domingo, 20 de abril de 2025

A corrupção institucionalizada e normalizada dos cartões corporativos - Ricardo Bergamini

 Apenas transcrevo, a partir de Ricardo Bergamini. Não há necessidade de qualquer comentário: 

Desde sua criação em 2001, os catões corporativos sempre foram fontes primárias de corrupção e uso político, haja vista manchete ora em pauta - “As descobertas do TCU sobre gastos com cartão corporativo no governo Bolsonaro” - entretanto não houve nenhuma descoberta do TCU, tendo em vista que as informações sempre estiveram disponíveis no Portal da Transparência. O brasileiro é que não tem interesse em números, gráficos e tabelas.

 

Não há necessidade de auditoria, já que o desvio é obvio e ululante: de 2019/2021 o governo Bolsonaro gastou R$ 610,7 milhões (média/ano de R$ 203,6 milhões). Em 2022, com as eleições, o gasto foi de R$ 422,9 milhões, ou seja, o dobro da média/ano de 2019/2021. 

 

O populista Lula, dando continuidade a sua campanha para reeleição, manteve a despesa no mesmo patamar deixado por Bolsonaro de R$ 430,6 milhões em 2023, e de R$ 595,6 milhões em 2024.

 

Motociatas de Bolsonaro tiveram custo médio de R$ 100 mil cada... 

 

- Veja mais em https://noticias.uol.com.br/politica/ultimas-noticias/2023/01/23/motociatas-de-bolsonaro-tiveram-custo-medio-de-r-100-mil-cada.htm?cmpid=copiaecola

 

Quando era deputado federal, o ex- presidente Jair Bolsonaro (PSL) era um dos maiores críticos da falta de transparência dos petistas. Gastos nababescos bancados com dinheiro público eram denunciados com a ferocidade que se espera de um real representante da sociedade. Um exemplo claro: em 2008, durante discurso na bancada, Jair Bolsonaro, na época do PP, desafiou o PT a abrir as despesas com cartão corporativo do governo federal. Na época, havia eclodido o escândalo dos gastos com essa modalidade de pagamento, desencadeada após a imprensa, tão criticada hoje por Bolsonaro, descobrir que o cartão corporativo foi utilizado para custear mesas de sinuca, festas com bailarinas e até uma mera tapioca na praia.

 

Prezados Senhores

 

Resumo da posição dos malditos cartões corporativos em 2024.

 

1 – Portadores dos malditos cartões corporativo: 6.424 iluminados indicados pelo governante de plantão.

 

2 - Gastos totais com esses malditos cartões corporativos: R$ 595,6 milhões.

 

3 - Gastos apenas com a presidência da república foram de R$ 26,0 milhões, sendo 10.823 movimentações, com valor médio de R$ 2.405,85 por movimentação, tendo sido apenas 13 iluminados portadores desses cartões. Cabe lembrar que essas despesas da presidência da república, em sua grande maioria são sigilosas, contrariando decisão do STF.

 

4 - Em 2018, o governo Temer gastou R$ 244,8 milhões (média de R$ 20,4 milhões ao mês) em cartões corporativos. Em 2022, o governo Bolsonaro gastou R$ 422,9 milhões (média de R$ 35,2 milhões ao mês). Crescimento de 72,55%, em relação ao ano de 2018. 

 

5 – Em 2024, o governo Lula gastou R$ 595,6 milhões (média de R$ 49,6 milhões ao mês). Crescimento de 40,91% em relação ao ano de 3022.

 

Aos que desejarem conhecer a orgia ampla, geral e irrestrita, clique abaixo:

 

Estudo completo clique aqui http://www.portaltransparencia.gov.br/cartoesorgia

 

sábado, 19 de abril de 2025

Uma permanente obsessão com o desenvolvimento (do país e próprio) - Paulo Roberto de Almeida

Uma permanente obsessão com o desenvolvimento (do país e próprio)

Paulo Roberto de Almeida

        Até onde me lembro de minha infância, a imagem mais fugaz, já andando e aprendendo a me comunicar, é a de minha mãe me dando banho numa bacia, com água morna na caneca, numa casinha ainda sem reboco em algumas peças, sem chuveiro elétrico, telefone ou televisão (que só “chegaram” bem mais tarde) e até sem geladeira: havia um “armário” onde se colocava uma barra de gelo trazida por alguém de carrocinha. O chuveiro no começo era de água natural, daí a bacia providencial.

        Ou seja, nada de muito diferente de milhares, de milhões de outras famílias, no Brasil e no mundo, ainda hoje, mais de meio século depois da passagem da infância.

        Não havia livros ou revistas em casa, pois meus pais tinham apenas o primário incompleto, sendo os avós perfeitamente analfabetos. Minha “sorte” foi ter uma biblioteca infantil nas cercanias, uma quadra e meia, que passei a frequentar ainda antes de aprender a ler, na “tardia” idade de sete anos (eu calculo que “perdi” dois ou três anos de leituras, pois poderia ter começado mais cedo, se outras fossem as condições familiares).

        Mas depois que aprendi a ler, nunca mais parei, e devo a oportunidade à existência da Biblioteca Infantil Anne Frank, perto de minha casa, onde podia me refugiar todas as tardes enquanto não comecei a “trabalhar” (muito cedo mesmo). Mas mesmo trabalhando, conseguia retirar livros que eu lia na cama até que minha mãe apagasse a luz (não muito tarde).

        Acesso a livros e vontade própria foram as portas de meu ingresso no mundo das reflexões de porque alguns eram tão ricos e outros permaneciam pobres por largo tempo. Essa é a mais simples definição de toda uma vida voltada para o estudo das razões e requerimentos do progresso humano e social, uma obsessão que ainda não se extinguiu muitas décadas depois que comecei a pensar nas diferenças entre pessoas, comunidades e países.

        Minha trajetória não é muito diferente da de milhares, milhões de outras crianças e jovens saídos de uma pobreza ancestral — que nunca foi a de uma miséria estrutural, como em certos países ou mesmo em regiões do próprio Brasil — para uma lenta ascensão pelo estudo e pelo trabalho. 

        A diferença, talvez, seja a de que eu continuo me angustiando com a falta de progressos de concidadãos ou de outros povos e nações. No meu caso, e no de muitos outros, estudo e trabalho foram as molas propulsoras: elas não podem ser apenas externas, resultado da assistência pública, e sim inerentes a cada indivíduo e situação, mas algumas externalidades positivas precisam existir. Tive essa sorte, ou esforço, familiar e pessoal.

        Outros também precisam ter. Continuo focado nessa via. 

Paulo Roberto de Almeida 

Brasília, 19/04/2025


Da diversidade do mundo - Paulo Roberto de Almeida

Da diversidade do mundo

Paulo Roberto de Almeida

Que coisa! A Justiça de um país vizinho tem a ousadia de processar, condenar e prender, não um ou dois, mas cinco presidentes por atos de corrupção, incluindo familiares. 

A Odebrecht ingressou na nomenclatura internacional como “empresa modelo” na “arte” do suborno, não em um ou dois países, mas em uma extensa variedade geográfica de países, na AL, na África, até na Suíça imaginem!

Em alguns países, deu confusão política e judicial, em outros tudo passa em branco, inclusive coisas que nada têm a ver com ela, como, por exemplo, rachadinhas e rachadonas de políticos mequetrefes e familiares, que se constituíram um verdadeiro império imobiliário.

Em alguns países a coisa anda; em outros não, inclusive no país mais poderoso (ainda) do planeta, cujo presidente (duas vezes) é um trambiqueiro vulgar e um “serious sexual offender” (além de serviçal de um “evil empire”).

O mundo é mesmo é tão diverso política e judicialmente quanto sua fauna e sua flora. Algumas espécies sobrevivem e se expandem, inclusive predatoriamente, outras fenecem e acabam desaparecendo, como a honra, a honestidade e a Justiça.

Em algum momento, ou em vários, de nossa história, como em 1909-1910 e em 1919-1920, falhamos ao não conceder a suprema magistratura a um homem como Rui Barbosa, aliás um exilado forçado, na última década do século XIX, por ousar defender opositores de uma ditadura castrense (ah, os salvadores da pátria, sempre eles, várias vezes).

Certos países vivem entre a espada e a lei, e vão avançando vagarosamente, entre grandes e pequenas corrupções (com Justiça muito maleável).

O mundo é mesmo muito diverso na sua composição e nos valores.

Democracia, por exemplo, não depende apenas de instituições, e sim de algo mais fundamental, que se chama “mores”, ou a organização primária de um povo ou comunidade: algumas são governadas desde abaixo, outras são construídas a partir de acima. Isso explica em parte os percalços do desenvolvimento. 

Mesmo em certas situações autoritárias, os avanços de um determinado país dependem muito da energia e da resolução do seu povo, pois mais importantes do que abundância ou disposição de recursos  naturais ou capital financeiro, o mais importante mesmo é a qualidade do seu capital humano.

Paulo Roberto Almeida

Brasília, 19/04/2025


sexta-feira, 18 de abril de 2025

Tributo a Mario Vargas Llosa - Cato Institute

 Tributo a Mario Vargas Llosa 

Cato Institute

https://www.elcato.org/coleccion/tributo-mario-vargas-llosa?mc_cid=b18095b05d&mc_eid=19e757ffce

El connotado autor, ex candidato a la presidencia del Perú y un amigo del Cato Institute, Mario Vargas Llosa (1936-2025) fue nombrado ganador del Premio Nobel de Literatura. Al anunciar el premio, la Academia dijo haber elegido a Vargas Llosa por "su cartografía de las estructuras de poder y por sus incisivas imágenes de la resistencia, la rebelión y la derrota del individuo".

Aquí presentamos una colección de ensayos de Mario Vargas Llosa y de artículos y comentarios de académicos y pensadores liberales acerca del autor.

Ensayos, estudios y entrevistas

El liberalismo a fin de siglo: Desafíos y oportunidades

Mario Vargas Llosa
6 de Junio de 1998

Artículos y ensayos de otros

Mario Vargas Llosa, el gigante del liberalismo

Alberto Benegas Lynch (h)
10 de Julio de 2023

Mario Vargas Llosa: Una travesía intelectual

Julio H. Cole
21 de Octubre de 2010





O bispo que contestava: dom Angélico Sândalo Bernardino - Bernardo Mello Franco (O Globo)

 Citação do dia : "Cristo foi considerado subversivo e por isso foi crucificado" - Bispo dom Angélico Sândalo Bernardino, que faleceu na terça-feira aos 92 anos

... Em 1976, ele foi vigiado num encontro católico em Barueri, onde acusou a repressão de usar “métodos bárbaros” para “arrancar confissões”. Destemido, repetiria a denúncia numa igreja lotada após o assassinato do operário Manoel Fiel Filho. “Quem não está vendo Deus a falar da morte triste do metalúrgico? Como tantos outros, ele foi torturado”, pregou, antes de se referir ao DOI-Codi como “casa de horrores”. (Maurício David)

 

 

O bispo que contestava

Bernardo Mello Franco 

O Globo, sexta-feira, 18 de abril de 2025


Bispo irritou militares ao denunciar a tortura e apoiar movimentos por creches e moradia

 

Em novembro de 1978, a ditadura resolveu investigar um gibi. A repressão queria saber quem financiava “As Aventuras de Zé Marmita”. Distribuída na periferia de São Paulo, a revistinha narrava a rotina nas fábricas e incentivava os trabalhadores a lutarem por melhores condições de vida. Só podia ser coisa de dom Angélico, bispo tachado de subversivo e adversário do regime.

Na juventude, Angélico Sândalo Bernardino não sabia se queria ser padre ou jornalista. Resolveu o dilema ao unir as duas vocações, ajudando a Igreja a se comunicar com os fiéis. Antes de ser ordenado, ele já escrevia no Diário de Notícias, da diocese de Ribeirão Preto. Mais tarde comandaria as “rádios-cornetas”, com alto-falantes pendurados nos postes de favelas e ocupações.

Em 1969, o religioso foi alvo da primeira perseguição. A polícia quis prendê-lo por suposta ligação com a luta armada. A Igreja saiu em defesa do padre, e a Justiça Militar arquivou o caso por falta de provas. Dois anos depois, dom Angélico foi fichado como “elemento reconhecidamente esquerdista”, envolvido em “atividades subversivas”. “O epigrafado vem transformando o Diário de Notícias num autêntico órgão de contestação revolucionária, semeando intrigas e mentiras contra as autoridades”, esbravejaram os arapongas.

Além de ler os artigos de jornal, os militares se infiltravam nas missas para ouvir os sermões. Em 1974, um informe do II Exército relatou que ele “fez severas críticas ao governo, a quem acusou de culpado pela falta de gêneros, pelo aumento do custo de vida e pelas longas filas do INPS”. “Cristo foi considerado subversivo e por isso foi crucificado”, acrescentou o religioso, para a ira dos espiões disfarçados entre os fiéis.

Em 1976, ele foi vigiado num encontro católico em Barueri, onde acusou a repressão de usar “métodos bárbaros” para “arrancar confissões”. Destemido, repetiria a denúncia numa igreja lotada após o assassinato do operário Manoel Fiel Filho. “Quem não está vendo Deus a falar da morte triste do metalúrgico? Como tantos outros, ele foi torturado”, pregou, antes de se referir ao DOI-Codi como “casa de horrores”.

Incansável na defesa dos direitos humanos, o cardeal Paulo Evaristo Arns escalou dom Angélico como bispo auxiliar na Zona Leste. Ele passou a conviver com os órfãos do milagre brasileiro, que batalhavam pela sobrevivência em ruas sem asfalto e saneamento básico. O religioso abriu a igreja para os pobres, incentivou movimentos por creches e por moradia, usou sua voz para pressionar os poderosos.

Em 1977, quando um trem se chocou com um ônibus e matou 22 pessoas, ele ameaçou suspender a missa de domingo e se sentar nos trilhos para exigir cancelas de segurança. A RFFSA, que fazia corpo mole, teve que correr para instalar as barreiras.

Ao apoiar as greves do ABC, o bispo ficou amigo de um sindicalista que, muito tempo depois, subiria a rampa do Planalto. Em 2022, ele me disse que não se importava com patrulhas ideológicas. “A Igreja nunca teve partido político. Nós saíamos com o povo reivindicando creche, escola e hospital. Essa era a nossa subversão”, ironizou. “Nos chamavam de comunistas, mas só estávamos ao lado dos trabalhadores.”

Após cinco meses de investigações, a ditadura arquivou o caso do Zé Marmita. A Polícia Federal concluiu que não havia financiadores ocultos. O gibi da pastoral de dom Angélico era rodado “mediante doações em papel, impressão a preços menores e desenhos feitos por estudantes”. O bispo morreu nesta terça, aos 92 anos.

 


A globalização não vai morrer por causa de Trump - Celso Ming (O Estado de S. Paulo)

Ora, o declínio da globalização...

Celso Ming

O Estado de S. Paulo,  sexta-feira, 18 de abril de 2025

 

O tarifaço do presidente Donald Trump, acompanhado das suas iniciativas isolacionistas, levou alguns analistas a concluir que o processo de globalização está em inexorável retração.

É uma afirmação apressada e temerária, até porque a pretensão do governo dos Estados Unidos não é acabar com a globalização, mas impor mudanças numa economia de abrangência global.

A globalização não começou ontem. Quando Alexandre, o Grande, conquistou o Oriente Médio e a Ásia, por volta do ano 320 a.C., toda essa região foi, de alguma forma, helenizada, e as relações econômicas e culturais passaram a ser compartilhadas entre aqueles povos. Em toda parte se falava grego, como hoje se fala inglês, e construíram-se teatros onde eram encenadas as tragédias de Eurípedes, Ésquilo e Sófocles.

Resultados equiparáveis aconteceram ao longo do Império Romano, na Rota Chinesa da Seda, com a descoberta da imprensa, com as grandes navegações e na Revolução Industrial, que espalhou pelo mundo estradas de ferro, navegação a vapor, fábricas e o telégrafo. De lá para cá, o processo se aprofundou com a integração da produção e da distribuição, com a revolução das finanças internacionais, com a criação da internet e a disseminação dos computadores e, agora, com o uso da inteligência artificial.

Por aí já dá para desconfiar de que apenas quatro anos de presidência de Trump não serão suficientes para acabar com uma força histórica de milhares de anos – que acelerou o comércio e o desenvolvimento econômico.

Como o alvo imediato do tarifaço parece ser a China, não há de ser uma cultura multimilenar, que passou por tudo, e há muito aprendeu a esperar, que se agachará diante de uma musculatura que tem prazo previsível de validade.

Ledo engano do presidente Trump é o de querer trazer de volta a indústria que migrou para onde as condições de produção enfrentam custos mais baixos. Seria como querer que a água corra para cima. Além disso, em quase toda a parte, a indústria deixou de ser o principal motor de geração de renda nacional.

Sete décadas de protecionismo praticado no Brasil não melhoraram a competitividade da indústria nem contiveram seu declínio. E, assim, tenderá a ser globalmente. Atualmente, os serviços devem ultrapassar os 70% do PIB e o principal fator de riqueza passou a ser a tecnologia de ponta.

Ninguém tem, hoje, condições de prever como evoluirão as relações econômicas a partir do cavalo de pau imposto ao resto do mundo pelo presidente Trump. É provável que a própria dinâmica interna da economia dos Estados Unidos acabe por trazer de volta a racionalidade da organização produtiva. Também é provável que o sistema de pesos e de contrapesos inerente ao regime democrático se encarregue de esvaziar o atual surto totalitário do governo Trump.


A batalha da Maria Antonia, Documentario - Matheus Cosmo (Blog da Boitempo)

Essa batalha precede meu ingresso no curso de Ciências Sociais da USP, que seria, teocricamente, na Maria Antonia, mas que, em função dessa destruição, em outubro de 1968, mudou para a Cidade Universitária. Em outubro, eu estava fazendo vestinular para o curso, que já foi na Cidade Universitária; lembro-me de ter sido entrevistado pela Professora Ruth Cardoso e pelo Professor Sedi Hirano. Fui da primeira turma dos "barracões" da Cidade Universitária, mas fiquei pouco tempo. Assim que ingressei no primeiro semestre, no começo de 1969, os principais professores foram aposentados compulsoriamente pelo AI-5: Fernando Henrique Cardoso, Florestan Fernandes, Octavio Ianni. Como eu já militava na resistência à ditadura, mas a "minha" universidade era invadida pelo "meu" quartel (sim, também fazia serviço militar na época), e a repressão aumentou, acabei saindo do Brasil em 1970, para passar quase sete anos na Europa: refiz toda a graduação em Ciências Sociais na Universidade Livre de Bruxelas (1971-74), fiz um mestrado em Economia do Desenvolvimento (1975-76) e me inscrevi para um doutoramento na ULB, mas acabei postergando para voltar ao Brasil, quando ingressei na carreira diplomática (no final de 1977). Só terminei o doutoramento em 1984, já no meu segundo posto diplomático. 

Paulo Roberto de Almeida (18/04/2025)


“A batalha da rua Maria Antônia” ou sobre tudo que um incêndio e uma ditadura são capazes de destruir

 

"Ora, se poesia e arte são também um direito conquistado, também contra ele voltou-se a ditadura, esse efetivo golpe à nossa inteligência e à capacidade de imaginar saídas, alternativas e outros horizontes."


Por Matheus Cosmo

Blog da Boitempo, 17/04/2025 


Vazia. A porta da faculdade toda chamuscada e depredada. Houvera um incêndio. […] Não foi um incêndio, apenas. Foi alguma coisa como o calor da obstinação, da fé, da esperança. Foi o sinônimo da minha geração e daquela rua. […] O país era uma extensão de cada um de nós, e aquela ditadura – aquela humilhação – doía mais que o puro martírio, porque significava nossa impotência.
— Consuelo de Castro

Maria Antônia é um daqueles espaços marcados pela condição do exílio, de um exílio que já se constitui na dor da partida.
— Irene Cardoso

Pode ser difícil de imaginar à primeira vista, mas na experiência humana o passado é aquilo que mais muda com o correr do tempo. A revisão e a elaboração ininterruptas do que foi e do que poderia ter sido parecem constituir um objeto de investigação constante da experiência individual e coletiva. Nesse sentido, viver parece mesmo ser um constante rasgar-se e remendar-se, a fim de encontrar, produzir e formular outros e novos significados a partir da experiência vivida e dos indesejáveis bloqueios estabelecidos.

Talvez esse seja um bom modo de iniciar um texto a respeito da experiência histórica concernente ao ano de 1968 — essa espécie de instante mágico no qual, segundo Décio de Almeida Prado, muito se fez e se desfez1. Enquanto boa parte do mundo parecia abrir-se a uma revolução sexual e a um abalo generalizado das estruturas de vida e pensamento, herdadas de um já conhecido paradigma moderno, o Brasil parecia enclausurar-se entre a ideia de um milagre econômico e a atrocidade da violência generalizada que, principalmente a partir daquele mesmo ano, com a edição do decreto do AI-5, haveria de produzir ainda mais torturas, mortes e desaparecimentos em massa. Por isso mesmo, motivos não faltam para que o Estado brasileiro de fato formalize um pedido de desculpas às famílias e vítimas de sua ditadura militar. Macaé Evaristo, atual ministra do Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania, em cerimônia realizada em 24 de março deste ano, no Cemitério Dom Bosco, em Perus (o mesmo onde foram abertas valas clandestinas para o despejo das ossadas de vítimas do golpe), chegou a mencionar a necessidade de fazer enfim valer no Brasil o direito inalienável à verdade. E é na esteira dessa difícil busca por nos garantir a inauguração e manutenção do que não pode sequer ser negociado, além da produção de uma versão digna e coerente dos fatos históricos, levando em conta sua triste memória, suas manchas e contornos, que o espectador brasileiro ganhou um excelente registro nessa última semana: como um trabalho prático e bem-sucedido de rememoração e resistência, A batalha da rua Maria Antônia acaba de estrear em grande parte dos cinemas nacionais.

Dirigido por Vera Egito após 12 anos de constante idealização, entre escritas e reescritas do projeto, o longa-metragem a respeito do episódio homônimo ocorrido em São Paulo nos dias 2 e 3 de outubro de 1968 é formado por 21 quadros. Filmados em um intervalo de apenas duas semanas, produzem um inteligente e estruturado plano sequência, que tenta conduzir o olhar do espectador junto a um registro vivo que não cabe no enquadramento das cenas, transbordando-as enquanto matéria excedente de uma opressão que ainda não parece ter cessado em definitivo. A forma ininterrupta das cenas, sem cortes em cada um dos quadros, estabelece vínculos que são difíceis de descrever e mensurar, sendo interrompidos apenas pela ordem da necessidade de uma ruptura, de um corte que parece mesmo externo ao próprio funcionamento do material, levando o espectador a acompanhar uma contagem regressiva rumo a um estrago irreparável. O limite imposto ao país, que barrou sua inteligência e desenvolvimento do início da década de 1960, ganha agora formato estético, em película de 16mm, todo em preto e branco, firmando esteticamente a experiência de um país estrangulado pelos desmandos ditatoriais da violência policial.

 

Já de início, na própria configuração espacial do projeto cênico, o conflito fica inteiramente posto, marcado por apenas uma rua. A famigerada Maria Antônia, no centro de São Paulo, é segmentada em cada um dos lados das calçadas: à direita da tela, as letras na parede apontam que o CCC voltou; do outro lado, à esquerda, uma faixa assegura a tentativa de fundar e propagar um movimento revolucionário. Em outros termos, de um lado temos a Universidade Presbiterana Mackenzie e seu abrigo ao grupo paramilitar treinado para caçar comunistas. Traduzindo a fina flor da burguesia, com seus ternos, gravatas e seu sempre presente ódio a qualquer política de avanço dos trabalhadores e estudantes, o Mackenzie marcava a efetiva consolidação da revanche da província, dos pequenos proprietários, dos ratos de missa, das pudibundas, dos bacharéis em leis e etc., de acordo com a conhecida expressão de Roberto Schwarz2. Do outro lado da rua, os estudantes da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da Universidade de São Paulo, tentando arrecadar fundos para a realização do XXX Congresso da UNE, em Ibiúna, pedindo contribuições nas esquinas. Após a Batalha, ocorrida naquele mês de outubro de 1968, a Faculdade (em boa medida desmembrada em suas disciplinas) seria realocada na Cidade Universitária, no bairro do Butantã, em um dito prédio provisório que permanece o oficial até a atualidade.

O estilo inusitado e irreverente das personagens da Faculdade de Filosofia dá o tom do que poderia ser uma revolução nos costumes da sociedade brasileira, com seus cigarros, jaquetas e botões abertos nas blusas, em oposição aos terninhos engomados que produzem toda a caretice do lado direito. Um olhar em retrospectiva poderia afirmar, contudo, que ao menos parcialmente, com o esvaziamento de suas pautas e demandas verdadeiras, um tanto desta tal revolução chegou mesmo a se solidificar, abrindo as portas do que pode ser considerado como um pós-modernismo à brasileira: a completa estetização da desgraça e da desordem, revelada a partir de seu esvaziamento e da pura apresentação como mercadoria. Desse processo, nem a arte, nem a arquitetura, nem a educação puderam fugir. Por esse motivo, também a diretora e a equipe de produção do filme tiveram de buscar outra locação para realizar suas gravações: é que, passados tantos anos, o lixo comercial que hoje inunda a rua Maria Antônia em São Paulo, com seus bares, academias e luzes de Led, nem sequer deixa entrever a história que reside em suas paredes e calçadas.

Ao longo de 85 minutos, os atravessamentos cênicos são diversos, de toda ordem, e apenas ganham outros e novos contornos a cada cena: o que termina com o incêndio de todo um prédio — ato que concretizava também o projeto de expulsão de uma forma de vida e pensamento do centro de São Paulo para os confins da Cidade Universitária, na Zona Oeste — parece iniciar-se também como uma preocupação aparentemente legítima de parte do corpo docente em relação aos estudantes: “A aula é a última coisa que importa para eles”, lamenta Leda, professora, interpretada por Gabriela Carneiro da Cunha, para quem “Aristóteles é Aristóteles: não importa muito o tempo em que a gente está”. A fala da docente, que será agredida nos minutos finais do longa-metragem, abre um difícil dilema que há tempos edifica a prática de trabalho de qualquer professor minimamente atento e engajado: de que modo conjugar os conteúdos objetivos, da aparente formação intelectual de um sujeito, com a urgência das lutas e demandas práticas da vida? Até que ponto a segunda já funciona como a maior de todas as matérias, garantindo um ensinamento e uma aplicabilidade que se constrói junto à vida de cada um? Ora, por acaso existe vida e pensamento fora de uma realidade social? Afinal, como se forma um filósofo em uma época de horizontes bloqueados? Por que — e para que — se estuda filosofia?

Quantas seriam as lições que ainda teríamos de aprender com Paulo Freire, esse ídolo e amálgama do ódio direitista, sempre excludente, altamente classista? Quantos sentidos e funções cabem na palavra estudante, chamados de vagabundos a céu aberto, no meio das ruas? Em sala de aula, quais e quantos são os sentidos que um estudo apurado acerca da definição de tragédia pode ainda assumir antes de revelar-se como pura farsa antidemocrática? “Nem sempre dá pra fugir da confusão”, exclama Ângela, personagem central da trama, interpretada por Isamara Castilho. Daí a necessidade da escolha: afinal, em 1968, deve-se preparar uma aula sobre Aristóteles, Pitágoras ou sobre a democracia? A resposta, para além das predileções individuais de cada docente, traduz o engajamento da própria universidade e o nível da responsabilidade intelectual que ela é capaz de abarcar para si mesma, no processo de formação de um novo sujeito político.

A composição imagética dos quadros cênicos possui forte potência também naquilo que não diz verbalmente, mas que se mostra e enuncia na leitura a partir do cruzamento entre as próprias imagens. O entrelaçar de informações que se dá entre uma professora explicando a definição aristotélica de tragédia, de acordo com a famosa Poética grega, e os cartazes colados nas paredes, em defesa do Congresso da UNE e da participação popular, de um movimento eficaz que unisse estudantes e trabalhadores, dá o tom da urgência de um momento em que a História se mostrava em seu real potencial de construção. Nos corredores, havia a percepção de que o prédio da Faculdade de Filosofia ficara pequeno demais para os sonhos e projetos de toda uma juventude revolucionária que, naquele momento, defendia sobretudo o direito às vagas excedentes, à ocupação do espaço público — projeto avesso a qualquer sistema ditatorial, de opressão. Quando o que predomina é a prática da violência e o ódio gratuito à liberdade, “é preciso preservar o nosso direito de escrever poesia”, exclama um docente, engajado em seu fazer cotidiano, o qual efetivamente só alcança seu verdadeiro sentido no enfrentamento entre a vivacidade e urgência das pautas e a prevista passividade das carteiras.

Ora, se poesia e arte são também um direito conquistado, também contra ele voltou-se a ditadura, esse efetivo golpe à nossa inteligência e à capacidade de imaginar saídas, alternativas e outros horizontes. Não à toa, em conversa dentro da sala que guarda a importante urna de votação da UNE, cuja sede fora igualmente incendiada já no ano de 1964, o conhecido episódio de espancamento dos atores e de depredação dos cenários da montagem de Roda Viva, de Chico Buarque, em julho daquele ano, no Teatro Ruth Escobar, aparece enquanto memória e lembrança, produzindo suas marcas. Certamente, o país que espanca seus intérpretes e que prende seus artistas outorga para si mesmo uma terrível identidade — identidade essa da qual ainda hoje recolhemos frutos, uma vez que também ela ainda está aqui.


Nesse interregno, não existe possibilidade alguma de isenção. “Quando a Sra. se envolver, vem falar comigo!”, diz à professora da unidade o então líder do movimento estudantil, interpretado pelo ator Caio Horowicz, que personifica um tanto da conhecida figura de José Dirceu. É a partir desta relação difusa e complementar entre professor e aluno que, no 16º dos quadros apresentados, uma imagem discreta tem força total: dois professores, Leda e Rubens, do alto do andar superior, murmuram entre si que, certamente, aquilo vai acabar mal. O olhar de cima para baixo, do alto da cátedra para o chão prático da luta, aponta para a distância que parte do corpo docente toma da batalha que se firma no avançar de cada quadro.

Em depoimento dado no ano de 1987, o professor e pesquisador Simão Mathias, presidente designado para organizar uma Comissão que se propusesse a averiguar as minúcias de todo o acontecimento em 1968, reconheceu que havia três grupos de professores em atividade naquele momento: “um grupo pequeno de professores reacionários, um grupo de professores de centro, que era moderado, e um grupo de professores que lutava pela verdadeira universidade”3 — porque não há universidade, verdadeira em seu propósito, sem o respectivo engajamento a favor da cidadania e da participação popular. Aqui, mesmo sabendo da distância e diferença de viver em outro país, como não se lembrar de um teórico como Adorno, por exemplo? Como não reverberar, na distância e no julgamento entre professores e alunos, algo similar aos gritos dos estudantes franceses exclamando que as estruturas não descem às ruas? O Brasil da Maria Antônia apresentava-se com toda a particularidade das disputas nacionais, mas certamente não constituía um caso de isolamento diante dos problemas basilares que se davam também em outros cantos do mundo. Seu desenvolvimento seria diverso mas não alheio ao dos outros países, para fazer valer uma expressão muito cara a toda a geração do Seminário de Marx, que também encontrou régua e compasso nos encontros, corredores e discussões de uma antiga Faculdade de Filosofia4.

Se a situação já não era passível de alguma angústia até aqui, mesclando todas as possibilidades que um horizonte de luta pode ou não abrir, na contagem regressiva da sequência dos quadros, é a partir do 15º deles que um nó na garganta toma conta dos espectadores. Como pode uma mesma e única câmera, em um incansável plano sequência, dar forma às atrocidades múltiplas do início de um incêndio? No primeiro dos muitos Molotovs lançados contra a USP, incendiando a parte superior do prédio, o espectador é forçado a fazer da lente da câmera seu próprio olhar, reconhecendo que muito lhe escapará, mas que também isso é parte da violência excedente de um regime que ultrapassou os limites de qualquer exercício de cidadania e dignidade. De certa forma, também o espectador é levado a vivenciar um tanto daquele ânimo que conduziu os estudantes em 1968 — aquele que, nas palavras de Consuelo de Castro, traduziu-se em um difícil questionamento: “O que fazer quando não há o que fazer?”5. A angústia que toma o espectador, em parte similar àquela que outrora fomentou a necessidade de engajamento na luta armada, na urgência por uma ação e resposta, como um ato desesperado que fosse também uma alternativa real às prisões, mortes e desaparecimentos vividos, parece agora embriagar-se com o licor da experiência da derrota que, como se sabe, deu o tom dos últimos anos. Naquele instante, em 1968, o mundo parecia estar em aberto, por vezes até sem a necessidade de mediações entre a urgência do ato e os processos desejados. A bandeira do Brasil, pendurada na entrada do prédio de Filosofia, parecia mesmo sinalizar um símbolo em disputa — e que era o equivalente a todo um país, no limite da análise. Todavia, quando o que existe de mais urgente é apagar o fogo e reparar o tamanho de um estrago que já teve início e que não parece cessar nem mesmo por um minuto — o ataque ao prédio de Filosofia durou cerca de 10 horas ininterruptas6 —, a formulação de novas alternativas, a instauração de um regime efetivamente democrático parece mesmo se tornar um exercício difícil de se pensar e constituir.

Em um depoimento de agosto de 1987, José Dirceu, então líder do Movimento Estudantil, reconhecia: “Maria Antônia foi uma realidade que só a força das armas conseguiu acabar”7. Talvez seja importante sinalizar que as armas usadas em 1968 já haviam sido parcialmente empregadas e prometidas em momentos anteriores da História, como quando em setembro daquele mesmo ano a intranquilidade reinou mais uma vez no prédio da Faculdade de Filosofia da USP diante da ameaça do lançamento de bombas, que não chegaram a ser encontradas. Ora, sem ter como negar ou fugir deste imbróglio, resta pensar: afinal, poderiam os estudantes lutar com as mesmas armas de seus oponentes? Com quais armas pode a educação lutar contra a polícia? Há algum parâmetro possível para se comparar as duas forças? Com quais armas podem — e devem, sempre — lutar os estudantes?

A câmera que foca no vidro quebrado do prédio de Filosofia marca os estilhaços de uma estrutura que não era apenas física, mas também de todo um projeto democrático, um dia marcado pelo MCP, pelo Teatro de Arena e pelo Cinema Novo, por exemplo. Um pouco de tudo isso se desfez com a destruição do prédio. Não se tratava apenas de destruir um prédio, mas de demolir todo um projeto civilizatório — que agora haveria de recuar para a emergência conservadora que edificou alguns caminhos até aqui. A contagem regressiva dos quadros em cena parece mesmo ser uma espécie de bomba relógio que, aos poucos, anuncia a progressão da ruína da inteligência nacional. Errado seria imaginar que o conflito apresentado se inicia com ovos pedras e se encerra no embate entre USP e Mackenzie. A verdade é que a Batalha da Maria Antônia foi um ataque pensado e estruturado para destruir a Faculdade de Filosofia, tal como já havia ocorrido com a sala do Grêmio do prédio em 1964 e 1967 (nas duas ocasiões, pichada com dizeres como “CCC voltou!”, “Fora o comunismo!” e afins).

“Ali [do lado da Mackenzie] não tem estudante, não”, lembra ao espectador uma das personagens, tentando explicar a gravidade dos acontecimentos e episódios a Lilian, que ganha corpo, voz e entendimento a partir da interpretação de Pamela Germano. Na contramão disso, a estudante que mora no prédio universitário, que o ocupa e o transforma em seu lar (a mesma que elucida os conflitos a Lilian), Maria Helena, interpretada por Julianna Gerais, dá indícios do que pode significar a universidade e a própria educação quando seu sentido é mesmo civilizatório e democrático, longe dos fantasmas e aberrações de grupos paramilitares. Talvez uma parte desse furor possa ter sido reencontrada em 2015, com a ocupação das escolas estaduais em São Paulo. Todavia, também nos anos mais recentes, a resposta do Estado ainda seguiu exatamente a mesma: à tentativa de integração e redação de um projeto civilizatório, a polícia logo responde com suas armas, escudos e cavalos — e, no caso da Batalha da Maria Antônia, posicionando-se ainda em defesa do Mackenzie e dos interesses privados, a despeito da coisa pública, atendendo exclusivamente ao chamado da então reitora Esther Figueiredo Ferraz. Ao que parece, não há modo mais transparente de o Estado dizer de que lado efetivamente está.


“Eu sou professora” é uma frase que nem sequer consegue ser terminada, dada a brutalidade da resposta, que vem na forma de um soco policial. À imagem, difícil de ver e de assistir, logo segue outra agressão, dessa vez a uma estudante, lançada contra a parede e arrastada pelos cabelos. Que tipo de país produzimos quando permitimos a agressão a estudantes e professores? Que projeto civilizatório pode existir quando o saber é substituído por balas que atravessam a cabeça de um estudante secundarista, morto na calçada em frente ao prédio nos minutos finais do longa-metragem, em memória de José Guimarães? E como não se lembrar também de Edson Luís e de tantos outros estudantes e professores — todos mortos, desaparecidos, torturados? Nada mais triste e desconfortante que ouvir a voz de uma estudante cantando “Roda viva” e perceber o som de seu timbre falhando em “A gente quer ter voz ativa”, enquanto a câmera percorre os corredores já cheios de feridas e de feridos.

A Maria Antônia seria, então, um retrato efetivo da potência de nossa manifestação e da cruel consequência proveniente desse ato? Como saber exatamente o que ali se encontrava em disputa diante da desproporcionalidade das ações? Como um ovo arremessado contra uma estudante pode gerar o incêndio de todo um prédio e a prisão de professores? Quantas muitas coisas perdemos nessa Batalha? Quantas outras também teriam desaparecido junto àquele Livro Branco sobre os acontecimentos da Rua Maria Antônia, relatório assinado por Antonio Candido, Carlos Alberto Barbosa Dantas, Carlos Lyra, Eunice Durhan e Ruth Cardoso, a responsável pelo registro da experiência destrutiva dos difíceis dias 2 e 3 de outubro de 1968, finalizado cerca de um mês após o ocorrido e abafado logo em seguida, sem a circulação imediata?

De todas as personagens da trama, talvez uma seja a mais emblemática: Vânia. Sempre ausente das cenas, desaparecida política da ditadura, membro do Movimento Estudantil, renegada pela própria família — que a tem como terrorista —, da personagem sobra apenas a circulação da mais importante mensagem, aprendida com nossos vizinhos: Hasta la victoria siempre!

Se na cena inicial um jovem ainda no Ensino Médio desejava conhecer mulheres mais livres e descoladas, o desenrolar das cenas permite que justamente essas tomem o centro de todo o filme. Seja no espancamento dos inimigos, seja na resistência em sala de aula ou ainda na mensagem deixada, que decerto faz ecoar, são as mulheres que executam as ações principais do filme, passando da resistência ao ato sexual, que agora também se mostra disforme, sem contornos, mesclando a satisfação e o desconforto, a preservação de si mesmo, princípio de uma pulsão sexual atuante, e a distorção da própria imagem. Se o amor fez uma revolução enquanto afeto em 1968, também a sua imagem sofreu distorções ao longo dos anos, cabendo também aqui às mulheres certo exemplo de luta e participação. Especialmente às mulheres negras, duas das atrizes principais, cujos contornos aparecem sempre relembrados nas menções, nas paredes e cartazes, aos Black Panthers.

Em um de seus depoimentos, o brilhante professor Paul Singer lembrou que a transferência da FFCL à Cidade Universitária encerrou um ciclo, cujo fim foi selado pela aposentadoria de Florestan Fernandes, José Arthur Giannotti, Octávio Ianni, Bento Prado Jr., dentre outros8. Com a aposentadoria compulsória de vários docentes, determinada em 1969, um ano após todo o conflito, decerto um modelo de trabalho e pensamento parecia encontrar seu limite, sem deixar entrever o que viria a partir daí, garantindo para muitos apenas o desemprego e o trabalho em outras profissões. Longe da ciência e da prática docente, distante dos debates e discussões efetivos acerca da realidade nacional9. Quantas outras coisas também se encerraram naquele curioso cruzamento com a Rua da Consolação ainda estão para ser analisadas, no desmonte frequente das universidades e nas condições precárias e insalubres do trabalho em sala de aula. Em respeito e em defesa de todas elas, A batalha da rua Maria Antônia, que já ganhou os prêmios de Melhor Filme na Première Brasil do Festival do Rio (2023), Melhor Longa-Metragem de Ficção (Escolha do Júri) no Festival de Atlanta (2024) e o Prêmio Especial do Júri no Panorama Coisas de Cinema (2024), move-se como um exercício de memória e resistência em um tempo de horizontes ainda bloqueados.


Notas

  1. PRADO, D. A. O teatro brasileiro moderno. São Paulo: Perspectiva, 1988. ↩︎
  2. SCHWARZ, R. “Cultura e política”. In: O pai de família e outros estudos. São Paulo: Companhia das Letras, 2008, p. 83. ↩︎
  3. MATHIAS, S. “Maria Antônia: um espírito para contagiar a universidade”. IN: SANTOS, M. C. L. Maria Antônia: uma rua na contramão. São Paulo: Nobel, 1988, p. 41. ↩︎
  4. SADER, E.; MORAES, J. Q.; GIANNOTTI, J. A.; SCHWARZ, R. Nós que amávamos tanto O Capital: leituras de Marx no Brasil. São Paulo: Boitempo, 2017. ↩︎
  5. CASTRO, C. “Réquiem para uma calça Lee”. IN: SANTOS, M. C. L. Maria Antônia: uma rua na contramão. São Paulo: Nobel, 1988, p. 93. ↩︎
  6. CARDOSO, I. “Maria Antonia: o edifício de nº 294”. IN: Para uma crítica do presente. 2. ed. São Paulo: Programa de Pós-Graduação em Sociologia da FFLCH-USP, Editora 34, 2013, p. 101. ↩︎
  7. SILVA, J. D. O. “Maria Antônia: rebeldia, inconformismo e verdade”. IN: SANTOS, M. C. L. Maria Antônia: uma rua na contramão. São Paulo: Nobel, 1988, p. 219. ↩︎
  8. SINGER, P. “Nos arredores da Maria Antônia”. IN: SANTOS, M. C. L. Maria Antônia: uma rua na contramão. São Paulo: Nobel, 1988, p. 87. ↩︎
  9. GIANOTTI, J. A. “Maria Antonia: uma certa geração da Faculdade de Filosofia. IN: SANTOS, M. C. L. Maria Antônia: uma rua na contramão. São Paulo: Nobel, 1988, p. 47-8. ↩︎

LEITURAS PARA SE APROFUNDAR NO TEMA


Lugar periférico, ideias modernas: aos intelectuais paulistas as batatas (1958-2000), de Fabio Mascaro Querido
Resultado da tese de livre-docência do autor, defendida em dezembro de 2022 na Unicamp, a obra analisa os intelectuais ligados à Universidade de São Paulo dos anos 1960 à década de 1990, revelando como a vertente “marxista acadêmica” exerceu significativa influência nos debates sobre a abertura democrática dos anos 1980 e na vida política brasileira nas décadas seguintes.

O autor examina como alguns personagens representaram simultaneamente o auge e o declínio do pensamento sobre a modernidade no país. Durante os anos 1970, em plena ditadura civil-militar, surgiram análises sofisticadas sobre as particularidades da sociedade brasileira, desafiando o desenvolvimentismo até então hegemônico na esquerda. No entanto, na década seguinte, com raras exceções, como a de Roberto Schwarz, observou-se um distanciamento dessas ideias por parte dos acadêmicos e uma aproximação destes com formulações universalistas, quer seja a visão de mundo neoliberal, que encontrará expressão no PSDB, ou a perspectiva classista, elaborada a partir da experiência do PT. O autor demonstra, assim, como a corrente intelectual da época moldou o pensamento sobre a democracia brasileira após a ditadura, bem como as mudanças e as divisões que ocorreram. Analisa esse importante capítulo da política, capaz de reinterpretar o passado e projetar futuros para o país.



Nós que amávamos tanto O capital, de Emir Sader, João Quartim de Moraes, José Arthur Giannotti e Roberto Schwarz
Relatos marcantes dos pioneiros dos Seminários Marx, que revolucionaram a leitura de Karl Marx no Brasil, revelando como a prática de leitura coletiva moldou a academia e a política. Um documento essencial sobre a história das ideias no país.

Moderno de nascença: figurações críticas do Brasil, organizado por Benjamin Abdala Jr. e Salete de Almeida Cara
Reunião de ensaios que buscam desvendar a formação do ideário nacional. Da simbologia jesuíta ao panorama contemporâneo, autores como Paulo Arantes, Antonio Candido, Roberto Schwarz, Francisco Alambert e Vinicius Dantas revelam as nuances da relação entre escrita e construção da identidade, questionando ilusões nacionalistas e expondo a complexidade cultural do Brasil.

Margem Esquerda #40 | Matéria brasileira
“A matéria nacional é nossa tarefa histórica.” Assim insiste nosso maior crítico literário marxista na entrevista que abre esta edição da Margem esquerda. Aos 84 anos, Roberto Schwarz é categórico: mesmo em um cenário de aguda desagregação social como o nosso – sepultados o desenvolvimentismo ingênuo e os sonhos de socialismo em um só país – a formação do Brasil segue sendo nosso problema fundamental, quase como uma “herança maldita”. Em conversa com Fabio Mascaro Querido, ele discute os rumos da tradição crítica brasileira na atualidade, e fala sobre aspectos pouco conhecidos de sua trajetória. O dossiê de capa aprofunda o mergulho nas contradições da “matéria brasileira” (para usar a expressão consagrada pelo crítico), em um conjunto de ensaios das novas gerações da teoria crítica. Reunido por Tiago Ferro, o quarteto investiga, retrabalha e testa alguns dos insights da obra schwarziana em confronto com a atualidade política do país.  


***
Matheus Cosmo é doutorando em Teoria Literária e Literatura Comparada pela Universidade de São Paulo. Mestre em Artes, também pela USP, possui pós-graduação acerca das relações entre psicanálise e cultura pelo Instituto ESPE. Atualmente, é professor da Rede SENAC em São Paulo.


"Ora, se poesia e arte são também um direito conquistado, também contra ele voltou-se a ditadura, esse efetivo golpe à nossa inteligência e à capacidade de imaginar saídas, alternativas e outros horizontes."

Publicado em 17/04/2025 



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