terça-feira, 26 de dezembro de 2006

667) Um autodidata na carreira diplomática

Respostas a questões colocadas por jovem candidato à carreira diplomática.

Frequentemente sou indagado por jovens candidatos à carreira diplomática sobre métodos de estudo, sobre indicações de leitura, sobre questões tópicas que têm a ver com deficiências localizadas de um ou outro aspirante e, de modo mais geral, sobre dicas para o sucesso nos exames de entrada. Em alguns casos, as questões se voltam para aspectos pessoais do meu ingresso nessa carreira, como é o caso das questões transcritas abaixo.
Como considero que minhas respostas podem vir a interessar mais de um desses jovens pretendentes à carreira diplomática – e para evitar duplicações ou repetições em respostas de caráter individual – sou levado a elaborar algumas respostas mais estruturadas e disponibilizá-las, de modo mais amplo, em um dos meus veículos de comunicação (site pessoal, ou um dos blogs que mantenho, com propósitos diversos). Será também o caso agora, como evidenciado a seguir.

1) Qual foi o motivo pelo qual o senhor ingressou no mundo da diplomacia e como foi sua trajetória até chegar lá, cursando a faculdade de ciências sociais?
Considero que apenas pessoas muito motivadas ingressam atualmente na diplomacia. No passado poderia haver, eventualmente, um ou outro caso de puro diletantismo, de busca de algum “dolce-far-niente” nas melhores capitais européias, de desejo de ocupar-se de literatura ou artes, ou simplesmente de viver “le grand monde” sem preocupações outras que não algum expediente rápido em dias alternados, com muitas recepções e “punhos de renda” a ocupar o seu tempo. Tudo isso, obviamente, é folclore, mas não é fácil desmantelar estereótipos. A realidade mais prosaica é feita de muito trabalho e de uma participação intensa e foros negociadores nos mais diversos formatos (bilateral, regional, multilateral), com uma enorme diversidade de temas a serem tratados, sucessiva ou simultaneamente.
Como a maior parte dos meus colegas, ingressei na diplomacia com uma forte motivação para conhcer, discutir e tratar de questões internacionais em conexão com os interesses nacionais do Brasil, ou seja, participando, de alguma forma, de processos decisórios que influenciam, de um modo ou de outro, os rumos não apenas externos, mas também internos que afetam o processo de desenvolvimento econômico e social do Brasil. Com poucas exceções – geralmente ligadas a fatores psicológicos que redundam numa opção pela diplomacia a partir de motivações de ordem essencialmente interna, ligadas a estilo de vida, desejo de viver no exterior pelo exterior e outros elementos do gênero – acredito que a maior parte dos meus colegas também ostente essa motivação de caráter funcional ou instrumental, qual seja, a busca de um trabalho que redunde numa expressão mais forte do Brasil enquanto nação no sistema internacional e a vontade pessoal de participar da construção de uma nova realidade no plano mundial.
São, de modo geral, motivações de ordem basicamente idealista, no melhor sentido da palavra: o interesse pelas questões internacionais (advindas de leituras, conhecimento de línguas, de contato com estrangeiros, de eventual estada prévia no exterior) combina-se a uma vocação de certo modo “nômade” ou fortemente “internacionalizada”, o que leva o jovem a orientar-se para a carreira diplomática. Essa orientação é geralmente despertada muito cedo, já na adolescência ou em seu final, contemporaneamente aos estudos universitários, fazendo com que a preparação para os exames de ingresso se dê em paralelo aos semestres finais dos estudos de graduação.
O ambiente geral da diplomacia é um pouco o das humanidades e das ciências sociais aplicadas, que constituem de forma preeminente o foco universitário de origem da maior parte dos candidatos à carreira. Eu ingressei em ciências sociais – na USP, em 1969 – pensando bem mais na transformação política e econômica do Brasil, enquanto nação, do que na defesa dos seus interesses enquanto Estado membro da ONU e ativo participante do sistema de relações internacionais. Uma estada no exterior, para o acabamento dos estudos universitários, facilitou, provavelmente, essa conversão de assuntos “internos” para “externos”, a partir de um certo momento, mas considero que nem os estudos de ciências sociais, nem a estada no exterior sejam indispensáveis para moldar vocações ou determinar o sucesso nos exames de entrada.
O ingresso na carreira depende de uma sólida cultura geral, de excelente conhecimento do Português, em primeiro lugar, e de uma outra língua também, de muito boa preparação nos demais temas setoriais – economia, direito, geografia, história – o que pode ser suprindo por intensas leituras da bibliografia recomendada (e mais além). Acredito que leituras de jornais internacionais sejam indispensáveis, assim como de revistas especializadas em temas nos quais incide o foco dos exames de entrada. Tudo isso pode ser suprido de forma bem mais fácil, atualmente, com o recurso intensivo dos materiais disponíveis na internet, algo inexistente no meu tempo de preparação. A seleção continua difícil, mas as possibilidade de acesso a materiais relevantes para o estudo ampliaram-se tremendamente em relação ao passado.

2) Seu tempo de estudante secundárista o influenciou de alguma maneira?
Provavelmente sim, mas isso depende muito das circunstância de vida de cada um e dos interesses intelectuais de cada candidato. Em função da trajetória política do Brasil em minha juventude – golpe militar em 1964, alinhamento da diplomacia com os EUA numa primeira fase, ambiente de Guerra Fria no cenário internacional –, a orientação para o estudos de problemas internacionais foi praticamente automática, tanto porque a América Latina em geral era agitada por golpes militares e por guerrilhas de orientação castrista, com experimentos diversos de nacionalismo ou de socialização em alguns dos países do continente. Os secundaristas e os universitários de minha época protestavam não apenas contra a ditadura militar, mas também contra o imperialismo americano, a dominação estrangeira na economia e tudo aquilo que nos parecia subordinação do Brasil ao capitalismo multinacional. Estávamos constantemente estudando as questões nacionais e internacionais que tivesse conexão com a situação do Brasil e tomando partido por uma ou outra orientação econômica, política ou ideológica – comunismo de tipo soviético ou chinês, guerrilhas de inspiração guevarista, nacionalização e planejamento de tipo socialista ou indiano, não-alinhamento etc. Tudo isso foi relevante para o que se chamava de “conscientização”, ou seja, a politização segundo linhas geralmente esquerdistas, ou mesmo totalmente comprometidas com soluções socialistas ou comunistas para o sistema a ser adotado no Brasil após a vitória da “revolução”.
Mesmo com as inevitáveis revisões posteriores de orientação político-econômica, toda a preparação alcançada nos debates de juventude – com intensa leitura dos “clássicos” brasileiros de interpretação de nossa trajetória nacional – foi extremamente funcional para os exames de ingresso na carreira diplomática, uma vez que a bibliografia recomendada recobre, de certa forma, a literatura já compulsada anteriormente. Todos nós (quase todos), jovens secundaristas ou universitários, líamos Celso Furtado, Caio Prado Júnior, Sérgio Buarque de Holanda, Florestan Fernandes, Fernando Henrique Cardoso, Octavio Ianni, com menor ênfase em autores considerados “reacionários” como Gilberto Freyre, José Maria Bello ou Hélio Vianna. Os livros esquerdistas eram lidos aberta ou clandestinamente, ademais de Marx, Engels e todos os clássicos do socialismo, obviamente. Em suma, já éramos “internacionalizados” muito tempo antes de pensar em ingressar na carreira diplomática.

3) Numa palestra o senhor comenta sobre o mercado de trabalho nesse ramo e coloca muita ênfase em ser um autodidata por inteiro; isso de ser um autodidata, o senhor emprega em sua vida desde os tempos do colegial?
Certamente, sempre fui autodidata, e considero, para qualquer jovem, motivado ou não para a carreira diplomática, ser esta uma atitude fundamental para o sucesso nos estudos e em qualquer profissão. Ser autodidata significa, antes de mais nada, não se contentar e não esperar pelas leituras orientadas em sala de aula, e buscar ativamente não apenas estar à frente dos demais colegas, mas em alguns casos à frente mesmo do próprio professor, contestando em aula algum aspecto que já foi objeto de leitura paralela. Ser autoditata significa construir o seu próprio conhecimento, aprofundá-lo pela pesquisa auto-induzida, conhecer sempre um pouco mais do que é demandado nos exames de rotina, do sistema escolar ou universitário.
Ser autodidata, numa palavra, significa ser livre, totalmente autônomo em relação ao conteúdo veiculado em classe, dotado de sua própria capacidade analítica e de julgamento, capaz de opiniões abalizadas e fundamentadas sobre uma grande variedade de assuntos. Ser informado é ser livre, e o autodidata alcança essa condição à frente e acima dos seus colegas, o que de certa forma é um privilégio e uma grande satisfação.
Praticamente, desde o colegial – ensino médio, na atual terminologia –, tornei-me um autodidata radical, isto é, completamente independente dos ensinamentos veiculados em sala de aula, e muitas vezes ausente da própria sala de aula. Não recomendaria essa atitude para os alunos em geral, mas recomendo, sim, ser autodidata, ou seja, cultivar o que eu chamo de “ceticismo sadio” em relação ao conteúdo das aulas e buscar complementar aquela informação mediante pesquisas próprias e leituras paralelas.
O conhecimento liberta, e ser autodidata, repito, é ser livre. Não pode haver melhor aspiração na vida do que esta.


Paulo Roberto de Almeida
(pralmeida@mac.com; www.pralmeida.org)
1701: Brasília, 26 dezembro 2006, 2 p.

domingo, 24 de dezembro de 2006

666) Uma lagrima para Braguinha

Músico Braguinha morre, aos 99 anos, no Rio

Morreu neste domingo, 24 de dezembro de 2006, ao meio-dia, o compositor Carlos Alberto Ferreira Braga, o Braguinha, aos 99 anos, de infecção generalizada. Segundo a assessoria de imprensa do hospital Pró-Cardíaco, zona sul do Rio, o músico foi internado no sábado à noite, após passar mal com alta taxa de glicose.

O hospital irá divulgar um boletim médico nesta tarde com mais detalhes sobre a morte de Braguinha. Braguinha deixa uma filha, três netos e pelo menos seis bisnetos.

Nascido no Rio de Janeiro em 29 de março de 1907, Braguinha compôs sucessos como Carinhoso (1937, com Pixinguinha), Sonhos Azuis (1936, com Alberto Ribeiro), Chiquita Bacana, Balancê, Touradas de Madrid e Pastorinhas, entre outros.

Um de seus maiores sucessos internacionais foi Copacabana, composto em 1944 e gravado por Dick Farney, em 1946, com orquestração de Radamés Gnattali.

Na gravadora continental, ex-Colúmbia, durante muitos anos foi diretor-artístico, contribuindo para a projeção de inúmeros artistas, época em que também lançou, no selo Disquinho, uma coleção de mais de 70 histórias infantis, que adaptava, criava e musicava.

Em 1984, na inauguração do Sambódromo, foi homenageado no desfile da Mangueira, com o enredo Yes, nós temos Braguinha, dando o tíulo à escola verde e rosa. Sua musicografia completa, inclusive com versões e músicas infantis, passa dos 420 títulos, uma das maiores e de mais sucessos de nossa música popular. Seu parceiro mais constante foi Alberto Ribeiro (1902-1971).

Braguinha participou como roteirista e assistente de direção em filmes da Cinédia. Juntamente com Alberto Ribeiro, escreveu composições para a trilha sonora de filmes como Alô, Alô, Brasil e Estudantes, cuja personagem principal foi estrelada por Carmem Miranda.

Em 1938, foi um dos responsáveis pela dublagem brasileira de Branca de Neve e os Sete Anões, da Walt Disney. Também participou das versões brasileiras de Pinóquio (1940), Dumbo (1941) e Bambi (1942), entre outros.

Confira a seguir a discografia do músico:

* Pra vancê/Coisas da roça (1929)
* Desengano/Assombração (1929)
* Salada (1929)
* Não quero amor nem carinho (1930)
* Dona Antonha (1930)
* Minha cabrocha/A mulher e a carroça (1930)
* Quebranto (1930)
* Mulata (1931)
* Cor de prata/Nega (1931)
* Tu juraste¿ eu jurei/Vou à Penha rasgado (1931)
* Samba da boa vontade/Picilone (1931)
* O amor é um bichinho/Lua cheia (1932)
* João de Barro (1972)
* Viva Braguinha (1985)
* João de Barro e Coisas Nossas (1983)
* Yes, nós temos Braguinha (1998)
* João de Barro (Braguinha)? ¿ Nasce um compositor (1999)
* João de Barro - A música do século, por seus autores e intérpretes (2000)

Veja a seguir as marchinhas de Carnaval do músico:

* Uma andorinha não faz verão (1931)
* Moreninha da praia (1933)
* Linda lourinha (1934)
* Deixa a lua sossegada (1935)
* Linda Mimi (1935)
* Pirata (1936)
* Cadê Mimi (1936)
* Cantores do rádio (1936)
* Balancê (1937)
* Touradas em Madri (1938)
* Pastorinhas (1938)
* Yes, nós temos bananas (1938)
* Pirulito (1939)
* Pirata da perna de pau (1947)
* Anda Luzia (1947)
* A mulata é a tal (1948)
* Tem gato na tuba (1948)
* Chiquita bacana (1949)
* Tem marujo no samba (1949)
* Lancha nova (1950)
* Vai com jeito (1957)
* Corre, corre, lambretinha (1958)

sábado, 23 de dezembro de 2006

665) Uma declaracao presidencial de final de ano

Mensagem presidencial de final de ano


Meus caros brasileiros, companheiras e companheiros,

Estamos chegando ao final de um ano glorioso, um ano no qual todos vocês puderam se expressar livre e democraticamente nas urnas, consagrando escolhas que cada um de vocês julgou serem as melhores para o país e para este seu povo lutador e esperançoso.
Eu estou muito grato a todos vocês por terem sabido reconhecer meu esforço em prol da melhoria da vida diária dos brasileiros, em especial dos mais humildes e sofredores. Minha luta sempre foi pelo restabelecimento da dignidade dos brasileiros e brasileiras, para que cada um tivesse o seu trabalho digno reconhecido, o seu prato de comida, uma boa educação para os filhos e a certeza de ter segurança não só no lar, mas nas ruas também.

Passado o período eleitoral, quando todos os políticos prometem um pouco mais do que podem cumprir, acho que chegou a hora de eu falar sinceramente com vocês, chegou a hora de eu olhar no olho de cada um de vocês e dizer: não podemos mais continuar do jeito que estamos. Este país merece ser reconstruído, em suas bases. Ele precisa disto, e nós vamos fazer isto, com a ajuda de todos.

Não adianta mais o presidente vir aqui prestar contas todo fim de ano e prometer todas aquelas coisas que vocês sabem que dificilmente serão cumpridas se não reformarmos o país de baixo para cima, se não empreendermos uma gigantesca tarefa de recomposição das forças morais da Nação, se não soubermos que chegou a hora de enfrentar a realidade como ela é, não como gostaríamos que ela fosse.
E a verdade, meus caros cidadãos, é simplesmente esta: o Brasil esgotou o seu modelo de desenvolvimento. Não podemos e não queremos mais continuar crescendo tão pouco, tendo tão poucos empregos bem remunerados, tantas dificuldades nas escolas, hospitais, nas estradas.
Não adianta, por exemplo, eu dizer para vocês: agora, nós estamos prontos para crescer a 5% ao ano, que vamos colocar o Brasil no pelotão de vanguarda dos países desenvolvidos e mais importantes do mundo, se a gente não reconhecer que os principais obstáculos estão aqui mesmo, dentro da nossa casa. É sobre isso que eu quero falar a vocês.

Quero, antes de mais nada, dizer a vocês que a responsabilidade por essas medíocres taxas de crescimento que assistimos há mais de vinte anos não está com vocês, trabalhadores sofridos deste nosso Brasil. Ela está conosco: nós, os políticos e empresários, sindicalistas e funcionários públicos de alto escalão, nós somos a elite que sempre governou o país, da Independência até hoje. Como vocês vêem, eu também mei incluo no rol dos responsáveis. Estou falando como dirigente, e como responsável máximo por este país, e não pretendo fugir a essa responsabilidade.

Pois bem, meus caros brasileiros e brasileiras, chegou a hora de dizer a verdade.
Desejo, acima de tudo, assumir humildemente a minha parte de responsabilidade por esta situação difícil que estamos vivendo: o baixo crescimento, os buracos nas estradas, o caos nos aeroportos, as filas nos hospitais, a má qualidade da educação nas escolas públicas, o desemprego e os baixos salários, tudo isso, não é só culpa do governo, mas o governo leva a maior parte de responsabilidade, pois que cabe a ele velar para que isso não aconteça. Vocês me elegeram para isso mesmo e quero assumir plenamente minha responsabilidade pela situação.
Justamente, com a experiência do primeiro mandato, agora eu consigo medir de forma mais exata o peso da responsabilidade do Estado na situação de vida de cada um dos brasileiros. Não adianta culpar as elites dos últimos 500 anos pela situação presente, se nós mesmos, a elite do presente, não assumirmos o encargo de corrigir a situação. E a elite somos nós, que estamos à frente do Estado, que somos responsáveis pelo governo.

Minha experiência me indica que precisamos corrigir graves distorções no funcionamento do Estado, sem o que não teremos crescimento, nem de 5, nem de 4, nem de 3%, e continuaremos a percorrer a trilha da amargura e da desesperança.
Eu quero mudar isto e vocês vão me ajudar. Eis aqui o que eu penso que deveria ser feito.

O Brasil precisa de uma reforma política, mas de uma verdadeira, não aquela que só acrescenta alguns remendos na legislação eleitoral ou na representação partidária.
O fato é, meus caros cidadãos, que o Brasil criou uma classe política que se tornou dona do Estado, dona do país, que se julga acima dos demais brasileiros, cidadãos comuns, e que passa a maior parte do tempo tentando redistribuir o dinheiro de todos para suas causas particulares. O Brasil possui um Legislativo muito grande e sobretudo muito caro, em todos os níveis, do mais humilde município ao Congresso Nacional.
Por isso eu proponho, em primeiro lugar, que a gente reduza o peso do Estado, de todo o Estado, na vida dos cidadãos. O Brasil não precisa de tantos parlamentares, de tantos funcionários dos legislativos, o Brasil, sobretudo, não pode suportar mais os gastos incomensuráveis que esses estados dentro do Estado acarretam no bolso de cada um de vocês. O número de parlamentares e o número de funcionários dos legislativos devem ser diminuídos, assim como devem ser reduzidas as despesas inaceitáveis que eles trazem para os cofres públicos.
Proponho que os funcionários remanescentes sejam remanejados, dentro do Estado, para as áreas mais carentes: educação, saúde pública, atendimento aos idosos, serviços básicos.

Essa reforma política deve compreender, também, os Executivos, que cresceram de modo caótico nos últimos anos, acumulando cada vez mais despesas continuadas. Não é possível, por exemplo, que um governador que serviu ao povo do seu estado por um ou dois mandatos se julgue merecedor de uma aposentadoria permanente, de funcionários à disposição, de regalias que não são dadas a nenhum outro funcionário público. E a reforma política e administrativa deve atingir também o Judiciário. Não é possível que um juiz no início de carreira ganhe quase tanto quanto um de final de carreira, e não é possível que os processos se acumulem por causa de uma legislação de processos caduca e ineficiente, feita para premiar alguns advogados espertos, em detrimento da verdadeira justiça, que deveria estar ao alcance de todo cidadão.

O Brasil precisa, em segundo lugar, de uma verdadeira reforma tributária, já que nos últimos vinte anos a carga fiscal só fez crescer no Brasil, diminuindo a poupança privada e as possibilidades de investimento de empresários e de simples cidadãos desejosos de se lançar em alguma atividade produtiva. Sei que os estados, os governadores, desconfiam de mais uma reforma tributária centralizadora. Eles gostariam de avançar sobre algumas das contribuições hoje sob responsabilidade da União, justamente porque a Constituição criou tantos encargos novos, sobretudo na área previdenciária e assistencial, que o governo federal só pode atender taxando ainda mais os cidadãos. Por isso, eu proponho que todos nós, do governo federal e dos governos estaduais, nos concertemos não na criação de novos impostos, mas na redução dos existentes. Isto pela simples razão de que essa diminuição vai trazer mais crescimento e maior arrecadação.
Não vou apresentar aqui e agora os contornos dessa reforma tributária absolutamente indispensável se quisermos retomar o processo de crescimento, já que cheguei à conclusão de que ele só não vem por causa da excessiva carga tributária. Apresento apenas os princípios, e eles têm de ser os da redução da carga total, a exoneração dos lucros das empresas e a redução dos encargos sobre a folha salarial. Apenas dessa maneira vamos conseguir retomar o crescimento e a criação de empregos.

O Brasil precisa, em terceiro e mais importante lugar, não de uma simples reforma, mas de uma verdadeira revolução educacional, uma mudança completa nas nossas prioridades de ensino, que devem passar a ser o básico e o técnico-profissional, não apenas o ciclo superior, este sempre beneficiado com maiores verbas e atenções federais. O futuro está nas nossas crianças e jovens, e são eles que devem receber os cuidados prioritários, junto com os professores dos ciclos fundamental e médio. Mais do que computadores, precisamos, simplesmente, de professores bem treinados e motivados, animados da sagrada missão de ensinar o que é básico, elementar, que é o domínio da língua, as matemáticas elementares, os fundamentos das ciências exatas e naturais.
Gostaria de determinar uma profunda reforma nos currículos e na gestão das escolas públicas, no sentido de fazer do professor e do seu aluno do fundamental e do médio o centro das nossas atenções pelos próximos vinte anos, pelo menos. Isto é absolutamente indispensável se desejarmos competir na economia global, se quisermos ter uma melhor distribuição de renda, se quisermos construir uma nação solidária e includente.

O Brasil também precisa de uma profunda reforma trabalhista e de uma grande reforma sindical. Que me perdõem os meus amigos sindicalistas, companheiros de antigas lutas, mas eu reconheço agora que eles estão mais interessados em preservar os empregos dos seus associados do que em promover o emprego dos atualmente excluídos. Minha responsabilidade principal está em criar novos empregos e em permitir que as empresas tenham flexibilidade suficiente para adaptar sua mão-de-obra aos novos requerimentos da globalização. Aprendi que uma legislação ultraprotetora, como esta que temos atualmente, produz, na verdade, mais desemprego do que ela oferece novas oportunidades de ocupação remunerada.
Por isso, eu acho que precisamos passar uma enorme borracha na nossa legislação laboral e criar as condições para incorporar no mercado de trabalho os milhões de brasileiros e brasileiras hoje excluídos. Essa reforma passa também pelo salário mínimo e pelas garantias tradicionais. A melhor garantia de altas taxas de ocupação é o treinamento constante da mão-de-obra, a flexibilidade laboral, a adaptação da legislação aos requisitos de uma economia moderna, baseada no conhecimento. Essa visão já foi testada ao redor do mundo, e ganhou de todos aqueles modelos baseados na rigidez do mercado de trabalho, que só produzem alto desemprego e, com ele, a exclusão e a desesperança.

O Brasil precisa, em especial, de uma nova noção de país, de uma nova visão de Nação, de uma concepção do mundo que deixe de ter no Estado a peça central da organização política, econômica e social, e que passe, ao contrário, a ter nas forças vivas da Nação a sua própria base de organização. O Brasil é hoje um país enredado, amarrado numa selva inacreditável de leis, regulamentos, decretos, portarias, normas que se contradizem umas às outras, e que terminam por manietar o espírito empreendedor e a capacidade de iniciativa de milhões de brasileiros. Vamos mudar isso, vamos desregular, privatizar o que for necessário, descentralizar aquilo que não precisa estar na esfera federal, vamos devolver à comunidade, ao povo, sua capacidade de criar, empreender, inovar.

Meus caros brasileiros e brasileiras,
Quero transmitir a cada um de vocês minha certeza de que podemos, sim, se nos unirmos, construir um país melhor. As reformas que eu apontei me parecem condição incontornável para que possamos seguir um caminho diferente daquele que foi seguido até aqui, que só trouxe mais do mesmo. Queremos e precisamos romper com a mesmice do que vem sendo feito até aqui. Eu quero impulsionar uma nova arrancada deste país em direção a um futuro melhor. Para isso, precisamos nos unir em torno dessas grandes reformas. Se não o fizermos, estaremos legando a nossos filhos e netos um país inviabilizado pelo baixo crescimento, corroído pelas altas taxas de desemprego, diminuído em suas possibilidades de desenvolvimento econômico e social, abatido pela corrupção trazida por uma imensa máquina pública, desesperançado pelos crimes, pela baixa educação, pela deterioração da nossa infra-estrutura, marcado ainda e sempre pela desigualdade social e pelos desequilíbrios regionais.
Eu quero um país que seja forte economicamente, rico espiritualmente, justo socialmente, um país do qual nós possamos todos nos orgulhar. Para isso, precisamos nos dar as mãos e atacar os problemas de frente. Não adianta mais empurrar com a barrriga a solução desses problemas, transferir essa responsabilidade a uma outra geração. A hora é aqui e agora. Vamos fazer!

Desejo um excelente final de ano a todos vocês e um ótimo ano novo, com muita paz, serenidade e renovadas esperanças na nossa capacidade de reconstruir o Brasil.
Bom ano a todos vocês. Muito obrigado.


Pela sugestão de texto:
Paulo Roberto de Almeida
Brasília, 23 de dezembro de 2006.
(pralmeida@mac.com; www.pralmeida.org)

sexta-feira, 22 de dezembro de 2006

664) Uma premiacao preventiva...

Alguem já ouviu falar de mérito prévio?

Pois é, eu não sabia que alguém devesse ser premiado antes mesmo de qualquer avaliação. É, em todo o caso, o que me ocorreu a partir de uma iniciativa do grupo que tive a insana idéia de coordenar, que se chama Diplomatizando (este mesmo), e que se dedica, tão simplesmente a intercambiar informacoes e comentários sobre temas variados, com especial atenção aos de relações internacionais e de economia.
Abaixo figura a “sentença”, proclamada por um “juiz” do grupo -- o colega jornalista João Luiz Neves, de Curitiba --, e que me “condena” a receber um prêmio, no caso um livro, a ser oferecido pelos colegas voluntariamente participantes no empreendimento, que originariamente tinha sido proposto como concurso, ou maratona, de escrita.
Os colegas reconheceram, preventivamente, e eu diria também indevidamente, que eu merecia o prêmio mesmo antes de conquistá-lo por meu próprio mérito ou esforço especial. Seria, digamos assim, uma premiação pela obra acumulada, o que certamente muito me lisonjeia.
Estou em desconformidade com a solução encontrada, pois sou contrário a toda e qualquer distinção que não tenha sido aferida de forma independente, mas parece que não posso lutar contra a iniciativa dos colegas, que se declararam de acordo.
O que me resta a fazer, portanto, é acatar o resultado e declarar, de pronto, meu sentimento de imensa satisfação, dizer que fiquei muito sensibilizado pelo gesto e que recebo esta manifestação com muito carinho e reconhecimento.
Ao registrar a “sentença”, quero deixar claro que não concordo com tudo o que está escrito na “sentença”. Eu me considero um indivíduo não excepcional, mas esforçado, que vê na leitura e na escrita – ambos intimamente correlacionados – e na sua transmissão didática aos mais jovens os motivos centrais de sua existência e atividade. Sempre tive gosto pelo papel (hoje tela de computador, em grande medida) e pala palavra escrita, e acho que continuarei assim pelo futuro indefinido. Faço do conhecimento e de sua disseminação motivos centrais de minha vida e acho que deveria ser assim com todo mundo.
Por isso, fico extremamente sensibilizado pelo gesto dos colegas e amigos, o que muito contribui para que eu persista na via adaotada.
A todos e a todas, o meu carinho e reconhecimento pelo gesto efetuado. Minha gratidão, de verdade, e a promessa de fazer mais e melhor em 2007.

Paulo Roberto de Almeida
Brasília, 22 de dezembro de 2006

SENTENÇA
>
> Em termos de volume de leitura e escrita, talvez PRA só perdesse para o lendário colega José Guilherme Merquior. Ou para o autor da Comédia Humana. Este Juízo considera JGM superior a Roberto Campos na comparação entre as respectivas eleições estéticas de ambos.
> Então, dada a dedicação absoluta de PRA aos sabores dos saberes, o prêmio vai, por juízo apriorístico sintético, para o criador do Grupo Diplomatizando.
> Caberá à Regina, na qualidade de agente fiduciário, a escolha, compra e envio do título do livro a ser outorgado ao ganhador.
> A cotização simbólica e de caráter puramente afetivo realizada em época natalina do valor da obra será feita entre a Regina, Enge, Uzi, RAS, JL e o primeiro voluntário que se manifestar e não poderá exceder R$ 15,00 (quinze reais) cada. Em email dirigido individualmente a cada um dos cotistas, informar-se-á a conta para depósito. Banco de donos e capital brasileiros, exclusivamente. Caso um ou mais cotista decline da contribuição, ou não haja apresentação de voluntário, o rateio será feito pelo valor máximo (6x R$15,00 = R$ 90,00) entre os cotistas restantes.
> Cinco títulos de obras serão dispostos e votados entre todos os participantes do Grupo. PRA não terá direito à escolha e sofrerá em silêncio com o resultado da votação. Tampouco poderá declinar da premiação e suspeitar dos critérios apriorísticos do julgamento, obviamente. Uma vez colocada a lista ao Grupo, ele terá 24 horas para solicitar a mudança de algum título que conste na lista e que eventualmente já possua. As obras serão de autores nacionais e editadas no Brasil por editoras brasileiras.
> O livro deverá chegar às mãos do agraciado até o Dia de Reis. A votação encerra-se às 24h do dia 31 de dezembro de 2006.
> Cumpra-se.
>
> JL

quarta-feira, 20 de dezembro de 2006

663) O dom: uma alegoria economico-natalina...

Acton Commentary "bringing moral reflection to bear upon current issues"
December 20, 2006

The Gift
by Rev. Robert A. Sirico, Acton President

What is a gift? It is something provided to another without expecting or demanding anything in return. It is not an exchange, at least not intentionally. It is a pure provision from you to someone else. In that sense, it is always a sacrifice. We might gain from giving -- winning affection, appreciation, good favor -- but we must not expect this. It is a byproduct, an after-effect, and unintended result.

We give gifts at Christmas to continue a tradition followed by the Magi from the East who followed the star to find the Christ who was born King of the Jews. They presented him with gold, frankincense, and myrrh, but these are only the gifts mentioned in the Bible. There may have been more.

Why did they do this? To honor and adore the Christ. It was pure sacrifice and especially meritorious for being so. Their sacrifice, their gift, foreshadows the sacrifice on the Cross and the gift of salvation.

The idea of the gift is that it is something special, identifiable, and unique. It is different from what we do in daily life on a regular basis. Most of what we do in life consists of exchanges based on mutual advantage. When we shop, we know the terms of trade, a specified amount of money in exchange for a good or service. When we work, we received wages. When we study in school, we hope to obtain a degree.

There is nothing inherently selfish or greedy about exchanges. They reflect our desire to cooperate with others in a way that causes everyone to be made better off. Exchange is the basis of prosperity. It permits everyone to gain wealth together, and not at each other's expense.

To celebrate the gift as an institution, then, is not to disparage the moral status of exchanges. Human relations are not debased merely because money is involved. Money is simply a proxy for goods and services. It is a tool that permits us to come to terms in a more efficient way. The problem arises only when the tool (the means) is seen as the end.

Indeed, in one sense we might say that exchange is a necessary precondition to the gift. How did the wise men obtain their gifts? They probably purchased them from a merchant. And how did the merchant obtain them? Probably from a small manufacturer who produced them from raw materials. And where did the raw materials come from? They were obtained via the use of other resources.

An exchange nexus exists before the gift, then as now. And that exchange nexus, by enhancing the wealth available to us, makes more gift-giving possible.

My lesson: While it is possible to distinguish giving from exchanging, it is a mistake to set these two types of human engagement against each other. Exchanging makes giving possible and more bountiful. Without exchange, without private property and a moral sense of its foundation, giving would be limited, impossible or morally dubious.

But neither can we say that the gift is dispensable, a pure luxury that we can either embrace or accept. Life would be cold and inhumane without the gift, simply because exchange relationships do not encompass the whole of civilized life. We must give to our children, spouses, parents, neighbors, religious congregations, and to those in need. We give to our benefactors out of appreciation. We give not only money and physical items but also time, talents, and hearts.

Another way to put this is that economics and charity (love) go hand in hand. They are distinct but not incompatible. Society can always use more of both. And how might we bring that about? By enhancing the sphere of freedom that permits us to act on each other’s behalf, for only freedom allows for the exercise of human volition that is behind both exchange and gifts.

The holiday season provides us lovely illustrations of how this happens. We look around and see an astounding hustle and bustle of buying and selling, advertising and promotion, commerce and activity -- and we are tempted to regard it as degrading in some way. Sometimes it is.

But it need not be so. To see the spark of Divinity in the midst of our humanity is, after all, what the Incarnation of God’s Son at Christmas is all about. To uncover that divine reality we need to recall that the driving inspiration behind the hustle is -- or should be -- the desire to give to others because we want to sacrifice for and honor others.

With so great a freedom entrusted to us by God comes the obligation to use it well.

Rev. Robert A. Sirico is president of the Acton Institute.
Original neste link.

terça-feira, 19 de dezembro de 2006

662) Recomendacoes importantes aos viajantes...

A todos os meus amigos, conhecidos, curiosos, nômades em geral...
Aos que se preparam para viajar de avião neste final de ano, eu recomendaria este "kit-aeroporto", para as longas horas que eventualmente serão gastas esperando embarque:

1) Travesseiro
2) Garrafa d'água
3) Algum romance policial desses que não se consegue largar, mas daqueles pocket-books, dobrável, de preferência com mais de 500 páginas
4) Óculos escuros (para dormir)
5) Tampões de ouvido
6) iPod carregado
7) Carregador de celular
8) Sapato leve, calça larga
9) Chiclete (pode ser caramelo, mas recomenda-se não abusar)
10) Paciência, muita paciência...

Opcional: um terço, já que o ministro da área mandou rezar...

segunda-feira, 18 de dezembro de 2006

661) Revendo as propostas de laureados Nobel vinte anos depois

A conferência dos Prêmios Nobel de 1988:
Uma agenda ainda válida para o século XXI?
Paulo Roberto de Almeida
(pralmeida@mac.com; www.pralmeida.org)

Em janeiro de 1988, reunidos em Paris, sob a iniciativa do humanista polonês Elie Wiesel, 75 cientistas e personalidades do mundo literário, de 31 diferentes países, mas todos agraciados com o Prêmio Nobel, elaboraram dezesseis propostas para tornar o mundo do século XXI melhor do que ele tinha sido no “breve século XX” de mortes, genocídios e destruições maciças. O objetivo deste ensaio é o de verificar se a agenda proposta na conferência dos laureados Nobel naquela oportunidade seria ainda válida em pleno século XXI.
Passados quase dezenove anos daquele encontro de “sábios”, o que poderia ser retido daquele conjunto de princípios – na verdade, um enunciado de nobres propósitos – destinados a aperfeiçoar um mundo então claramente insatisfatório? Caberia, antes de mais nada, colocar em seu contexto histórico a conferência convocada para para discutir as “ameaças e promessas no alvorecer do Século XXI”. Num segundo momento, seria útil verificar se aquelas propostas elaboradas dezoito anos atrás ainda guardam validade para os nossos tempos.
A iniciativa do Prêmio Nobel da Paz Elie Wiesel, escritor judeu de naturalidade polonesa, foi, sem dúvida alguma, meritória em seus próprios termos, mesmo se se pode questionar a representatividade intrínseca de cientistas e homens de letras de origens as mais diversas (com maciça presença dos EUA, como é de regra nas premiações Nobel), bem como sua competência específica para debater problemas complexos que afetam a toda a humanidade, ainda que de maneira variada. Uma vez que se reconhece, porém, a um biólogo o direito de apresentar propostas, enquanto cidadão, sobre problemas do desarmamento ou da educação, ou a um homem de letras o de argumentar sobre a melhor maneira de resolver o problema da dívida do Terceiro Mundo ou de acelerar a transferência de tecnologia em favor dos países em desenvolvimento, pode-se concordar em que o impacto mediático de uma conferência de laureados representa uma boa maneira de chamar a atenção da opinião pública ou dos homens de Estado para algumas das questões mais cruciais da agenda mundial.
O problema essencial, contudo, poderia ser colocado da seguinte forma: as propostas formuladas pelos Nobel eram condizentes com a natureza das “ameaças” percebidas e suas recomendações caminhavam realmente em direção das “promessas” do século XXI? Se a principal qualidade de um bom cientista é a de ser um pouco “visionário”, isto é, de saber antecipar-se aos desafios futuros, as “conclusões” dos Prêmio Nobel devem ser julgadas à luz de sua adequação aos cenários desenhados para o novo milênio, ou seja, segundo sua capacidade de realizar, nos termos do filósofo alemão Reinhart Koselleck, uma “projeção utópica do futuro”.
Formulando a questão em outros termos: a agenda que os Nobel estabeleceram para os homens do final do século XX correspondia efetivamente às necessidades de desenvolvimento das sociedades do futuro, tais como as percebemos hoje, e as recomendações propostas representaram algo mais do que a simples manifestação de boa-vontade de homens desvinculados de tarefas executivas ou responsabilidades governamentais? Subsidiariamente, se poderia também indagar se os “remédios” propostos levaram em consideração os meios disponíveis ou a organização social e política do sistema inter-estatal contemporâneo, bem como a relação de forças nele predominante.
Pretendo neste ensaio fazer a uma “releitura do passado”, adotando o seguinte procedimento: transcreverei o teor completo das 16 propostas originais (traduzidas por mim a partir do documento final da conferência), aduzindo depois comentários onde pertinentes. Creio que a maior parte das propostas se sustenta, ainda hoje, muito embora seu caráter “otimista” já fosse passível de algumas críticas naquele mesmo momento. As três primeiras apresentam, em minha opinião, caráter universalmente válido e não são passíveis de qualquer restrição ou comentário, mas a partir daí tenho qualificações ou condicionantes a agregar, como explicito no seguimento das propostas comentadas.

AS 16 PROPOSTAS DA CONFERÊNCIA DOS NOBEL DE 1988
Comentários de Paulo Roberto de Almeida em 2006: (PRA)

1. Todas as formas de vida devem ser consideradas como um patrimônio essencial da Humanidade. Causar dano ao equilíbrio ecológico constitui, portanto, um crime contra o futuro.

PRA: Propósito ainda plenamente válido.

2. A espécie humana é única e cada indivíduo que a compõe tem os mesmos direitos à liberdade, à igualdade e à fraternidade.

PRA: Propósito ainda plenamente válido.

3. A riqueza da Humanidade está também na sua diversidade. Ela deve ser protegida em todos os seus aspectos: cultural, biológico, filosófico e espiritual. Para isso, a tolerância, a atenção a outrém, a recusa das verdades definitivas devem ser incessantemente lembradas.

PRA: Propósito ainda plenamente válido.

4. Os problemas mais importantes que a humanidade enfrenta atualmente são ao mesmo tempo universais e interdependentes.

PRA: Os problemas mais importantes não estão expressamente referidos – embora alguns deles figurem nos tópicos seguintes –, mas creio que eles podem ser resumidos da seguinte forma: segurança, paz, bem estar e igualdade de chances. A segurança e a paz fizeram enormes progressos no mundo, depois que os cientistas e literatos se reuniram em Paris, no início de 1988. O comunismo acabou e com ele a ameaça de um enfrentamento praticamente suicidário entre as duas grandes potências atômicas. As guerras que subsistem são residuais – com uma ou outra exceção – ou reduzidas ao contexto regional e civil interno. O desenvolvimento social também conheceu enormes avanços, muito embora subsistam zonas de fome endêmica, geralmente naqueles contextos de conflitos civis e político, e alguns casos de privação epidêmica, dados os desequilíbrios ambientais criados pelo homens, também em grande medida coincidentes com as zonas de conflito.
A igualdade de chances não é, infelizmente, muito bem disseminada no mundo, mas isso não quer dizer que se trata de um problema “ao mesmo tempo universal e interdependente”, uma vez que a responsabilidade pela educação dos cidadãos – fator primordial da igualdade de oportunidades – permanece indefectivelmente com os Estados nacionais. Não se concebe, neste momento, processos universais de educação e capacitação técnica, pois isso poderia ser assimilado à “desculturação” ou mesmo ao “etnocídio”. Sim, infelizmente, a ditadura do “politicamente correto” e outras inovações típicas dos anti-globalizadores inviabiliza uma diminuição do grau de soberania estatal associada aos processos de educação e socialização para o trabalho.

5. A ciência é um poder. O acesso à ela deve ser igualmente repartido entre os indivíduos e os povos.

PRA: Interessante como proposta, mas algo ingênua. Se a ciência é um poder, então ela nunca será repartida igualmente entre os povos, uma vez que a humanidade não se encontra suficientemente homogeneizada, ou livre de perigos residuais, para que o poder seja repartido de forma equânime. Isso não vai ocorrer antes de muito tempo.
Mas, mesmo que a ciência não fosse um poder, e sim um simples instrumento de poder – o que redunda quase no mesmo –, ainda assim não haveria condições de “dispensá-la” de forma igualitária entre todos os povos e indivíduos. As condições de sua produção implicam custos e ônus para os que investem nessa atividade, o que deve ser de alguma forma compensado. Por isso que à essa produção estão associados mecanismos de monopolização – patentes e outros títulos proprietários – que são a contrapartida indispensável ao investimento inicial.
De forma geral, entretanto, os avanços propriamente científicos já se encontram à disposição de todos, de forma livre e irrestrita, apenas a tecnologia sendo objeto de apropriação monopólica.

6. O fosso existente em muitos países entre a comunidade intelectual e os poderes públicos deve ser reduzido. Cada um deve reconhecer o papel do outro.

PRA: Propósito ainda plenamente válido.

7. A educação deve tornar-se prioridade absoluta de todos os orçamentos e deve contribuir para valorizar todos os aspectos da criatividade humana.

PRA: Propósito ainda plenamente válido.

8. As ciências e tecnologias devem estar à disposição de todos, especialmente dos países em desenvolvimento, de forma a permitir-lhes o controle de seu próprio destino e a definição dos conhecimentos que julguem necessários a seu futuro.

PRA: Os mesmos comentários do item 5 valem para esta proposta também. Cientistas e literatos, em especial os agraciados com o Prêmio Nobel, deveriam saber o que custa chegar a uma resultado “premiável”: anos e anos de pesquisas, despesas imensas para resultados por vezes frustrantes, sem contar os falsos caminhos e os ensaios fracassados. Os literatos devem gostar de viver de direitos autorais, do contrário teriam de procurar outro meio de vida. Colocar algo que custou muito à livre disposição de terceiros significaria que existe, sim, “almoço grátis”, o que parece contradizer um dos princípios econômicos mais elementares.

9. Se a televisão e os novos meios de comunicação constituem um instrumento essencial de educação para o futuro, a educação deve ajudar a desenvolver o espírito crítico em relação ao que é divulgado nesses meios.

PRA: Propósito ainda plenamente válido.

10. A educação, a alimentação e a prevenção são os instrumentos essenciais de uma política demográfica e de redução da mortalidade infantil. A generalização do uso das vacinas existentes e o desenvolvimento de novas vacinas devem constituir a tarefa comum dos cientistas e dos homens políticos.

PRA: Propósito ainda plenamente válido.

11. Todas as pesquisas relativas à prevenção e ao tratamento da AIDS devem ser partilhadas e estimuladas, sem bloqueios ou barreiras, especialmente através da cooperação da indústria farmacêutica. Uma vez disponível, a vacina contra a AIDS deve ser assegurada pelos poderes públicos.

PRA: Propósito ainda plenamente válido.

12. A biologia molecular, que por seus recentes avanços permite prever progressos na medicina e no isolamento da dimensão genética de certas doenças, deve ser estimulada, o que permitirá prever e talvez curar essas doenças.

PRA: Esses progressos científicos, como o das pesquisas com células-tronco, que alcançaram igualmente, no plano tecnológico, a melhoria genética dos alimentos (plantas e animais), vêm sendo infelizmente obstaculizados por fundamentalistas religiosos e outros fundamentalistas ecológicos, que brandem argumentos não científicos para impedir esses avanços. Os cientistas deveriam esforçar-se mais para vulgarizar o conhecimento técnico, afastando os aspectos religiosos e ideológicos que dificultam sua disseminação.

13. O desarmamento dará um estímulo significativo ao desenvolvimento econômico e social, tendo em vista os recursos limitados do mundo, atualmente drenados pela indústria armamentista.

PRA: Propósito ainda plenamente válido, embora realisticamente pouco efetivo.

14. Nós pedimos a organização de uma conferência internacional para tratar em seu conjunto do problema da dívida do Terceiro Mundo, obstáculo ao seu desenvolvimento econômico e político.

PRA: Esse problema já foi praticamente encaminhado, ao longo das duas últimas décadas, com a renegociação das dívidas dos países emergentes – o que implicou algum desconto do valor face – e o cancelamento unilateral ou negociado das dívidas dos países mais pobres. Caberia registrar, contudo, que o problema da dívida não é uma perversão do sistema financeiro internacional, e sim o resultado de fatores contingentes e outros imponderáveis, numa relação quase simétrica, de disponibilidade de liquidez do lado dos credores – que atuam de forma irresponsável, pelo desejo de lucro – e de demanda excessiva por parte dos tomadores, que também atuam de forma irresponsável ao contratarem encargos acima de suas possibilidades. Trata-se de velho e recorrente problema, que não deixará de conhecer novos episódios no futuro.

15. Os governos devem comprometer-se sem ambiguidades e de maneira legalmente vinculatória com o respeito aos direitos do homem, assim como aos tratados por eles ratificados.

PRA: Propósito ainda plenamente válido, mas o obstáculo mais importante à implementação prática dessa idéia é a validade absoluta do princípio westfaliano, consagrado no sistema onusiano, de que a soberania estatal prima sobre o direito “das gentes” no plano internacional. A Carta da ONU começa invocando os “povos das Nações Unidas”, mas seu teor é inteiramente consagrado às prerrogativas e deveres dos Estados, considerados entes exclusivos da formação do direito internacional e de sua observância prática. A próxima fronteira do progresso da humanidade talvez tenha de ser a derrogação do respeito absoluto a essa norma westfaliana e a adoção da cláusula democrática e dos direitos humanos preventivos como princípios organizadores da nova comunidade internacional. Não vislumbro, contudo, tal evolução no futuro previsível.

16. A conferência dos laureados do Nobel se reunirá novamente dentro de dois anos para estudar estes problemas. No intervalo, se uma urgência se manifestar, vários Nobel poderão reunir-se localmente, ou em todos os lugares onde os direitos do homem estiverem ameaçados.”

PRA: Não se tem notícia de outra reunião dos prêmios Nobel desde então. Se eles se reuniram, não mais voltaram a produzir, em todo caso, um documento abrangente como este. Não seria de todo inútil que os Nobel pudessem continuar oferecendo seus argumentos em prol do aperfeiçoamento da humanidade, embora se possa colocar em dúvida a eficácia desse tipo de exortação para a mudança real das condições de vida de milhões de seres do planeta. O otimismo intrínseco dos cientistas e sua inegável fé no futuro são, de toda forma, incuráveis. Que eles continuem a militar, junto com os homens de letras, pelo aperfeiçoamento da humanidade.

Paulo Roberto de Almeida
Brasília, 17 de dezembro de 2006
Publicado no Via Política (17.12.2006; neste link)

Postagem em destaque

Livro Marxismo e Socialismo finalmente disponível - Paulo Roberto de Almeida

Meu mais recente livro – que não tem nada a ver com o governo atual ou com sua diplomacia esquizofrênica, já vou logo avisando – ficou final...