domingo, 1 de dezembro de 2024

Uma luz no fim do túnel - Bolívar Lamounier (O Estado de S. Paulo)

Uma luz no fim do túnel

Bolívar Lamounier

O Estado de S. Paulo.

30 de nov. de 2024

A desordem política em que o Brasil vive há mais de duas décadas decorre de três fatores: o pequeno número de pessoas genuinamente vocacionadas para a vida pública, deformações grotescas em nosso sistema institucional e, mais importante, a obscena desigualdade de nossa sociedade.

Aos fatores acima haveria que acrescentar o quadro mundial, no qual despontam ditadores como Nicolás Maduro, um presidente condenado eleito para a presidência dos Estados Unidos e ditaduras totalitárias como as da Rússia, China e Coreia do Norte. Vladimir Putin chega a ameaçar o mundo abertamente com o recurso a seu gigantesco arsenal nuclear.

Quanto ao Brasil, a escassez de vocações políticas a que me refiro diz respeito ao excesso de indivíduos ávidos por viver “da política” e não “para a política”. O quase total desaparecimento da geração de líderes do Congresso constituinte (1987-1988) deixou aberto o espaço para o discurso ideológico vazio do PT, o populismo de Lula da Silva e um Congresso no qual, com as exceções de praxe, pululam larápios e trapaceiros. Essa “oferta” molda a “demanda”, ou seja, aprofunda o descrédito da instituição legislativa, que afugenta possíveis bons candidatos e assim por diante, num círculo vicioso cujo fim não está à vista.

As deformações do sistema político-institucional têm sido amplamente discutidas, sem que apareçam lideranças lúcidas, dispostas a agarrar pela unha o touro da reforma política. Sabemos que o sistema presidencialista de governo é ruim mesmo onde haja partidos políticos; onde não os há, como é o nosso caso, é péssimo. Associado a contínuas rixas entre os Três Poderes, na contramão do que a Constituição estipula, não há como visualizar um panorama diferente desse que Brasília nos oferece dia sim, outro também.

Contudo, para avaliar a hipótese da descida aos infernos, como ocorreu na Argentina, é preciso repisar o óbvio: somos uma das sociedades mais desiguais do planeta. Uma minoria inferior a 10% açambarca metade da riqueza nacional e não assume o que deveria ser sua cota de responsabilidade na arrumação do País. Na parte inferior da pirâmide social, podemos dizer sem medo de errar que 30% dos cidadãos são incapazes de transmitir num simples bilhete o que tenham ouvido pelo telefone. São infracidadãos. Na última eleição municipal, o alto índice de abstenção resultou deste conjunto de elementos: candidaturas em sua maioria inexpressivas, ausência de propostas realistas para a melhoria da vida nas cidades, desânimo geral.

Sendo a realidade o que acima resumidamente se expôs, nada há a estranhar no desinteresse generalizado pela atividade política. Menos ainda quando se considera que a pequena parte capacitada da elite não tem sabido como motivar os eleitores e reverter tais tendências. Menos ainda a estranhar que o desinteresse se agudize entre os jovens, se a eles não se oferece o que mais lhes interessa: um mínimo de esperança. Esta, outrora, se consubstanciava nas ideologias, hoje moribundas, fato que só não enxergam os que não querem enxergar, ou que se valem de mitos ideológicos a fim de organizar partidos de araque, através dos quais assegurem acesso ao erário, a empregos públicos e prebendas, que são seus meios de vida.

Mas, exultai, uma luz começou a reluzir no fim do túnel. Ainda Estou Aqui, o já celebrado filme de Walter Salles, despertou os corações e mentes, notadamente no seio da juventude. Mostrou que os cidadãos, de todas as idades, não viraram as costas à vida pública. Desde que verdades relevantes lhes sejam ditas, com franqueza, clareza e competência, seus corações despertam. O filme vai fundo num dos episódios mais macabros do período dos governos militares, o desaparecimento do deputado Rubens Paiva, narrado em livro por seu filho Marcelo Rubens Paiva. Esse fato não ocorreu na pré-história, ocorreu algumas décadas atrás, mas só agora chega com toda a sua força dramática aos jovens, seja porque a informação lhes tenha sido sonegada, seja porque só agora surgiu um grupo de artistas com competência para relatá-lo como deve ser relatado: em sua simples verdade.

O êxito do trabalho de Walter Salles suscita uma questão muito mais ampla. Nós, brasileiros, não conhecemos nossa história. Não a conhecemos em seus momentos horrendos, que foram muitos, nem nos relativamente promissores, que foram poucos e curtos, mas existiram.

Essa constatação permitenos ousar mais um pouco, ampliando esta reflexão: por maior que seja o descrédito das instituições, por mais generalizadas e cruéis que sejam nossas desigualdades sociais, é possível enfrentá-las com esta arma simples: a oferta de verdades relevantes.

A mudança de atitude sugerida no parágrafo anterior vai muito além do sempre desejável adensamento da cidadania. Diz respeito à prevenção da grave crise que já nos espreita. Sabemos todos que um ajuste fiscal sério é a condição sine qua non para a retomada do desenvolvimento econômico e social. Mas a bússola pela qual se pretende orientar o País é ainda a polarização idiota que temos vivido desde 2016. 


Eles, os torturadores de Rubens Paiva, AINDA ESTÃO AQUI, e nunca foram punidos - Chico Otávio (PlatôBr)

 REPORTAGEM 

Caso Rubens Paiva: processo ainda está aqui (e com Alexandre de Moraes)

Revisitado nos cinemas em "Ainda estou aqui", caso da morte do ex-deputado pode ser reaberto por decisão do mesmo ministro do STF que toca o inquérito da tentativa de golpe. Agentes da ditadura, dois acusados estão vivos

Ilustração com ministro do STF, Alexandre de Moraes, o ex-deputado federal Rubens Paiva.


Como o Centro de Informações do Exército (CIE) dispensava formalidades, como bater continência para um oficial superior, o então capitão Paulo Malhães foi direto ao ponto, ao entrar: “Podem escavar e dragar o país inteiro que não irão achá-lo”. Dois anos depois da morte do ex-deputado Rubens Paiva durante sessão de tortura na carceragem do Destacamento de Operações de Informações do Exército, o DOI, no Rio de Janeiro, entre os dias 20 e 22 de janeiro de 1971, Malhães garantiu aos seus comandantes que a missão de desaparecer com os restos mortais da vítima para sempre, sem deixar rastros, estava cumprida.

Desde 2014, ano em que Malhães revelou o episódio a este repórter, o Ministério Público Federal (MPF) trava uma queda de braço com os advogados dos acusados para reabrir o caso e punir os responsáveis. Até aqui, a defesa tem levado a melhor. Porém, no mês de lançamento do filme “Ainda estou aqui”, que conta o drama da víuva de Paiva, Eunice, após a morte do marido, o processo que corre no Supremo Tribunal Federal (STF) voltou a andar. E pelas mãos do ministro Alexandre de Moraes, relator do caso. Ele deu um despacho no dia 25 de novembro, abrindo vista à Procuradoria-Geral da República (PGR).

A medida, aparentemente de rotina, foi recebida com desconfiança pela defesa. Ao provocar a PGR no momento em que a morte de Rubens Paiva volta ao noticiário, o ministro estaria buscando um caminho para autorizar o prosseguimento da ação, trancada há dez anos por decisão do Superior Tribunal de Justiça (STJ). Em outra frente dessa guerra judicial, em parecer assinado no dia 21 de novembro, o procurador-geral da República, Paulo Gonet Branco, pediu a extinção de uma reclamação ajuizada pelos acusados no mesmo Supremo.

Pombo-correio
Ex-deputado, cassado após o golpe de 1964, Rubens Paiva foi preso em sua casa, no Leblon, Zona Sul do Rio, em 20 de janeiro de 1971, por agentes do Centro de Informações de Segurança da Aeronáutica (Cisa). Eles acreditavam que Paiva seria “pombo-correio” entre exilados políticos no Chile e militantes da luta armada no Brasil. Ao prendê-lo, esperavam chegar ao paradeiro do ex-capitão do Exército Carlos Lamarca, naquela altura considerado o inimigo número um do regime.

Eunice, a mulher de Paiva, e uma de suas filhas, Eliana, de apenas 15 anos, também foram detidas. O ex-deputado foi levado, no dia seguinte, para o cárcere do DOI na Rua Barão de Mesquita, na Tijuca, onde morreu na madrugada seguinte por não resistir a bárbaras sessões de tortura. Os torturadores, inicialmente, ocultaram o corpo no Alto da Boa Vista, e simularam uma fuga de Paiva do local. Em seguida, pelo temor de que a cova clandestina acabasse descoberta, transferiram os restos mortais para um ponto da Praia do Recreio dos Bandeirantes, Zona Oeste da capital fluminense.

A violência contra Paiva, um homem obeso e de meia idade, foi tão escancarada que os torturadores não se preocuparam em fechar a porta da sala, abafar os gritos do ex-deputado e ainda chamar um médico para examiná-lo, já moribundo. Por isso, não foi difícil para o Ministério Público Federal (MPF) chegar aos culpados.

Em 2014, ao cruzar depoimentos de militares da repressão e ex-presos com documentos do Exército e da comunidade de informações, o MPF decidiu denunciar o general reformado José Antônio Nogueira Belham, comandante do DOI em 1971, e o coronel reformado Rubens Paim Sampaio, ex-agente do Centro de Informações do Exército (CIE), por homicídio triplamente qualificado, ocultação de cadáver e associação criminosa armada. Já o coronel Raymundo Ronaldo Campos, oficial de plantão no DOI-I no dia 22 de janeiro, e os sargentos Jurandir e Jacy Ochsendorf e Souza foram acusados de fraude processual e associação criminosa armada.

A denúncia chegou a ser aceita pela 4ª Vara Federal do Rio de Janeiro, decisão ratificada pelo Tribunal Regional Federal da 2ª Região (TRF-2), mas não prosperou no Superior Tribunal de Justiça (STJ). A Corte preferiu acolher um habeas corpus ajuizado pela defesa dos acusados, que alegou a ilegitimidade da Justiça Federal para conduzir o processo - que caberia à Justiça Militar, segundo sustenta -, a incidência da Lei de Anistia no caso e a prescrição da pretensão punitiva.

Se dúvidas restavam sobre o papel dos militares no caso, o coronel reformado Paulo Malhães, o “doutor Pablo", codinome usado por ele na repressão, tratou de afastá-las ao revelar que recebeu em 1974 a missão de sumir com os restos mortais de Paiva. Seus comandantes no CIE temiam que a ossada do ex-deputado pudesse ser desenterrada no Recreio. Malhães disse que uma equipe de 15 homens, disfarçados de turistas, passou 15 dias abrindo buracos — as escavações eram feitas dentro de uma barraca — até encontrar o corpo ensacado.

Malhães disse que gostava de “montar teatrinhos” em suas ações e era sempre acionado para consertar as “cagadas” dos colegas da repressão. Ele garantiu que não teve dificuldade de escavar durante duas semanas sem que os frequentadores do local desconfiassem. Os agentes tomavam banho de sol e mergulhavam para expressar naturalidade. Não havia coordenada precisa sobre a localização do corpo, mas apenas pontos de referência. Para a operação, foram usadas duas barracas civis - uma destinada às escavações e outra, à logística. As refeições eram fornecidas pelo CIE, conferindo caráter oficial à missão.

O coronel reformado acrescentou que, do Recreio, a ossada seguiu de caminhão até o Iate Clube do Rio, em Botafogo, na Zona Sul, onde foi embarcada numa lancha e lançada no mar. Para o êxito da missão, a equipe estudou o movimento das correntes marinhas para saber o momento certo em que os restos mortais iriam para o oceano. No mês seguinte à entrevista a este repórter, Paulo Malhães foi assassinado em Nova Iguaçu, na Baixada Fluminense. As investigações atribuíram o crime ao ex-caseiro e a comparsas, em decorrência de desavenças com o patrão.

Acusados vivos
Dos cinco denunciados pelo MPF, restam vivos apenas o ex-comandante do DOI, general reformado José Antônio Nogueira Belham, e Jacy Ochsendorf e Souza, um dos militares envolvidos na montagem da falsa fuga.

Os procuradores da República, para formular a denúncia, ouviram 24 pessoas, colhendo mais de 30 horas de depoimentos. Um dos mais importantes foi prestado pelo coronel da reserva Armando Avólio Filho, que, na época, servia no Pelotão de Investigações Criminais da Polícia do Exército (PIC-PE). Ele contou que viu, por uma porta aberta, o ex-deputado sendo torturado pelo então tenente Antônio Carlos Hughes de Carvalho e levou o fato ao comandante do DOI, o então major Belham, no dia 21 de janeiro de 1971.

Um depoimento escrito, deixado pelo coronel Ronaldo José Baptista de Leão, ex-chefe do Pelotão de Investigações Criminais (PIC) do quartel da Rua Barão de Mesquita, confirmou a versão de Avólio. Já o coronel da reserva da PM Riscala Corbage, ex-interrogador do DOI, fez um relato inédito e detalhado sobre a tortura no destacamento, incluindo-se entre os carrascos.

Passeio pela Justiça
Além de trancar o processo no STJ, a defesa dos acusados ingressou com uma reclamação junto ao Supremo Tribunal Federal (STF), alegando suposta violação da autoridade da decisão proferida pelo Plenário na Corte nos autos da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) nº 153, que reconheceu a constitucionalidade da Lei de Anistia. O ministro Teori Zavascki, relator inicial da reclamação, deferiu a liminar a favor dos acusados em setembro de 2014.

A Procuradoria-Geral da República recorreu das duas decisões - o trancamento no STJ e a liminar no STF. Na época, foi autorizada pelo ministro Teori a ouvir as testemunhas mais importantes do caso, ainda que o processo estivesse trancado. Isso porque essas testemunhas tinham idade avançada e, caso a acusação vencesse a queda de braço com a defesa em algum momento, a instrução processual seria prejudicada.

Com a morte de Teori Zavascki em 2017, o acervo do ministro foi herdado por Alexandre de Moraes. Caberá a ele, como relator do Caso Rubens Paiva, decidir se arquiva a reclamação da defesa, pedido feito recentemente pelo procurador-geral Paulo Gonet. Mas a decisão importante ficará para o recurso extraordinário da PGR contra o trancamento da ação penal.

Moraes, que também é o responsável no STF pelo caso em que o ex-presidente Jair Bolsonaro e militares de alta patente são apontados como participantes de um plano para dar um golpe de Estado entre 2022 e 2023, sinalizou interesse no caso ao abrir vista ao Ministério Público Federal (MPF) no mesmo período em que o filme “Ainda estou aqui” enche as salas de exibição do país.

Procurado, o advogado dos acusados, Rodrigo Roca, disse que fica frustrado “como cidadão” ao constatar que até o cinema passou a funcionar como motor do Judiciário brasileiro. "O processo estava parado havia cerca de dez anos. Voltou a ser movimentado depois da première (do filme). A impressão que o país passa para o cenário internacional é que as agências públicas brasileiras só funcionam quando há alguém espiando", afirmou Roca.

"O cidadão deve ter muito cuidado com esses movimentos e essas produções providenciais. Não nos esqueçamos de que nos idos de 2006, as mesmas telas fizeram o mundo aplaudir a violência do Capitão Nascimento. E seguimos assim, como se o brasileiro precisasse sempre que um roteirista de humor instável - e gênio histérico - escrevesse o texto da sua próxima fala", prosseguiu o advogado.


sábado, 30 de novembro de 2024

Book by Hongshan Li: Fighting on the Cultural Front: U.S.-China Relations in the Cold War - Review by Zeno Leoni (H-Diplo)

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O Brasil na maior encruzilhada de sua história: pode-se escolher uma “nova ordem mundial”? - Paulo Roberto de Almeida

O Brasil na maior encruzilhada de sua história: pode-se escolher uma “nova ordem mundial”?

Paulo Roberto de Almeida

Ordens mundiais — não necessariamente universais, ou globais, mas simplesmente dominantes regionalmente — não estão livremente disponíveis nos supermercados da História, para que um Estado qualquer, como um cliente entrado para as compras, possa escolher a que melhor lhe agrada ou aquela que seja a mais adequada às suas conveniências peculiares. O mundo não funciona assim, com um leque aberto de ordens econômicas e politicas entre as quais o cliente-Estado possa se servir à vontade, ao melhor de suas opções.

Nunca existiu, até a comunidade de nações precariamente organizada em Bretton Woods e logo em seguida em San Francisco, uma “ordem global” tal como a existente desde 1945, formalmente agrupada nas instituições onusianas (e alguns derivativos temáticos ou regionais) e dispondo de certa legitimidade dada por tratados e acordos em princípio aceitos por todos os Estados contemporâneo. O membership da ONU compreende, com certa boa vontade, a quase universalidade de Estados (ou circunscrições aduaneiras) legitimamente reconhecidos entre si: são 193 Estados, mais alguns observadores (como a Palestina, por exemplo) e duas partes contratantes ao Gatt com status especiais de territórios aduaneiros: Hong Kong, por um lado, Taiwan, por outro. A FIFA supera largamente a “universalidade” da ONU, com 211 federações nacionais (embora algumas, presentes apenas por razões históricas, como Escócia e País de Gales, por exemplo).

Anteriormente à ONU, nenhuma organização multilateral — mais exatamente interestatal — podia aspirar a tal abrangência “global”, muito menos a Liga das Nações, sua precária e muito incompleta antecessora. Todas as “ordens mundiais” precedentes não passavam de impérios regionais com maior ou menor abrangência geográfica ou populacional. O mundo, na visão abrangente de um Arnold Toynbee, assistiu à dominação concorrente ou sucessiva de duas dezenas de grandes civilizações, várias organizadas no formato de impérios, das quais a maior e mais bem-sucedida teria sido a civilização ocidental (na perspectiva dos anos 1930, quando ele comecou a escrever os diversos volumes de seu monumental Estudo da História, isso parecia fazer sentido, pois que impérios europeus e o americano “mandavam” no resto do mundo, à exceção do império russo-soviético).

O Brasil, incorporado colonialmente ao grande império marítimo lusitano (apud Charles Boxer) durante três séculos, passou a fazer parte, de modo informal, na sua independência, dos impérios europeus e americano (este um pouco mais tarde), ou seja, pertencíamos, por destino, herança e escolha própria, à “civilização ocidental” toynbeeana, dominante no mundo, desde os Descobrimentos, passando por Westfália e o arranjo oligárquico de Viena, até a Liga das Nações (da qual nos afastamos atabalhoadamente  por caprichos do presidente Arthur Bernardes). Mas confirmamos nosso pertencimento à “civilização ocidental” desde Bretton Woods e San Francisco, mesmo quando insistíamos em afirmar nossa autonomia diplomática em face do arrogante Big Brother, representado pelo hegemon quase universal, o império americano do pós-Segunda Guerra Mundial.

A “ordem liberal ocidental” foi dominante enquanto o antigo Império do Meio — transmutado de República da China em República Popular, já na ONU desde 1972 — ainda atravessava seu declínio secular, desde os Qing até Deng Xiaoping, e enquanto o império soviético só era importante belicamente, em sua mediocridade econômica, financeira e política.

A plena inserção do Brasil na ordem liberal ocidental foi especialmente relevante, no plano diplomático, enquanto o mundo vivia a bipolaridade da “primeira” Guerra Fria, mesmo com um alinhamento onusiano mais próximo do que hoje se chama (equivocadamente) de Sul Global, ou do G77, do que dos votos e posturas do “núcleo duro” do bloco ocidental: EUA, Europa ocidental, G7, Ocde, Otan etc. Nunca tivemos de “escolher” uma outra “ordem mundial”, porque ela simplesmente inexistia, como proposta alternativa concreta. Nosso alinhamento autônomo à ordem economicamente, politicamente, culturalmente dominante do Ocidente foi confirmado mesmo nos momentos mais representativos de uma “politica externa independente”: a própria PEI, do início dos anos 1960, depois a partir do final dessa década, sem esse nome, mas, em tudo e por tudo, autônoma vis-à-vis os dois grandes blocos geopoliticos da segunda metade do século XX (até os anos 1990). Um “alinhamento ocidental” verdadeiramente independente, pois que nunca trocamos o status de observador pelo de membro do Movimento Não Alinhado, por exemplo. 

Tal consistência diplomática foi mantida durante toda a segunda metade do século XX, até que algo começou a mudar, na substância e na forma, com o advento da diplomacia partidária lulopetista, já neste século, quando Lula e o PT assumem o poder em 2003. Nos dois primeiros mandatos, a diplomacia foi apenas parcialmente partidária e alternativa, mas não havia nenhuma proposta de alguma outra “ordem global” sendo oferecida nos supermercados da História: a Rússia recém emergia da “maior catástrofe geopolítica do século XX” e a China, recém admitida no Gatt-OMC, ainda não tinha começado a flexionar os seus músculos econômicos, o que ela fez muito rapidamente a partir de então.

Lula e o PT, para não mencionar os diplomatas mais “autonomistas”, reforçaram as demandas por uma “reforma das instituições multilaterais da governança global”, com especial atenção para as de Bretton Woods, a OMC e, no coração da matéria, o Conselho de Segurança da ONU. Mas o conceito de “nova ordem global”, com o adjetivo multipolar agregado em seguida, não tinha sido ainda aventado de forma explícita nos primeiros três lustros do século. Ele passou a ser mencionado, primeiro de forma tímida ou ocasional, a partir da invasão e da anexação ilegais da península ucraniana da Crimeia (de fato historicamente russa, mas pertencente à jurisdição da República da Ucrânia desde 1991), por Putin, em fevereiro de 2014, numa aventura militar mais ousada do que suas incursões igualmente ilegais na Georgia e na Moldávia alguns anos antes.

Com a guerra de agressão de Putin contra a Ucrânia em fevereiro de 2022, o conceito se firmou, em declarações de Putin e de Xi Jinping, e rapidamente se tornou o princípio organizador de uma nova concepção de “ordem mundial”, ou global, com o apêndice “multipolar”, ele próprio uma recusa direta ou indireta da “ordem mundial ocidental”, agora expressamente recusada por suas tonalidades hegemônicas e, supostamente, por não ser verdadeiramente “democrática”.

Esta é pois a encruzilhada “existencial” para a qual o Brasil e sua política externa podem ter sido encaminhados, sem qualquer consulta mais ampla à nação, pela diplomacia partidária lulopetista, sem muita elaboração conceitual em torno de suas implicações mais relevantes para o pais por parte do corpo profissional do Itamaraty ou de outros setores da sociedade brasileira. 

O tema apresenta importância maior na vida da nação para merecer reflexões mais profundas sobre o significado e as consequências dessa “adesão” governamental — talvez apenas personalista — a um conceito e um projeto mal definido ou explicitado, sendo patrocinado abertamente por duas grandes potências que já se colocaram em oposição declarada à alegada “ordem liberal ocidental”, ainda dominante. Um exercício reflexivo sobre essa “adesão não oficial” (mas repetida de forma recorrente) deve começar a fazer parte das preocupações conceituais e pragmáticas daquela pequena tribo de pensadores engajados no terreno das relações internacionais do país e da própria diplomacia da nação.

Paulo Roberto de Almeida

Brasília, 30/11/2024

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Addendum:

Um comentário adicional, na sequência desta nota acima, postada neste mesmo blog Diplomatizzando: 

https://diplomatizzando.blogspot.com/2024/11/o-brasil-na-maior-encruzilhada-de-sua.html?m=1

Durante a maior parte do século XX o Brasil se considerou não exatamente como um participante ativo do bloco liderado pelos Estados Unidos, mas como integrante desse conceito maior que se chama civilização ocidental, mantendo sua autonomia decisória e plena independência diplomática nos confrontos geopolíticos interimperiais. 

Aparentemente, já adentrado o século XXI, certa diplomacia partidária e algum entusiasmo acadêmico, parecem conduzi-lo a um projeto indefinido e altamente questionável de “nova ordem global multipolar”, proposto por duas grandes autocracias, que contestam a ordem liberal ocidental em vigor desde o final da IIGM, e que pretendem claramente se colocar como alternativa não ocidental, e não democrática, a uma ordem bem mais identificada com os princípios e valores de nossa politica externa tradicional. Personalismo megalomaníaco explica parte dessa tendência diplomática insuficienteme debatida pela cidadania bem-informada; o resto é antiamericanismo primário de parte da academia.

Paulo Roberto de Almeida

Brasília, 30/11/2024


sexta-feira, 29 de novembro de 2024

DDB: Documentos Diplomáticos Brasileiros? - Uma possibilidade longinqua, ao que parece... Documentos Diplomáticos Suíços

DDB: Documentos Diplomáticos Brasileiros? - Uma possibilidade longinqua, ao que parece... Documentos Diplomáticos Suíços 

A diplomacia brasileira dispõe de um um Consultor Jurídico – o primeiro foi instituído pelo pai do Barão, o Visconde do Rio Branco –, mas nunca "sentiu necessidade" de dispor de um historiador oficial, ou seja, alguém encarregado de selecionar os documentos diplomáticos mais interessantes e de divulgá-los em prazos regulares.

Não temos, por exemplo, o equivalente do U.S. Foreign Relations series, volumes temáticos com documentos cronologicamente agrupados, mesmo confidenciais (depois de liberados), que servem ao público em geral, mas mais precisamente aos historiadores, como guias documentais em seu trabalho analítico e interpretativo. Sempre propus a criação de um cargo de Historiador Diplomático no Itamaraty, mas nunca fui ouvido.

Até o Reino do Marrocos possui um quadro estratégico das relações internacionais do país, preparado pelo seu instituto de pesquisas da área diplomática, que pode ser visto neste link: https://www.ires.ma/fr/publications/rapports-generaux/tableau-de-bord-strategique-evolution-du-positionnement-international-du-maroc-douzieme-edition

Abaixo, um exemplo interessante: a série da Suíça, liberada a cada 30 anos, ou seja, na desclassificação.

Paulo Roberto de Almeida


Biblioteca Digital da Funag: mais de mil livros disponíveis gratuitamente

A Biblioteca Digital da Fundação Alexandre de Gusmão tem, em seu estoque de livros disponíveis, 1033 obras, um volume continuamente alimentado por novos acréscimos:

 https://funag.gov.br/biblioteca-nova/todos/0

Fundação Alexandre de Gusmão (FUNAG) coloca à disposição do público obras relativas ao estudo dos grandes temas de interesse da política externa brasileira e das relações internacionais. As obras encontram-se em formato digital para download gratuito na biblioteca digital.


Bolsonaro nu - Editorial O Estado de S. Paulo

Bolsonaro nu

Editorial O Estado de S. Paulo, 28/11/2024

Ninguém precisava da PF para saber que Bolsonaro é golpista. Mas as investigações são úteis porque o despem de vez dos trapos retóricos com os quais ele tentou se travestir de democrata

O relatório final da Polícia Federal (PF) sobre a tentativa de golpe de Estado que teria sido urdida no seio do governo de Jair Bolsonaro para aferrá-lo ao poder decerto não surpreendeu quem acompanhou minimamente a vida pública do ex-presidente. Desde quando saiu do Exército em desonra, passando por uma frívola carreira parlamentar – que, se prestou para alguma coisa, foi para enriquecê-lo, além de sua família – até chegar à Presidência da República, Bolsonaro jamais traiu seu espírito golpista. De mau militar e mau deputado a mau presidente, foram quase 40 anos de exploração da insurreição e da infâmia como ativos políticos.

Este jornal, seguramente, não está surpreso com o que veio a público após o ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal (STF), levantar o sigilo sobre o referido relatório. Afinal, faz quase 25 anos que já sublinhávamos nesta página o vezo parasitário de Bolsonaro no Brasil pós-redemocratização, chamando-o pelo que é: um desqualificado que se serve das mesmas liberdades democráticas que sempre quis obliterar (ver o editorial Dejetos da democracia, 8/1/2000).

A rigor, ninguém precisava de um relatório policial de mais de 800 páginas para saber que Bolsonaro é um golpista inveterado. Quem já votou nele ao longo da vida pode alegar tudo, menos desconhecimento de sua índole destrutiva. Mas, para quem quiser, aí está o portentoso material reunido pela PF a encadear fatos e personagens com notável robustez, além de desnudar o espírito insurreto que jamais deixou de guiar o ex-presidente ao longo de sua trajetória.

Segundo a PF, Bolsonaro “planejou, atuou e teve domínio de forma direta e efetiva” das tramoias para impedir a posse do presidente Lula da Silva, o que teria incluído até um suposto plano para assassiná-lo, entre outras autoridades. E não só entre novembro e dezembro de 2022, mas durante todo o mandato – que, recorde-se, começou com a disseminação de mentiras sobre a suposta “fragilidade” das urnas eletrônicas. Ainda de acordo com a PF, essa desabrida campanha de desqualificação do sistema eleitoral já era parte do plano golpista de Bolsonaro para se insurgir contra um resultado nas urnas que não fosse a sua reeleição, contando que a desconfiança que semeou entre milhões de brasileiros poderia lhe ser útil no futuro.

É fundamental frisar que ainda se está em fase de inquérito policial. De modo que o contraditório e a ampla defesa só estarão plenamente garantidos aos 37 indiciados, como é próprio do Estado Democrático de Direito, mais à frente, vale dizer, se e quando a Procuradoria-Geral da República (i) oferecer denúncia contra eles, (ii) as acusações forem aceitas pelo STF e (iii) o caso, então, entrar na fase judicial propriamente dita. Entretanto, as eventuais provas que poderão ser apresentadas à Justiça pelo parquet, obviamente, serão decisivas apenas, por assim dizer, para o destino penal de Bolsonaro. Já sobre seu golpismo não há prova mais cabal de que se trata de um inimigo figadal da democracia do que seu próprio passado.

Nesse sentido, é estarrecedor ainda haver no seio de uma sociedade que se pretende livre e democrática quem admita a presença de alguém como Bolsonaro na vida política. Ou pior, que enxergue como “democrata”, “patriota”, “vítima do sistema” ou baboseira que o valha um sujeito de quinta categoria que já defendeu o fechamento do Congresso, lamentou o “baixo número” de concidadãos torturados e mortos nos porões da ditadura militar, pregou o fuzilamento do presidente Fernando Henrique Cardoso e trata adversários políticos como inimigos a serem eliminados, inclusive fisicamente. Ademais, Bolsonaro jamais desestimulou as manifestações de teor golpista realizadas em seu nome, como os acampamentos na frente de quartéis País afora. Tudo indica que não o fez para falsear um “clamor popular” pelo golpe e, assim, pressionar as Forças Armadas a apoiálo na intentona – o que, para o bem do Brasil, não ocorreu.

A Justiça, primeiro, e a História, depois, hão de ser implacáveis com Bolsonaro e todos os que flertaram com a destruição da democracia no Brasil.


Postagem em destaque

Livro Marxismo e Socialismo finalmente disponível - Paulo Roberto de Almeida

Meu mais recente livro – que não tem nada a ver com o governo atual ou com sua diplomacia esquizofrênica, já vou logo avisando – ficou final...