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sábado, 28 de maio de 2011

Politica Externa e Integracao: um questionario da Argentina (2007)

Mais um que permaneceu obscuro, pelas circunstâncias.
Vejamos se tem algo de útil ainda...

Política externa brasileira e integração sul-americana: um questionário da Argentina
Paulo Roberto de Almeida
Respostas a questionário colocado por estudante argentino de jornalismo.
Brasília, 6 de outubro de 2007

Passo grande parte do meu tempo “livre” – que já se pode imaginar não ser exatamente enorme – tentando responder a perguntas de estudantes, questões de todo o tipo, cor e sabor. São geralmente relativas à carreira diplomática – estudantes que dizem que sempre “tiveram o sonho” de um dia virem a ser diplomatas e que demonstram não estar minimamente preparados para sê-lo –, além de alguns “caras-de-pau” que estão obviamente à procura de alguém que lhes faça o trabalho escolar. Alguns têm a petulância de marcar hora de entrega: “o trabalho é urgente e eu tenho de terminar esta noite”. Suplicam o auxílio generoso de quem imaginam estar à disposição de estudantes desesperados (passavelmente preguiçosos ou, simplesmente, vagabundos).
Sou, em geral, paciente com os legitimamente curiosos – existem, de fato, jovens, ainda secundaristas, que “pretendem”, legitimamente, ser diplomatas – e bem menos leniente com os preguiçosos de nível universitário, que por vezes se deixam, entretanto, se enredar por aquela conversa anticapitalista ou antineoliberal de professores absolutamente incompetentes (e de má fé), que transferem a outros sua incapacidade de “provar” os “malefícios do neoliberalismo para o Brasil”. Geralmente não respondo a esse tipo de pedido de ajuda, mas fico refletindo sobre o quanto a universidade brasileira decaiu em termos relativos e absolutos nos últimos tempos.
Existe, no entanto, uma outra categoria de perguntadores oficiais, que são os jornalistas, alguns ainda estudantes, e que misturam ambas atividades nos seus questionamentos a mim: são mais os jornalistas aprendizes me escrevem, pois os profissionais geralmente telefonam já “em cima” de alguma matéria em curso. Dependendo do teor das perguntas e do próprio interesse que eu possa ter por elas, sou mais ou menos “telegráfico” em minhas respostas, ou então me dedico a elaborar comentários mais substanciosos sobre as questões colocadas.
Transcrevo abaixo um exemplo típico desse tipo de interação por e-mail, um “exchange” que me parece apresentar validade mais ampla do que a simples correspondência bilateral entre um perguntador e o escriba complacente. Fui mais elaborado nas respostas porque se tratava de um estrangeiro, razão pela qual minhas respostas talvez também interessem um círculo mais vasto de pessoas. Neste caso, foi um estudante de jornalismo da Argentina que, em 26 de agosto de 2007, me disse isto: “Le escribo porque estoy haciendo un trabajo para la Universidad sobre América del Sur.” Pois bem, talvez minhas respostas apresentem alguma validade nos planos histórico ou conceitual para outros interessados em questões sul-americanas, motivo pelo qual eu as transcrevo aqui.
Algum desses consultores em administração de tempo e negócios talvez me recomendasse começar a cobrar por assistência gratuita a estudantes carentes. Não creio que é o caso, mas preciso, de verdade, concentrar-me em tarefas mais urgentes. Em todo caso, compartilho algo do que aprendi ao longo de uma carreira de estudos e de muita leitura...

“Si puede responderme unas breves preguntas, me haría un gran favor. Desde ya muchas gracias.”
Questão 1:
¿Cuánto tiene que ver en la actual política exterior de Brasil el Barón de Río Branco?
Todos os “sucessores” do Barão – e todos os chanceleres gostariam de ser vistos como tal – procuram, sempre, colocar sua gestão na linha política do Barão, visto como o “pai fundador” da moderna diplomacia brasileira e como exemplo de equilíbrio e pragmatismo no tratamento dos grandes temas da agenda diplomática brasileira. O Barão converteu-se em modelo paradigmático de como deveria ser um diplomata brasileiro e de como deveria ser orientada a diplomacia prática do Brasil, em função dos seus interesses nacionais.
Neste sentido, o Barão converteu-se, alegoricamente falando, num superlativo conceitual, ou seja, sua imagem é mais importante do que sua contribuição efetiva para o estabelecimento de diretrizes para a diplomacia brasileira, hoje, tanto porque o mundo contemporâneo apresenta outros desafios do aqueles colocados, um século atrás, ao Barão do Rio Branco.
No plano mais geral das grandes diretrizes da diplomacia brasileira, ou sua “filosofia diplomática”, digamos assim, é óbvio que a diplomacia atual conserva uma “filiação genética” com idéias e princípios enunciados pelo Barão. No plano mais prático, porém, é óbvio que os atuais encarregados da diplomacia – e todos os “sucessores” do Barão ao longo do tempo – não vão ficar se perguntando o que faria o Barão em circunstâncias similares, não vão buscar nos registros históricos exemplos de precedentes eventualmente similares que os poderiam guiar no tratamento de uma determinada questão. Parece-me que eles buscam, mais exatamente, atuar em função de critérios essencialmente pragmáticos, submetidos às pressões do momento, ao lobby dos grupos de interesse que se movimentam junto à chancelaria (ou até a presidência da República), ou em função de sua própria “filosofia política”, em torno de uma questão concreta que se refere a interesses de grupos determinados, bem mais, talvez, do que em função dos interesses mais gerais do Brasil como nação.
Alguns princípios gerais, dos tempos do Barão – e não apenas formulados diretamente por ele –, continuam válidos ainda hoje, como podem ser, por exemplo: a busca de excelentes relações políticas e de cooperação ativa com os vizinhos sul-americanos; a manutenção de um equilíbrio nas relações com as grandes potências (Europa e EUA, basicamente); a afirmação da força do direito sobre o direito da força; a busca de soluções eminentemente pacíficas para controvérsias, mas apoiada, se necessário, em forças armadas apropriadas, tudo isso faz parte do que se pode chamar de “legado do Barão” que ainda hoje é observado no universo “mental” e na prática da diplomacia brasileira.
Mas, não creio, pessoalmente, que esses princípios gerais, ainda válidos, repito, constituam um “guia para a ação” em casos concretos que se apresentam, diariamente talvez, na agenda da diplomacia brasileira.
Em resumo, o Barão permanece como uma referência indispensável, quase um “mito” da diplomacia brasileira, mas é preciso relativizar seu papel do ponto de vista de uma agenda concreta de problemas diplomáticos do tempo presente. Sua maior validade, talvez, se situe, precisamente no âmbito sul-americano e nas relações com a Argentina. Cabe, a esse propósito, lembrar que foi o Barão quem propôs a primeira fórmula de um “pacto ABC”, uma associação estreita entre Argentina, Brasil e Chile, toda ela voltada para a cooperação, o desarme dos espíritos (e, talvez, o desarmamento ativo), a intensificação de laços de toda ordem, o que poderia prenunciar os esforços de integração dos tempos presentes.

Questão 2:
¿Es posible imaginar que el biocombustible de Brasil se llegue a complementar con el petróleo de Venezuela de una manera armónica?
Não haveria nenhuma objeção de princípio, seja no terreno técnico, seja no campo puramente econômico, para uma oposição entre combustíveis fósseis – como podem ser o petróleo, o carvão, o gás natural – e os chamados biocombustíveis – etanol, biodiesel e formas variadas de combustíveis verdes, ou renováveis. Todos eles podem ser complementares e inclusive serem integrados na mesma matriz energética, como de fato já ocorre no Brasil desde muito tempo, com a complementação da gasolina comum de petróleo por álcool de cana-de-açúcar, ou o puro combustível etanol, mais ainda com os atuais motores flex, que consomem indistintamente um ou outro combustível.
Muita da suposta oposição entre esses combustíveis foi criada de maneira totalmente superficial, e eu diria até de forma irresponsável, por alguns dirigentes políticos que pretendiam “protestar” contra o álcool a partir de milho, o que conduziria, supostamente, ao encarecimento dos produtos alimentares e até, hipoteticamente, à falta de alimentos. Não há, absolutamente, nenhum fundamento científico ou sequer econômico a esse tipo de afirmação, feita de maneira espetacular por Fidel Castro, por exemplo, condenando o álcool americano de milho, afirmação que foi depois repetida por alguns outros dirigentes na região.
Existe, obviamente, uma relação de mercado entre a utilização de fatores de produção e seu preço final, assim como existe uma relação de custo entre os diferentes insumos utilizados para a fabricação de álcool. O álcool de milho, por exemplo, é muito menos “produtivo” do que o equivalente de cana-de-açúcar, necessitando, portanto, de subsídios para ter um preço de mercado compatível com a possível oferta de álcool de cana-de-açúcar.
Tanto não existe oposição entre combustíveis fósseis e renováveis que a Venezuela já está importando etanol brasileiro, a partir da cana-açúcar, em quantidades crescentes.

Questão 3:
¿Es viable la Unión de Naciones Sudamericanas (UNASUR), mediante una futura y más profunda integración de la CAN con el Mercosur?
A integração da CAN com o Mercosul tem a ver, em princípio, com a liberalização comercial recíproca, o que vem sendo feito já, mediante diferentes acordos plurilaterais e bilaterais no âmbito da ALADI ou diretamente entre os países membros e os dois blocos. Não há nenhum impedimento a que essa integração avance a ponto de se constituir, no futuro, um bloco mais coeso, dotado eventualmente de uma tarifa externa comum, o que a rigor transformaria a região numa zona de livre comércio unificada e numa união aduaneira em consolidação.
Já a Unasur se constitui num projeto mais vasto de consulta e coordenação política, podendo avançar em outras áreas, como a integração física – obras de infra-estrutura para transportes, comunicações, energia, hidrovias –, para políticas coordenadas e integradas em outras áreas – como segurança, luta contra o narcotráfico, cooperação na preservação e exploração sustentável dos recursos da biodiversidade sul-americana – até para uma eventual moeda comum, se for o caso, no futuro.
As bases disso já foram lançadas na primeira reunião de chefes de Estado da América do Sul, a convite do então presidente Fernando Henrique Cardoso, em Brasília, em agosto e setembro de 2000. Depois disso, houve nova reunião de cúpula no Equador, em 2002, e finalmente a constituição da CASA, Comunidade Sul-Americana de Nações, em Cuzco, no Peru, em dezembro de 2004. A CASA fez uma reunião em Brasília, em 2006, e foi transformada em Unasul, na reunião de Isla Margarita, Venezuela, em janeiro de 2007.
Se ela é viável ou não, isso depende da capacidade dos países sul-americanos em transformar em realidade declarações presidenciais que até agora têm sido mais retóricas do que efetivas. O processo continua...

Paulo Roberto de Almeida
Brasília, 1 de setembro de 2007
Revisto: 6 de outubro de 2007

Universidade brasileira em 2007: mudou desde entao? - talvez, para pior...

Mais um do baú, que talvez tenha algumas ideias ainda válidas...

Presença da universidade no desenvolvimento brasileiro: uma perspectiva histórica
Contribuição de Paulo Roberto de Almeida
para a reunião preparatória ao simpósio:
Presença da Universidade no Desenvolvimento Brasileiro
(São Paulo: 3 de abril de 2007)
Feito em Brasília, 2 de abril de 2007

Introdução:
Atendendo ao convite da Pró-Reitoria de Cultura e Extensão Universitária e do Centro Interunidade de História da Ciência, ambos da USP, que promoverão o simpósio “Presença da Universidade no Desenvolvimento Brasileiro: uma perspectiva histórica”, em 2 e 3 de julho de 2007, apresento minhas reflexões sobre o papel da universidade no desenvolvimento nacional. Estamos aqui falando essencialmente da universidade pública e isto precisa ficar muito claro.
Os principais problemas da educação e do desenvolvimento nacional estão bem mais fora do que dentro da universidade pública, que funciona razoavelmente bem para os padrões falhos dos países em desenvolvimento. Mas, ela funciona cada vez mais mal para os padrões exigentes do estilo de desenvolvimento interdependente que temos hoje no âmbito do capitalismo global. Ela é autista, avessa à reforma, à competição e aos critérios de eficiência e se julga no direito de usufruir de recursos públicos sem prestar a devida conta à sociedade. Caminha para a decadência, ainda que a passos lentos, aliás, como o Brasil, em seu conjunto; pior, ela não está atenta a isso.
Tenho nítida consciência de que meus comentários, julgamentos e avaliações, tanto quanto minhas propostas e sugestões, serão recebidos com ceticismo, quando não com desconforto, pois que situando-se em posição crítica, ou possuindo espírito controverso, ao que normalmente se espera de um membro da academia, o que eu não sou, possuindo, portanto, alguma independência de opinião em relação aos assuntos interna corporis. Por fim, alerto, preliminarmente, que a maior parte de minhas críticas e sugestões se dirigem a objetivos fora da universidade – mas aos quais ela não pode ficar alheia –, uma vez que estamos falando da contribuição da universidade para o desenvolvimento nacional, não para o seu próprio desenvolvimento.

1. Consulta às origens: a universidade como formadora de mestres
O papel primordial da universidade sempre foi o da formação de mestres e pesquisadores, algo que no Brasil teve início tardiamente pela formação de quadros de elite para o Estado, sem que tivessem sido desenvolvidas as atividades formadoras básicas nos dois ciclos precedentes. Quando a universidade se instalou, ela o fez de forma superestrutural, cuidando basicamente do terceiro ciclo, sem olhar para os dois ciclos anteriores. Creio que o descomprometimento com os dois ciclos iniciais de estudo ainda continua a marcar a atitude geral da academia em relação ao problema educacional brasileiro, em que pese a atuação de alguns dos seus mestres renomados e atuantes nos diversos processos de reforma do ensino básico. A universidade brasileira deveria, a meu aviso, voltar bem mais os olhos para a realidade educacional brasileira como um todo.

2. O alheamento da universidade brasileira de sua função básica
Quer seja no que se refere à formação de quadros para os ciclos precedentes, quer seja no retorno à sociedade de suas atividades de pesquisa, financiadas com recursos da sociedade, a universidade brasileira tem deixado a desejar ao longo de sua existência consolidada. Embora a maior parte dos cursos “científicos” e “tecnológicos” isolados – que depois vieram a integrar a universidade – tenha se constituído tendo em vista o provimento de soluções e respostas práticas aos problemas colocados pelo mundo da agricultura e da indústria, a atenção prioritária da universidade esteve mais concentrada na própria universidade, não necessariamente numa agenda percebida de problemas nacionais básicos.
Pode-se argumentar que formação de professores nunca foi pensada como sendo a função básica da universidade brasileira, mas caberia aí reconhecer um desvio de origem, não um plano de trabalho que possua legitimidade social. O viés superestrutural fica mais uma vez evidente. Quanto à pesquisa, parece evidente, igualmente, seu alheamento do setor produtivo, ao lado de outros comportamentos ainda mais nefastos, como uma persistente cultura antipatentária e uma renitente, embora decrescente, postura antimercado.

3. Nem só de big science vive a universidade e nem sempre é disso que precisa o país
Se pensarmos em três nomes que parecem caracterizar a consciência aguda dos problemas brasileiros, José Bonifácio, Joaquim Nabuco e Monteiro Lobato, veremos que suas agendas respectivas de transformação do país – elevação dos padrões da mão-de-obra, via cessação do tráfico e da escravidão, promoção de uma colonização comprometida com a qualificação técnica da agricultura e da indústria e melhoria dos padrões educacionais e de saneamento da maioria da população – foram superficialmente integradas à agenda de trabalho das universidades. Mesmo intelectuais obcecados com a superação do atraso nacional, como Caio Prado Jr., por exemplo, tiveram em certa medida de exercer suas atividades à margem ou no alheamento da universidade.
Todos eles, de certa forma, não estavam pensando em converter o Brasil num êmulo dos principais países desenvolvidos em suas épocas respectivas, mas apenas em estabelecer as condições de base pelas quais esses países se tornaram desenvolvidos em mérito próprio.

4. Back to basics: para evitar o afundamento completo da educação brasileira
A educação brasileira vem sendo “afundada” devido a uma combinação involuntária de fatores perversos que ultrapassam a capacidade da universidade de corrigi-los, mas aos quais ela não deveria estar alheia, uma vez que a degradação do ensino básico vem se refletindo cada vez mais na mediocrização da graduação universitária, com possível contaminação dos cursos de pós.
Quando a universidade não se posiciona claramente contra deformações evidentes dos ciclos anteriores, ela contribui para essa deterioração geral dos padrões de ensino e pesquisa. Ao não reagir claramente contra regimes de cotas, contra a politização demagógica do primeiro ciclo e a corporativização do segundo – como refletidos, por exemplo, no ensino obrigatório de estudos afrobrasileiros e de espanhol e na reserva de mercado abusiva que se pretende dar a sociólogos desempregados e a filósofos em disponibilidade –, a universidade sanciona a tendência declinante da educação pré-graduada e com isso compromete a qualidade dos seus próprios cursos.

5. Uma “cadeia de montagem” de professores de português, matemáticas e ciências básicas
Se por milagre de uma combinação de políticas macroeconômicas virtuosas e de políticas setoriais focadas em externalidades positivas o Brasil despertasse para um ciclo de crescimento sustentado, o setor produtivo não poderia contar com quadros competentes na tarefa de elevar os padrões de produtividade a níveis de excelência. A carência educacional naquelas áreas que deveriam constituir o núcleo básico do ensino fundamental e médio é de tal forma gritante que seria impossível não pedir que a universidade se interesse pelo assunto.
O futuro do Brasil está sendo comprometido pelo “afundamento” dos fundamentos. Seria relevante que a universidade se interessasse por isto também: língua pátria, raciocínio matemático e conhecimentos científicos elementares fazem parte do funil vergonhoso que hoje restringe a população universitária a uma fração mínima da população total.

6. Competência, competição, administração técnica, avaliação independente e objetiva
A despeito de certos progressos, a universidade pública continua resistindo à meritocracia, à competição e à eficiência. Ela concede estabilidade no ponto de entrada, não como retribuição por serviços prestados ao longo do tempo, aferidos de modo objetivo. Ela premia a dedicação exclusiva, como ela se fosse o critério definidor da excelência na pesquisa, ou como se ela fosse de fato exclusiva. Ela tende a coibir a “osmose” com o setor privado, mas parece fechar os olhos à promiscuidade com grupos político-partidários ou com movimentos ditos sociais. Ela pretende à autonomia operacional, mas gostaria de dispor de orçamentos elásticos, cujo aprovisionamento fosse assegurado de maneira automática pelos poderes públicos. Ela aspira à eficiência na gestão, mas insiste em escolher os seus próprios dirigentes, numa espécie de conluio democratista que conspira contra a própria idéia de eficiência e de administração por resultados. Ela diz privilegiar o mérito e a competência individual, mas acaba deslizando para um socialismo de guilda, quando não resvalando num corporativismo exacerbado.
Com todos os desvios acumulados aoo longo dos anos, a universidade pública tornou-se parte do problema do desenvolvimento nacional, sem necessariamente apresentar-se como parte da solução desse problema. O problema básico do país não se situa na universidade pública, e sim no ciclo universal de ensino, mas ela não tem feito o suficiente para diagnosticar encaminhá-lo de forma satisfatória. Ela poderia dizer, por exemplo, que o sistema nacional de ensino requer um pouco menos de pedagogos no MEC e mais administradores nas escolas, sensatos, dotados de idéias simples como boa gestão e fixação de metas para os resultados escolares.

7. O estatismo está estrangulando a economia, with a little help from the university...
Independentemente do fomento à pesquisa, dos fundos setoriais e de todas as demandas por financiamento público às suas atividades, a universidade possui entranhado em seu DNA um estatismo secular e renitente, o que seria compreensível em vista o papel cumprido no passado em favor do desenvolvimento nacional pelo Estado brasileiro, se essa característica não tivesse, hoje, efeitos nefastos sobre o crescimento econômico.
Vários estudos empíricos já demonstraram a existência de uma correlação negativa entre os níveis de gastos governamentais e a taxa de crescimento econômico. As evidências são tão aplastantes que o tema não merece maiores desenvolvimentos a não ser a remissão à bibliografia pertinente. Bastaria agregar que a universidade, com as poucas exceções de alguns departamentos de economia, também tem falhado em demonstrar que o Estado brasileiro converteu-se de antigo promotor em atual obstrutor, de fato, do processo de desenvolvimento, aspecto geralmente negligenciado na maior parte dos estudos acadêmicos.
Das quatro condições gerais que podem facilitar, estimular ou permitir a manutenção de um ritmo de crescimento sustentado, base inquestionável de um processo de desenvolvimento econômico e social, com transformação tecnológica e redistribuição social de seus benefícios – que são, respectivamente, (a) uma macroeconomia estável; (b) uma microeconomia competitiva; (c) alta qualidade dos recursos humanos e (d) abertura ao comércio exterior e aos investimentos diretos estrangeiros –, a universidade pode atuar diretamente no bom desempenho das tarefas de formação e aperfeiçoamento dos recursos humanos, e secundariamente em todos os demais fatores. Não me parece que ela o venha fazendo de modo consistente, pelo menos não no ritmo e com a intensidade desejados.

Nunca é tarde para que a universidade retifique algumas tendências ao autismo acadêmico e participe de modo mais afirmado dos diagnósticos e soluções aos mais graves problemas brasileiros de desenvolvimento. Ela já o fez no passado, pelo menos de modo parcial, e pode certamente voltar a dar sua contribuição na presente fase de impasses e de lento estrangulamento do processo de crescimento econômico. Esperemos que ela o faça, para o seu próprio bem...

Paulo Roberto de Almeida
Brasília, 2 de abril de 2007

Mercosul em 2007: quatro anos depois mudou alguma coisa?

O texto abaixo, como no caso dos demais retirados do baú de esquecidos depois de muito tempo, foi escrito para responder a algumas perguntas de jornalista.
Como sempre, escrevo demais, e só se aproveita uma pequeníssima parte do que escrevi, permanecendo todo o resto inédito.
Como acredito que sempre existem ensinamentos a serem retirados de experiências importantes, como essa do Mercosul, e como acredito ter algo de relevante a dizer, retiro o pobrezinho do baú de esquecidos para divulgá-lo aqui para um público mais amplo...

Mercosul Revisitado
Paulo Roberto de Almeida
Questões colocadas por jornalista
Brasília, 30 de março de 2007

1) Em sua resenha do livro "Mercosul quinze anos" (São Paulo: Memorial da América Latina-Imprensa Oficial do Estado, 2007), o Sr. compara o Mercosul a um “aborrecente”. Caso ele esteja de fato condenado a ser um eterno adolescente, quais seriam as implicações para o Brasil no contexto de pai-fundador?
PRA: O Mercosul foi concebido com base numa declarada intenção política dos dirigentes máximos, os presidentes dos países membros, de aprofundar os laços de interdependência recíproca e de caminhar no sentido de ser estabelecido um espaço econômico comum, sem que talvez se levasse em conta as dificuldades de um processo de integração em meio às crises hiperinflacionárias e aos programas de estabilização macroeconômica que esses países enfrentaram desde os anos 1980 até o início da presente década.
Tanto na fase bilateral (1986-1990), Brasil-Argentina, quando o processo foi mais afirmadamente “dirigista” (com administração quantitativa do comércio bilateral e com protocolos setoriais negociados entre os dois países), como no âmbito do Mercosul (a partir de 1991), quando a orientação era bem mais livre-cambista, o Mercosul foi concebido para alcançar objetivos muito ambiciosos, que ainda não puderam ser cumpridos em função das dificuldades naturais dos processos de integração e também da instabilidade macroeconômica enfrentada por alguns de seus membros.
Nesse sentido, ele ainda precisa “crescer” bem mais e aprofundar os compromissos internos de desgravação e abertura recíproca e os projetos externos de maior inserção econômica e competitividade mundial. O Brasil, que se sente realmente responsável pelos destinos do Mercosul, atua por vezes de forma descoordenada, no plano interno, e de maneira contraditória aos objetivos integracionistas, uma vez que as diferentes burocracias setoriais – proteção ao consumidor, Receita Federal, órgãos normativos diversos etc. – nem sempre se pautam por essa perspectiva ao adotarem ou implementarem diferentes medidas de âmbito interno que podem eventualmente impactar de modo negativo a construção ou o reforço do Mercosul.

2) O Sr. elaborou sete teses sobre o processo de dificuldades que enfrenta o Mercosul. Em uma delas - Mimetismo indevido e foco em supostas assimetrias – e também em sua resenha no livro citado acima, o Sr. mostra que o Brasil é considerado (por quem?) de maneira equivocada como um país não-assimétrico ou “então o assimétrico absoluto, portanto encarregado de redimir os males existentes”. Tal redenção dos males existentes significa que o Brasil tem de contribuir com 70% dos US$ 100 milhões de obrigações não-reembolsáveis do Focem (Fundo de Correção de Assimetrias), mas só se beneficia com 10% dos projetos a serem financiados, majoritariamente voltados para o Paraguai e Uruguai (que aportam 3% do capital)? Por quê? Até quando?
PRA: Acredito que os demais sócios do Mercosul consideram que o Brasil, por ser o país mais avançado industrialmente, e também o maior em volume absoluto e relativo – maior massa territorial, maiores mercados em vista da população, maior volume de comércio interno e externo ao Mercosul, capacitação tecnológica etc. – deveria ser o país a “conceder” maiores vantagens aos demais, sem necessariamente exigir reciprocidade. Pode-se até imaginar que nosso país, em vista dessa dotação favorável de fatores primários, deva, efetivamente, fazer o maior esforço para concretizar a integração, mas esta é uma suposição política, não uma conclusão derivada dos dados da realidade. De todos os países, nossos indicadores sociais só conseguem ser melhores do que os do Paraguai, e em termos de assimetrias internas – desigualdades sociais e desequilíbrios regionais –, nosso país é certamente o campeão.
Por outro lado, as chamadas “assimetrias estruturais” decorrem de fatores muito poderosos, que atuam em nível de mercado, não sendo necessariamente corrigidas por iniciativas governamentais que atuam na superfície dos problemas. A experiência histórica indica que problemas econômicos estruturais são mais facilmente corrigidos quando se atua em sentido coincidente com os mercados do que tentando corrigir supostas “falhas de mercado” que expressam competitividades derivadas de especializações adquiridas ao longo do tempo, muito difíceis de serem alteradas por pequenos programas de financiamentos governamentais.

3) Talvez já terá respondido esta nas questões acima. Do contrário, quais os principais prós e contras para o Brasil como integrante do Mercosul?
PRA: Existem muitos argumentos a favor do Mercosul: ampliação dos mercados, economias de escala, modernização tecnológica derivada da competição ampliada, maior inserção econômica internacional – uma vez que a integração é uma espécie de mini-globalização – e outros elementos mais vinculados à cooperação política, cultural, tecnológica etc. Todos eles recomendam e determinam a abertura econômica e a liberalização comercial recíproca, a construção de empresas sólidas para atuar no plano mundial, a atração de investimentos externos, a futura conversibilidade das moedas nacionais (e até a eventual adoção de uma moeda única, num mercado verdadeiramente unificado), enfim, são inúmeros os elementos positivos num processo de integração. O Brasil certamente se beneficiou do Mercosul na última década e meia, com ampliação significativa do comércio regional e expansão de suas empresas para os países vizinhos.
Quanto aos possíveis elementos menos positivos, poderiam ser citados: o desvio de comércio – ao dar preferência a produtos vizinhos, eventualmente de menor qualidade e até mais caros do que os de terceiros países, mas protegidos pela eliminação da tarifa –, o desvio de investimentos – que pode não obedecer a critérios unicamente econômicos – e outros elementos ligados a uma possível introversão do processo – quando os países visam mais os mercados recíprocos, num jogo limitado à própria região, do que os terceiros mercados, mundiais. Eles podem ser minimizados, se os países membros adotam políticas comerciais e industriais de abertura e de inserção na economia mundial, mas há sempre o risco de comportamentos predatórios no próprio bloco de integração.
A solução para alguns desses problemas está num firme decisão política de se ater às regras do jogo, consolidando-as, se necessário, num arcabouço jurídico capaz de garantir essas regras contra comportamentos protecionistas dos membros, eventualmente por via de um tribunal autônomo de solução de controvérsias (entre países e também de acesso às empresas e particulares).
Um possível problema, para um país como o Brasil, é a perda de soberania – sobre as políticas econômicas e setoriais, por exemplo – que todo processo de integração implica, em última instância. Quando se decide caminhar para a integração é preciso saber aceitar essa perda de soberania, pois se trata de uma limitação à capacidade nacional de adotar regras em benefício dos agentes econômicos e sociais do próprio país. A dimensão integracionista passa a estar integrada ao processo decisório e de formulação e implementação de políticas nacionais.

Paulo Roberto de Almeida
Brasília, 30 de março de 2007

Irlanda e China em 2006 e agora...

Sempre na hora da saudade, e recuperando inéditos que tinham ficado para trás muito tempo.
Como antes, ver o que permanece válido e o que já se tornou perempto...

Irlanda e China como exemplos de desenvolvimento tecnológico
Paulo Roberto de Almeida
Respostas a questões colocadas por jornalista em 4 dezembro 2006
Brasília, 5 dezembro 2006

PERGUNTAS
- Nome, função de quem responde e breve resume
Paulo Roberto de Almeida, diplomata, professor universitário, doutor em ciências sociais e mestre em planejamento econômico. Ingressou na carreira diplomática em 1977 e exerceu funções em postos do exterior, como embaixadas em Washington e Paris e delegações em Genebra em Montevidéu.

- Desde quando esses países investem em inovação tecnológica?
China
A China tem uma longa tradição científica, que ficou em segundo plano na longa trajetória de declínio econômico a partir do século XVIII. Depois de dois séculos de conflitos internos e guerras contra inimigos regionais, ela voltou a se ocupar da capacitação de seus cientistas e engenheiros. Se o “grande salto para a frente”, dos anos 1958-1962, foi um desastre incomensurável em termos de avanço industrial – com milhões de mortos de fome, literalmente, devido à desorganização da produção agrícola e o desvio de recursos e energias humanas para a confeção de aço em siderúrgicas artesanais – os preparativos para a primeira explosão nuclear, ocorrida em 1964, revelam uma certa capacitação científica e tecnológica.
A despeito de atrasos enormes no desenvolvimento da tecnologia de aplicação industrial, devido à obsolescência do sistema comunista de incentivos, o regime chinês deu importância para a formação educacional do povo e para a formação de mão-de-obra especializada. Mas, o salto decisivo se dá mesmo a partir do abandono das “teorias” econômicas marxistas por Deng Xiao-ping, a partir do final dos anos 1970, e da reinserção da China na economia mundial, da qual ela ficou afastada durante boa parte do século XX. Essa reinserção se dá, numa primeira etapa através da delimitação de ZPEs, zonas de processamento de exportações, funcionando como enclaves e regimes tributário e fiscal privilegiados em algumas regiões da costa – sobretudo meridional – em favor de investimentos diretos estrangeiros. Numa segunda etapa, esse modelo se dissemina por várias regiões, com ampliação constante de seu escopo e abrangência geográfica.
O investimento em C&T torna-se sistemático e direcionado a partir daí, como necessidade de se alcançar os níveis ostentados pelos países mais avançados.

Irlanda
A Irlanda sempre foi um dos países mais atrasados da Europa, até meados do século XX, praticamente, quando ela começa a se inserir no “mainstream europeu”. Mas, mesmo tendo ingressado na então Comunidade Econômica Européia, no início dos anos 1970, a Irlanda continuou desfrutando de uma precária base educacional, científica e tecnológica. Foi necessário uma decisão nacional, consensual, em favor da educação e da reforma econômica para que a formação de quadros capacitados para a indústria moderna começasse realmente, no início e em meados dos anos 1980.

- Como esse processo começou?
Na China, a base dessa mudança foi o reconhecimento de que o país estava completamente defasado tecnologicamente em relação ao Ocidente e que ele deveria tentar colmatar a brecha abrindo-se a esses investimentos, inclusive da Hong-Kong capitalista. Na verdade, muito dos investimentos feitos eram da diáspora chinesa, classe empreendedora espalhada por todo o sudeste asiático, sendo que as multinacionais passaram a afluir com mais intensidade a partir do final dos anos 1980, quando as mudanças políticas na China confirmaram um novo padrão de relacionamento com o capital estrangeiro.
A inovação tecnológica na China é, assim, a combinação de IDE – que realiza transferências diretas e indiretas de tecnologia – e capacitação própria, sob a forma de engenheiros e técnicos formados pelas escolas médias e superiores e pelos laboratórios nacionais especializados. O grande esforço chinês foi o de aumentar gradativamente a qualidade do seu ensino em todos os níveis, enviando inclusive milhares de estudantes para pós-graduação no exterior.
Na Irlanda, houve uma espécie de “pacto nacional” a favor da educação, pari passu à introdução de importantes reformas macroeconômicas, sobretudo na área fiscal, tributária e setoriais (industrial e comercial). Basicamente o que se fez foi reduzir impostos sobre os lucros das empresas e sobre o trabalho, abaixar substancialmente todas as tarifas alfandegárias, logo equiparadas às da CEE-UE, e conceder tratamento fiscal privilegiado para o capital estrangeiro desejoso de trabalhar na Irlanda.

- Quais as estratégias usadas pelo governo desses 4 países para garantir o suprimento de engenheiros necessários para a modernização tecnológica no país?
China
Um aspecto relevante da modernização tecnológica da China tem a ver com os processo de cópia, imitação e adaptação (muitas vezes ilegais) de produtos e processos proprietários estrangeiros, como ocorre em todos os casos de modernização e de industrialização rápidos. A China copia todo e qualquer produto que tenha sucesso, e portanto mercado, que seja suscetível de produção em massa. Mas, para que isso ocorra, é preciso dispor de um número razoável de engenheiros capacitados, prontos a fazerem engenharia reversa, a fragmentar processos produtivos estrangeiros em tarefas suscetíveis de serem imitados com sucesso, e a introduzir pequenas inovações incrementais que garantam uma produtividade superior em relação ao estado da arte naquele setor ou ramo industrial.
Deve-se levar em conta, também, as vantagens comparativas da China em termos de mão-de-obra e seu custo de “produção”: um engenheiro chinês sempre será mais barato que seu contraparte ou equivalente no Ocidente desenvolvido, mas relativamente bem pago para os padrões locais, o que garantiu um suprimento adequado para as indústrias que estavam sendo criadas.

Irlanda
Com base em incentivos fiscais, para as empresas e para atividades inteiras – produção para exportação, por exemplo – a Irlanda conseguiu integrar a “produção” de engenheiros com os programas de treinamento das próprias empresas (nacionais e estrangeiras), que passaram a pagar pelo menos a metade dos impostos que elas eram obrigadas a pagar no resto da CEE-UE.

- Como foi feito o investimento para a promoção do ensino de ciências exatas nas escolas e universidades?
- Foram criados mais cursos de engenharia?
Desconheço detalhes desse processo, mas entendo que ele foi intenso e contínuo, tanto na China quanto na Irlanda. A Irlanda se abriu bem mais a técnicos estrangeiros, que passaram a trabalhar em seu próprio território – em especial a partir de investimentos feitos por irlandeses emigrados nos EUA décadas antes --, beneficiando-se, inclusive, da utilização da língua inglesa como base inquestionável de seu sucesso na integração com os mercados externos. A China passou a formar expressivo número de engenheiros e técnicos industriais nas suas escolas técnicas e universidades. Os laboratórios nacionais mobilizam números expressivos de trabalhadores especializados.

- Quais os resultados já obtidos nesses países ?
China
A China integrou-se definitivamente aos circuitos mundiais de produção manufatureira e integra-se também, cada vez mais, às correntes de produção científica e tecnológica. A partir das cópias não autorizadas, ela já está fabricando produtos inovadores dotados de suas próprias marcas, o que lhe permitirá evitar o pagamento de royalties pela cessão de know-how estrangeiro.

Irlanda
A Irlanda tornou-se um “tigre celta”, como muitas vezes se disse, na verdade uma plataforma de exportações extremamente competitiva, com base em isenções amplas de impostos e benefícios fiscais não contemplados pelos demais países membros da CEE-UE.

- Gostaria de acrescentar algo que não perguntamos?
Não creio que as experiências da Irlanda ou da China possam ser reproduzidas pelo Brasil, uma vez que elas se baseiam num coquetel único e historicamente original de transformações produtivas e inserção nas correntes de comércio internacional, mobilizado por cada um desses países segundo circunstâncias específicas a cada um deles.
Independentemente de outros aspectos, sobretudo os educacionais, a Irlanda poderia ser equiparada a uma imensa Suframa, isto é, um território aberto ao investimento estrangeiro, dispondo de um regime fiscal privilegiado, praticamente sem travas nas conexões comerciais externas. Esse modelo dificilmente poderia ser generalizado para o conjunto do Brasil.
Da mesma forma, a China representa um caso único de vantagens comparativas absolutas no terreno da mão-de-obra, o que atrai as companhias estrangeiras que necessitam obter maiores ganhos de competitividade com base nesse fator trabalho. Esse sistema tampouco pode ser reproduzido no Brasil, que dispõe de uma legislação trabalhista “francesa”, com inúmeras garantias aos trabalhadores e que seriam incompatíveis com o modelo chinês de “exploração” da mão-de-obra.
Mas, o que deve ser registrado como ensinamento para o Brasil é a importância de se ter a economia nacional intimamente conectada com os circuitos de bens, serviços, know-how e aportes tecnológicos estrangeiros, o que se obtém via comércio internacional. Abertura ao comércio e aos investimentos estrangeiros são essenciais para assegurar patamares mais elevados de capacitação tecnológica. Similarmente, uma boa base educacional é extremamente relevante na mobilização da mão-de-obra para servir a essas indústrias conectadas com o exterior.
Finalmente, regimes fiscais favoráveis, mas essencialmente carga tributária modesta, ademais de câmbio competitivo e estabilidade das regras macroeconômicas e setoriais ajudam enormemente na tarefa de atrair e reter investimentos estrangeiros. A Irlanda e a China foram muito mais dependentes do capital estrangeiro no passado do que elas o são atualmente, já tendo adquirido capacitação própria em vários setores, o que torna esses dois países em participantes plenos do jogo da interdependência capitalista que caracteriza atualmente a globalização.

Paulo Roberto de Almeida
Brasília, 5 dezembro 2006

Uma reflexão pessoal sobre as relações entre Estado e governo (em 2006 e agora)

Como no caso das postagens anteriores, se trata de uma recuperação de escritos do final de 2006, mas que contem ainda muita coisa válida, aliás permanente...

Uma reflexão pessoal sobre as relações entre Estado e governo
(que também pode ser lida como uma declaração de princípios)

Paulo Roberto de Almeida
(pralmeida@mac.com; www.pralmeida.org)
Em 2 de dezembro de 2006

As relações entre funcionários de carreira do Estado e os governos em vigor são sempre delicadas, uma vez que governos costumam solicitar adesões imediatas, em geral incondicionais, ao passo que Estados são entidades impessoais, aparentemente desprovidas de vontade própria, ainda que pautando-se por normas constitucionais mais ou menos permanentes. Os governos passam, o Estado fica, mas ele pode ser transformado pelo governo em vigor, se este último imprime uma ação de transformação estrutural das condições existentes ao início de seu mandato.
Funcionários de Estado devem ater-se, antes de mais nada, às normas constitucionais, tendo como diretrizes adicionais as leis gerais e os estatutos particulares que regem sua categoria ou profissão. Geralmente, mas nem sempre, os governos respeitam os estatutos próprios e os princípios que devem enquadrar as diferentes categorias de servidores do Estado, estabelecendo determinações que incidem mais sobre a conjuntura do que sobre a estrutura. Em alguns casos, governos pretendem não apenas transformar estruturalmente o Estado e a sociedade, mas também os regulamentos e as formas de atuação do Estado.
Desde que respaldado nas normas constitucionais em vigor e na vontade legítima da sociedade, tal como expressa pela via democrática das eleições, essa vontade transformista pode concorrer para a melhoria das condições de bem-estar da sociedade, pois se supõe que o governo encarna aquilo que em linguagem rousseauniana se chamaria “vontade geral”. A “vontade geral” é, contudo, algo tão difícil de ser definido quanto o chamado “interesse nacional”, suscetível de receber diferentes interpretações, tantas são as correntes políticas, os grupos sociais, os partidos em disputa pelo poder e outras configurações sociais que gravitam em torno do poder. Sim, antes de qualquer outra coisa, “vontade geral” e “interesse nacional” são basicamente definidos por quem detém o poder, não necessariamente em conclaves abertos ao conjunto da sociedade.
O moderno Estado democrático deveria ostentar um sistema de freios e contrapesos que impeça – ou pelo menos dificulte – sua manipulação por minorias partidárias que pretendem agir com base em “interesses peculiares” ou com base na “vontade particular” do grupo que ocasionalmente ocupa o governo. Tais são os papéis respectivos do parlamento e dos tribunais constitucionais, segundo o velho sistema do “equilíbrio de poderes”, ou segundo o moderno sistema – de inspiração anglo-saxã – dos checks and balances, que transformam toda vontade de alteração institucional um delicado jogo de pressões e contra-pressões. Há que se atentar, também, para a necessária continuidade da ação do Estado, que poderia ficar comprometida caso a ação de um grupo detendo o poder temporariamente – isto é, exercendo o governo de forma legítima – busque alterar radicalmente políticas e orientações estabelecidas através de consensos anteriormente alcançados.
Pode-se dizer que as democracias modernas funcionam quase sempre segundo essa visão gradualista, qual seja, a de uma custosa negociação entre os grupos políticos representados no parlamento, seguida de uma lenta implementação das decisões alcançadas. A construção de consensos é tipica dos regimes parlamentaristas, baseados numa maioria mais ampla do corpo político e social, mas é menos típica nos regimes puramente presidencialistas, onde tendem a se desenvolver comportamentos cesaristas ou bonapartistas (isto é, com um apelo direto às massas). Neste caso, o carisma do líder político pode resultar num canal de comunicação direta deste com os eleitores, por cima e acima dos demais poderes, que encontram dificuldades para participar do processo decisório em bases rotineiras.
Tal tipo de situação também pode colocar desafios não convencionais aos funcionários de Estado, que podem ser chamados a implementar decisões que resultem, não de um processo gradual de consensus building, mas de uma decisão solitária do líder cesarista. Velhas normas e antigas tradições podem ser contestadas ou postas à prova nesse novo roteiro, o que coloca esses funcionários ante o dilema de aderir simplesmente à vontade do governo ou buscar respaldo nas formas mais convencionais de atuação do Estado.
Não há uma resposta simples a esse dilema, pois ele implica em que o funcionário possa aferir se o processo decisório que conduziu a uma determinada tomada de decisão política está seguindo os canais institucionais consagrados ou se os novos procedimentos estão atropelando as normas e procedimentos do Estado. Em geral, a resposta é dada pela linha de menor resistência, que passa pela afirmação dos conhecidos princípios da hierarquia e da disciplina. Do funcionário de Estado se pede obediência aos ditames do governo, não necessariamente uma reflexão pessoal sobre os fundamentos da ação do governo. Esta última atitude é própria dos agentes políticos, não dos funcionários de carreira, aos se requer obediência e aquiescências às ordens e determinações superiores. A rigor, do funcionário não se pede reflexão, mas acatamento de decisão já tomada.
Quando o próprio funcionário é convertido em agente político, pode surgir algum conflito de consciência entre a antiga forma de procedimento coletivo – as burocracias estatais são sempre construções coletivas – e as novas condições de trabalho, que impõem adesão incontida e total ao poder do qual emana o seu novo cargo. Dele se espera, então, equilíbrio e ponderação na forma de conduzir sua ação.
Em que condições, nessas circunstâncias, pode o funcionário de Estado continuar a exibir independência de pensamento – e uma certa faculdade na propositura de novos cursos de ação – quando a autoridade legítima requer adesão pura e simples a decisões emanadas de uma fonte cesarista de poder? Não há respostas teóricas a esta questão, que exige uma reflexão de ordem essencialmente prática, em função das relações sociais, modos de atuação e poder de barganha respectivos dos agentes de Estado e de governo envolvidos num determinado processo decisório.
Minha própria ordem de prioridades tenderia a colocar esse processo decisório numa escala de preferências que vem da Nação, passa pelo Estado e desemboca no governo, mas tendo também a reconhecer que os dois primeiros conceitos – assim como os de “vontade geral” e de “interesse nacional” – são suficientemente vagos e arbitrários para abrigar todo tipo de postura em face de determinações governamentais. Em última instância tende a prevalecer o bom senso e uma certa capacidade de avaliação racional dos custos de oportunidade envolvidos em cada uma das decisões governamentais com que o funcionário de Estado possa ser confrontado.
Quero crer que a construção de um Estado “racional-legal” e a consolidação de uma democracia efetiva no Brasil já avançaram o suficiente como para permitir que funcionários de Estado como o que aqui escreve possa contribuir, de forma mais ou menos institucionalizada, para a tomada de decisões em sua esfera de atuação, independentemente de posturas mais ou menos marcadas pela vontade momentânea de alguma autoridade governamental. Ou estarei enganado?

Paulo Roberto de Almeida
Brasília, 2 de dezembro de 2006

Os BRICS, antes de existirem os BRICS (texto de novembro de 2006)

Claro, já se falava dos Brics desde 2001, ou 2002, logo em seguida a que o criador da sigla, um economista do Goldman Sachs, popularizou o acrônimo (que se destinava a oportunidades de ganhos em mercados financeiros, esclareçamos bem este ponto).
Mas eles não existiam como projeto diplomático, uma realidade que só começa a surgir em 2007 e 2008, para se concretizar em 2009.
Em todo caso, cabe apenas verificar o que mudou e o que se mantem nesta análise dos Brics antes dos Brics...

O papel dos BRICs na economia mundial
(corrigindo alguns equívocos de compreensão)
Paulo Roberto de Almeida
Brasília, 26 novembro 2006

Os BRICs
Muito se tem falado sobre os BRICs, um suposto grupo de países emergentes dinâmicos, composto pelo Brasil, Rússia, Índia e China, com perspectivas relevantes na futura economia mundial. Em vista, porém, das baixas taxas de crescimento econômico do Brasil, vários jornalistas têm retirado o Brasil desse grupo, convertendo-o em RICs, apenas.
A verdade, entretanto, é que esse BRIC não existe. Trata-se de uma construção arbitrária, que não se sustenta em nenhum arranjo político-diplomático, em nenhuma configuração efetiva internacional. É um exercício puramente intelectual de um banco de investimentos, o Goldman Sachs, que criou essa figura, sem justificativa em si, a não ser pelo peso específico de cada um desses países.
Com efeito, na maior parte do tempo, os supostos BRICs não interagem entre si, não atuam de forma coordenada para fins desse exercício feito pelo banco, que é a emergência econômica, como massa atômica específica, de cada um desses países na economia mundial. Ou seja, eles terão inevitavelmente um grande peso, inclusive o Brasil, que é pouco dinâmico, mas cada um por sua própria conta.
A rigor, há também a Indonésia, que está um pouco diminuída hoje, mas que vai voltar a crescer e emergir, não apenas na região da Ásia Pacífico. Há ainda a África do Sul, o México, todos grandes países que, somados à China, à Índia e ao Brasil, conformariam um G-11 ou G-13 da economia mundial.
Isso é relevante, em termos de coordenação da agenda econômica mundial, mas não há nenhum exercício político-diplomático de coordenação entre BRICs, ou RICs. Cada um tem uma forma específica de inserção na economia mundial. Cada um tem interesses nacionais, que não são necessariamente divergentes, mas não são coincidentes.
Não existe, sobretudo, para fins de qualquer classificação diplomática com respeito ao possível alinhamento desses BRICs na política mundial, uma natural identificação dos supostos integrantes desse grupo com os demais países em desenvolvimento ou com alguma diplomacia do Sul. Para todos os efeitos de inserção na economia mundial, a Rússia, a Índia e a China fazem parte do hemisfério norte, assim como, do ponto de vista estritamente político, a Rússia integra plenamente as estruturas de dominação e controle típicos dos países do hemisfério norte.
A Rússia é relevante por seu poderio atômico. Não foi incorporada ao G-7 por ser uma economia de mercado, o que obviamente ela não era, mas porque poderia causar problemas. Ela não faz parte do G-7 econômico, mas do G-8 político, que adota resoluções um pouco inócuas. A Rússia não conta economicamente, a não ser por sua energia. Como ela é importante no equilíbrio geopolítico asiático e europeu e no plano energético mundial, ela faz parte desses esquemas de coordenação. Mas o processo de reformas internas deve ser intensificado para que ela possa ser plenamente incorporada à OMC e à OCDE.
Tampouco existe, para fins de comércio internacional, um realinhamento radical dos fluxos, ainda que seja previsível e até natural um crescimento mais intenso dos intercâmbios entre os próprios países do Sul. A “nova geografia comercial”, que se anuncia como relevante para o Sul, na verdade já existe: são os emergentes asiáticos exportando para o Norte desenvolvido – Estados Unidos e Europa – ou para outros países em desenvolvimento de sua própria esfera geográfica, como é o caso da China e sua imensa esfera de intercâmbios na própria Ásia Pacífico.

A China e a Índia
Para todos os efeitos imagináveis, o destino econômico da China está intimamente ligado ao dos Estados Unidos. Os americanos dependem da transferência de recursos asiáticos para continuar sustentando a sua avidez de consumo. A China depende enormemente da capacidade comercial deficitária americana, ou seja, que os Estados Unidos continuem comprando dela. Do catálogo do Wal Mart, 80% ou mais é chinês ou pode ser feito na China.
A China exerce hoje um papel deflacionista extremamente importante na economia mundial. Assim como a Inglaterra no século 19 ofereceu mercadorias baratas a todo o mundo, a China desempenha hoje esse papel. É importante porque permite que mesmo os trabalhadores desempregados pela concorrência chinesa nos mercados de manufaturados da Europa e dos EUA continuem a consumir produtos, a partir de suas bonificações-desemprego, que de outra forma não estaria ao seu alcance, se fossem fabricados aos preços da Europa e dos EUA.
A Índia também está intimamente integrada aos Estados Unidos, pelas redes de engenheiros, pelos seus executivos que trabalham na Califórnia ou na Costa Leste, que vão alimentar a nova economia da inteligência e do conhecimento. A China é basicamente um laboratório, um ateliê ou uma fábrica. A Índia é basicamente um escritório de concepção e desenho. Os indianos desenham aquilo que lhes foi encomendado desde o Vale do Silício, podendo inclusive agregar algo mais.
Mas o que é desenhado na Califórnia também o é por engenheiros indianos. Há uma simbiose completa entre concepção e desenho americano, ou ocidental, e a nova Índia, que está emergindo paulatinamente e vai ser uma potência em software e em conhecimento também.
Trata-se, obviamente, de uma “pequena Índia”, pois se está falando da incorporação de uma parte apenas da imensa população da Índia na economia de mercado. A exclusão social da maior parte dos indianos dessa economia dinâmica pode até representar algum fator de pressão interna contra as reformas e uma maior inserção na globalização, mas esse é um fator interno que tem de ser resolvido na política indiana. O fato é que a Índia vai continuar com milhões de miseráveis durante muito tempo, assim como a China.
O que esse dois países já fizeram, em termos de crescimento econômico, é propriamente extraordinário. A China tirou 200 ou 300 milhões de camponeses de uma miséria abjeta para uma pobreza aceitável, e os transformou em operários. A Índia também tirou algumas centenas de milhares de pessoas da miséria. Mas a miséria indiana ainda é monumental, e vai continuar pelas décadas futuras. Mas isso não importa para a economia mundial, e sim os grandes fluxos transnacionais de comércio, bens, serviços.
Os analistas ocidentais e, sobretudo, os políticos americanos argumentam que, no caso da China, isso foi obtido ao custo de um câmbio artificialmente baixo e de salários baixos, até para o poder de compra chinês. Entretanto, esses são fatores conjunturais. A China tem uma boa manipulação de sua política econômica, inclusive para efeitos cambiais e comerciais. Tem uma boa manipulação da sua agenda financeira – reservas, investimentos externos. Mas tudo isso é superestrutura, é espuma.
O mais importante, todavia, é o papel da China como produtora de bens correntes no mundo globalizado. Para fazer isso, ela simplesmente se inseriu na divisão internacional do trabalho. Quando acabou o socialismo, no fim dos anos 80, o impacto da incorporação dos ex-socialistas na economia mundial não foi muito grande, porque esses países eram pouco competitivos - tinham uma participação ridícula no comércio de bens e de tecnologia internacional - e inexistentes no plano financeiro. O impacto econômico da inserção do ex-bloco socialista no PIB mundial foi de 10% ou 15%, se tanto. Agora, o impacto da incorporação do exército industrial de reserva ex-socialista na divisão mundial do trabalho provavelmente supera um quarto da mão-de-obra total do mundo.
Tudo isso é muito relevante no plano da alocação de investimentos para fins de produção, montagem de produtos, enfim, tudo o que requer mão-de-obra. A China, também, em algum momento, vai ficar um pouco cara, e aí outros países vão ser incorporados. No que se refere ao setor industrial, a China manterá a sua preeminência mundial nas próximas décadas.
De certa forma, ela está repetindo a história japonesa de copiar para depois criar. Mas, não se trata de equiparar a China a um novo Japão. A história é sempre diferente. A China produz mais engenheiros do que qualquer país do mundo. Quem produz patentes, inovação tecnológica, são engenheiros. A China vai construir um poder econômico nos seus próprios termos, que não necessariamente vai se dar no vácuo ou na decadência ocidental, e sim em extrema osmose com o Ocidente.
As teses de hegemonias, declínios e substituição de impérios não são muito válidas hoje, porque não se tem mais uma economia baseada apenas nas matérias-primas ou na força bruta das máquinas. Como a economia é do conhecimento, tudo isso tende a se disseminar. Quem está perdendo, na verdade, são os operários americanos e ocidentais. Mas as empresas ocidentais vão continuar tão fortes quanto antes, inclusive utilizando mão-de-obra chinesa, claro, para o que for necessário.

E o Brasil nesse processo?
O Brasil vai continuar sendo um grande fornecedor de commodities, o que é bom, e um grande fornecedor de energias renováveis, o que é excelente. Mas o Brasil é hoje, reconhecidamente, um país de lento crescimento, a despeito de ser um país moderno.
O fato é que todos os nossos problemas são made in Brazil. Nenhum deles tem algo a ver com a globalização. Nada do que é externo é estratégico para os problemas brasileiros atuais. São deficiências próprias: previdenciárias, educacionais, organizacionais, corrupção, gastos públicos. A globalização até ajudaria na tarefa de reforma. Mas como o Brasil é um pouco avestruz, introvertido, recusa a competição externa e novos acordos comerciais com países desenvolvidos, sua indução à reforma vai ser bem mais lenta. Tanto o Mercosul como os acordos hemisféricos são menos importantes para o Brasil, enquanto acesso a mercados, do que enquanto estabilização econômica e indução à reforma, à competição e à inovação. Como o Brasil continua relativamente introvertido, o processo de reformas vai ser muito lento. Não é que não haja consenso entre as elites quanto a uma agenda de reformas. Não há sequer consciência de que a reforma é necessária, nos planos tributário, fiscal e educacional.
Na globalização, o papel da educação é extremamente relevante. Com a baixa qualidade atual do seu ensino fundamental, o Brasil simplesmente não pode pensar em se inserir na economia mundial de forma competitiva. Achamos que nossos problemas econômicos são graves, por causa da falta de uma agenda de reformas. No plano educacional, é pior do que possamos imaginar, e tendente à deterioração. A situação é muito pior do que as estatísticas revelam. Não é apenas do ponto de vista organizacional e de investimentos, mas no plano mental, de preparação dos professores. Temos enormes problemas pela frente, que não serão resolvidos facilmente.
Não se deve ser muito otimista quanto às possibilidades do Brasil de concorrer numa economia globalizada, na medida em que sua situação educacional é pavorosa. O Brasil não está preparado para capacitar a mão-de-obra, no plano puramente industrial, nem para enfrentar as exigências da modernidade, da inovação tecnológica. No plano científico, existe muita capacidade: os cientistas brasileiros são tão bons ou até melhores que os estrangeiros. Mas a vinculação do sistema científico com o tecnológico é muito precária. Não há um sistema inovador autogerado. É tudo muito induzido pelo Estado.
O Estado brasileiro deixou de ser uma solução e passou a ser um problema enorme. Um estudo com países da OCDE para o período 1960 a 1996 mostra que o ritmo de crescimento está correlacionado à carga fiscal. Países com carga fiscal de até 25% do PIB tiveram crescimento anual de 6,6%; aqueles com carga fiscal superior a 60% do PIB, de apenas 1,6%. Isso ocorre porque simplesmente não existem recursos para o investimento. A despoupança estatal é um fator extremamente negativo. E, no plano tributário, a incidência sobre o lucro e o trabalho é fator de desemprego, informalidade e não-crescimento.
Pode-se mencionar aqui o caso da Irlanda. Trata-se de um país que saiu do perfil europeu típico de alta imposição fiscal e enveredou pelo caminho da eficiência, da baixa tributação sobre os lucros e sobre o trabalho. Em menos de uma geração, em aproximadamente 17 anos, ela saltou de metade da renda per capita européia para acima da média. A China impressiona porque é grande. Mas a Irlanda, em termos de transformação estrutural, é um caso único na história econômica mundial.
O Brasil poderia parar de olhar tanto para a China e para a Índia e verificar o que fizeram, por exemplo, Irlanda e Chile, em termos de reforma econômica e inserção no processo de globalização. Para todos os efeitos, não importa muito o tamanho dos países e sim a qualidade de suas políticas econômicas.

Para maiores esclarecimentos quanto à natureza dessas políticas econômicas, remeto a meu artigo “Uma verdade inconveniente (ou sobre a impossibilidade de o Brasil crescer 5% ao ano)”, disponível no  no blog Diplomatizzando (https://diplomatizzando.blogspot.com.br/2006/11/637-uma-verdade-inconveniente_11.html).

Paulo Roberto de Almeida
Brasília, 26 novembro 2006

Uma visao do Brasil, da Argentina, dos EUA, no final de 2006

Mais um material que tinha permanecido inédito, por razões óbvias, desde 2006, mas em relação ao qual não existe mais motivo para eximi-lo de uma avaliação a posteriori, para ver se minha visão das relações bilaterais e de alguns problemas da agenda política interna e externa estava correta, ou necessitando de ajustes.
Acho que muito se mantem...modestamente

Política externa e política interna no Brasil
Uma visão para a Argentina

Paulo Roberto de Almeida
Brasília, 15 de novembro de 2006
Respostas a perguntas colocadas por jornalista argentino

1) Com três dos maiores Estados do país (SP, MG, RS) governados pelo opositor PSDB e um cenário de negociação permanente no Congresso – onde a base governista é obrigada a construir alianças –, qual será a margem de atuação política do segundo governo Lula?
Paulo Roberto de Almeida: Independentemente das maiorias políticas que governam os estados federados, os governadores sempre são obrigados a encontrar um modus vivendi com o governo federal, em vista do enorme poder econômico da União na repartição das receitas tributárias, na definição de grandes projetos de obras públics, no encaminhamento, enfim, de uma miríade de questões econômicas que não teriam solução se os respeonsáveis políticos, tanto pelo lado dos estados, como pelo lado da União (ou seja, executivo federal), não se entendem. Nenhum governador, enquanto administrador, pode-se permitir viver em luta política contra o governo federal, isso seria extremamente prejudicial aos interesses do seu estado e dos seus cidadãos e simplesmente contra-producente no plano das suas responsabilidades governativas. Agora, enquanto líderes políticos ou dirigentes partidários, eles poderão vocalizar suas preferências por determinadas políticas – macroeconômicas ou setoriais – que se distinguem daquelas seguindas pelo governo federal, ou até manifestar, concretamente, oposição às medidas gerais adotadas pelo governo central. Mas isso faz parte do jogo político, e não vai ser diferente agora, no segundo mandato de Lula, do que já foi em épocas passadas ou ocasiões anteriores.

2) Qual será o vínculo entre a diplomacia do governo Lula e o projeto “bolivariano” do governo Chávez, que já enfrentou – por exemplo – dificuldades com o Brasil por causa do seu apóio à nacionalização dos hidrocarburos na Bolívia?
Paulo Roberto de Almeida: Não vejo nenhum tipo de vínculo entre a atual diplomacia brasileira, extremamente profissional, e qualquer outro projeto político continental, que se expresse por meio de “rótulos” ou simbologias, a não ser o desejo comum de desenvolver a região em bases próprias, em promover a prosperidade da América do Sul de forma mais homogênea, e contribuir, assim, para a constituição de um espaço econômico integrado, com exploração conjunta dos recursos existentes, com base em interesses comuns, definidos de maneira objetiva. A diplomacia brasileira é conhecida historicamente – e assim reconhecida no plano internacional – por seu pragmatismo e objetividade. Não creio que essas características imanentes da diplomacia brasileira venham a mudar.

3) No contexto do Mercosul, quais são as perspetivas da relação com a Argentina no segundo mandato do Lula, em especial a partir da entrada em vigência do Mecanismo de Adaptação Competitiva (MAC) que tenta resolver as assimetrias entre as duas economias?
Paulo Roberto de Almeida: O Mercosul continua a ser o projeto estratégico que ele sempre foi, desde o início de sua concepção e implementação, inclusive, como se deve recordar, numa base puramente bilateral Brasil-Argentina. O MAC não tem tanto a ver com o Mercosul, pois se trata de um instrumento bilateral ou até unilateral, e sim com algumas dificuldades relativas ao comércio de bens no plano industrial, dificuldades essas derivadas da baixa competividade sistêmica das indústrias argentinas. Elas precisam se reconverter, se modernizar, enfim, se qualificarem competitivamente para que esse tipo de mecanismo, que em si mesmo é redutor do comércio, possa ser abandonado numa etapa de maior equilíbrio dos intercâmbios globais, de redução de assimetrias e de vantagens mútuas plenamente asseguradas pela intensificação da integração. As assimetrias não serão resolvidas pelo MAC, que apenas permite um espaço de acomodação temporária, e sim pelos investimentos produtivos na própria Argentina. O Brasil já passou por fases de readaptação industrial e de adequação aos novos requerimentos da competição global, o que eventualmente se traduziu em perdas de empregos setoriais, mas, ao fim e ao cabo, as indústrias brasileiras se tornaram mais modernas e eficientes.

4) Qual será o perfil da política económica do ministro Guido Mantega, se a comparamos com a atuação do ex ministro Palocci? Haverá mudanças neste setor da administração?
Paulo Roberto de Almeida: Como disse o próprio presidente Lula, não existe política econômica do ministro Guido Mantega, assim como não existia política econômica do ministro Palocci. Há, e deve continuar a haver, uma política econômica do governo, que é a do presidente Lula. Não creio, pessoalmente, que venhamos a incorrer em inflexões significativas em termos de escolhas básicas: responsabilidade fiscal, metas de inflação, flutuação cambial, superávit primário, abertura moderada à globalização, promoção dos esforços de integração na América do Sul, acordos comerciais com outros países em desenvolvimento, tudo isso deve continuar, nos mesmos moldes existentes, com algum reforço nos mecanismos indutores de maior crescimento.
Se houver mudanças, elas podem ser induzidas por dois fatores: alguma deterioração no quadro econômico mundial – que tem sido extremamente benéfico do ponto de vista brasileiro – e uma eventual deterioração no quadro fiscal brasileiro, atualmente pressionado por um grande volume de gastos estatais e poucos limites para a expansão das receitas e despesas, em virtude da inapetência da população, e dos empresários, por mais impostos. As escolhas, e elas podem ser dolorosas, em certos casos, terão de ser feitas pelo presidente.

5) Como definiria o senhor o vínculo do governo Lula com os Estados Unidos e como poderá evoluir nos próximos dois anos de administração republicana em Washington?
Paulo Roberto de Almeida: As relações poderiam ser designadas por uma única expressão: corretas. Existem concordâncias e divergências, nos planos multilateral, regional ou bilateral, entre os EUA e o Brasil, como é normal com qualquer país, parceiros mais ou menos chegados a Washington. Não será diferente com o Brasil. Existem perspectivas de cooperação na área energética, que me parecem extremamente promissoras.
A administração em Washington não será inteiramente republicana, pois ela terá de conviver com a maioria congressual democrática no Congresso, mas não creio que isso represente maiores diferenças do ponto de vista do Brasil. O grande temor brasileiro é por um recrudescimento do já exagerado protecionismo e subvencionismo agrícola dos EUA, mas isso não é característica republicana ou democrática. Creio que os lobbies protecionistas e subvencionistas são atuantes em ambos os partidos. Em outros termos, não deve haver grandes mudanças na agenda bilateral.

Paulo Roberto de Almeida
Brasília, 15 de novembro de 2006

Sendo profeta em negociacoes internacionais no final de 2006

Depois das eleições de outubro de 2006, um jornalista me contatou para que eu explicitasse minha visão sobre as negociações internacionais de interesse do Brasil em 2007, nestes termos:

Caro Paulo Roberto,
estou preparando uma reportagem para o jornal XXXXX sobre cenários das negociações internacionais do Brasil em 2007 e gostaria de ouvi-lo. Trata-se de um caderno especial, a ser publicado em meados de novembro, em que vários especialistas serão ouvidos sobre vários aspectos da economia. Escreverei sobre comércio internacional...


Seguem abaixo as perguntas e minhas respostas, apenas para registrar algo que ficou provavelmente inédito, e que caberia agora, apenas verificar quanto eu acertei ou errei. Na verdade, vários dossiês permanecem inconclusos...
Paulo Roberto de Almeida

Negociações Internacionais em 2007
Paulo Roberto de Almeida
Brasília, 1 novembro 2006

1) o que se pode esperar das negociações em 2007?
Nada de muito entusiasmante, apenas mais do mesmo, ou seja: pequenas acomodações marginais nos grandes parceiros comerciais que continuarão a arrastar os pés em matéria de novos compromissos de liberalização essencialmente por razões de ordem interna. Os economistas sensatos são a favor do livre-comércio; políticos sensatos dizem que são a favor do livre-comércio mas continuarão praticando o protecionismo.

2) que acordos podem avançar?
Serviços tem grandes chances de acomodar compromissos mais amplos de abertura, como provavelmente tarifas industriais, mas aqui há muito pouco a ser feito pelos países mais avançados, cabendo aos emergentes fazer a sua parte. Não acredito que agricultura conhecerá avanços dramáticos nem os compromissos em investimentos.

3) de que países o Brasil tende a se aproximar? que mercados podem ser conquistados?
O Brasil vai buscar alianças em todas as frentes para avançar setorialmente segundo a natureza dos temas em discussão. Os mercados mais dinâmicos estão aparentemente, fora do alcance da indústria brasileira, que são os eletrônicos de massa, com a possível exceção dos celulares (mas a tecnologia é estrangeira). Continuaremos perdendo mercado para a China em bens manufaturados correntes e, cada vez mais, em têxteis e calçados. Teríamos de fazer um grande esforço em direção de mercados desenvolvidos, onde as possibilidades são ainda significativas. Mercados do sul tendem a ser mais erráticos ou apresentar limitações no que se refere a linhas de crédito.

4) e a Rodada Doha, qual será o seu encaminhamento em 2007? a estagnação/obstáculos da Rodada podem tirar o fôlego das demais negociações?
A Rodada Doha será retomada, pois nenhum país pretende ser responsabilizado pela sua derrocada. Provavelmente se repartirá de um texto inicial –projeto de acordo – a ser oferecido pelo Diretor Geral Pascal Lamy, que no começo será rejeitado por todos, mas que mais adiante, depois de algumas tergiversações, será aceito como base negociadora em sua fase final.

5) alguma perspectiva de avanços das negociações comerciais brasileiras nas Américas?
Dificilmente se irá além de acordos limitados do Mercosul com alguns países, criando pouco comércio e restringindo o acolhimento de fluxos maiores de investimento direto estrangeiro. A Alca ainda não foi enterrada, mas parece mortinha da Silva, pelo menos a julgar pelas declarações de alguns dirigentes.

6) como já se projeta a vitória de Lula, de que forma imagina o seu segundo mandato em termos de política comercial? Haverá pressões para mudanças/correções de rumo, sobretudo por parte do empresariado brasileiro?
O empresariado continuará pressionando para que se alcancem compromissos mais abrangentes, mas ele mesmo está dividido entre um setor que deseja sinceramente a abertura, por se julgar competitivo, e outro que reluta em abaixar alguns poucos pontos nas alíquotas tarifárias. O agronegócio apreciaria, particularmente, que o governo avançasse bem mais, o que de certa forma este vem fazendo, mas apenas no que se refere a nossas posições ofensivas no capítulo agrícola.

SOBRE O FATOR CHINA:
1) quais as projeções para a economia chinesa em 2007?

Um pouco mais do mesmo: alto crescimento, baixa inflação, acúmulo de reservas monetárias. Mas, a China ainda enfrenta imensos problemas sociais: uma população que precisa ser absorvida rapidamente na economia mercantil, poluição urbana e compromentimento de alguns recursos naturais. Sobre tudo isso, se projetam os indicadores de concentração de renda, um dos maiores do mundo. A China continuará financiando a prodigalidade americana por produtos chineses.

2) quais as chances das medidas de controle de crescimento terem efeito e em que isso pode nos ajudar ou prejudicar?
As medidas para “frear” o crescimento chinês apresentam caráter quase simbólico – que aliás redundariam em uma diminuição de meio ponto, se tanto, na taxa de crescimento do PIB e sobrtetudo das exportações. A China só pode ser “controlada” por uma freada brusca na economia americana ou por problemas advindos de seus próprios desequilíbrios – como por exemplo os créditos podres do setor bancário – mas aparentemente essas fragilidades estão sendo corrigidas aos poucos.

Sugestões para uma administração sintonizada com os novos tempos

Este pequeno trabalho tinha sido escrito a propósito da transição presidencial anterior, que na verdade foi uma continuidade, ou seja, permaneceu no poder o mesmo incumbente (aliás, a política não mudou nada, contrariamente aos desejos expressos aqui abaixo.
Como a nova presidente parece que está tendo algumas dificuldades políticas, quem sabe ele não tomaria inspiração em algumas coisas simples que seria preciso fazer?
Paulo Roberto de Almeida

Sugestões para uma administração sintonizada com os novos tempos
Paulo Roberto de Almeida
(Brasília, 30 outubro 2006)

Concluída mais uma etapa do itinerário democrático – a quinta eleição direta para presidente desde a volta da democracia e o sétimo escrutínio, contando os dois turnos –, é hora de pensar em uma governança responsável, comprometida com o bem comum e o desenvolvimento do país. Como se constatou nos debates do segundo turno, propostas partidárias são menos relevantes do que compromissos assumidos pelos candidatos, o que nos leva à conclusão de que políticas governamentais são bem mais o reflexo do jogo entre o líder e as principais forças políticas do Congresso do que necessariamente o reflexo de documentos partidários preparados pelas suas equipes de campanha.
Na eleição de 2002, as propostas da “Carta ao Povo brasileiro” se distanciaram das posturas tradicionais do partido de origem. Em lugar de ruptura, respeito aos contratos; em lugar de magia econômica, responsabilidade fiscal; em lugar de denúncia do FMI, acomodação ao programa de ajuda; enfim, uma reviravolta que a muitos pareceu tática, mas que se revelou estratégica para a vitória e o governo ulterior.
Agora, uma nova vitória recomenda a adoção de propostas que devem contemplar, não posições partidárias, mas sim amplos interesses nacionais. O que se segue é um exercício propositivo e consistente com a vontade de mudanças, não tanto no estilo e no conteúdo da política econômica seguida nos últimos anos, mas sim em relação a velhas idéias e agendas ultrapassadas.

1. A orientação não é socialista, e sim reformista
A economia de mercado é a melhor forma de atender às necessidades básicas da população e o Estado deve concentrar-se no essencial, como segurança, educação, saúde e infra-estrutura, ademais de regras gerais para o bom funcionamento da economia de mercado (competição, estabilidade de políticas, abertura à inovação). As instituições regulatórias devem continuar sendo reforçadas para que a economia de mercado promova os interesses do maior número de cidadãos.

2. A política econômica continua responsável e pró-mercado
Da forma como ele atua, hoje, no Brasil, o Estado transformou-se, de equalizador de chances, no principal obstáculo a um processo sustentado de crescimento, uma vez que ele é um “despoupador” dos recursos privados, inviabilizando investimentos e mantendo uma maioria de cidadãos e empresas na informalidade. Quatro diretrizes são relevantes nesse âmbito: (a) macroeconomia estável: responsabilidade fiscal e combate à inflação, um imposto que atinge os pobres; (b) microeconomia aberta: competitição, abertura ao empreendimento privado e bom ambiente para os negócios; (c) investimento maciço na qualidade dos recursos humanos, começando pelo ciclo básico e pelo ensino profissional: o critério relevante é a produtividade do trabalho, o que depende da educação; (d) abertura ao comércio e aos investimentos internacionais: a interdependência econômica é a que melhor se ajusta aos nossos padrões de economia integrada nos fluxos mais dinâmicos da globalização contemporânea.

3. Reforma no modo de ação do Estado
O fazer política, no Brasil, tornou-se um modo de vida, quando não uma atividade rendosa. Os meios parecem ter se substituído aos fins e quase toda a máquina pública, em especial o legislativo e o judiciário, converteram-se em redomas privilegiadas de altos salários e de baixa produtividade. A reforma política contemplará a redução dos gastos e a mudança na representação política para um sistema distrital misto.

4. A opção não é por um Estado mínimo e sim por um Estado que funcione
Uma reforma administrativa deve propor a extinção de ministérios e a atribuição de diversas funções a agências reguladoras. As PPPs constituem um paliativo e por isso se deve retomar a privatização de alguns órgãos públicos que são fontes de ineficiência e de corrupção, em vários setores. A estabilidade no serviço público poderia ser revista.

5. Contra a derrama fiscal: redução de impostos
Uma reforma econômica ampla trará diminuição da carga tributária e redução das despesas correntes do Estado. O Brasil já ultrapassou limites razoáveis de carga fiscal e isto se traduz no “desinvestimento” estatal e na baixa poupança e investimento. Uma série de reformas microeconômicas criará um ambiente favorável ao investimento produtivo, ao lucro e para diminuir a sonegação e a evasão tributárias.

6. Uma nova classe trabalhadora, livre da mão pesada do Estado
Para proteger os interesses daqueles que ainda não estão incorporados ao mercado formal de trabalho, se propõe uma reforma trabalhista, com flexibilização da legislação laboral, dando maior espaço às negociações diretas entre as partes, a eliminação do imposto sindical e a extinção da Justiça do Trabalho, que é uma fonte de criação de conflitos, substituindo seus pesados procedimentos pela via arbitral.

7. O Brasil é globalizado e favorável à globalização
O Brasil se posiciona resolutamente em favor da globalização, que tem retirado milhões de chineses e indianos de uma miséria ancestral.

8. No plano externo, a defesa exclusiva dos interesses nacionais
No contexto internacional, posições de princípio e “aliados estratégicos” devem ser avaliados em função dos interesses nacionais, não como resultado de afinidades ideológicas. Determinados objetivos, como a integração regional, não devem ser vistos como um fim em si mesmo, mas como um meio para se atingir objetivos nacionalmente desejáveis, que são o progresso e a prosperidade da nação. A liderança, por sua vez, decorre do acúmulo de substrato material – financeiro e tecnológico, sobretudo – para o cumprimento de missões externas que sejam solicitadas pelos vizinhos ou pela comunidade internacional, e não deriva da vontade unilateral de proclamá-la.

Paulo Roberto de Almeida
Brasília, 30 outubro 2006

Acredito em algumas coisas muito simples...

Este ainda é de tempos atrás, mais precisamente quando esta República que nós temos (a única, mas não imutável) atravessava mais uma dessas crises recorrentes, acarretada, então como agora, por corrupção da grossa, malversação de dinheiro público, tráfico de influência, enfim, todo tipo de crime de colarinho branco que vocês podem imaginar, e que geralmente passam impunes (então como agora, não tenham dúvida disso).
Como eu não posso fazer literalmente nada, a não ser votar e protestar -- não sou procurador, não sou policial, não sou sequer funcionário direto desses antros de corrupção e mau-caratismo, só posso fazer o que faço: escrever.
Fica aqui o meu protesto, então como agora...

Acredito...
Paulo Roberto de Almeida
(Brasília, 25 de setembro de 2006)

Em algumas verdades simples, muito simples:

Que a palavra do homem é uma só,
que todos têm o dever social e individual da verdade, que ela é única e imutável.
que devemos, sim, assumir, nossas responsabilidades pelos cargos que ocupamos,
que não podemos descarregar sobre outros o peso dessas responsabilidades,
que devemos sempre procurar saber o que acontece, em nossa casa ou trabalho,
que não devemos jactar-nos indevidamente por grandes ou pequenas realizações,
que sempre nos beneficiamos do legado dos antepassados, sobretudo em conhecimento,
que nenhuma obra social possui paternidade única e exclusiva, sendo mais bem coletiva,
que a tentativa de excluir antecessores ou auxiliares é antipática e contraproducente,
que devemos zelar pelo dinheiro público,
que temos o dever de pensar nas próximas gerações, não na situação imediata,
que vaidade é uma coisa muito feia, além de ridícula,
que sensação de poder pode perturbar a capacidade de raciocínio,
que poder concentrado desequilibra o processo decisório,
que ouvir apenas elogios embota o senso da realidade,
que o convívio exclusivo com áulicos perturba a faculdade de julgamento,
que, enfim, não comandamos ao julgamento da história.

Eu também aprendi, que os resultados são sempre mais importantes do que as intenções, mas que os fins não justificam os meios...

Acredito, para terminar, que coisas simples assim podem ser partilhadas com outros...

Paulo Roberto de Almeida
Brasília, 25 de setembro de 2006

Brasil: prioridades possiveis em uma administracao racional (mais um desenterrado...)

Eu disse em uma administração racional, o que não é obviamente o caso.
Ainda assim, já que estamos na hora da saudade -- na verdade, estou apenas revisando listas antigas de trabalhos para separar resenhas e títulos de livros de diplomatas ou sobre diplomacia -- não custa nada repostar aqui coisas atinentes a esse debate tão necessário que se resume a uma única pergunta:

Seria o Brasil capaz de crescer de maneira ordenada e racional?

Respondo logo que sim, mas depende.
No governo atual, e com os líderes políticos que temos, não há nenhum risco disso ocorrer.
Repito, nenhum risco...
Paulo Roberto de Almeida

Prioridades possíveis em uma administração racional
Paulo Roberto de Almeida (9 de julho de 2006)

Todo mundo tem a sua pequena lista de tarefas urgentes e inadiáveis a serem feitas no Brasil: se consultarmos os representantes do povo, eleitos para isso mesmo, eles já têm pronta uma lista enorme de projetos a serem implementados com a máxima urgência possível, com a particularidade de que são todos nas respectivas circunscrições eleitorais, obviamente. Se perguntarmos a um conclave de universitários, reunidos por exemplo numa dessas conferências anuais da SBPC, eles também terão a sua lista de prioridades, geralmente vinculadas à ciência e tecnologia, ao investimento em educação, incentivo à pesquisa, aumento de salário aos professores – notoriamente defasados –, financiamento às universidades e coisas do gênero. Se falarmos com os industriais, ou aos agricultores ou ainda aos simples trabalhadores do campo e da cidade, cada uma dessas categorias terá uma lista de medidas urgentes a serem tomadas pelo governo, sob risco de desemprego, insuficiência alimentar, deterioração das condições de vida ou sabe-se lá o que mais.
Recursos orçamentários são, por definição, escassos, como mais de um governo “comprometido com o povo” descobriu no dia ou nas semanas seguintes à vitória nas eleições. Não dá obviamente para fazer tudo ao mesmo tempo ou sequer no tempo total do mandato. Como já disse alguém, “não espere que eu faça em quatro anos aquilo que não foi feito nos últimos 500 anos”. Elementar, não é mesmo?
O problema é que as pressões emergem de todo lado, cada grupo de interesses, cada categoria social berrando pela sua fatia do orçamento e os políticos estão aí para isso mesmo: para fazer chantagem com o governo de plantão, só dando o seu voto depois de ter assegurado o financiamento para o seu projeto particular. O resultado é o pior possível, com a fragmentação total do orçamento público em uma miríade de pequenos projetos, quando não o esquartejamento puro e simples dos recursos escassos em uma multitude de pequenos gastos que não resolvem qualquer dos grandes problemas sociais do país e mantém intactos os pequenos problemas com sua resolução parcial mediante uma parte da verba originalmente pedida.
Pois bem, a intenção do presente exercício é outra. Seria a de tentar concentrar os recursos disponíveis mediante sua focalização nos melhores projetos disponíveis. O critério básico é o de encontrar as prioridades sociais efetivas, isto é, aquelas ações que redundam no maior efeito social possível, alcançando o maior volume de pessoas que exibem carências detectáveis que redundam em perdas sociais mensuráveis. A aplicação dos recursos disponíveis – por definição escassos, como sempre – tem de ser feita com a melhor eficácia possível no dispêndio, o que os economistas usualmente chamam de custo-benefício, ou seja, o maior retorno alcançável pelo dinheiro aplicado. Por fim, a ação visada precisa apresentar eficiência; em outras palavras, estender benefícios ao maior número com efeitos permanentes de bem-estar, contribuindo para a elevação dos índices de produtividade social (direta ou indiretamente).
Com base nessa trilogia – prioridades efetivas, custo-eficácia e eficiência – podemos traçar uma escala de ações prioritárias que poderiam ser implementadas por um governo interessado em corrigir as distorções mais gritantes existentes na sociedade brasileira, quais sejam, a desigualdade, a má educação, a infra-estrutura precária e uma baixa produtividade geral no sistema produtivo. Não consideremos aqui demandas de grupos ou, mesmo, a escassez de recursos. Vamos simplesmente supor que temos um volume de recursos dado, mas que precisamos escolher apenas as ações mais prioritárias dentre as prioridades governamentais, deixando para depois as menos prioritárias. Numa segunda etapa, pode-se discutir a disponibilidade de recursos. Não vamos tampouco considerar o sistema político, mas sim uma organização a mais racional possível, que aja com base na já mencionada eficácia e eficiência máximas dos investimentos feitos.

Escala de prioridades com o máximo de retorno social e econômico

1) Melhoria da qualidade da educação com gerenciamento eficiente dos recursos
(a) alcançar a cobertura máxima de crianças escolarizáveis, entre 2 e 17 anos, o que implica ampliar a pré-escola e redimensionar a rede escolar espacialmente; concentrar recursos no básico (fundamental e médio) e no técnico-profissional;
(b) ampliar a permanência escolar no ciclo fundamental público, estendendo o período de estudo efetivo na escola; vincular programas do tipo bolsa-escola aos programas de assistência social;
(c) aperfeiçoar a formação dos professores dos ciclos infantil, fundamental, médio e técnico-profissional públicos, com incentivos financeiros segundo o desempenho, medido pelo aproveitamento efetivo do estudante (abolido o critério da aprovação automática); recursos de tecnologia de informação devem estar concentrados no professor e nos centros de documentação e bibliotecas das escolas;
(d) mudanças curriculares de molde a reforçar o núcleo básico de estudos (língua nacional, ciências, matemáticas e estudos sociais), com opções de disciplinas suplementares disponíveis segundo os recursos apresentados e decisão a ser tomada de forma descentralizada pelos conselhos de educação em nível municipal e associações de pais e mestres nos diversos centros escolares;
(e) eficiência na gestão escolar, com estímulos financeiros e funcionais em função da melhoria no desempenho (mais em escala relativa do que absoluta).

2) Melhoria dos padrões de saúde da população mais carente
(a) ampliar a rede de serviços básicos de saúde, num sentido preventivo e educativo; integração dos serviços de saneamento básico para prevenir doenças infecto-contagiosas e prover água de qualidade a todas as comunidades;
(b) programa nacional de nutrição e alimentação, com seguimento das crianças, integrado aos serviços escolares; formação de recursos humanos em economia doméstica e produção local de alimentos;
(c) rede integrada de saúde familiar e de hospitais comunitários; equipes volantes permanentes para o controle das doenças transmissíveis e contagiosas; vigilância integrada das gestantes e crianças na primeira idade;
(d) programas permanentes de riscos de gravidez – com ampla oferta de meios preventivos – e seguimento integral em casos de parto não desejado; programas integrados de abrigo e adoção de crianças;
(e) melhoria da gestão das redes de saúde e hospitalar, para reduzir a corrupção e os desvios e aumentar a eficiência dos recursos disponibilizados; transparência total das despesas efetuadas, com seguimento integral das operações financeiras e transferências de recursos via Siafi aberto ao nível das unidades.

3) Eficiência na gestão estatal, com redução da carga fiscal
(a) Reforma tributária para a redução da carga total sobre o sistema produtivo, segundo programa progressivo em dez anos, com redução de dez pontos do PIB, sendo meio ponto a cada semestre
(b) Combate à corrupção no sistema público, por meio de redução ampla da mediação dos recursos pela via política e ampliação da transparência dos gastos públicos, com seguimento integral pela internet; elaboração e execução orçamentárias igualmente disponíveis na internet;
(c) ampliação do sistema de parcerias público-privadas (PPPs) para o maior número possível de setores envolvidos nos serviços públicos (que não necessitam ser estatais); privatização de atividades que não sejam tipicamente estatais ou públicas;
(d) consolidação da independência da autoridade monetária como guardiã exclusiva da estabilidade da moeda e da defesa do poder de compra da população;
(e) ampliação e aprofundamento da legislação sobre responsabilidade fiscal, com desdobramento dos mecanismos preventivos de controle de desequilíbrios potenciais;
(f) reforma administrativa com diminuição do número de ministérios, redução dos gastos com os corpos legislativos federal, estaduais e municipais e da própria representação política, hoje superdimensionada; atribuição de diversas funções estatais a novas agências reguladoras independentes; início progressivo do fim da estabilidade no serviço público, com exceção de algumas carreiras de Estado, estritamente definidas; reforma do sistema judiciário para melhoria de sua eficiência.

4) Reformas microeconômicas para a melhoria do ambiente de negócios
(a) ampla reforma trabalhista num sentido mais contratualista do que com base no diploma legal; eliminação do imposto sindical e da justiça trabalhista, com amplo recurso ao sistema arbitral e criação de varas especializadas na justiça comum;
(b) redução da informalidade empresarial e trabalhista mediante reformas tributária, regulatória e burocrática; redução dos custos de transação impostos pelo Estado;
(c) descentralização dos sistemas de compras públicas, com uso ampliado dos mecanismos eletrônicos de oferta, aquisição e controle dos gastos efetuados;
(d) eliminação dos tratamentos diferenciados entre setores, de maneira a eliminar distorções e competição fiscal danosa aos orçamentos públicos e aos regimes tributários;
(e) ampliação da competição interna e externa, com eliminação de cartéis e setores oligopolizados, redução do protecionismo alfandegário e maior integração à economia mundial, com abertura ampliada aos investimentos estrangeiros.

5) Segurança pública
(a) reformulação dos aparelhos policial, penitenciário e de justiça, num sentido preventivo, repressivo e restaurativo;
(b) diminuição da idade de imputabilidade legal;
(c) redução dos casos de prescrição de pena e ampliação dos prazos;
(d) integração do sistema preventivo com os mecanismos de assistência social e de incorporação escolar, para diminuir a delinqüência juvenil e a criminalidade envolvendo crianças.

Creio que bastam esses cinco conjuntos de tarefas como indicativo de um esforço concentrado numa agenda transformadora, pois eles me parecem cobrir o essencial dos problemas mais prementes do Brasil atual. Obviamente que se está falando em concentrar a maior parte dos recursos nesses programas, exatamente definidos como “prioridades prioritárias”, sem querer ser redundante. Se isso é verdade, obviamente será preciso deslocar recursos de outros programas, que passam então a ser prioridades secundárias ou “terciárias”. Alguns critérios simples para operar essa “separação” entre “urgências relativas” podem ser usados, como por exemplo:
1) preferir investimentos nos jovens (ou seja, escola e formação) do que nos “velhos” (isto é, a previdência);
2) preferir investimentos na formação básica, média e técnico-profissional, do que gastar sempre mais recursos com o ensino universitário, até agora privilegiado;
3) priorizar a infra-estrutura – e dentro dela as possíveis PPPs – do que políticas setoriais que redundem em dar créditos e facilidades para setores já privilegiados, como os industriais ou a agricultura capitalista;
4) priorizar o investimento na pesquisa tecnológica vinculada ao sistema produtivo;
5) reduzir sempre os gastos com as atividades-meio – inclusive as de natureza política, já superdimensionada – e concentrar os recursos nas atividades diretamente finalísticas;
6) adotar o perfil competitivo para definir ofertas de serviços “públicos” nos mais diversos setores, inclusive fazendo o Estado funcionar com mecanismos similares aos de mercado.

Estes são alguns dos critérios funcionais e operacionais que poderiam ser mobilizados para estabelecer e depois implementar um conjunto bastante restrito, isto é, extremamente seletivo, de políticas públicas a serem detalhadas em programas, projetos e medidas dotadas de continuidade e de sustentação política durante mais de uma gestão presidencial (se possível estendendo-se por pelo menos dois PPAs, ou mais), de maneira a produzir efeitos transformadores permanentes. Como esses procedimentos envolvem ganhos e perdas para grupos sociais específicos, recomenda-se trabalhar primeiro com um grupo restrito de “tecnocratas” com vistas ao “desenho” global das medidas, para depois levar os temas à discussão pública, com exposição clara quanto aos custos e benefícios de cada uma delas e o sentido político que se pretende imprimir a cada uma.
Como disse ao início deste trabalho, aliás no próprio título, trata-se de escolher prioridades num sentido absolutamente racional, visando ao melhor custo-benefício de cada uma delas e seu maior efeito social possível. Custos e benefícios podem ser medidos e discutidos de maneira racional, como convém a um governo inteligente e a uma sociedade consciente de seus problemas e desejosa de encontrar as melhores soluções possíveis, em bases igualmente racionais.
Por certo a política nem sempre é racional, uma vez que feita de emoções e de apelos aos sentimentos humanos. Mas é dever do estadista liberar-se das contingências do momento e das pressões dos grupos particularistas para ver a sociedade da perspectiva da próxima geração. A pergunta a se fazer é muito simples: como eu gostaria que a geração passada tivesse me entregue o país? As respostas fluirão naturalmente...

Paulo Roberto de Almeida
Brasília, 9 de julho de 2006.