Amorim nunca me deixa errar. Nunca!
Reinaldo Azevedo, 16/01/2010
(a propósito do post anterior, 1703)
É, meus caros, Tio Rei não é, assim, um Matusalém, mas já viveu o bastante para antecipar alguns lances do jogo. Escrevi ontem o post “Haiti, palco e atoleiro”, em que acusei a lentidão do governo brasileiro no atendimento às vítimas das enchentes em contraste com a prontidão em tentar assumir a liderança na ajuda ao Haiti. E, obviamente, deixei claro que o erro não estava em prestar socorro aos haitianos, mas na desídia com os brasileiros. E apontei, vejam lá, o esforço para fazer da tragédia haitiana um palco para protagonismo. Aí a canalha gritou: “Está explorando politicamente a tragédia!!!” Eu???
Então releiam o post abaixo e observem o que diz este sem-noção e sem-limite chamado Celso Amorim. Reparem como ele especula sobre a liderança do Brasil, a atuação dos outros países, a cobertura da imprensa estrangeira. E, no auge da inconveniência, Amorim resolve moderar as críticas porque, oh!!!, mais importante é socorrer as vítimas.
Por mais severo que eu seja, Celso Amorim é o homem que nunca me deixa errar. Que os brasileiros destacados para ajudar os haitianos dêem o melhor de si. Isso não faz com que o chanceler brasileiro deixe de ser quem é. Ele se define por suas palavras. E não teme a escala que vai da tolice à abjeção. Não, meus caros, eu não estava sendo muito severo. Estava sendo apenas realista.
Temas de relações internacionais, de política externa e de diplomacia brasileira, com ênfase em políticas econômicas, viagens, livros e cultura em geral. Um quilombo de resistência intelectual em defesa da racionalidade, da inteligência e das liberdades democráticas. Ver também minha página: www.pralmeida.net (em construção).
domingo, 17 de janeiro de 2010
1703) Haiti e ajuda humanitaria (1)
Itamaraty critica ajuda financeira de países ricos
DENISE CHRISPIM MARIN
Agencia Estado, quinta-feira, 14 de janeiro de 2010
BRASÍLIA - Em plena fase de articulação de uma Conferência de Doadores para o Haiti, o Itamaraty criticou hoje a promessa de ajuda financeira de países ricos ao Haiti. Mostrou-se igualmente preocupado com a montagem de canais para que os recursos cheguem ao país atingido pelo terremoto da última terça-feira.
Descontadas as ofertas do Brasil, de US$ 15 milhões, e dos Estados Unidos, que prometeu US$ 100 milhões, a diplomacia brasileira considerou "acanhada" a ajuda prometida pela União Europeia, de 4 milhões de euros, e do Canadá, de US$ 5 milhões. "Consideramos que os países ricos poderiam ser mais generosos", afirmou um diplomata que acompanhou as reuniões internas do ministro das Relações Exteriores, Celso Amorim.
Segundo o diplomata, o Itamaraty iniciou hoje conversas com os cerca de 20 países e com os organismos internacionais que compõem o grupo de doadores para o Haiti. A boa recepção do presidente dos Estados Unidos, Barack Obama, teria dado o aval para o começo dessas articulações. Em abril do ano passado, a mesma agrupação havia prometido a remessa de um total de US$ 324 milhões para ajudar o país, que havia enfrentado a passagem de vários furacões em 2008.
Em princípio, o Itamaraty considera que a ideia da realização da conferência está em linha com a sugestão do presidente francês, Nicolas Sarkozy, de convocar uma reunião entre a França, Estados Unidos e Brasil para tratar da reconstrução do Haiti.
Minustah
Membro não permanente do Conselho de Segurança das Nações Unidas desde 1º de janeiro, o Brasil já começou a se movimentar também para a alteração do mandato da Missão de Estabilização das Nações Unidas no Haiti (Minustah), força que foi criada em 1993 e que sempre esteve sob o comando brasileiro.
O Itamaraty avalia que os militares da Minustah, dentre os quais os brasileiros, assumirão funções que não estão previstas no mandato original e terão de se coordenar com forças que não a compõem. Entre elas, as tropas enviadas ao Haiti pelo governo Obama no porta-aviões Carl Vinson, da Quarta Frota americana.
Embora Obama tenha dito claramente ao presidente Luiz Inácio Lula da Silva que os soldados americanos se coordenariam com os brasileiros, o Itamaraty está ciente que, por doutrina, as tropas dos Estados Unidos não se subordinam a oficiais de outros países.
=================
Brasil recua nas críticas de falta de ajuda internacional ao Haiti
Márcio Falcão
Folha Online, 15.01.2010
O governo brasileiro mudou o tom do discurso e recuou nas críticas ao valor das doações de países, especialmente europeus, para ajudar na reconstrução do Haiti –atingido por um forte terremoto na última terça-feira.
O ministro Celso Amorim (Relações Exteriores) afirmou nesta sexta-feira que o momento é de “solidariedade” e que muitos países prometem reforçar a ajuda financeira ao longo do processo de reconstrução do país.
Amorim afirmou ainda que a ideia lançada pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva para a convocação de uma reunião dos países doadores foi bem recebida pela comunidade internacional. O encontro deve ocorrer na sede da ONU (Organização das Nações Unidas).
O ministro evitou comentar se as doações de países desenvolvidos estão tímidas. Até agora, Brasil ofereceu US$ 15 milhões, Estados Unidos US$ 100 milhões, Austrália US$ 10 milhões, e Canadá US$ 5 milhões. Outros países, em especial europeus, doaram entre US$ 1 milhão e US$ 5 milhões. Nos bastidores, integrantes do ministério afirmavam que as doações de alguns países estavam um pouco “acanhadas” diante da necessidade dos haitianos.
“Eu não vou comentar. É momento de solidariedade. Eu acho que os EUA, o número prometido é bastante substancial, de US$ 100 milhões. O Brasil está proporcional, até um pouco mais, um número adequado levando em conta o nosso interesse. Alguns países podem complementar, alguns dizem que a cooperação é inicial”, disse.
Amorim lembrou que a doação brasileira recebeu destaque internacional. “O sentido geral de solidariedade é muito grande. Eu acho que a percepção do que nós temos feito é muito grande não só no Brasil, mas no mundo. BBC deu destaque à oferta brasileira, aos aviões brasileiros, o que é normal e é importante que ocorra”, afirmou.
O ministro disse que ficou surpreso com o empenho do governo australiano. “Falei hoje com autoridades australianas e o país está dando colaboração de US$ 10 milhões, o que é importante, país que está longe da situação”, disse.
Segundo o chanceler, a reunião do grupo de doadores pode ocorrer nos próximos dias. A avaliação do governo brasileiro é de que o encontro é importante para evitar o confronto de ações.
“O importante é coordenar para evitar problemas no terreno, evidentemente, porque às vezes muita gente querendo ajudar esbarra um no outro e não dá certo. [...] Eu não excluo que se possa convocar [uma reunião] nos próximos dias, se chegar à conclusão que a necessidade de recursos até mesmo para emergência é muito grande. Isso estamos conversando permanentemente com todos os interlocutores”, disse Amorim.
O ministro defendeu que o controle das ações seja da ONU. “É preciso que alguém coordene. E acho que quem tem que coordenar do ponto de vista das definições das necessidades são a própria Nações Unidas. Só as Nações Unidas têm as informações que chegam de todos os lados”, disse.
DENISE CHRISPIM MARIN
Agencia Estado, quinta-feira, 14 de janeiro de 2010
BRASÍLIA - Em plena fase de articulação de uma Conferência de Doadores para o Haiti, o Itamaraty criticou hoje a promessa de ajuda financeira de países ricos ao Haiti. Mostrou-se igualmente preocupado com a montagem de canais para que os recursos cheguem ao país atingido pelo terremoto da última terça-feira.
Descontadas as ofertas do Brasil, de US$ 15 milhões, e dos Estados Unidos, que prometeu US$ 100 milhões, a diplomacia brasileira considerou "acanhada" a ajuda prometida pela União Europeia, de 4 milhões de euros, e do Canadá, de US$ 5 milhões. "Consideramos que os países ricos poderiam ser mais generosos", afirmou um diplomata que acompanhou as reuniões internas do ministro das Relações Exteriores, Celso Amorim.
Segundo o diplomata, o Itamaraty iniciou hoje conversas com os cerca de 20 países e com os organismos internacionais que compõem o grupo de doadores para o Haiti. A boa recepção do presidente dos Estados Unidos, Barack Obama, teria dado o aval para o começo dessas articulações. Em abril do ano passado, a mesma agrupação havia prometido a remessa de um total de US$ 324 milhões para ajudar o país, que havia enfrentado a passagem de vários furacões em 2008.
Em princípio, o Itamaraty considera que a ideia da realização da conferência está em linha com a sugestão do presidente francês, Nicolas Sarkozy, de convocar uma reunião entre a França, Estados Unidos e Brasil para tratar da reconstrução do Haiti.
Minustah
Membro não permanente do Conselho de Segurança das Nações Unidas desde 1º de janeiro, o Brasil já começou a se movimentar também para a alteração do mandato da Missão de Estabilização das Nações Unidas no Haiti (Minustah), força que foi criada em 1993 e que sempre esteve sob o comando brasileiro.
O Itamaraty avalia que os militares da Minustah, dentre os quais os brasileiros, assumirão funções que não estão previstas no mandato original e terão de se coordenar com forças que não a compõem. Entre elas, as tropas enviadas ao Haiti pelo governo Obama no porta-aviões Carl Vinson, da Quarta Frota americana.
Embora Obama tenha dito claramente ao presidente Luiz Inácio Lula da Silva que os soldados americanos se coordenariam com os brasileiros, o Itamaraty está ciente que, por doutrina, as tropas dos Estados Unidos não se subordinam a oficiais de outros países.
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Brasil recua nas críticas de falta de ajuda internacional ao Haiti
Márcio Falcão
Folha Online, 15.01.2010
O governo brasileiro mudou o tom do discurso e recuou nas críticas ao valor das doações de países, especialmente europeus, para ajudar na reconstrução do Haiti –atingido por um forte terremoto na última terça-feira.
O ministro Celso Amorim (Relações Exteriores) afirmou nesta sexta-feira que o momento é de “solidariedade” e que muitos países prometem reforçar a ajuda financeira ao longo do processo de reconstrução do país.
Amorim afirmou ainda que a ideia lançada pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva para a convocação de uma reunião dos países doadores foi bem recebida pela comunidade internacional. O encontro deve ocorrer na sede da ONU (Organização das Nações Unidas).
O ministro evitou comentar se as doações de países desenvolvidos estão tímidas. Até agora, Brasil ofereceu US$ 15 milhões, Estados Unidos US$ 100 milhões, Austrália US$ 10 milhões, e Canadá US$ 5 milhões. Outros países, em especial europeus, doaram entre US$ 1 milhão e US$ 5 milhões. Nos bastidores, integrantes do ministério afirmavam que as doações de alguns países estavam um pouco “acanhadas” diante da necessidade dos haitianos.
“Eu não vou comentar. É momento de solidariedade. Eu acho que os EUA, o número prometido é bastante substancial, de US$ 100 milhões. O Brasil está proporcional, até um pouco mais, um número adequado levando em conta o nosso interesse. Alguns países podem complementar, alguns dizem que a cooperação é inicial”, disse.
Amorim lembrou que a doação brasileira recebeu destaque internacional. “O sentido geral de solidariedade é muito grande. Eu acho que a percepção do que nós temos feito é muito grande não só no Brasil, mas no mundo. BBC deu destaque à oferta brasileira, aos aviões brasileiros, o que é normal e é importante que ocorra”, afirmou.
O ministro disse que ficou surpreso com o empenho do governo australiano. “Falei hoje com autoridades australianas e o país está dando colaboração de US$ 10 milhões, o que é importante, país que está longe da situação”, disse.
Segundo o chanceler, a reunião do grupo de doadores pode ocorrer nos próximos dias. A avaliação do governo brasileiro é de que o encontro é importante para evitar o confronto de ações.
“O importante é coordenar para evitar problemas no terreno, evidentemente, porque às vezes muita gente querendo ajudar esbarra um no outro e não dá certo. [...] Eu não excluo que se possa convocar [uma reunião] nos próximos dias, se chegar à conclusão que a necessidade de recursos até mesmo para emergência é muito grande. Isso estamos conversando permanentemente com todos os interlocutores”, disse Amorim.
O ministro defendeu que o controle das ações seja da ONU. “É preciso que alguém coordene. E acho que quem tem que coordenar do ponto de vista das definições das necessidades são a própria Nações Unidas. Só as Nações Unidas têm as informações que chegam de todos os lados”, disse.
1703) Direitos humanos recicláveis - Demétrio Magnoli
Direitos humanos recicláveis
Demétrio Magnoli
O Estado de S. Paulo, 17/01/2010
Conceito deixou de se aplicar a indivíduos reais para exprimir prerrogativas de coletividades imaginadas
Samuel Pinheiro Guimarães, o número 2 do Itamaraty feito secretário de Assuntos Estratégicos, renomeou os direitos humanos como "direitos humanos ocidentais" e qualificou a sua defesa como uma política que dissimula "com sua linguagem humanitária e altruísta as ações táticas das grandes potências em defesa de seus próprios interesses estratégicos". O ataque frontal aos direitos humanos é ineficaz e desqualifica o agressor. Os inimigos competentes dos direitos humanos operam de outro modo, pela sua usurpação e submissão a programas ideológicos estatais. O Plano Nacional de Direitos Humanos há pouco anunciado é uma ilustração acabada dessa estratégia. Desgraçadamente, os movimentos e ONGs que falam em nome dos direitos humanos não são apenas cúmplices, mas inspiradores da ofensiva de âmbito internacional.
A política internacional de direitos humanos nasceu de fato com a Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948. O texto célebre inscreve-se na tradição da filosofia política das Luzes, que se organiza ao redor do indivíduo. Ele proclama direitos das pessoas, não de coletividades étnicas, sociais ou religiosas. Tais direitos circulam na esfera política, mesmo quando se referenciam no mundo do trabalho ou da cultura. Por esse motivo, a sua defesa solicita, sempre e inevitavelmente, o confronto com o poder político que viola ou nega direitos. A Declaração de 1948 é, essencialmente, um instrumento de proteção dos indivíduos contra os Estados. Não é fortuito que seus detratores clássicos sejam os arautos das utopias totalitárias: o fascismo, o comunismo, o ultranacionalismo, o fundamentalismo religioso.
Na sua fase heroica, as ONGs engajadas na defesa dos direitos humanos figuravam na lista de desafetos dos Estados, inclusive das democracias ocidentais. Elas denunciavam implacavelmente a censura, a repressão política, as detenções ilegais e as torturas promovidas pelos regimes tirânicos, mas também as violações cometidas pelos serviços secretos das potências democráticas, a pena de morte, a discriminação oficial contra imigrantes, o preconceito racial nos sistemas judiciário e policial. Nada disso servia para a obtenção de financiamentos de governos, instituições multilaterais ou fundações filantrópicas globais. O ramo dos direitos humanos não era um bom negócio.
O giro estratégico começou há menos de duas décadas, por meio de uma reinterpretação fundamental dos direitos humanos. As ONGs inventaram a tese útil de que os direitos humanos, tal como expressos na Declaração de 1948, representam apenas direitos "de primeira geração". Eles deveriam ser complementados por direitos econômicos, "de segunda geração", e direitos culturais, "de terceira geração". A operação de linguagem gerou um oceano de direitos indefinidos, um livro vazio a ser preenchido pelos detentores do poder de preenchê-lo. Simultaneamente, propiciou a aliança e a cooperação entre as ONGs de direitos humanos e os Estados.
Sob o amplo guarda-chuva dos direitos "de segunda geração", quase todas as doutrinas políticas podem ser embrulhados no celofane abrangente dos direitos humanos. A reforma agrária promotora da agricultura camponesa converte-se num direito humano, tanto quanto a coletivização geral da terra, que é o seu oposto, segundo a vontade soberana do poder estatal de turno. O Plano de Direitos Humanos apresentado pelo governo Lula declara o "neoliberalismo", rótulo falseador usado como referência genérica às políticas de seu antecessor, como um atentado aos direitos humanos. As políticas assistenciais de distribuição de dinheiro transfiguram-se em princípios indiscutíveis de direitos humanos. Aqui ao lado, em nome dos direitos "de segunda geração", Hugo Chávez destrói meticulosamente aquilo que resta da economia produtiva venezuelana.
Os direitos "de terceira geração", por sua vez, funcionam como curingas dos tiranos e das lideranças políticas que fabricam coletividades étnicas, raciais ou religiosas. A perseguição à imprensa independente, nas ditaduras e nos regimes de caudilho, adquire a forma da proteção de direitos sociais contra o "poder midiático". A introdução de plataformas ideológicas no sistema educacional é envernizada com a cera dos direitos culturais. O mesmo pretexto propicia um discurso legitimador para a implantação de políticas de preferências étnicas ou religiosas no acesso aos serviços públicos, ao ensino superior e ao mercado de trabalho. O Plano de Direitos Humanos contém um pouco de tudo isso, refletindo a intrincada teia de acordos firmados entre o governo, os chamados movimentos sociais e redes diversas de ONGs.
A revisão do significado dos direitos humanos empreendida por iniciativa das ONGs esvaziou o sentido original da política internacional de direitos humanos. Eles deixaram de exprimir direitos dos indivíduos reais para se transfigurarem em direitos de coletividades imaginadas. O "negro" ou "afrodescendente" genérico, supostamente representado por uma organização política específica, tomou o lugar do indivíduo realmente esbulhado pela discriminação racial. O "índio" abstrato, "representado" pelo Instituto Sócio-Ambiental, sequestrou a voz do grupo indígena concreto que não tem acesso a remédios ou escolas. O Plano de Direitos Humanos contempla todas as coletividades fabricadas pela "política de identidades", inclusive as quebradeiras de coco. Ao reconhecimento oficial de cada uma dessas coletividades vitimizadas corresponde uma promessa de privilégios para seus "representantes", que são ativistas internacionais do próspero negócio dos direitos humanos.
Os direitos humanos de "segunda geração" e "terceira geração" diluíram os direitos humanos. As ONGs de direitos humanos incorporaram-se à paisagem geopolítica das instituições multilaterais e seus ativistas ingressaram numa elite pós-moderna de altos funcionários do sistema internacional. Em contrapartida, pagaram o preço de uma renúncia jamais explicitada, mas nítida e evidente, a fustigar as violações de direitos humanos praticadas pelos Estados.
A "guerra ao terror" de George W. Bush, com suas operações encobertas de transferência de presos para ditaduras cruéis, suas prisões off-shore e suas técnicas heterodoxas de interrogatório, escapou relativamente incólume do bombardeio das ONGs amestradas. A submissão do sistema judicial da Rússia de Vladimir Putin às conveniências políticas do Estado quase desapareceu dos radares dos ativistas. A vergonhosa deportação dos boxeadores cubanos por um governo brasileiro disposto a violar tratados internacionais precisos não mereceu uma denúncia no âmbito da OEA. O fechamento de emissoras de TV e a nova figura dos prisioneiros políticos na Venezuela não merecem manifestações significativas dos altos executivos de direitos humanos. A agressão recente à blogueira cubana Yoani Sánchez não gera nem mesmo uma protocolar nota de protesto das organizações que redigiram junto com Paulo Vannuchi o Plano de Direitos Humanos. De certo modo, Samuel Pinheiro Guimarães triunfou.
Demétrio Magnoli
O Estado de S. Paulo, 17/01/2010
Conceito deixou de se aplicar a indivíduos reais para exprimir prerrogativas de coletividades imaginadas
Samuel Pinheiro Guimarães, o número 2 do Itamaraty feito secretário de Assuntos Estratégicos, renomeou os direitos humanos como "direitos humanos ocidentais" e qualificou a sua defesa como uma política que dissimula "com sua linguagem humanitária e altruísta as ações táticas das grandes potências em defesa de seus próprios interesses estratégicos". O ataque frontal aos direitos humanos é ineficaz e desqualifica o agressor. Os inimigos competentes dos direitos humanos operam de outro modo, pela sua usurpação e submissão a programas ideológicos estatais. O Plano Nacional de Direitos Humanos há pouco anunciado é uma ilustração acabada dessa estratégia. Desgraçadamente, os movimentos e ONGs que falam em nome dos direitos humanos não são apenas cúmplices, mas inspiradores da ofensiva de âmbito internacional.
A política internacional de direitos humanos nasceu de fato com a Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948. O texto célebre inscreve-se na tradição da filosofia política das Luzes, que se organiza ao redor do indivíduo. Ele proclama direitos das pessoas, não de coletividades étnicas, sociais ou religiosas. Tais direitos circulam na esfera política, mesmo quando se referenciam no mundo do trabalho ou da cultura. Por esse motivo, a sua defesa solicita, sempre e inevitavelmente, o confronto com o poder político que viola ou nega direitos. A Declaração de 1948 é, essencialmente, um instrumento de proteção dos indivíduos contra os Estados. Não é fortuito que seus detratores clássicos sejam os arautos das utopias totalitárias: o fascismo, o comunismo, o ultranacionalismo, o fundamentalismo religioso.
Na sua fase heroica, as ONGs engajadas na defesa dos direitos humanos figuravam na lista de desafetos dos Estados, inclusive das democracias ocidentais. Elas denunciavam implacavelmente a censura, a repressão política, as detenções ilegais e as torturas promovidas pelos regimes tirânicos, mas também as violações cometidas pelos serviços secretos das potências democráticas, a pena de morte, a discriminação oficial contra imigrantes, o preconceito racial nos sistemas judiciário e policial. Nada disso servia para a obtenção de financiamentos de governos, instituições multilaterais ou fundações filantrópicas globais. O ramo dos direitos humanos não era um bom negócio.
O giro estratégico começou há menos de duas décadas, por meio de uma reinterpretação fundamental dos direitos humanos. As ONGs inventaram a tese útil de que os direitos humanos, tal como expressos na Declaração de 1948, representam apenas direitos "de primeira geração". Eles deveriam ser complementados por direitos econômicos, "de segunda geração", e direitos culturais, "de terceira geração". A operação de linguagem gerou um oceano de direitos indefinidos, um livro vazio a ser preenchido pelos detentores do poder de preenchê-lo. Simultaneamente, propiciou a aliança e a cooperação entre as ONGs de direitos humanos e os Estados.
Sob o amplo guarda-chuva dos direitos "de segunda geração", quase todas as doutrinas políticas podem ser embrulhados no celofane abrangente dos direitos humanos. A reforma agrária promotora da agricultura camponesa converte-se num direito humano, tanto quanto a coletivização geral da terra, que é o seu oposto, segundo a vontade soberana do poder estatal de turno. O Plano de Direitos Humanos apresentado pelo governo Lula declara o "neoliberalismo", rótulo falseador usado como referência genérica às políticas de seu antecessor, como um atentado aos direitos humanos. As políticas assistenciais de distribuição de dinheiro transfiguram-se em princípios indiscutíveis de direitos humanos. Aqui ao lado, em nome dos direitos "de segunda geração", Hugo Chávez destrói meticulosamente aquilo que resta da economia produtiva venezuelana.
Os direitos "de terceira geração", por sua vez, funcionam como curingas dos tiranos e das lideranças políticas que fabricam coletividades étnicas, raciais ou religiosas. A perseguição à imprensa independente, nas ditaduras e nos regimes de caudilho, adquire a forma da proteção de direitos sociais contra o "poder midiático". A introdução de plataformas ideológicas no sistema educacional é envernizada com a cera dos direitos culturais. O mesmo pretexto propicia um discurso legitimador para a implantação de políticas de preferências étnicas ou religiosas no acesso aos serviços públicos, ao ensino superior e ao mercado de trabalho. O Plano de Direitos Humanos contém um pouco de tudo isso, refletindo a intrincada teia de acordos firmados entre o governo, os chamados movimentos sociais e redes diversas de ONGs.
A revisão do significado dos direitos humanos empreendida por iniciativa das ONGs esvaziou o sentido original da política internacional de direitos humanos. Eles deixaram de exprimir direitos dos indivíduos reais para se transfigurarem em direitos de coletividades imaginadas. O "negro" ou "afrodescendente" genérico, supostamente representado por uma organização política específica, tomou o lugar do indivíduo realmente esbulhado pela discriminação racial. O "índio" abstrato, "representado" pelo Instituto Sócio-Ambiental, sequestrou a voz do grupo indígena concreto que não tem acesso a remédios ou escolas. O Plano de Direitos Humanos contempla todas as coletividades fabricadas pela "política de identidades", inclusive as quebradeiras de coco. Ao reconhecimento oficial de cada uma dessas coletividades vitimizadas corresponde uma promessa de privilégios para seus "representantes", que são ativistas internacionais do próspero negócio dos direitos humanos.
Os direitos humanos de "segunda geração" e "terceira geração" diluíram os direitos humanos. As ONGs de direitos humanos incorporaram-se à paisagem geopolítica das instituições multilaterais e seus ativistas ingressaram numa elite pós-moderna de altos funcionários do sistema internacional. Em contrapartida, pagaram o preço de uma renúncia jamais explicitada, mas nítida e evidente, a fustigar as violações de direitos humanos praticadas pelos Estados.
A "guerra ao terror" de George W. Bush, com suas operações encobertas de transferência de presos para ditaduras cruéis, suas prisões off-shore e suas técnicas heterodoxas de interrogatório, escapou relativamente incólume do bombardeio das ONGs amestradas. A submissão do sistema judicial da Rússia de Vladimir Putin às conveniências políticas do Estado quase desapareceu dos radares dos ativistas. A vergonhosa deportação dos boxeadores cubanos por um governo brasileiro disposto a violar tratados internacionais precisos não mereceu uma denúncia no âmbito da OEA. O fechamento de emissoras de TV e a nova figura dos prisioneiros políticos na Venezuela não merecem manifestações significativas dos altos executivos de direitos humanos. A agressão recente à blogueira cubana Yoani Sánchez não gera nem mesmo uma protocolar nota de protesto das organizações que redigiram junto com Paulo Vannuchi o Plano de Direitos Humanos. De certo modo, Samuel Pinheiro Guimarães triunfou.
1702) Corrida ao ouro...
Well, sort of. Nada de garimpagem, depredação do meio ambiente, homens brutos atrás da pepita salvadora, bebendo demais em bares miseráveis, assediando mulheres e filhas do local, não, nada disso.
Uma corrida civilizada, só para quem tem dinheiro para investir. Bem, pode-se perder dinheiro, também, mas muitos vão tentar...
L'or dure, mais...
Le Monde, 16.01.2010
Matières premières
Ruez-vous sur l'or, car la fête de l'once ne devrait pas se prolonger au-delà de cette année. C'est Philip Klapwijk, le président du cabinet GMFS réputé pour le sérieux de ses études sur les métaux précieux, qui l'a dit, mercredi 13 janvier à Londres, en présentant les perspectives du marché : "La lune de miel ne sera pas éternelle."
Quelle lune de miel ? L'or devrait retrouver et battre son record historique de décembre 2009 à 1 226,56 dollars. Vendredi, l'once est retombée à 1 131 dollars à Londres, mais M. Klapwijk "pense qu'au second semestre, nous pourrions voir les prix pousser au-delà des 1 300 dollars". A condition qu'un courant vigoureux d'argent frais se dirige vers le marché de l'or, "en provenance des institutions comme les compagnies d'assurances, les fonds de pension et les fonds souverains de plus en plus actifs".
Qu'est-ce qui inciterait ces riches moutons de Panurge à miser sur le métal précieux ? "La peur d'une rechute dans la récession, la persistance d'énormes déficits publics, une politique monétaire très laxiste et la conviction qu'une inflation forte, sinon galopante, va faire son retour", explique le patron de GMFS. "Comme la reprise économique sera molle, poursuit-il, il y aura donc peu ou pas de tour de vis monétaire dans les grandes économies cette année, et cela soulève de sérieuses questions sur la solvabilité des gouvernements."
"Cela tisse une toile de fond qui reste très favorable à l'investissement or", poursuit-il. Autrement dit, la vocation de coffre-fort de l'or devrait se confirmer de façon éclatante. C.Q.F.D.
Mais alors pourquoi M. Klapwijk parle-t-il de "lune de miel" qui pourrait tourner mal ? Pourquoi, après nous avoir fait miroiter un eldorado, parle-t-il de "possibilité d'une correction significative dans les six prochains mois" ?
D'abord parce que, comme tous les prévisionnistes, il se protège en disant que le contraire de ce qu'il annonce peut arriver. On ne sait jamais. Ensuite, parce que la pierre philosophale pourrait tout à fait fonctionner à l'envers, changeant l'or en métal plus vulgaire.
Si le dollar redresse la tête, parce que l'euro pâtit des malheurs de la Grèce, les investisseurs miseront sur le billet vert et plus sur l'or. Si les belles Indiennes persistent à snober la bijouterie en or devenue hors de prix (- 23 % pour la demande mondiale en 2009), l'argent en profitera.
Sauve-qui-peut
Si la production minière (+6 % en 2009) et le recyclage (+27 %) continuent à doper l'offre d'or, les investisseurs pourraient y voir les prémices d'une baisse des cours et se lancer dans un sauve-qui-peut.
Si la reprise économique et un retour du goût pour le risque se confirment, on verra les capitaux quitter le douillet refuge de l'or et se placer dans des valeurs de vraie croissance.
Combien pariez-vous que le cours du beau métal qui ne craint "ni la rouille ni les vers" sera tout sauf un long fleuve tranquille en 2010 ?
Alain Faujas
Article paru dans l'édition du 17.01.2010
Uma corrida civilizada, só para quem tem dinheiro para investir. Bem, pode-se perder dinheiro, também, mas muitos vão tentar...
L'or dure, mais...
Le Monde, 16.01.2010
Matières premières
Ruez-vous sur l'or, car la fête de l'once ne devrait pas se prolonger au-delà de cette année. C'est Philip Klapwijk, le président du cabinet GMFS réputé pour le sérieux de ses études sur les métaux précieux, qui l'a dit, mercredi 13 janvier à Londres, en présentant les perspectives du marché : "La lune de miel ne sera pas éternelle."
Quelle lune de miel ? L'or devrait retrouver et battre son record historique de décembre 2009 à 1 226,56 dollars. Vendredi, l'once est retombée à 1 131 dollars à Londres, mais M. Klapwijk "pense qu'au second semestre, nous pourrions voir les prix pousser au-delà des 1 300 dollars". A condition qu'un courant vigoureux d'argent frais se dirige vers le marché de l'or, "en provenance des institutions comme les compagnies d'assurances, les fonds de pension et les fonds souverains de plus en plus actifs".
Qu'est-ce qui inciterait ces riches moutons de Panurge à miser sur le métal précieux ? "La peur d'une rechute dans la récession, la persistance d'énormes déficits publics, une politique monétaire très laxiste et la conviction qu'une inflation forte, sinon galopante, va faire son retour", explique le patron de GMFS. "Comme la reprise économique sera molle, poursuit-il, il y aura donc peu ou pas de tour de vis monétaire dans les grandes économies cette année, et cela soulève de sérieuses questions sur la solvabilité des gouvernements."
"Cela tisse une toile de fond qui reste très favorable à l'investissement or", poursuit-il. Autrement dit, la vocation de coffre-fort de l'or devrait se confirmer de façon éclatante. C.Q.F.D.
Mais alors pourquoi M. Klapwijk parle-t-il de "lune de miel" qui pourrait tourner mal ? Pourquoi, après nous avoir fait miroiter un eldorado, parle-t-il de "possibilité d'une correction significative dans les six prochains mois" ?
D'abord parce que, comme tous les prévisionnistes, il se protège en disant que le contraire de ce qu'il annonce peut arriver. On ne sait jamais. Ensuite, parce que la pierre philosophale pourrait tout à fait fonctionner à l'envers, changeant l'or en métal plus vulgaire.
Si le dollar redresse la tête, parce que l'euro pâtit des malheurs de la Grèce, les investisseurs miseront sur le billet vert et plus sur l'or. Si les belles Indiennes persistent à snober la bijouterie en or devenue hors de prix (- 23 % pour la demande mondiale en 2009), l'argent en profitera.
Sauve-qui-peut
Si la production minière (+6 % en 2009) et le recyclage (+27 %) continuent à doper l'offre d'or, les investisseurs pourraient y voir les prémices d'une baisse des cours et se lancer dans un sauve-qui-peut.
Si la reprise économique et un retour du goût pour le risque se confirment, on verra les capitaux quitter le douillet refuge de l'or et se placer dans des valeurs de vraie croissance.
Combien pariez-vous que le cours du beau métal qui ne craint "ni la rouille ni les vers" sera tout sauf un long fleuve tranquille en 2010 ?
Alain Faujas
Article paru dans l'édition du 17.01.2010
1701) Como a internet mudou a minha vida...
A crônica de Janer Cristaldo se refere às perguntas anuais do site The Edge.
Para quem não conhece, é um forum de debates sobre questões científicas, que todo ano faz uma provocação com seus associados, instando-os a responder uma pergunta incisiva.
Já fiz, de minha parte, uma resposta unilateral, aqui consignada:
Em que você mudou de opinião? E por quê?, Via Política, 17.02.2008 (Trabalho 1861)
Janer Cristaldo é um colunista independente, no sentido mais libertário da palavra. Vale uma visita ao seu site.
O que vai abaixo é sua resposta à pergunta do final de 2009 do The Edge.
Paulo Roberto de Almeida (17.01.2010)
COMO A INTERNET MUDOU MINHA VIDA
Janer Cristaldo
Terça-feira, Janeiro 12, 2010
Um amigo me envia um site chamado Edge, que funciona como um "salão" de pensadores (físicos, psicólogos, neurocientistas, matemáticos, artistas, jornalistas, filósofos...) do qual fazem parte alguns nomes relativamente famosos como Nassim Taleb, Richard Dawkins e Steven Pinker. Durante todo o ano os participantes escrevem sobre assuntos relacionados especialmente ao seu trabalho, e a cada ano o fundador, John Brockman, faz uma pergunta que todos, ou quase todos, respondem com um texto. Este ano a pergunta foi "Como a Internet mudou a sua forma de pensar?", e apareceu em diversos lugares das media mundiais.
Para quem quiser dar uma olhada, a página inicial do site, relacionada à pergunta do ano, é http://www.edge.org/q2010/q10_index.html. Os textos realmente começam em http://www.edge.org/q2010/q10_1.html. Perguntas passadas do site incluem:
- No que você acredita, mas não pode provar?
- Qual é sua idéia perigosa?
- A respeito de quê você mudou de idéia? Por quê?
São questões que fazem pensar. Quanto à pergunta deste ano, minha resposta é singela. A Internet não mudou em nada minha forma de pensar. Quando cheguei à Internet já tinha bem mais de 50 anos e uma visão de mundo consolidada. A questão não é muito feliz. Não vejo como uma forma de comunicação possa mudar a maneira de pensar de alguém. Se me perguntassem o que mudou em minha vida, bom, aí eu teria muito a dizer.
Para começar, na vida de um jornalista a Internet se tornou sinônimo de liberdade de expressão. Os jornais enchem a boca falando de imprensa livre, mas nenhuma imprensa é realmente livre. Todos os jornais têm interesses a defender – que mais não seja, os interesses dos anunciantes – e sempre censuram, de uma ou outra forma, seus redatores. Você até pode xingar o governo. Mas não pode xingar o anunciante. Nos dias em que escrevi em papel, sempre me autocensurei um pouco. Sabia que certas afirmações não podiam ser publicadas. Então, para não incomodar-me, as deixava de lado.
Hoje, mudou o trote da mula. Na Internet, você pode escrever o que quiser. Claro que continua submetido à legislação. Se cometer crime de calúnia ou difamação, estará incurso nas mesmas penalidades que um conversador de boteco. Mas pode-se xingar o papa à vontade, denunciar a manipulação da grande imprensa, abordar temas-tabu. Verdade que alguns juízes já se alertaram para esta brecha e começam a censurar blogs. Mas, uma vez destapada a garrafa, o gênio não volta à garrafa. Censurar a Internet é como tentar parar a chuva a golpes de sabre.
Neste sentido, minha vida mudou e muito. Nossas vidas mudaram. Hoje, qualquer jornalista pode fazer jornalismo sem depender de jornal algum. Furar um jornal não exige maior esforço. Os jornais saem sempre amanhã. O blogueiro escreve agora. Além do mais, faz sua própria pauta e não depende de patrão algum. A liberdade de imprensa, tão apregoada pelos jornais, só surge a meu ver com a Internet.
Outra mudança em meus dias: hoje, não recebo mais cartas. A não ser de bancos e empresas ou entidades públicas. Carta virou peça de museu. Em 2000, passando por Évora, em Portugal, comprei dois pesados estribos de madeira. Não que pretendesse cavalgar. É que me pareceram muito adequados para guardar cartas. O que não me ocorreu é que, naqueles dias, eu já não recebia cartas. Enfim, para algo servem. Para guardar aqueles papeluchos que infestam minha escrivaninha, contas de luz, água e telefone.
Posso até ter saudades das cartas, mas não me queixo. Email é mais rápido e não precisamos ir ao correio, entrar em filas, lamber selos, postar. Podemos enviar sons e imagens em poucos segundos. Neste sentido, a Internet mudou a vida de todo mundo.
Outra mudança fundamental, particularmente para quem vive em pequenas cidades: você quer um livro ou filme que jamais iria encontrar em sua aldeia? Simples. Alguns cliques e uma ou duas semanas depois chega em sua casa aquele livro ou DVD que só existem em Paris ou Nova York. Isso sem falar nos ebooks. Por um livro eletrônico não preciso esperar uma semana. Ele chega em segundos às minhas mãos. Você precisa consultar já uma obra de Platão? Estão todas na rede. Alguns toques de teclado e o livro está em suas mãos, mesmo que você viva na mais remota aldeia do país.
Sim, havia um certo charme na correspondência epistolar. Em meus dias de Paris, na correspondência com minhas amigas, eu escolhia um papel bonito, envelope idem, comprava um selo significativo, caprichava na datilografia e tinha um especial prazer em despachar minhas cartas. Sem falar na tensão da espera. Uma semana depois, a resposta. Buscar correspondência na caixa do prédio era sempre uma expectativa prazerosa. Hoje, basta ligar o computador.
Não, não deploro os tempos modernos. Mas aqueles outros tempos também eram muito bons. De minha epistolografia parisiense fiz um grosso volume, de umas trezentas páginas. (Hoje caberia num disquete, se é que disquete ainda existe). Guardo este volume como uma relíquia do passado, uma espécie de diário de dias em que era feliz e não sabia.
Passagens, reservas de hotéis, roteiros de viagem. Hoje, posso fazer tudo isto sentado em minha casa. Antes da Web, estas diligências exigiam horas de consultas a um agente de turismo. Outra mudança importante em minha vida foi o reencontro de amigos e amigas que não via há trinta ou mais anos. (Já encontrei pessoa que não via há 45 anos). Sem a Internet, jamais os reencontraria.
Isso sem falar nos amigos que surgem. Se nem sempre temos idéia do que pode interessar a nosso vizinho de porta, é muito fácil encontrar na rede quem participe de nossa Weltanschauung, mesmo que viva nas antípodas. Hoje, alguém que vive em outro continente está potencialmente mais perto de mim do que alguém que vive a meu lado. Nestes dias, temos mais amigos no planetinha do que no prédio onde vivemos.
A Internet não mudou em nada minha forma de pensar. Mas tornou minha vida mais ágil e rápida. Acho que voltarei ao assunto.
- Enviado por Janer @ 8:28 PM
Para quem não conhece, é um forum de debates sobre questões científicas, que todo ano faz uma provocação com seus associados, instando-os a responder uma pergunta incisiva.
Já fiz, de minha parte, uma resposta unilateral, aqui consignada:
Em que você mudou de opinião? E por quê?, Via Política, 17.02.2008 (Trabalho 1861)
Janer Cristaldo é um colunista independente, no sentido mais libertário da palavra. Vale uma visita ao seu site.
O que vai abaixo é sua resposta à pergunta do final de 2009 do The Edge.
Paulo Roberto de Almeida (17.01.2010)
COMO A INTERNET MUDOU MINHA VIDA
Janer Cristaldo
Terça-feira, Janeiro 12, 2010
Um amigo me envia um site chamado Edge, que funciona como um "salão" de pensadores (físicos, psicólogos, neurocientistas, matemáticos, artistas, jornalistas, filósofos...) do qual fazem parte alguns nomes relativamente famosos como Nassim Taleb, Richard Dawkins e Steven Pinker. Durante todo o ano os participantes escrevem sobre assuntos relacionados especialmente ao seu trabalho, e a cada ano o fundador, John Brockman, faz uma pergunta que todos, ou quase todos, respondem com um texto. Este ano a pergunta foi "Como a Internet mudou a sua forma de pensar?", e apareceu em diversos lugares das media mundiais.
Para quem quiser dar uma olhada, a página inicial do site, relacionada à pergunta do ano, é http://www.edge.org/q2010/q10_index.html. Os textos realmente começam em http://www.edge.org/q2010/q10_1.html. Perguntas passadas do site incluem:
- No que você acredita, mas não pode provar?
- Qual é sua idéia perigosa?
- A respeito de quê você mudou de idéia? Por quê?
São questões que fazem pensar. Quanto à pergunta deste ano, minha resposta é singela. A Internet não mudou em nada minha forma de pensar. Quando cheguei à Internet já tinha bem mais de 50 anos e uma visão de mundo consolidada. A questão não é muito feliz. Não vejo como uma forma de comunicação possa mudar a maneira de pensar de alguém. Se me perguntassem o que mudou em minha vida, bom, aí eu teria muito a dizer.
Para começar, na vida de um jornalista a Internet se tornou sinônimo de liberdade de expressão. Os jornais enchem a boca falando de imprensa livre, mas nenhuma imprensa é realmente livre. Todos os jornais têm interesses a defender – que mais não seja, os interesses dos anunciantes – e sempre censuram, de uma ou outra forma, seus redatores. Você até pode xingar o governo. Mas não pode xingar o anunciante. Nos dias em que escrevi em papel, sempre me autocensurei um pouco. Sabia que certas afirmações não podiam ser publicadas. Então, para não incomodar-me, as deixava de lado.
Hoje, mudou o trote da mula. Na Internet, você pode escrever o que quiser. Claro que continua submetido à legislação. Se cometer crime de calúnia ou difamação, estará incurso nas mesmas penalidades que um conversador de boteco. Mas pode-se xingar o papa à vontade, denunciar a manipulação da grande imprensa, abordar temas-tabu. Verdade que alguns juízes já se alertaram para esta brecha e começam a censurar blogs. Mas, uma vez destapada a garrafa, o gênio não volta à garrafa. Censurar a Internet é como tentar parar a chuva a golpes de sabre.
Neste sentido, minha vida mudou e muito. Nossas vidas mudaram. Hoje, qualquer jornalista pode fazer jornalismo sem depender de jornal algum. Furar um jornal não exige maior esforço. Os jornais saem sempre amanhã. O blogueiro escreve agora. Além do mais, faz sua própria pauta e não depende de patrão algum. A liberdade de imprensa, tão apregoada pelos jornais, só surge a meu ver com a Internet.
Outra mudança em meus dias: hoje, não recebo mais cartas. A não ser de bancos e empresas ou entidades públicas. Carta virou peça de museu. Em 2000, passando por Évora, em Portugal, comprei dois pesados estribos de madeira. Não que pretendesse cavalgar. É que me pareceram muito adequados para guardar cartas. O que não me ocorreu é que, naqueles dias, eu já não recebia cartas. Enfim, para algo servem. Para guardar aqueles papeluchos que infestam minha escrivaninha, contas de luz, água e telefone.
Posso até ter saudades das cartas, mas não me queixo. Email é mais rápido e não precisamos ir ao correio, entrar em filas, lamber selos, postar. Podemos enviar sons e imagens em poucos segundos. Neste sentido, a Internet mudou a vida de todo mundo.
Outra mudança fundamental, particularmente para quem vive em pequenas cidades: você quer um livro ou filme que jamais iria encontrar em sua aldeia? Simples. Alguns cliques e uma ou duas semanas depois chega em sua casa aquele livro ou DVD que só existem em Paris ou Nova York. Isso sem falar nos ebooks. Por um livro eletrônico não preciso esperar uma semana. Ele chega em segundos às minhas mãos. Você precisa consultar já uma obra de Platão? Estão todas na rede. Alguns toques de teclado e o livro está em suas mãos, mesmo que você viva na mais remota aldeia do país.
Sim, havia um certo charme na correspondência epistolar. Em meus dias de Paris, na correspondência com minhas amigas, eu escolhia um papel bonito, envelope idem, comprava um selo significativo, caprichava na datilografia e tinha um especial prazer em despachar minhas cartas. Sem falar na tensão da espera. Uma semana depois, a resposta. Buscar correspondência na caixa do prédio era sempre uma expectativa prazerosa. Hoje, basta ligar o computador.
Não, não deploro os tempos modernos. Mas aqueles outros tempos também eram muito bons. De minha epistolografia parisiense fiz um grosso volume, de umas trezentas páginas. (Hoje caberia num disquete, se é que disquete ainda existe). Guardo este volume como uma relíquia do passado, uma espécie de diário de dias em que era feliz e não sabia.
Passagens, reservas de hotéis, roteiros de viagem. Hoje, posso fazer tudo isto sentado em minha casa. Antes da Web, estas diligências exigiam horas de consultas a um agente de turismo. Outra mudança importante em minha vida foi o reencontro de amigos e amigas que não via há trinta ou mais anos. (Já encontrei pessoa que não via há 45 anos). Sem a Internet, jamais os reencontraria.
Isso sem falar nos amigos que surgem. Se nem sempre temos idéia do que pode interessar a nosso vizinho de porta, é muito fácil encontrar na rede quem participe de nossa Weltanschauung, mesmo que viva nas antípodas. Hoje, alguém que vive em outro continente está potencialmente mais perto de mim do que alguém que vive a meu lado. Nestes dias, temos mais amigos no planetinha do que no prédio onde vivemos.
A Internet não mudou em nada minha forma de pensar. Mas tornou minha vida mais ágil e rápida. Acho que voltarei ao assunto.
- Enviado por Janer @ 8:28 PM
sábado, 16 de janeiro de 2010
1700) Carreira diplomatica: especializacao e escolha de lotacao e postos...
Carreira Diplomática: Geral ou Especializada?
Respondendo a dúvidas legítimas
Paulo Roberto de Almeida
Um leitor de meu blog, eventualmente de meu site, interessado na carreira diplomática, me escreve para formular perguntas em torno de uma das mais legítimas dúvidas que assaltam candidatos à carreira, e que já possuem algum interesse por áreas específicas, tentando saber, ou antecipar, se poderão, ou não, se dirigir, no trabalho profissional, para essas áreas de interesse, ou se terão de seguir o itinerário normal de uma carreira passavelmente burocrática, mas, também, amplamente diversificada. Na verdade, muitas pessoas gostariam de poder continuar fazendo, na diplomacia, o que já vem fazendo na vida profissional, ou acadêmica, ou então enveredar por um tipo determinado de trabalho, à exclusão de alguns outros, que poderiam lhe ser atribuídos sem possibilidade de escolha ou de recusa, trabalho que seria uma extensão preferencial de seus desejos pessoais, o que é amplamente legítimo e respeitado em diversas outras esferas de trabalho.
Concretamente, meu correspondente me coloca a seguinte questão:
“A minha dúvida não é sobre a prova, mas sim sobre o encaminhamento da carreira. Por mais que o senhor diga que o diplomata é um generalista, é possível direcionar a carreira para a área de interesse - formação? No meu caso, meu sonho é trabalhar com cooperação cultural internacional, na interface cultura e desenvolvimento - como se daria este caminho dentro do Ministério das Relações Exteriores?”
Continua ainda o meu correspondente, candidato à carreira:
“Se não for inconveniente (ou seja, pedir demais), também gostaria de saber em que ponto anda a atuação do Departamento Cultural do MRE em relação às discussões e parâmetros da UNESCO. Acompanho os Informes Mundiais de Cultura, e gostaria de saber se isso está no dia-a-dia da prática do referido departamento, ou se ele está voltado unicamente à ação cultural. Eu pesquisei no site do MRE na internet mas gostaria de uma impressão mais ‘de dentro’ a respeito do assunto. Além de eu querer entrar para a carreira, meu TCC da pós-graduação deverá ser a respeito de algum desses temas, para não criar um ‘estudo esquizofrênico’.”
Muito bem, expostas as dúvidas e colocadas as questões, vejamos o que eu poderia elaborar em torno delas. Eu o farei na medida de minhas possibilidades, posto que nunca trabalhei na área cultural, tendo orientado minha carreira para a área econômica, que constitui, justamente, uma de minhas afinidades eletivas.
A primeira pergunta, portanto, seria esta: “é possível direcionar a carreira para a área de interesse - formação?”
Respondo de imediato: é possível, sim, mas isso dentro de certos parâmetros e condicionantes, nem todas administráveis pelo jovem diplomata segundo seus interesses primários ou imediatos. Concretamente, como se dá o processo de escolha ou atribuição de funções, dentro da Secretaria de Estado (MRE, em Brasília) ou nos postos no exterior?
Toda a carreira diplomática, ou quase toda, é guiada por uma (famigerada?) lista de antiguidade, um expediente de tipo confuciano que nos posiciona no processo de ascensão funcional e nas movimentações ao longo do tempo. Concretamente, quando se faz o concurso e se é admitido na carreira – atualmente desde o ingresso no Instituto Rio Branco, a alma mater de formação e de socialização do jovem diplomata – se entra numa fila, cuja ordem de precedência é dada pela colocação nos resultados finais do exame de ingresso. Ou seja: os novos ingressantes terão o número que lhes cabe, em função das vagas disponíveis no Serviço Exterior, o que significa que os entrantes se distribuirão nos últimos postos da classe de Terceiro Secretário.
Ao sair do Instituto Rio Branco, aprovados obviamente, eles continuam a ter um número, mas este resultará de sua classificação final. Ainda durante o curso, eles farão estágios nas diversas Divisões ou Coordenadorias do MRE, uma escolha ou atribuição supostamente segundo essa classificação inicial e continuada: ou seja, os primeiros colocados provavelmente terão maior amplitude de escolha, e os últimos terão de se conformar com as vagas existentes: se for na Divisão do Arquivo terá de ser, pelo menos inicialmente na Divisão do Arquivo. Nada de muito dramático, pois sempre será possível solicitar e negociar uma mudança ao cabo de algum tempo, digamos depois de um ano. Em princípio, havendo vaga e disposição do chefe na Divisão de interesse, sempre será possível negociar a ida para essa área. A rigor, a burocracia se combina com certo grau de liberdade para determinar a lotação – esta a palavra técnica – do funcionário, numa determinada área.
Da mesma forma, a destinação exterior em algum posto também depende, em grande medida, da classificação do candidato em questão e das vagas disponíveis: todo e qualquer posto tem um quadro de funcionários relativamente estável (tantos secretários, alguns conselheiros, um ou dois ministros, para os maiores, e assim por diante). Nem sempre é possível, digamos, ir para a Unesco em Paris segundo sua própria vontade, mas é possível negociar uma ida em algum momento da carreira, desde que se consiga planejar e consolidar algumas escolhas nos momentos certos.
Digo isto porque o Itamaraty, ademais de ser essencialmente burocrático, num sentido institucionalmente weberiano, tem algum grau de arbítrio, o que o aproxima de uma burocracia feudal, no sentido de responder a determinações dos “barões” da Casa: a chefia política (ministro de Estado, secretário-geral) dispõe de grande poder de “lotação”, assim como a própria chefia do Serviço Exterior. Algumas regras estão codificadas (tempo de posto no exterior, alternância entre postos A, B, C etc.), outras regras dependem mais de um processo político de negociação e de mérito.
De fato, a carreira toda é marcada por algumas características próprias a toda carreira de Estado – como a dos militares, por exemplo – e algumas peculiaridades da diplomacia: em princípio, o mérito é reconhecido, mas as relações humanas, ou sociais, também contam na trajetória funcional. Um diplomata reconhecidamente sério e trabalhador receberá convites para trabalhar em determinadas funções de responsabilidade, embora outros possam receber esses convites também em função de algum vinculo familiar ou o famoso QI, quem indica (ou pistolão). Isso existe e não se pode negar: aliás, mesmo no setor privado, as relações humanas se combinam a trabalho para determinar o sucesso, ou não, de um determinado funcionário.
Portanto, a lotação de um diplomata, no começo ou no meio da carreira, dependerá tanto de seu posicionamento na lista de antiguidade, quanto de seu reconhecimento funcional, tanto por mérito próprio como pela rede de relacionamento que ele possa ter, sendo este último fator mais importante, talvez, nos escalões mais avançados da carreira. Isto vale para a área cultural como para qualquer outra área.
Em meu caso, tanto por preferência pessoal, como por convites, fui orientado e orientei-me bem mais para os setores de economia do que outras áreas, mas talvez eu pudesse ter trabalhado em áreas diferentes (política, cultural, jurídica), se tivesse interesse ou inclinação para fazê-lo. De minha parte, eu poderia facilmente trabalhar numa área política, de segurança internacional, de tecnologia, mas jamais teria me orientado, por vontade própria, para áreas jurídicas (por incompetência, talvez), para o cerimonial (falta de jeito, provavelmente) ou para a administração (simples falta de gosto, confesso, embora reconheça a importância).
Da mesma forma, nunca procurei, nem nunca pedi, para trabalhar em New York, na sede da ONU, pois (provavelmente por preconceito) eu acho o “grand machin” (como a ela se referia o General De Gaulle) essencialmente burocrática e “enrolativa”, preferindo Genebra (também ONU, mas mais orientada a temas econômicos, como o GATT e outros organismos). Da mesma forma, me dei muito bem na área de integração (Aladi, em Montevidéu, e em Brasília, idem) e na econômico-financeira (em Brasília e Washington, acompanhando FMI e Banco Mundial). Se alguém me convidasse para chefiar o cerimonial ou a administração em Brasília, eu provavelmente recusaria, mas nem sempre se pode recusar essas áreas no exterior, quando o posto é pequeno e as escolhas mais reduzidas.
No geral, é possível sim, mesmo se a carreira não oferece, oficialmente, nenhuma especialização, construir a sua própria especialização: de minha parte isso foi possível, não todo o tempo, mas most of the time... Esse debate, ou dilema, entre generalidades e especialização é em grande medida artificial, pois, a despeito de certas limitações inerentes a qualquer carreira burocrática, é possível manter certo gosto por certas áreas e ser capaz de exercer (e desfrutar) essas preferências.
Em contrapartida, eu não consigo responder adequadamente a questão do trabalho na área cultural, e suas relações com a Unesco, posto que nunca trabalhei nessa área. Suponho, como no caso de outros organismos internacionais, que existe um mix de formulação de agenda de trabalho que combina o peso burocrático desses organismos – e alguns deles são verdadeiramente “dinossáuricos”, stricto et lato sensi – e sugestões ou exigências dos países membros. Todo e qualquer organismo internacional possui uma agenda própria de trabalho, derivada de seu mandato original, e uma agenda composta das demandas dos países, formuladas nas delegações ou nas capitais. Pessoalmente eu considero a Unesco um desses dinossauros parisienses, que provavelmente gasta mais dinheiro em Paris do que na destinação final, e suposta, de seu trabalho de promoção da cultura ‘universal’. Mas, esse deve ser outro preconceito meu. Gostaria de poder responder mais concretamente, mas não consigo fazê-lo sem um conhecimento preciso (e “especializado”) da área.
Voilà, eis o que eu poderia responder e espero que satisfaça meu correspondente candidato à carreira.
Felicidades na carreira, muito estudo até ingressar e sucesso em sua vida pessoal e profissional.
Brasília, 16 de janeiro de 2010.
Respondendo a dúvidas legítimas
Paulo Roberto de Almeida
Um leitor de meu blog, eventualmente de meu site, interessado na carreira diplomática, me escreve para formular perguntas em torno de uma das mais legítimas dúvidas que assaltam candidatos à carreira, e que já possuem algum interesse por áreas específicas, tentando saber, ou antecipar, se poderão, ou não, se dirigir, no trabalho profissional, para essas áreas de interesse, ou se terão de seguir o itinerário normal de uma carreira passavelmente burocrática, mas, também, amplamente diversificada. Na verdade, muitas pessoas gostariam de poder continuar fazendo, na diplomacia, o que já vem fazendo na vida profissional, ou acadêmica, ou então enveredar por um tipo determinado de trabalho, à exclusão de alguns outros, que poderiam lhe ser atribuídos sem possibilidade de escolha ou de recusa, trabalho que seria uma extensão preferencial de seus desejos pessoais, o que é amplamente legítimo e respeitado em diversas outras esferas de trabalho.
Concretamente, meu correspondente me coloca a seguinte questão:
“A minha dúvida não é sobre a prova, mas sim sobre o encaminhamento da carreira. Por mais que o senhor diga que o diplomata é um generalista, é possível direcionar a carreira para a área de interesse - formação? No meu caso, meu sonho é trabalhar com cooperação cultural internacional, na interface cultura e desenvolvimento - como se daria este caminho dentro do Ministério das Relações Exteriores?”
Continua ainda o meu correspondente, candidato à carreira:
“Se não for inconveniente (ou seja, pedir demais), também gostaria de saber em que ponto anda a atuação do Departamento Cultural do MRE em relação às discussões e parâmetros da UNESCO. Acompanho os Informes Mundiais de Cultura, e gostaria de saber se isso está no dia-a-dia da prática do referido departamento, ou se ele está voltado unicamente à ação cultural. Eu pesquisei no site do MRE na internet mas gostaria de uma impressão mais ‘de dentro’ a respeito do assunto. Além de eu querer entrar para a carreira, meu TCC da pós-graduação deverá ser a respeito de algum desses temas, para não criar um ‘estudo esquizofrênico’.”
Muito bem, expostas as dúvidas e colocadas as questões, vejamos o que eu poderia elaborar em torno delas. Eu o farei na medida de minhas possibilidades, posto que nunca trabalhei na área cultural, tendo orientado minha carreira para a área econômica, que constitui, justamente, uma de minhas afinidades eletivas.
A primeira pergunta, portanto, seria esta: “é possível direcionar a carreira para a área de interesse - formação?”
Respondo de imediato: é possível, sim, mas isso dentro de certos parâmetros e condicionantes, nem todas administráveis pelo jovem diplomata segundo seus interesses primários ou imediatos. Concretamente, como se dá o processo de escolha ou atribuição de funções, dentro da Secretaria de Estado (MRE, em Brasília) ou nos postos no exterior?
Toda a carreira diplomática, ou quase toda, é guiada por uma (famigerada?) lista de antiguidade, um expediente de tipo confuciano que nos posiciona no processo de ascensão funcional e nas movimentações ao longo do tempo. Concretamente, quando se faz o concurso e se é admitido na carreira – atualmente desde o ingresso no Instituto Rio Branco, a alma mater de formação e de socialização do jovem diplomata – se entra numa fila, cuja ordem de precedência é dada pela colocação nos resultados finais do exame de ingresso. Ou seja: os novos ingressantes terão o número que lhes cabe, em função das vagas disponíveis no Serviço Exterior, o que significa que os entrantes se distribuirão nos últimos postos da classe de Terceiro Secretário.
Ao sair do Instituto Rio Branco, aprovados obviamente, eles continuam a ter um número, mas este resultará de sua classificação final. Ainda durante o curso, eles farão estágios nas diversas Divisões ou Coordenadorias do MRE, uma escolha ou atribuição supostamente segundo essa classificação inicial e continuada: ou seja, os primeiros colocados provavelmente terão maior amplitude de escolha, e os últimos terão de se conformar com as vagas existentes: se for na Divisão do Arquivo terá de ser, pelo menos inicialmente na Divisão do Arquivo. Nada de muito dramático, pois sempre será possível solicitar e negociar uma mudança ao cabo de algum tempo, digamos depois de um ano. Em princípio, havendo vaga e disposição do chefe na Divisão de interesse, sempre será possível negociar a ida para essa área. A rigor, a burocracia se combina com certo grau de liberdade para determinar a lotação – esta a palavra técnica – do funcionário, numa determinada área.
Da mesma forma, a destinação exterior em algum posto também depende, em grande medida, da classificação do candidato em questão e das vagas disponíveis: todo e qualquer posto tem um quadro de funcionários relativamente estável (tantos secretários, alguns conselheiros, um ou dois ministros, para os maiores, e assim por diante). Nem sempre é possível, digamos, ir para a Unesco em Paris segundo sua própria vontade, mas é possível negociar uma ida em algum momento da carreira, desde que se consiga planejar e consolidar algumas escolhas nos momentos certos.
Digo isto porque o Itamaraty, ademais de ser essencialmente burocrático, num sentido institucionalmente weberiano, tem algum grau de arbítrio, o que o aproxima de uma burocracia feudal, no sentido de responder a determinações dos “barões” da Casa: a chefia política (ministro de Estado, secretário-geral) dispõe de grande poder de “lotação”, assim como a própria chefia do Serviço Exterior. Algumas regras estão codificadas (tempo de posto no exterior, alternância entre postos A, B, C etc.), outras regras dependem mais de um processo político de negociação e de mérito.
De fato, a carreira toda é marcada por algumas características próprias a toda carreira de Estado – como a dos militares, por exemplo – e algumas peculiaridades da diplomacia: em princípio, o mérito é reconhecido, mas as relações humanas, ou sociais, também contam na trajetória funcional. Um diplomata reconhecidamente sério e trabalhador receberá convites para trabalhar em determinadas funções de responsabilidade, embora outros possam receber esses convites também em função de algum vinculo familiar ou o famoso QI, quem indica (ou pistolão). Isso existe e não se pode negar: aliás, mesmo no setor privado, as relações humanas se combinam a trabalho para determinar o sucesso, ou não, de um determinado funcionário.
Portanto, a lotação de um diplomata, no começo ou no meio da carreira, dependerá tanto de seu posicionamento na lista de antiguidade, quanto de seu reconhecimento funcional, tanto por mérito próprio como pela rede de relacionamento que ele possa ter, sendo este último fator mais importante, talvez, nos escalões mais avançados da carreira. Isto vale para a área cultural como para qualquer outra área.
Em meu caso, tanto por preferência pessoal, como por convites, fui orientado e orientei-me bem mais para os setores de economia do que outras áreas, mas talvez eu pudesse ter trabalhado em áreas diferentes (política, cultural, jurídica), se tivesse interesse ou inclinação para fazê-lo. De minha parte, eu poderia facilmente trabalhar numa área política, de segurança internacional, de tecnologia, mas jamais teria me orientado, por vontade própria, para áreas jurídicas (por incompetência, talvez), para o cerimonial (falta de jeito, provavelmente) ou para a administração (simples falta de gosto, confesso, embora reconheça a importância).
Da mesma forma, nunca procurei, nem nunca pedi, para trabalhar em New York, na sede da ONU, pois (provavelmente por preconceito) eu acho o “grand machin” (como a ela se referia o General De Gaulle) essencialmente burocrática e “enrolativa”, preferindo Genebra (também ONU, mas mais orientada a temas econômicos, como o GATT e outros organismos). Da mesma forma, me dei muito bem na área de integração (Aladi, em Montevidéu, e em Brasília, idem) e na econômico-financeira (em Brasília e Washington, acompanhando FMI e Banco Mundial). Se alguém me convidasse para chefiar o cerimonial ou a administração em Brasília, eu provavelmente recusaria, mas nem sempre se pode recusar essas áreas no exterior, quando o posto é pequeno e as escolhas mais reduzidas.
No geral, é possível sim, mesmo se a carreira não oferece, oficialmente, nenhuma especialização, construir a sua própria especialização: de minha parte isso foi possível, não todo o tempo, mas most of the time... Esse debate, ou dilema, entre generalidades e especialização é em grande medida artificial, pois, a despeito de certas limitações inerentes a qualquer carreira burocrática, é possível manter certo gosto por certas áreas e ser capaz de exercer (e desfrutar) essas preferências.
Em contrapartida, eu não consigo responder adequadamente a questão do trabalho na área cultural, e suas relações com a Unesco, posto que nunca trabalhei nessa área. Suponho, como no caso de outros organismos internacionais, que existe um mix de formulação de agenda de trabalho que combina o peso burocrático desses organismos – e alguns deles são verdadeiramente “dinossáuricos”, stricto et lato sensi – e sugestões ou exigências dos países membros. Todo e qualquer organismo internacional possui uma agenda própria de trabalho, derivada de seu mandato original, e uma agenda composta das demandas dos países, formuladas nas delegações ou nas capitais. Pessoalmente eu considero a Unesco um desses dinossauros parisienses, que provavelmente gasta mais dinheiro em Paris do que na destinação final, e suposta, de seu trabalho de promoção da cultura ‘universal’. Mas, esse deve ser outro preconceito meu. Gostaria de poder responder mais concretamente, mas não consigo fazê-lo sem um conhecimento preciso (e “especializado”) da área.
Voilà, eis o que eu poderia responder e espero que satisfaça meu correspondente candidato à carreira.
Felicidades na carreira, muito estudo até ingressar e sucesso em sua vida pessoal e profissional.
Brasília, 16 de janeiro de 2010.
1699) Transversalidade: argh!... eu também tenho horror dessas bobagens
Sempre tive uma bronca particular de certos modismos culturais, certas inovações terminológicas, certas importações falsificadas, que vem direto de Paris, como se descessem de algum nirvana filosófico, algum nec plus ultra intelectual, ao qual devêsssemos aderir de maneira contemplativa, beata, submissa, apenas porque representariam, sei lá, a mais recente benfeitoria conceitual da qual não poderíamos nos passar.
Sempre considerei esse tipo de colonialismo acadêmico uma impostura intelectual, e me revolto com esses universitários ingênuos que não fazem nenhum esforço de compreensão da realidade à sua volta, e que preferem "soltar" o seu Foucault, o seu Derrida, o seu Deleuze, como se esses gurus tivessem algo de inteligente a dizer para este pobres tupinambás que somos nós.
Passons!. Esta pequena introdução pedante, apenas para transcrever um post do Reinaldo Azevedo que encontro particularmente feliz em face do festival de bobagens conceituais que nos vem servido sob a forma do último Programa (!) Nacional (!!) de Direitos Humanos (!!!). Sinto pelas exclamações, mas é que tenho alergia à burrice e mais alergia ainda à estupidez, e o PNDH nosvem apresentado com fortes doses de ambos...
Paulo Roberto de Almeida (16.01.2010)
TRANSVERSALIDADE, A CARA DO MODERNO TOTALITARISMO. OU: VOCÊ ENTREGARIA TODO O PODER AOS CARDIOLOGISTAS?
Reinaldo Azevedo, 15/01/10
Caras e caros, vamos dar seqüência a nosso trabalho, que é demonstrar que, se a essência das coisas coincidisse com a sua aparência, os idiotas seriam os cientistas, e os cientistas, os idiotas. Acho que o texto que segue é daqueles que ajudam, sei lá, a formar o pensamento. Avaliem.
Aqui e mundo afora, uma palavrinha e sua derivação substantivada entraram na ordem do dia dos movimentos sociais e das ONGs, que roubaram, não raro, o público das antigas esquerdas (tornando-se as novas esquerdas): “transversal” e “transversalidade”. Em francês: “transversal/transversalité“. No inglês, conserva a sua origem latina: “transversal/transversality“. A palavra é o xodó das tentações totalitárias contemporâneas. Na origem, designa o que tem sentido oblíquo em relação a um referente qualquer. Nas ciências humanas, passou a designar um tema que atravessa perpendicularmente a sociedade. Dou exemplos:
- “Os direitos humanos devem ser vistos na sua transversalidade”;
- “O meio ambiente deve ser visto na sua transversalidade”;
- “A igualdade é um tema transversal da sociedade humana“.
O que isso significa? Que todas as ações e todas as áreas da vida teriam de estar pautadas segundo a agenda dos direitos humanos, do meio ambiente ou da igualdade — apenas para citar os mais famosos fetiches do pensamento contemporâneo. E antes que alguém resolva dar pulinhos de ignorância, sem paciência para ler o que vem, recomendo sossego. Pense, só para se acalmar, que os direitos humanos, o meio ambiente, a igualdade ou qualquer outro assunto tornado influente NÃO SÃO manifestações da natureza, MAS construções humanas. Estão sempre sujeitos ao controle de grupos de pressão. SÃO UMA ESCOLHA, NÃO UMA VERDADE ABSOLUTA. Adiante.
Tive o capricho de ver quantas vezes essas palavras aparecem naquele texto comuno-fascistóide que se quer um Programa Nacional de Direitos Humanos. Vejam o resultado:
1 - (…) Direitos Humanos constitui princípio transversal a ser considerado em todas as políticas públicas.
2 - As diretrizes deste capítulo discorrem sobre a importância de fortalecer a garantia e os instrumentos de participação social, o caráter transversal dos Direitos Humanos (…)
3 - (…)monitoramento das políticas públicas em Direitos Humanos, num diálogo plural e transversal entre os vários atores sociais (…)
4 - Garantia da participação e do controle social das políticas públicas em Direitos Humanos, em diálogo plural e transversal entre os vários atores sociais.
5 - Fortalecimento dos Direitos Humanos como instrumento transversal das políticas públicas e de interação democrática.
6 - PNDH-3 orienta-se pela transversalidade, para que a implementação dos direitos civis e políticos transitem pelas diversas dimensões;
7 - No PNDH-3, essa concepção se traduz em propostas de mudanças curriculares, incluindo a educação transversal e permanente nos temas ligados aos Direitos Humanos
8 - transversalização incluída nos projetos acadêmicos dos diferentes cursos de graduação e pós-graduação,
9 - cursos com a transversalização dos Direitos Humanos nos projetos políticos pedagógicos;
10 - Incentivo à transdisciplinariedade e transversalidade nas atividades acadêmicas em Direitos Humanos.
Acho que chegarei ainda mais perto do meu objeto se der uma exemplo, para voltar depois para a conceituação mais pura. Pensem, leitores: vocês acham que deveríamos, por exemplo, deixar os cardiologistas governar o mundo? Ou alguém aí não considera, por acaso, a saúde cardíaca um tema “transversal”. Não devemos consumir bacon em excesso — na verdade, quanto menos, melhor; de preferência, nada! Sal provoca retenção de líquidos e eleva a pressão sangüínea. A vida sedentária faz mal para o coração. Excesso de peso provoca sobrecarga e eleva os fatores de risco… O estresse e o cigarro são um veneno…
Imaginem como poderia ser a vida se déssemos todo poder aos cardiologistas. A saúde do coração seria um tema TRANSVERSAL, a atravessar perpendicularmente todas as nossas atividades. E seria impossível dizer que eles estariam buscando o nosso mal. Ao contrário. Comitês de especialistas se formariam para, por exemplo, examinar se as novelas estariam sendo “cadiologicamente corretas”. As feijoadas seriam atividades clandestinas, já que é impossível alegar que aquela, afinal de contas, é uma comida saudável. Os sedentários seriam denunciados como fatores de elevação do custo da saúde pública, dado que sua preguiça os predispõe a determinados males que têm repercussão da vida da coletividade. O mesmo se diga dos fumantes (bem, isso já está em curso, é bom notar).
Músicas e manifestações culturais que induzissem a comportamentos alimentares de risco deveriam ser consideradas manifestações de preconceito contra a saúde. As seções de culinária dos jornais e revistas teriam de ser submetidos a uma comissão de acompanhamento editorial. A vigilância sobre as TVs, que são concessões públicas, seria redobrada. Quem insistisse em exibir comportamento que ameaçasse a saúde do coração teria a licença cassada. Em uma década, o Brasil poderia ser o país com os corações mais saudáveis do planeta, embora a vida pudesse ser uma merda de tão chata. Algum rebelde se lembraria de perguntar: “Pô, tudo bem, é legal esse papo de proteger o coração, mas como fica a liberdade?” E alguém poderia responder, também com uma indagação, à moda de Lênin: “Liberdade pra quê?”
Estamos longe disso? Nem tanto, é bom deixar claro. A Confecom, aquela porcaria inventada por Franklin Martins reunindo pequenos candidatos a tiranos, aprovou resolução contra a publicidade que induza o consumismo — seja lá o que isso signifique — e produtos atentatórios à saúde. A Anvisa já andou encrencando com propaganda de biscoito e refrigerante. É que a saúde, gente, vocês sabem, é uma “tema transversal”…
Ditadores
“Transversalidade” é a palavra de ordem dos novos candidatos a ditadores. Aproveitam-se do fato de que certos temas são consensos da sociedade — porque, na verdade, são matéria de mero bom senso — e transformam a sua particular leitura do assunto num valor absoluto. Ora, quem é ou há de ser contra os direitos humanos, a preservação do meio ambiente ou a saúde? Ninguém! Mas que outros valores da nossa cultura, inclusive a política, temos a preservar?
É aceitável que, em nome da suposta “transversalidade” de um tema, se jogue, por exemplo, a democracia no lixo? Ou o Estado de Direito? Quando o sr. Paulo Vannuchi, ex-terrorista da ALN, propõe que se casse dos juízes o chamado “poder de cautela”, tentando impedir que concedam liminares de reintegração de posse, ele está, como já demonstrei aqui, TENTANDO FRAUDAR A CONSTITUIÇÃO. E de várias maneiras. Em nome do quê? “Ah, da transversalidade dos direitos humanos”. O que se esconde nesse discurso vigarista é que o direito de propriedade também é, afinal, um… direito humano! Foi Vannuchi e a aliança ALN-VPR-MR-8 que decidiram transformar uma agenda ideológica em “direitos humanos”, cassando, para tanto, os direitos de outros humanos.
Também é assim no caso do meio ambiente. Em muitos momentos, o que se tem é nada menos do que uma agenda autoritária e atentatória… aos direitos humanos! Se o Brasil aplicasse todas as leis ambientais que aí estão, faltaria terra para a agricultura. São Paulo, por exemplo, teria de perder uns 20% da área plantada. A economia iria para a breca, o preço dos alimentos subiria, os pobres seriam os mais prejudicados. “Ah, ele é contra o meio ambiente!” Uma ova! Sou contra a “transversalidade” que não tem um respeito mínimo pela realidade.
O único tema “transversal” que eu realmente reconheço é a liberdade, nos marcos de uma sociedade democrática. O resto é tentativa de imposição de uma agenda de grupos consideram a sua metafísica superior à de outros. Sei que os tempos andam bicudos para falar nesse assunto. Não dou a mínima. Não me importaria, se fosse o caso, em ser o último homem do século passado — o século que venceu os velhos totalitarismos.
Não darei, neste século, consentimento a ninguém para novos totalitarismos.
Sempre considerei esse tipo de colonialismo acadêmico uma impostura intelectual, e me revolto com esses universitários ingênuos que não fazem nenhum esforço de compreensão da realidade à sua volta, e que preferem "soltar" o seu Foucault, o seu Derrida, o seu Deleuze, como se esses gurus tivessem algo de inteligente a dizer para este pobres tupinambás que somos nós.
Passons!. Esta pequena introdução pedante, apenas para transcrever um post do Reinaldo Azevedo que encontro particularmente feliz em face do festival de bobagens conceituais que nos vem servido sob a forma do último Programa (!) Nacional (!!) de Direitos Humanos (!!!). Sinto pelas exclamações, mas é que tenho alergia à burrice e mais alergia ainda à estupidez, e o PNDH nosvem apresentado com fortes doses de ambos...
Paulo Roberto de Almeida (16.01.2010)
TRANSVERSALIDADE, A CARA DO MODERNO TOTALITARISMO. OU: VOCÊ ENTREGARIA TODO O PODER AOS CARDIOLOGISTAS?
Reinaldo Azevedo, 15/01/10
Caras e caros, vamos dar seqüência a nosso trabalho, que é demonstrar que, se a essência das coisas coincidisse com a sua aparência, os idiotas seriam os cientistas, e os cientistas, os idiotas. Acho que o texto que segue é daqueles que ajudam, sei lá, a formar o pensamento. Avaliem.
Aqui e mundo afora, uma palavrinha e sua derivação substantivada entraram na ordem do dia dos movimentos sociais e das ONGs, que roubaram, não raro, o público das antigas esquerdas (tornando-se as novas esquerdas): “transversal” e “transversalidade”. Em francês: “transversal/transversalité“. No inglês, conserva a sua origem latina: “transversal/transversality“. A palavra é o xodó das tentações totalitárias contemporâneas. Na origem, designa o que tem sentido oblíquo em relação a um referente qualquer. Nas ciências humanas, passou a designar um tema que atravessa perpendicularmente a sociedade. Dou exemplos:
- “Os direitos humanos devem ser vistos na sua transversalidade”;
- “O meio ambiente deve ser visto na sua transversalidade”;
- “A igualdade é um tema transversal da sociedade humana“.
O que isso significa? Que todas as ações e todas as áreas da vida teriam de estar pautadas segundo a agenda dos direitos humanos, do meio ambiente ou da igualdade — apenas para citar os mais famosos fetiches do pensamento contemporâneo. E antes que alguém resolva dar pulinhos de ignorância, sem paciência para ler o que vem, recomendo sossego. Pense, só para se acalmar, que os direitos humanos, o meio ambiente, a igualdade ou qualquer outro assunto tornado influente NÃO SÃO manifestações da natureza, MAS construções humanas. Estão sempre sujeitos ao controle de grupos de pressão. SÃO UMA ESCOLHA, NÃO UMA VERDADE ABSOLUTA. Adiante.
Tive o capricho de ver quantas vezes essas palavras aparecem naquele texto comuno-fascistóide que se quer um Programa Nacional de Direitos Humanos. Vejam o resultado:
1 - (…) Direitos Humanos constitui princípio transversal a ser considerado em todas as políticas públicas.
2 - As diretrizes deste capítulo discorrem sobre a importância de fortalecer a garantia e os instrumentos de participação social, o caráter transversal dos Direitos Humanos (…)
3 - (…)monitoramento das políticas públicas em Direitos Humanos, num diálogo plural e transversal entre os vários atores sociais (…)
4 - Garantia da participação e do controle social das políticas públicas em Direitos Humanos, em diálogo plural e transversal entre os vários atores sociais.
5 - Fortalecimento dos Direitos Humanos como instrumento transversal das políticas públicas e de interação democrática.
6 - PNDH-3 orienta-se pela transversalidade, para que a implementação dos direitos civis e políticos transitem pelas diversas dimensões;
7 - No PNDH-3, essa concepção se traduz em propostas de mudanças curriculares, incluindo a educação transversal e permanente nos temas ligados aos Direitos Humanos
8 - transversalização incluída nos projetos acadêmicos dos diferentes cursos de graduação e pós-graduação,
9 - cursos com a transversalização dos Direitos Humanos nos projetos políticos pedagógicos;
10 - Incentivo à transdisciplinariedade e transversalidade nas atividades acadêmicas em Direitos Humanos.
Acho que chegarei ainda mais perto do meu objeto se der uma exemplo, para voltar depois para a conceituação mais pura. Pensem, leitores: vocês acham que deveríamos, por exemplo, deixar os cardiologistas governar o mundo? Ou alguém aí não considera, por acaso, a saúde cardíaca um tema “transversal”. Não devemos consumir bacon em excesso — na verdade, quanto menos, melhor; de preferência, nada! Sal provoca retenção de líquidos e eleva a pressão sangüínea. A vida sedentária faz mal para o coração. Excesso de peso provoca sobrecarga e eleva os fatores de risco… O estresse e o cigarro são um veneno…
Imaginem como poderia ser a vida se déssemos todo poder aos cardiologistas. A saúde do coração seria um tema TRANSVERSAL, a atravessar perpendicularmente todas as nossas atividades. E seria impossível dizer que eles estariam buscando o nosso mal. Ao contrário. Comitês de especialistas se formariam para, por exemplo, examinar se as novelas estariam sendo “cadiologicamente corretas”. As feijoadas seriam atividades clandestinas, já que é impossível alegar que aquela, afinal de contas, é uma comida saudável. Os sedentários seriam denunciados como fatores de elevação do custo da saúde pública, dado que sua preguiça os predispõe a determinados males que têm repercussão da vida da coletividade. O mesmo se diga dos fumantes (bem, isso já está em curso, é bom notar).
Músicas e manifestações culturais que induzissem a comportamentos alimentares de risco deveriam ser consideradas manifestações de preconceito contra a saúde. As seções de culinária dos jornais e revistas teriam de ser submetidos a uma comissão de acompanhamento editorial. A vigilância sobre as TVs, que são concessões públicas, seria redobrada. Quem insistisse em exibir comportamento que ameaçasse a saúde do coração teria a licença cassada. Em uma década, o Brasil poderia ser o país com os corações mais saudáveis do planeta, embora a vida pudesse ser uma merda de tão chata. Algum rebelde se lembraria de perguntar: “Pô, tudo bem, é legal esse papo de proteger o coração, mas como fica a liberdade?” E alguém poderia responder, também com uma indagação, à moda de Lênin: “Liberdade pra quê?”
Estamos longe disso? Nem tanto, é bom deixar claro. A Confecom, aquela porcaria inventada por Franklin Martins reunindo pequenos candidatos a tiranos, aprovou resolução contra a publicidade que induza o consumismo — seja lá o que isso signifique — e produtos atentatórios à saúde. A Anvisa já andou encrencando com propaganda de biscoito e refrigerante. É que a saúde, gente, vocês sabem, é uma “tema transversal”…
Ditadores
“Transversalidade” é a palavra de ordem dos novos candidatos a ditadores. Aproveitam-se do fato de que certos temas são consensos da sociedade — porque, na verdade, são matéria de mero bom senso — e transformam a sua particular leitura do assunto num valor absoluto. Ora, quem é ou há de ser contra os direitos humanos, a preservação do meio ambiente ou a saúde? Ninguém! Mas que outros valores da nossa cultura, inclusive a política, temos a preservar?
É aceitável que, em nome da suposta “transversalidade” de um tema, se jogue, por exemplo, a democracia no lixo? Ou o Estado de Direito? Quando o sr. Paulo Vannuchi, ex-terrorista da ALN, propõe que se casse dos juízes o chamado “poder de cautela”, tentando impedir que concedam liminares de reintegração de posse, ele está, como já demonstrei aqui, TENTANDO FRAUDAR A CONSTITUIÇÃO. E de várias maneiras. Em nome do quê? “Ah, da transversalidade dos direitos humanos”. O que se esconde nesse discurso vigarista é que o direito de propriedade também é, afinal, um… direito humano! Foi Vannuchi e a aliança ALN-VPR-MR-8 que decidiram transformar uma agenda ideológica em “direitos humanos”, cassando, para tanto, os direitos de outros humanos.
Também é assim no caso do meio ambiente. Em muitos momentos, o que se tem é nada menos do que uma agenda autoritária e atentatória… aos direitos humanos! Se o Brasil aplicasse todas as leis ambientais que aí estão, faltaria terra para a agricultura. São Paulo, por exemplo, teria de perder uns 20% da área plantada. A economia iria para a breca, o preço dos alimentos subiria, os pobres seriam os mais prejudicados. “Ah, ele é contra o meio ambiente!” Uma ova! Sou contra a “transversalidade” que não tem um respeito mínimo pela realidade.
O único tema “transversal” que eu realmente reconheço é a liberdade, nos marcos de uma sociedade democrática. O resto é tentativa de imposição de uma agenda de grupos consideram a sua metafísica superior à de outros. Sei que os tempos andam bicudos para falar nesse assunto. Não dou a mínima. Não me importaria, se fosse o caso, em ser o último homem do século passado — o século que venceu os velhos totalitarismos.
Não darei, neste século, consentimento a ninguém para novos totalitarismos.
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