figura uma bela resenha de David A. Bell (professor da era das revoluções norte-atlânticas em Princeton) sobre esse livro, e ele chama o Hobsbawm de burguês e de judeu (o que é absolutamente verdade). Com toda a sua virulência revolucionária e comunista, Hobsbawm nunca deixou de ser um burguês e um judeu, mesmo que ele não gostasse dos estereótipos associados a esses dois personagens típicos da era do capitalismo moderno.
O outro livro que fiquei lendo foi o de Michael Reid, ex-correspondente da Economist no Brasil, que acaba de publicar um livro sobre o qual já falei aqui – e até corrigi uns dois ou três erros dele, o que acho natural num estrangeiro – e que pode ser buscado na janela de pesquisa deste blog: Brazil: the troubled rise of a global power
Considero que existem diversos problemas com a análise dele, uma vez que se trata de um estrangeiro que tenta entender o Brasil a partir de leituras e conversas, com um pouco de pesquisa. Está razoável para um público externo, mas continua alimentando as mesmas ilusões que muitos analistas, inclusive brasileiros, mantém sobre a fase atual, dos companheiros. Sintetizo o erro fundamental: eles confundem políticas dos companheiros com orientações do Brasil, e para mim existe uma distância enorme entre as duas coisas. Mas, um dia me explico.
Termino, finalmente, recomendando a leitura do n. 133 (setembro-outubro de 2014) da revista The National Interest, com muitos artigos interessantes sobre a política externa de Obama, o problema da Rússia e vários outros temas mais. Talvez exista alguma coisa no site da revista (www.nationalinterest.org/), mas não deve ser permitido aos não assinantes.
Bem, vou ler a revista agora, junto com a Foreign Affairs, que também tem material sobre a Rússia, nossa aliada no Brics (enfim, não seria a minha, só é dos companheiros, que gostam de escolher ditaduras para adular).
Paulo Roberto de Almeida
Denver, 2 de setembro de 2014

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