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domingo, 20 de agosto de 2017

Auto-entrevista (ao chegar numa certa idade...) - Paulo Roberto de Almeida (2006)



Paulo Roberto de Almeida

O objetivo desta entrevista é muito simples: colocar algumas questões sinceras a um personagem conhecido. Sua motivação é igualmente simples: a passagem do seu aniversário, não do seu seu, mas do seu dele, isto é do personagem. Considerando-se que, para mim, o personagem mais importante da minha vida sou eu mesmo – e não poderia ser de outra forma, do contrário não estaria aqui para controlar o gravador – a entrevista é comigo mesmo, o que, aliás, já estava implícito no título do trabalho, anulando assim qualquer efeito-surpresa.
Permito-me, portanto, aproveitar minha data natalícia – que eu não digo de quanto é, não por vergonha, mas porque isso não faz a menor diferença – para efetuar esta auto-entrevista com um personagem tão enrolado quanto eu (presumivelmente, vaidoso, também, pois do contrário a entrevista não existiria).
Antes, contudo, uma confissão e a promessa de pagamento de direitos autorais: tirei a ideia e a inspiração desta auto-entrevista do meu amigo Claudio Shikida, um economista promissor das Gerais, dedicado, como eu, às lides didáticas e acadêmicas (eu, a muitas outras mais, nas horas vagas e menos vagas), terrivelmente angustiado, como eu, com os des(a)tinos econômicos do Brasil, ele, contudo, bem mais jovem do que eu e com mais tempo, portanto, para corrigir as coisas erradas de que sempre nos arrependemos mais tarde, coisas que nos fizeram perder tempo, desviar o foco de atenção do trabalho principal (que alguém precisa me dizer qual seria), enfim, coisas que nos dão remorso depois, por termos calculado mal o custo-oportunidade do nosso raro (e caro) capital intelectual, deixando-o suportar as traças da preguiça e as trapaças da sorte. O importante, contudo, é ter paixão com aquilo e naquilo de que nos ocupamos, deixando-nos envolver (e absorver) pelos encargos do momento, mesmo os menos importantes...
Feito este prolegômeno, e sem mais delongas, vamos às consequências...
(Gravador ligado, ou melhor, computador ativo, bateria carregada...)


Então, Paulo Roberto, que balanço você faz da sua vida bem vivida?
            Creio poder afirmar, sem qualquer sentimento de autoindulgência, que consegui construir um itinerário de sucesso relativo em minha vida, tanto no plano pessoal, como no profissional ou acadêmico. Digo relativo porque ele poderia ter sido mais “temprano”, ou mais evidente, do ponto de vista do reconhecimento público e da distinção social. O que sou, finalmente, é um diplomata de carreira média, sem grandes brilhos, mas também sem fracassos aparentes, um intelectual socialmente pouco conhecido, mas reconhecido em certos meios, uma pessoa humana dotada de algumas boas qualidades, mas também de vários defeitos. Entre estes últimos situa-se minha introversão básica, que me faz preferir a companhia dos livros do que das pessoas, o trabalho solitário no computador, no lugar da socialização aberta, o descaso, talvez, com as preocupações dos demais, na medida em que me concentro demasiadamente nas minhas próprias preferências em termos de leituras, interesses sociais, obsessões intelectuais.
Tudo isso não é muito bom, mas, por outro lado, creio que tenho algumas boas qualidades, a primeira delas sendo uma preocupação primordial com a sorte dos menos afortunados, daqueles que, como eu, na infância, conheceram ou conhecem a pobreza e que lutam para encontrar uma saída dessa condição amplamente insatisfatória. Sinto que eu tive chances, obviamente à custa de muito esforço pessoal e familiar, mas pelo menos pude contar com uma escola de boa qualidade, oportunidades de enriquecimento pessoal que me fizeram superar a estreiteza social e intelectual de meu meio de origem e que me permitiram uma vida de satisfação pessoal, de realizações intelectuais, de certo conforto material. Sinto que as crianças de hoje, que se encontram na mesma situação na qual eu me encontrava cinco décadas atrás, não têm muitas chances de refazer esse itinerário de ascensão social e de realização profissional, e isso me angustia profundamente. Sinto que o Brasil atual joga na lata do lixo dezenas (talvez centenas) de milhares de crianças que não poderão contribuir – como acredito que eu mesmo o faça – para o engrandecimento da Nação e a melhoria do bem-estar da sociedade. Nisso também reside o meu fracasso, que é também o de toda uma geração: não fomos capazes de melhorar o País, não tanto, em todo caso, quanto o seu povo sofrido o merecia. Esse fracasso de minha geração, eu o sinto como um fracasso pessoal.

O que lhe deu mais satisfação, até agora, na sua vida? Fez o que deveria ter feito?
            Não sei se tenho alguma grande obra da qual me orgulhar, no presente momento, mas o meu critério básico, de vida, é este aqui: procure construir um mundo e uma sociedade um pouco melhores do que aqueles que você encontrou ao chegar. Desse ponto de vista, talvez eu tenha contribuído para esse melhoramento parcial do nosso mundo e da nossa sociedade, não tanto enquanto diplomata, mas provavelmente enquanto mestre voluntário – o que eu não precisaria ser –, enquanto professor em tempo parcial, enquanto escritor em tempo integral, autor de alguns livros paradidáticos que podem melhorar o panorama do ensino especializado no Brasil. Através de meus muitos artigos, palestras e participação em seminários, com imensos sacrifícios pessoais e familiares – em grande medida também profissionais –, acredito que possa ter contribuído para o enriquecimento intelectual de alguns jovens que se interessaram em ler esses textos ou em ouvir-me. Tudo isso eu fiz sem pensar em remuneração ou “premiação” individual, apenas como um impulso interior, respondendo a uma necessidade íntima de ler, resumir, sistematizar essas leituras e de transmitir o que aprendi, pela palavra escrita ou a expressão oral. Acredito que fiz bem o que pude fazer nesse sentido, embora tudo isso seja uma pequena gota no imenso oceano de nossa incultura cívica e de nossa ignorância educativa.
            Essa “função didática” não era, registre-se, minha vocação original, que estava bem mais voltada para a “revolucionarização” do mundo e do Brasil – consoante uma ideologia da mudança radical e da transformação total da vida social, aqui e alhures –, do que para esse paciente trabalho professoral do “resume e ensina”. Acredito, porém, em retrospecto, que o lento trabalho didático é bem mais revolucionário do que os grandiosos projetos de mudança total da sociedade. Estes geralmente impõem um custo humano e social incomensurável para a maior parte das pessoas e das instituições, tão difíceis de serem construídas e tão fáceis de serem destruídas por espíritos malévolos ou egoístas. Sim, também acredito que eu não tenha sido egoísta, embora às vezes eu me arrependa de meu egoísmo “didático” e de “escrevinhador”, que impõe custos aparentes e invisíveis à minha própria família e aos mais chegados. Nesse sentido, eu não fiz tudo o que deveria ter feito e sou devedor nesses aspectos.

Do que você se arrepende? (do que já fez e do que deveria fazer e ainda não fez?)
            Sinto não ter dado muita atenção às relações humanas e sociais, de ter me fechado sobre mim mesmo, ou melhor, nos livros, com os livros e para os livros. Não se pode ser perfeito, como se diz, mas acho que exagerei um bocado nessa convivência com os livros – e com os jornais e revistas, enfim, com a informação, de modo geral – deixando de lado justamente o lado humano das coisas. Acho que isso não me fez bem, nem familiarmente, nem pessoalmente ou profissionalmente. Não se trata de um “autismo livresco”, uma vez que, por adquirir muita informação, sou razoavelmente bem informado, cela va de soi, sobre o que ocorre no mundo e nas galáxias mais próximas, mas creio que uma redução ligeira da carga de leituras e uma atenção mais atenta, se ouso ser redundante, às pessoas que me cercam me teriam tornado uma pessoa melhor, mais apreciada, até mais ouvida.
            Não sei se ainda há tempo, mas talvez eu devesse começar a me ocupar do que é realmente importante: as pessoas, as relações humanas, não dos livros, que são inertes…

Sua vida pode ser dividida em etapas?; quais as mais importantes?
            Vejamos: 1) a ignorância, até os sete anos; 2) o aprendizado, dos sete aos 14 anos, aproximadamente; 3) o engajamento, a partir daí, nas chamadas causas “mudancistas”, o que sempre implica alguma dose de simplificação, de maniqueísmo, de vontade de destruição, enfim, daquilo que se despreza, ou do que se aprende a ter raiva (a injustiça, a desigualdade, a miséria humana, material e social, e as supostas causas “estruturais” que respondem por esses males); 4) uma revisão intelectual desses true beliefs, a partir dos 25 anos, mais ou menos, o que coincide com uma reorientação de vida, a partir do primeiro quarto de século (uma geração inteira, pelo cômputo habitual), com definição profissional no campo do serviço público (diplomacia), seguida de casamento e de adesão ao “modo de vida burguês”; 5) um engajamento continuado, ao lado do serviço exterior, na carreira acadêmica, com a lenta (mas segura) construção de uma obra intelectual materializada em muitos livros e incontáveis artigos em diversas áreas de interesse acadêmico.
            Acho que estas seriam as principais etapas da minha vida, embora outros critérios, que não os acadêmicos e intelectuais, aqui selecionados, pudessem ter levado a uma outra divisão em etapas. Quanto às etapas mais importantes, acredito que elas estão em 2), o aprendizado, e em 4), a revisão intelectual. Esta corresponde ao abandono de simplismos e maniqueísmos do marxismo adolescente, em favor de uma visão mais madura ou mais refletida dos problemas sociais, sobretudo a partir de um aprendizado mais sólido das questões econômicas, bem como pela predisposição de ter a mente aberta às experiências da vida, neste caso, um conhecimento direto das misérias do socialismo real.

Se você pudesse voltar atrás, o que teria feito de diferente?
            Boa pergunta, difícil de ser respondida. Como eu não causei grandes males, nem à sociedade, nem a indivíduos, em particular, não identifico bem o que poderia ter feito de radicalmente diferente. Provavelmente, teria dado mais atenção à família, tanto a minha de origem, quanto a minha própria, já que este é, basicamente, o meu grande ponto falho. Não que eu tenha estado ausente fisicamente da família adquirida – o que certamente foi o caso da família de origem – mas é que eu certamente andei ausente intelectualmente e até fisicamente das obrigações mais elementares da administração familiar, voltado, como sempre estive, para a leitura e a redação. Eu também precisaria avaliar de forma crítica o engajamento afetivo, que é um importante elemento da dedicação familiar. Acredito que estes são os meus pontos fracos.

Se você pudesse reencarnar, o que teria gostado ou gostaria ainda de ser?
            Não acredito nessa hipótese, daí um possível descarte da questão. Mas, admitindo, por brincadeira, essa possibilidade, a ideia surge de imediato de ter ou deter uma posição de mando, a partir da qual se poderia melhorar o mundo de maneira substantiva. Mas, esta é uma ilusão frequente daqueles que leem muito, e que deveriam se contentar em ser nada mais do que simples conselheiros do príncipe e que, ao contrário, pretendem deter eles mesmos a chave do social embetterment. Dispor de poder significa ser uma pessoa mais ou menos carismática – nas artes da política ou no comando dos homens – e fazer disso uma alavanca da mudança. Geralmente se acaba caindo na mudança da condição pessoal, antes que a dos demais, daí decorrendo que não alimento nenhuma ilusão quanto a uma possível carreira política ou profissional.
            Gostaria, claro, de ser um melhor professor do que sou, reconhecido e prestigiado socialmente, o que aumentaria minha audiência e daria maior amplitude ao que tenho a dizer. Mas isso significa, mais uma vez, busca de prestígio social, o que redunda, sempre, na melhoria individual, não na transformação “societal”. Em todo caso, gostaria de ter poder “didático”, dispor de uma “caixa de ressonância” acoplada ao desempenho dessa missão. Mas, não consigo pensar em nenhuma figura histórica associada a essa imagem, algo como Buda e Confúcio, junto com Gandhi e Einstein, inclusive porque as alusões a figuras históricas “memoráveis” como essas são profundamente enganosas, ademais de equivocadas, em seu mérito próprio.

Alguma preferência gastronômica, um último desejo antes de lhe cortarem as coisas de que mais gosta por recomendação médica?
            Sorvete, doces cremosos, merengue, chocolate, refrigerante, enfim, tudo aquilo que já deixei de consumir, por força de conselhos nutricionais. No âmbito propriamente gastronômico, eu poderia listar, tranquilamente: risotto com trufas, espaguete com frutos do mar, um belo arrosto com legumes leves, vinhos encorpados e um queijo de cabra com baguette croustillante, terminando com uma fruta leve e um ristretto daqueles bem fortes. Talvez champagne para começar e um conhaque, ou melhor, cognac para terminar. Sem charutos, please. Tudo isso eu ainda posso arriscar, sem que um médico, daqueles chatos, venha me dizer para moderar a gula. Sempre fui mais gourmand do que gourmet, mas acho que, a partir de agora, deveria ser mais deste último do que daquele.

Alguma confissão? (Procure não enrolar os outros ou praticar o autoengano.)
            Tenho de pensar seriamente antes de responder esta questão. Mas, como você vê, estou enrolando, mais uma vez. Acho que sou pretensioso demais, um metido a sabido, pretenso conhecedor de tudo, quando sou, na verdade, apenas um esforçado (nas leituras, certamente). Acho que também sou um pouco arrogante, com essa mania de ter lido mais do que os outros, o que deve ser insuportável para as pessoas “normais”. Penitencio-me por essas falhas, pois, e peço desculpas aos ofendidos. Sinceramente.

Além de ler, e de fazer resenhas, o que mais você fez nestes “nn” anos de vida?
            Bem, para conseguir fazer isso tudo, deixei de dormir, “nn” anos. O que eu mais fiz, portanto, foi vigília forçada, danosa, prejudicial à saúde mental pessoal e ao bem estar familiar. Isso, do lado ruim. Do lado bom, acho que me esforcei, sinceramente, para melhorar a vida das pessoas que me cercam, sobretudo pelo engrandecimento cultural ou intelectual. Acho que consegui fazer isso, embora não possa medir a eficácia real da minha ação. Acho que ela foi ínfima, em escala social, mas cada um faz o que pode.

O que o faz pensar que sua vida foi útil, para si mesmo, para a família e os demais?
            Pelo meu critério, pretendo (mas ainda não consegui) deixar o mundo melhor do que o que encontrei, ou o que me foi dado. Existe falso altruísmo nisso? Talvez, mas essa é a minha maneira de conseguir prestígio e reconhecimento, o que pode ser uma forma de egoísmo, também. Em todo caso, como não enriqueci às custas de ninguém – nunca pretendi, aliás, ficar rico no sentido material do termo –, nem tentei conseguir posições de mando praticando a usual arte da hipocrisia (que é comum nos políticos), acredito que fui útil no sentido mais banal do termo: pratiquei mais o bem do que o mal, mais contribui para o enriquecimento moral da humanidade do que agreguei aos elementos de egoísmo ou de individualismo excessivos que caracterizam as sociedades, em todas as épocas.
            Minha família talvez tenha outro julgamento quanto ao meu desempenho como pai, companheiro, orientador, mas espero não ter decepcionado a maior parte das pessoas que me cercam. Não vou encomendar pesquisas para recolher a opinião dos demais, mas uma consulta informal quanto à minha imagem talvez não fosse de todo descabida. 

Alguma regra de vida, alguma filosofia, mesmo barata?
            Aprenda, sempre, e ensine, o que sabe. Acumule e dissemine conhecimentos, seus e dos outros, processe e divulgue o que adquiriu no contato com os livros, na experiência de vida, na reflexão pausada, no contato com pessoas mais espertas do que você. Sempre se pode aprender algo de bom, de quaisquer experiências, mesmo as mais negativas. A humanidade só consegue avançar, no sentido moral da palavra “progresso”, quando as experiências e os saberes adquiridos são colocados à disposição do maior número.

Já preparou seu testamento (pelo menos intelectual)?
            Era só o que me faltava (e isso tem um lado fúnebre). Acho que, de certa forma, comecei agora mesmo, embora eu pretenda desenvolver isso em algum texto futuro (provavelmente sob a forma de um “testamento ético”). Em todo caso, preciso encontrar tempo para terminar de ler todos os meus livros (e depois distribuí-los). Acho que para isso precisarei de algo como 150 anos adicionais. Não sei se disporei de todo esse tempo.

Que mensagem importante deixaria ao mundo, na sua lápide, por exemplo?
            Um possível epitáfio (aliás vários, mas acho que tenho direito): “Foi feliz ao fazer o que fez. Aprendeu que o maior bem do mundo é converter-se em um multiplicador de conhecimentos. A humanidade não perde nada em dispor de indivíduos mais espertos, ou, pelo menos, de pessoas menos ignorantes. Esforçou-se para aumentar o número dos primeiros e diminuir o dos segundos, mas nem sempre foi bem sucedido. Não se pode fazer milagres…”

Bem, feliz aniversário, apesar de tudo.
Como “apesar de tudo”? O que fiz de errado ou de substancialmente equivocado? Que pessimismo é esse? A despeito das patifarias acumuladas pelos que nos comandam, nestes tempos de hipocrisia generalizada, de tantas falcatruas cometidas em nome do bem comum, de tanta roubalheira não sancionada pela justiça, a despeito disso tudo, creio que posso afirmar, como naquele filme singelo sobre o holocausto, que “a vida é bela!”
Acho que mereço desfrutar da vida como todo e qualquer indivíduo da espécie humana, de forma tão mais merecida quanto me sinto legitimamente orgulhoso ao olhar para trás e ver que, apesar do pouco que realizei, o que eu fiz, até aqui, pode ter servido, realmente, para tornar a vida de algumas pessoas um pouco melhor do que ela teria sido na minha ausência.
Cheers
  
Paulo Roberto de Almeida
Brasília, 19 de novembro de 2006

Conselhos de um contrarianista a jovens internacionalistas (2005) - Paulo Roberto de Almeida


Conselhos de um contrarianista a jovens internacionalistas

Paulo Roberto de Almeida
Alocução de patrono na XI turma (2º semestre de 2004) de
Relações internacionais da Universidade Católica de Brasília
(10 de março de 2005, 20hs, Auditório S. João Batista de La Salle)

Senhora representante da Magnífica Reitora da Universidade Católica,
Senhor Paraninfo, Geraldo Magela,
Senhores professores homenageados,
Senhoras e senhores demais membros da mesa e autoridades presentes,
Meus caríssimos alunos e agora formandos em relações internacionais,

Confesso que quando a Comissão de Formatura desta turma de relações internacionais da Universidade Católica me procurou, cerca de dois meses atrás, para formular este honroso convite de “patrono” de sua formatura, me senti verdadeiramente orgulhoso de tê-lo feito por merecer. Já lá se vai mais de um quarto de século que me exerço nas lides da diplomacia profissional, com uma dedicação paralela às “coisas internacionais”. Por “coisas”, vão aqui compreendidas a pesquisa, geralmente solitária, o ensino, sempre voluntário e irregular, ao sabor de uma vida nômade a serviço do Brasil, e a redação e publicação de textos de caráter didático em torno das questões das relações internacionais, da história diplomática e, sobretudo, da inserção internacional do Brasil. No entanto, ao longo desse tempo todo, não havia tido ainda a satisfação de receber um convite como este que vocês me fizeram, o que me desvaneceu, de verdade.
Minhas primeiras palavras, portanto, são de agradecimento sincero a todos vocês pela lembrança, pelo gesto simpático e pelo carinho demonstrados. Isso me incita a continuar retribuindo, nos anos que ainda tenho de exercício profissional e acadêmico, produzindo de forma ainda mais intensa no campo das relações internacionais, sempre com sentido didático. Isso nada mais representa, afinal de contas, do que uma modesta retribuição de minha parte à sociedade brasileira, por tudo que ela me deu em termos de formação educacional nos quadros do ensino público.

Vocês também me prestaram a homenagem de transcrever no convite, ainda que de forma abreviada e livremente adaptadas, mas muito bem resumidas, as dez novas regras de diplomacia que eu havia elaborado, em agosto de 2001, a partir da leitura de um velho livro do século XIX sobre quatro regras de diplomacia, para justamente ilustrar as reflexões contemporâneas de meus jovens colegas diplomatas e outros tantos candidatos à carreira. Esse gesto me incita a retomar algumas delas e tentar elaborar, nesta noite, alguns poucos conselhos que um velho contrarianista do século XX, como eu, poderia dar a jovens internacionalistas do século XXI, como vocês.
Digo “contrarianista” sem qualquer espírito opositor ou anarquista, ainda que estes sentimentos sejam igualmente legítimos em sociedades plenamente democráticas, como pretende ser a nossa. Meu espírito contrarianista deriva do fato de que eu nunca quis ou pretendi me submeter ao argumento da autoridade, mas sim aceito, com prazer e voluntariamente, a autoridade do argumento. Num cenário de diálogo socrático e de dedicação honesta à busca da verdade, como deve ser o ambiente acadêmico, desejo reformular algumas dessas regras, para melhor iluminar o que me parecem ser qualidades essenciais ao jovem internacionalista de nossos tempos.

Inicialmente, eu destacaria a última regra e, agora, a colocaria em primeiro lugar. Não se deve fazer da carreira profissional, seja no campo da diplomacia ou em outras atividades ligadas de perto ou de longe com as questões internacionais, o foco exclusivo de sua vida e, sobretudo, não se deve passar a carreira à frente da família, dos amigos e das pessoas com quem convivemos no ambiente familiar ou de trabalho.
A carreira profissional, qualquer que seja ela, é importante, mas as pessoas, sobretudo os indivíduos que nos são caros, são ainda mais importantes do que ela. Podemos, por certo, mudar de carreira, uma ou várias vezes na vida, podemos até mudar nossos relacionamentos individuais, mas os familiares e nossos amigos mais chegados estarão sempre lá para nos ajudar nas horas difíceis, para nos confortar em determinados momentos, para nos trazer alegrias em várias ocasiões.
Por isso, meus caros formandos, contrariem o carreirismo e sejam, antes de mais nada, profissionais que vêem nas pessoas, de fato, o centro da vida.

Eu diria, em segundo lugar, que algo se ganha ao contrariar o próprio princípio da autoridade, desde que, é claro, vocês tenham absoluta certeza sobre a fundamentação da posição de vocês sobre um assunto qualquer. Regras hierárquicas e disciplina são boas de serem cumpridas na execução de tarefas que exigem uma linha de comando definida, inquestionável, em função da implementação de uma decisão maduramente refletida e alcançada graças a um processo decisório bem estruturado e solidamente bem estabelecido.
Mas, a hierarquia e a disciplina não podem entravar a liberdade de pensamento, em especial a defesa de posições de maior valor agregado, que conseguem realizar uma otimização “paretiana” dos recursos e meios disponíveis para a tomada de ação. A contestação, pelo simples prazer de contrariar, não me parece levar a resultados ótimos, mas sim pode-se e deve-se praticar o questionamento honesto, o ceticismo sadio, a desconfiança metodológica em relação às verdades reveladas, por mais que elas tenham sido formuladas por alguma autoridade imbuída do seu poder autocrático.
Por isso, não tenham medo de expor e de defender com firmeza suas opiniões, se elas refletem, efetivamente, um conhecimento fundamentado do problema em pauta, e isso mesmo que uma “autoridade superior” ostente uma opinião diversa da de vocês.

Por esse motivo, e aqui vai minha terceira regra, contrariem o desejo, ainda que compreensível, de aposentar os livros e deixar os estudos de lado, agora que vocês têm um canudo na mão e algumas idéias na cabeça. Ao contrário, sejam opositores sistemáticos da aposentadoria precoce nos estudos, e voltem imediatamente às leituras, às bibliotecas, às livrarias, às pesquisas de internet.
Não parem de estudar, em nenhum momento da vida. Aliás, comecem a fazê-lo imediatamente, assim que saírem daqui. Afinal de contas, até agora, vocês fizeram, em grande medida, aquilo que os professores determinaram que vocês fizessem, com uma série de leituras chatas e outras tantas obrigações impostas.
Neste momento, cabe a vocês mesmos imporem a si mesmos um programa sistemático de estudos e de leituras que melhor se conformar às habilidades, gostos e orientações particulares de cada um. Sejam, portanto, contrários ao estudo dirigido e estabeleçam, vocês mesmos, um plano regular de dedicação à formação metódica da especialidade que vocês pretendem ter na vida.
A universidade é uma grande fonte de generalidades e mesmo de algumas banalidades repassadas ao longo dos anos, numa repetição por vezes aborrecida do saber acumulado. O que vocês devem fazer agora é construir o seu próprio saber e para isso vão precisar continuar estudando. Apenas com base num saber específico, que dê a cada um de vocês o melhor desempenho possível numa determinada vertente profissional, vocês terão sucesso na vida e no trabalho. Por isso, mãos à obra: coloquem o canudo de lado e comecem a estudar de novo.

Dessa característica de estudo constante, e totalmente dedicado à expansão contínua do saber em todos os ramos do conhecimento humano, derivam duas outras regras que eu havia inscrito em meu decálogo de quatro anos atrás: possuir o domínio total de cada assunto do qual nos vamos ocupar profissionalmente, o que significa aprofundar o conhecimento daquele tema em pesquisas paralelas e correlatas, adotando, ao mesmo tempo ou paralelamente, uma perspectiva histórica e estrutural de cada tema, situando-o no seu contexto próprio.
Apenas com base nesse conhecimento suplementar, vocês saberão se opor, se for o caso, ao princípio primário da autoridade e ter condições de manter independência de julgamento em relação às idéias recebidas e às “verdades reveladas”. A autoridade do argumento só se sustenta com um saber superior, solidamente embasado nos dados da realidade e apoiado em pesquisas comparativas ou no conhecimento de outras experiências que podem ser relevantes para um caso porventura similar.
O “ser contrário” significa, em princípio, possuir um argumento dotado de autoridade superior, embasado em dados mais amplos e um domínio mais seguro da realidade. Claro, podemos ser vencidos pela força bruta, pela imposição da hierarquia ou do poder simplesmente incontestável e incontrastável. Mas aí não estamos falando de métodos socráticos de busca da verdade ou de formação de um consenso no processo decisório, e sim da vontade unilateral, o que não deveria valer no ambiente sadio da pesquisa acadêmica ou mesmo da organização burocrática racionalmente estruturada.
A regra é esta: para vocês serem contrários ao lugar comum, ao déjà vu, ao habitual costumeiro, vocês precisarão construir um saber superior e expô-lo com clareza. E isso nos faz voltar à necessidade já referida do estudo constante, do esforço feito sob a forma da pesquisa individual e de leituras contínuas. A geração de vocês leva uma enorme vantagem em relação àquelas que a precederam: hoje em dia, com os recursos existentes on-line, praticamente 90% do estoque acumulado de conhecimento produzido pela humanidade, até aqui, está livremente disponível na internet, bastando um pouco de destreza lingüística para desfrutar desse imenso saber.

Vocês também podem ser contrários aos interesses político-partidários, às ideologias do momento e às conjunturas políticas de uma dada maioria governamental, mas isto não é uma regra absoluta. Digo isto porque várias carreiras, sobretudo aquelas fortemente dependentes de uma determinada estruturação hierárquica que tem no seu pináculo uma autoridade política qualquer, podem ser levadas ao fenômeno bem conhecido do “adesismo”, ou seja, aquela aderência momentânea aos senhores da hora, às idéias temporariamente dominantes, às situações de adequação oportunista às novas condições do exercício do poder, que sempre vem associado às benesses e favores distribuídos em direção daqueles que partilham, ou fingem fazê-lo, as mesmas opiniões daqueles que justamente ocupam o poder naquele dado momento.
Não estou excluindo, por certo, que algum partido ou agrupamento político consiga encarnar, num determinado momento da vida da Nação, os anseios ou as aspirações da maioria, conseguindo traduzir de modo prático aquilo que normalmente se chama de “vontade nacional”. Este é um fato, aliás corriqueiro nas democracias. O que estou dizendo é que vocês precisam ter absolutamente claros, para vocês e no exercício de alguma atividade profissional, quais são os grandes princípios de atuação do país a serviço do qual se colocam, isto é, quais são, se é que possível saber de verdade, os chamados “interesses nacionais permanentes”.

É com base numa compreensão desse tipo que eu formulei minha primeira regra e uma outra que dela também deriva: servir a pátria, mais do que aos governos, e afastar ideologias ou interesses político-partidários das considerações relativas à política externa do país, que precisa assumir um caráter nacional abrangente, e não meramente setorial ou corporativo.
Para que isso se faça, é preciso, repito ainda uma vez, conhecer profundamente os interesses permanentes da nação e do povo aos quais se serve, e por isso volto ao tema do estudo contínuo.
É preciso, da mesma forma, não aderir a modismos em matéria de “explicações definitivas” das causas das nossas mazelas e iniqüidades: elas são certamente muitas e provavelmente têm causas mais complexas do que certas “racionalizações inovadoras” que pretendem deter a chave milagrosa para a solução de todos os problemas brasileiros. O ser contrário à subserviência ao poder político do momento é também uma atitude de coragem moral e de honestidade intelectual, já que a razão do poder nem sempre se coaduna com o poder da razão, mas esta é, como disse, uma regra não absoluta.

Em resumo ‑ e terminando por aqui este meu exercício de contrarianismo bem intencionado ‑, não pretendo que minhas regras subjetivas, certamente derivadas de um espírito inquieto e ainda rebelde, mas sempre aberto à causa do conhecimento, sirvam de guia absoluto na determinação do itinerário profissional que vocês empreenderão a partir daqui. Cada um definirá com base em sua própria experiência de vida, com o apoio e os conselhos dos familiares, dos professores e dos amigos, qual o melhor curso a seguir no plano profissional ou ainda da continuação dos estudos, agora em nível de pós-graduação, o que recomendo vivamente.
O que eu pretendi inculcar em vocês é a idéia da mente aberta, dotada de ceticismo sadio, contestadora das verdades reveladas e orientada para a busca honesta do saber e da maior eficiência possível no desempenho das atividades profissionais ou dos estudos futuros no terreno da especialização. Vocês agora vão deixar para trás uma etapa da vida e começar outra, mas devem sempre encarar os próximos desafios com toda a modéstia que requer o enfrentamento de cada nova situação de vida: deixar a suficiência de lado e buscar a excelência, em tudo e de todas as maneiras, sabendo que só a dedicação plena ao estudo continuado lhes poderá abrir o caminho para algumas rotas de sucesso profissional e pessoal.
Eu aprendi dessa maneira: vindo de uma família modesta, como é a maioria daquelas dos que aqui se formam hoje, consegui, à custa de muito estudo e dedicação pessoal, distinguir-me na carreira profissional e nas atividades acadêmicas, a ponto de me fazer merecedor da homenagem que vocês tão gentilmente quiseram me prestar nesta data, ao me fazer patrono desta turma de relações internacionais.
Vocês podem, em primeiro lugar, agradecer e retribuir à família e a todos aqueles que os ajudaram a conseguir o diploma que a partir de hoje passam a ostentar. Vocês devem ter, em segundo lugar, consciência de que o maior motivo de orgulho, não é necessariamente o canudo certificador do mérito alcançado, mas mais precisamente o fato de que vocês adquiram nesta escola algumas técnicas de aprendizado que devem ser internalizadas e aproveitadas em todo e qualquer momento da vida futura. Vocês aqui aprenderam tão simplesmente a aprender: comecem agora a estudar de verdade, e tenham sucesso na vida profissional e pessoal. Mãos à obra, de volta aos livros, e sejam felizes na vida.
Meus sinceros parabéns e, por esta oportunidade que me foi dada de me dirigir a alguns dos meus, até aqui, desconhecidos leitores, meu muito obrigado a todos vocês.

Paulo Roberto de Almeida
6-8 de março de 2005

O Ser Diplomata (2006) - Paulo Roberto de Almeida


O Ser Diplomata
Reflexões anárquicas sobre uma indefinível condição profissional

Paulo Roberto de Almeida
Reflexões sobre a profissionalização em relações internacionais,
na vertente diplomacia, para palestra em 4 de maio de 2006
(Ciclo de Debates da Pacta Consultoria, Brasília, dia 4/05, às 19h30).


1) Não se é diplomata, acredito, como se é economista, ou advogado, ou médico. Nós, diplomatas, não pertencemos a nenhuma guilda medieval, a nenhuma corporação de ofício, a nenhuma ordem feita de requisitos estanques, ainda que muitos nos comparem a uma casta, ou a um estamento social, numa acepção bem mais difusa deste conceito weberiano. Ou seja, ser diplomata não é simplesmente uma questão de profissão; é uma vocação, uma questão de status, quase que uma missão, o chamado calling, examinado por Weber em seu famoso estudo sobre a ética protestante e o espírito do capitalismo.
2) Ser diplomata não é apenas uma questão de nomadismo, de gostar de viajar ou de viver fora do país; ser diplomata é ser, antes de mais nada, um ser com raízes na sua terra, um servidor público na acepção mais completa dessa palavra, um funcionário do Estado, antes que de um governo e, como tal, estar identificado com a nação ou com a sociedade da qual se emergiu, na qual nos formamos e para a qual desejamos legar uma situação melhor do que aquela que recebemos de nossos pais e antecessores.
3) Ser diplomata não resulta, simplesmente, de um treinamento ad hoc, adquirido num desses cursinhos preparatórios de seis meses ou um ano, feitos de muita decoreba, alguma simulação para os exames e uma leitura sôfrega da bibliografia recomendada, por mais que ela seja ampla. Ser diplomata resulta de uma preparação de longo curso, adquirida no contato constante com uma cultura superior à da média da sociedade, no cultivo da leitura descompromissada com a aquisição de qualquer saber instrumental, resulta da curiosidade atemporal por todas as culturas e sociedades, passadas ou presentes e, sobretudo, da contemplação ativa da realidade, daquilo que um dramaturgo brasileiro famoso, Nelson Rodrigues, chamava de “a vida como ela é”.
4) Ser diplomata não é estar ou viver obcecado pela diplomacia, fazer dessa atividade o seu último ou supremo objetivo de vida, a sua única ocupação possível ou imaginável, sem outros afazeres ou hobbies. Ser diplomata, ser um bom diplomata significa, também, fazer algo mais no seu itinerário de vida, ter uma outra ocupação, uma distração, um divertissement, ou hobby, outras obsessões e amores na existência, de maneira a poder enfrentar a diversidade da vida, inclusive os altos e baixos da própria diplomacia, quando descobrimos que nem todo diplomata é exatamente um diplomata, naquela acepção que emprestamos ao termo. Ser um bom diplomata é se ver imaginando que, “se eu não fosse diplomata, o que mais, exatamente, eu gostaria de ser?; de onde mais eu poderia tirar motivos de satisfação, aonde mais eu poderia colaborar, com pleno gosto, com a sociedade na qual me formei, no país onde vivo?”. Se soubermos bem responder a esta questão, “o que eu faria se não fosse diplomata?”, já se tem meio caminho andado para ser um bom diplomata...
5) Ser diplomata é saber se colocar acima das paixões e dos modismos do presente, transcender interesses políticos conjunturais, em favor de uma visão de mais longo prazo, afastar posições partidárias ou de grupos e movimentos com inserção parcial ou setorial na sociedade, em favor de uma visão nacional e uma perspectiva de mais longo prazo. Significa, sobretudo, contrapor às preferências ideológicas pessoais, ou de grupos momentaneamente dominantes, ou dirigentes, uma noção clara do que sejam os interesses nacionais permanentes.

Muito bem, uma vez dito o que acabo de expor, o que mais eu poderia dizer a vocês, ávidos de uma legítima curiosidade sobre os segredos da carreira diplomática, sobre o que é ser diplomata, enquanto profissão, enquanto vocação?
É claro que tudo começa em poder ser diplomata, em poder ingressar na carreira, em passar pelo crivo dos exames de entrada, dos requisitos de desempenho na soleira da profissão, ou seja, ultrapassar a porteira da entrada do concurso público: aberto, secreto, universal (ou quase).
Para isso, minha primeira e principal recomendação seria: pense numa preparação de longo curso, de longue haleine, diriam os franceses. E, sobretudo, pensem numa formação essencialmente autodidata. Isto por uma razão muito simples: por melhor que seja um curso universitário, e certamente existem dos bons, dos maus e dos feios, as “faculdades Tabajara”, como dizemos, por melhores que sejam esses cursos, eles nunca vão dar a vocês tudo aquilo de que vocês necessitam para entrar e para ser, já não digo um diplomata prêmio Nobel, mas um bom diplomata, de primeira linha. Quem vai prover o essencial da formação de vocês, são vocês mesmos, é o esforço individual, é o empenho pessoal no auto-aperfeiçoamento, no estudo voluntário, na pesquisa constante.
Em segundo lugar, eu diria que o recomendável seria ter a diplomacia como uma aspiração e, ao mesmo tempo, preparar-se para uma profissão “normal” – não que a diplomacia seja “anormal”, mas ela é relativamente excepcional, só uns poucos são chamados a exercê-la e seria uma pena que todos os demais, não chamados a servir o país nessa área, vivam uma existência de adultos frustrados, de profissionais desgostosos com o que foram levados a trabalhar. Por isso, eu colocaria a diplomacia numa espécie de Gólgota algo inatingível, uma montanha escarpada à qual se ascende com certo sacrifício pessoal (em alguns casos familiar, também), uma recompensa depois de muita labuta. Profissionais que já conheceram experiências diversas na vida civil costumam fazer bons diplomatas; o que não quer dizer que aqueles jovens saídos dos bancos universitários diretamente para a carreira não façam, ou não sejam, bons diplomatas; ao contrário: bem vocacionados, eles farão tudo o que estiver ao seu alcance para bem servir ao Estado e à nação. Mas, alguém dotado de competências outras que não as simples artes diplomáticas – que são as da representação, da informação e da negociação, todos sabem – alguém assim saberá servir ao país com vários outros instrumentos e ferramentas adquiridos na vida prática, seja na veterinária, na engenharia, na agronomia, na economia doméstica ou no corte e costura, whatever...
Em terceiro lugar, eu diria que existem muitas formas de trabalho profissional e de expressão individual dentro das relações internacionais, dentro e fora da diplomacia, estrito senso. Existe a diplomacia empresarial, existe uma diplomacia do agronegócio, uma diplomacia das ONGs, dos jogadores de futebol – hoje um dos principais itens de exportação da pauta brasileira –, assim como existe uma diplomacia na própria academia, mas ela costuma ser das mais chatas, com suas vaidades e torres de marfim. Tudo é uma questão de competência e de dedicação. Sendo competentes na atividade que escolheram e estando contentes no desempenho quiçá temporário daquilo que estão fazendo, vocês serão felizes na vida, farão os outros felizes, e lutarão, talvez, pelo ingresso na carreira com a tranqüilidade que um exame desse tipo requer, não com o desespero ou a obsessão de uma batalha de vida ou morte. Sejam competentes e desempenhem as tarefas nas quais se encontram engajados e vocês já serão bons diplomatas, em qualquer hipótese e em qualquer profissão onde estiverem efetivamente colocados.
Minha mensagem central é justamente esta: o diplomata já é um ser realizado na vida, feliz consigo mesmo, confiante em seus estudos e em sua capacidade; conhecedor do mundo, mesmo que nunca tenha viajado de avião; curioso de todas as artes, mesmo que tenha estacionado num escritório durante vários anos; crítico dos seus professores, mesmo que nunca tenha ousado contestá-los em classe; anotador de livros; recortador de notícias de jornal e de páginas de revista; invasor de bibliotecas; delinqüente reincidente na arte de ler livros em livrarias – o que eu já fiz milhares de vezes –, enfim, uma pessoa totalmente à vontade nas artes do impossível e apaixonada por novos desafios.
Se vocês são um pouco assim, mesmo de forma distraída, desajeitada, totalmente sbagliatta, como diriam os italianos, se vocês também acham que sabem mais do que o chefe, então vocês já são diplomatas, só falta agora ingressar na carreira. Mas isso é uma mera formalidade.

Por fim, e termino aqui esta preleção, caberia abordar a carreira pelo lado prático: uma vez dentro da diplomacia, o que fazer exatamente? Ao lado, das missões clássicas, e tradicionais, do diplomata – que são as de informar, representar e negociar, sobre as quais não me estenderei por sua obviedade elementar –, existem aqueles que acreditam que o diplomata deve igualmente participar de uma espécie de projeto nacional, e aí sua missão seria, não apenas participar e contribuir para o processo de desenvolvimento do país, mas também engajar-se ativamente na transformação do mundo, de maneira a que este sirva, de maneira mais adequada, aos objetivos nacionais de desenvolvimento.
Sou cético quanto a essa extensão indevida das funções do diplomata, ainda que eu reconheça que nossas capacidades analíticas e por vezes executivas possam ser tão boas quanto as de qualquer especialista em políticas públicas. Defendo que o diplomata seja excelente nas suas funções tradicionais e, se possível, agregue valor ao seu trabalho pela dedicação paralela a atividades de pesquisa, similares, em grande medida, às que são conduzidas no âmbito da academia. Existe, obviamente, grande interface e uma notável similitude de métodos entre o trabalho acadêmico e o diplomático, naquilo que se refere à elaboração de estudos, position papers, diagnósticos de situação, reflexões prospectivas e tudo o mais que possa identificar-se com o processamento de informações. O diplomata, contudo, à diferença do seu colega de academia, não se limita a processar informações, ele as utiliza para elaborar posições negociadoras, para propor posturas práticas que o seu país deva assumir nos foros mundiais, nas relações bilaterais, nos desafios do sistema internacional.
Em determinadas instâncias negociadoras, o diplomata pode até ficar, no terreno de batalha, sem instruções precisas da capital quanto a que atitude adotar. Ele deverá portanto contar com todo o seu tirocínio e conhecimento do problema em causa, de molde a poder defender o interesse nacional da melhor forma possível. Na capital, ele deverá, na elaboração de posições, mobilizar todos os recursos técnicos e humanos de diferentes agências governamentais e alguns até privados, de maneira a extrair, na postura negociadora, o máximo de benefícios para o país num determinado contexto negociador.
Em última instância, a matéria-prima essencial do diplomata é a inteligência, e isso não depende de nenhuma fonte externa, mas de sua própria capacidade em acolher todo tipo de conhecimento e colocar essa informação a serviço de seu país.
Abraçando a carreira diplomática, vocês abordam uma carreira aberta sobretudo à inteligência. Cada um deve confiar em sua própria capacidade de trabalho e abrir-se o tempo todo a novos conhecimentos.
Muito obrigado...



Vôo São Paulo-Brasília (Gol 1778), 2 maio 2006, 4 p.
Revisão em 4.05.06. (1591).

Paraninfo da turma de RI do Uniceub em 2006 - Paulo Roberto de Almeida


Ser um bom internacionalista, nas condições atuais do Brasil significa, antes de tudo, ser um bom intérprete dos problemas do nosso próprio País.

Paulo Roberto de Almeida
Alocução de paraninfo na turma de formandos 2º/2005
do curso de Relações internacionais do Uniceub, Brasília
(16 de março de 2006, 20hs, Memorial Juscelino Kubitschek)

Senhor Coordenador do Curso de RI, Professor Marco Antonio de Meneses Silva, aqui representando todas as autoridades acadêmicas,
Senhora Patronesse homenageada, Raquel Boing Marinucci,
Senhores professores homenageados,
Meu caro amigo e dileto colega de carreira, Professor Rodrigo de Azeredo Santos,
Caro Professor Marcelo Gonçalves do Valle,
Senhora funcionária homenageada, Vanessa de Faria Campanella,
Senhoras e senhores pais e demais autoridades e colegas professores presentes,
Meus caríssimos alunos e agora formandos em relações internacionais,

Estou ligado a este centro universitário a bem mais tempo do que minha curta carreira de professor poderia sugerir. A despeito de ter ingressado como professor nos cursos da faculdade de Direito apenas em 2004, sob pressão do dileto amigo e coordenador, Marcelo Varella, eu já freqüentava o campus do Uniceub desde algum tempo, já que minha esposa, Carmen Lícia Palazzo, lecionou no curso de história durante vários anos. Também estou ligado a esta cidade há muitos anos, quando para cá me mudei, em 1977, ao ingressar na carreira diplomática, tendo servido ao Brasil, por mais de 28 anos, aqui e no exterior. Lembro-me, por exemplo, de, recém chegado a Brasília, ter vindo uma vez ao modesto campus do então Ceub, para ver, acompanhado de colega diplomata, um encarregado de cursos. Naquela ocasião, uma remoção precoce para o exterior impediu que eu me vinculasse à instituição, numa fase que antecede, provavelmente, ao nascimento e à idade atual da maior parte de vocês, que hoje se formam.
Mantive contato preliminar com o curso de relações internacionais do Uniceub ainda em seu estabelecimento, fazendo ali uma palestra antes de minha partida para a Embaixada em Washington, em 1999. Voltei depois em outras ocasiões, para palestras ou encontros com professores. Em todas essas oportunidades, testemunhei o empenho desta instituição em oferecer um curso de RI que se igualasse aos melhores do Brasil e que servisse, adequadamente, aos propósitos de cada um de vocês de obter a melhor formação possível, de maneira a habilitá-los a enfrentar a dura competição pelo trabalho na vida profissional ou a continuar os estudos em nível de pós-graduação.
Desejo, antes de tudo, agradecer a todos pelo honroso convite para servir de paraninfo nesta cerimônia de colação de grau. Isto se deve, aparentemente, ao fato de que eu possa ter servido como uma espécie de bibliografia ambulante, ou seja, de que alguns de meus livros possam ter eventualmente ajudado no propósito de iniciá-los nos meandros das relações internacionais, ou, melhor ainda, à chance de que vários de meus textos estejam livremente disponíveis em meu site na internet, podendo, assim, ter salvado mais de um trabalho de última hora. Foi para isso mesmo que montei, e continuo a alimentar, um site que oferece uma espécie de concorrência desleal a vários dos meus editores. Mas nenhum deles ainda protestou por isso.

Meus caros formandos,
Creio já ter oferecido, por meio de meus livros, palestras ou textos esparsos, mais de uma contribuição ao estudo e à formação na área das relações internacionais no Brasil e do Brasil. Assim, não pretendo voltar a tocar, agora, nos temas que ocuparam seus dias e noites nos últimos quatro ou cinco anos, o que faz uma boa parcela de vida. Prefiro deixar as relações internacionais de lado e ocupar-me daquilo que na verdade tem sido a minha paixão e que representa grande parte de meus desesperos no último meio século, ou quase: o próprio Brasil.
Intitulei esta alocução, ainda que vocês não possam ver este texto (mas ele já está em meu site), desta forma: “ser um bom internacionalista, nas condições atuais do Brasil, significa, antes de tudo, ser um bom intérprete dos problemas do nosso próprio País”. O que eu quero dizer com isto?
Vocês adquiriram uma formação de internacionalista ou, pelo menos, pagaram para isso. O canudo recebido, no entanto, é uma simples formalidade, pois a verdadeira formação de vocês deve ser feita no exercício profissional e no estudo constante e continuado das matérias que os ocuparam nos últimos anos e muitas outras mais. Qualquer que seja a universidade, e sua excelência relativa, ela nunca vai poder fornecer, a cada um, todos os elementos de formação de que necessitam para convertê-los em bons profissionais na vida prática. Por isso, o aperfeiçoamento constante e o estudo regular, na base do autodidatismo e das leituras auto-impostas, devem ser a norma que precisa continuar a pautar suas vidas daqui a diante. Minha primeira recomendação seria: assim que puserem o diploma na parede e enquadrarem as fotos de formatura, voltem aos estudos, em instituições ou por conta própria. Não parem, sobretudo, de se especializar e de enriquecer o currículo com novas fontes de saber e de conhecimento, adequadas à carreira que vocês pretendem seguir.
Mas o meu argumento, hoje, é o de que, independentemente da carreira que vocês vão agora perseguir ou, em alguns casos, continuar e a despeito de quaisquer projetos que vocês possam ter na área de relações internacionais, vocês são, essencial e fundamentalmente, internacionalistas brasileiros. Eu gostaria de acentuar o adjetivo, isto é, vocês são profissionais atuando a partir da realidade brasileira e possuindo uma visão global que busca, ou que pelo menos deveria buscar, interpretar o mundo a partir do Brasil, de seus problemas e de suas necessidades.

Quero dizer basicamente o seguinte: o Brasil construiu, ao longo das últimas décadas, uma economia industrial relativamente desenvolvida, sob certos aspectos até sofisticada, haja vista a capacitação tecnológica exibida em várias áreas avançadas, como na construção aeroespacial ou no agronegócio como um todo. Ele também consolidou, no decorrer das últimas duas décadas, um sistema democrático fundamentalmente estável, ainda que nossa democracia seja de baixa qualidade intrínseca e de pouca densidade institucional, na qual os direitos fundamentais do cidadão, sobretudo os mais humildes, nem sempre são respeitados. Ele conseguiu montar, igualmente, um sistema científico de inegáveis méritos ao nível da pesquisa básica, mesmo se deixando muito a desejar, ainda, no que se refere à transposição desta para o plano do desenvolvimento tecnológico.
Não obstante deficiências estruturais e sistêmicas, que dificultam um processo sustentado de crescimento econômico a ritmos desejáveis e necessários, para fins de distribuição de seus frutos, basicamente em virtude da excessiva carga tributária que caracteriza nosso país, o Brasil possui uma economia moderna e competitiva capaz de rivalizar com outros países emergentes ou, em determinados setores, com as nações mais avançadas, em termos de desenvolvimento material. Por isso mesmo, estava parcialmente correto o líder político que disse que o Brasil não é mais um país subdesenvolvido, mas um país fundamentalmente injusto, ainda que uma coisa possa não obstaculizar a outra, uma vez que a injustiça pode, também, ser revelada pelo subdesenvolvimento relativo de determinadas instituições, entre elas as educacionais, ou da própria justiça, cujas condições de morosidade e de incerteza quanto à jurisprudência podem igualmente impactar negativamente o ritmo de crescimento econômico.
Em outros termos, o Brasil já não apresenta, no plano técnico, obstáculos intransponíveis aos processos de modernização tecnológica e de aprimoramento da gestão empresarial, mas ele ostenta, sim, graves problemas distributivos e várias outras disfuncionalidades em sua organização institucional. Todos esses problemas têm uma origem essencialmente doméstica, eles são 100% “made in Brazil”, foram criados por nós mesmos e só poderão encontrar soluções, todas elas internas, a partir de nossos próprios esforços e por uma vontade nacional genuinamente auto-induzida.
Esta minha convicção se baseia em simples observação dos problemas básicos do Brasil atual. E quais são eles? Baixo crescimento econômico, insegurança e violência na vida cotidiana, déficits orçamentários e graves problemas fiscais, desequilíbrios regionais e enormes desigualdades sociais, disfuncionalidades nas instituições políticas e corrupção nos negócios públicos, má qualidade da educação, deterioração do meio ambiente, inclusive urbano, descrença, enfim, no futuro do país, de que é prova visível o crescente movimento migratório, num país que se caracterizou sempre pelo acolhimento de todo tipo de estrangeiro.
Todos esses problemas não resultam de uma alegada dominação estrangeira sobre nossos recursos naturais, de qualquer imposição imperialista quanto ao usufruto de nosso trabalho produtivo, de nenhuma compulsão exterior ao nosso próprio modo de vida, no que se refere ao funcionamento das principais instituições nacionais, de nenhum complô alienígena que visaria, supostamente, impedir nossa capacitação tecnológica ou o exercício de uma pretendida liderança natural na região.
O que tem a ver, por exemplo, uma imaginária dominação imperialista com a nossa não tão prosaica corrupção política? Em que os capitalistas estrangeiros seriam responsáveis pela má qualidade da educação brasileira, ou pela falta de segurança em nossas metrópoles, ou pelo mau estado de nossas estradas, ou pela condição calamitosa do atendimento hospitalar para as pessoas de baixa renda? Por que, em outra vertente, o FMI seria culpado pelo déficit estrutural e pelo descalabro e crise previsível do nosso sistema previdenciário? Em que sentido o sistema financeiro internacional estaria na origem dos nossos desequilíbrios orçamentários ou seria capaz de impor essas taxas de juros absurdamente altas, quando elas resultam de nossa própria compulsão para o gasto sem medida e do acúmulo contínuo de uma dívida interna que vai continuar pesando na vida dos nossos filhos e netos? Por que não conseguimos crescer adequadamente, quando o mundo se expande a taxas que são o dobro das nossas e os emergentes fazem o triplo disso?
Não vejo, sinceramente, nenhuma origem estrangeira na raiz dos nossos males principais, assim como tampouco vislumbro qualquer solução vinda de fora a todos esses e cada um dos nossos problemas mais cruciais. Por isso mesmo, quando vejo essas imensas manifestações de protesto contra o “vil imperialismo” e contra a “globalização assimétrica”, em ruidosos fóruns que nos prometem “um outro mundo possível”, mas que sempre se esquecem de comunicar a receita milagrosa desse mundo imaginário, eu fico pensando se é por ingenuidade, por desfaçatez política ou por pura desonestidade intelectual que tantas pessoas medianamente bem informadas continuam a repetir esses slogans furibundos, tão cansativos quanto enganadores. Acho, sinceramente, que todas as reações paranóicas e xenófobas, para não falar de uma certa visão conspiratória da história, são não apenas anacrônicas, mas profundamente equivocadas e ilusórias.

Meus caros formandos,
Não nos deixemos iludir: as causas dos nossos angustiantes problemas estão aqui dentro mesmo, assim como terão de ser genuinamente nacionais os diagnósticos e as soluções factíveis a cada um deles. O verdadeiro internacionalista saberia, aliás, fazer essa constatação elementar: o sistema internacional oferece, por certo, desafios e riscos a qualquer país inserido nos circuitos da globalização econômica e da interdependência planetária, mas ele não é de nenhum modo responsável pelas nossas mazelas principais ou pelas nossas deficiências mais primárias.
A velha arenga das alegadas “perdas internacionais”, ou a responsabilização da “dependência externa” pelas notórias e manifestas carências da sociedade nacional já não convencem mais ninguém, e quem ousa ainda empreender esse tipo de discurso só pode ser chamado daquilo que é, verdadeiramente: ou um demagogo ou um simples enganador. De resto, seria precisa muita ingenuidade ou muita má-fé, para atribuir a outros as raízes de todos esses problemas a que já me referi.
Dessa forma, não tenho hesitação em afirmar: a primeira condição que vejo como importante para que vocês se habilitem enquanto internacionalistas competentes e enquanto profissionais eficientes seria uma leitura apropriada dos problemas nacionais. A partir daí, vocês serão capazes de exibir uma visão igualmente correta dos dados da realidade internacional, em sua dimensão própria e em sua interação com aqueles problemas domésticos. Vocês são internacionalistas brasileiros, mas a brasilidade deve vir antes do internacionalismo. Por isso, mesmo buscando uma maior especialização em questões internacionais, não deixem de estudar o Brasil e seus problemas. O bom internacionalista é aquele que sabe, em primeiro lugar, situar corretamente o seu país no quadro das relações internacionais, a partir dos dados primários da realidade nacional.
Por isso, sejam internacionalistas conseqüentes, começando por conhecer profundamente o seu próprio País! Esta é uma regra de ouro, que sempre guardei comigo, como guia para os meus estudos e trabalho durante toda a minha vida. De resto, todos e cada um dos meus livros, independentemente do conteúdo mais ou menos “diplomático” ou de “política internacional” que eles possam conter, tratam, básica e essencialmente, de um único personagem: o Brasil!

Meus sinceros parabéns a todos vocês, a seus pais e professores e o meu ainda mais sincero reconhecimento por esta oportunidade de dirigir-me a alguns dos meus, até aqui não revelados ou ainda pouco conhecidos, leitores. Sejam felizes, junto de seus familiares, amigos e colegas, mas lembrem-se sempre: o Brasil antes de tudo!

Muito obrigado!

Paulo Roberto de Almeida
[8 de março de 2006]

Meu primeiro emprego (nao foi a diplomacia) - Paulo Roberto de Almeida (2003)


Primeiro Emprego – Depoimento Pessoal e Reflexões

Paulo Roberto de Almeida
Respostas a perguntas colocadas pela Editora Abril
(para elaboração do Guia do Primeiro Emprego)

1) Qual foi o seu primeiro emprego na vida? E na área (se não tiver começado nessa área)? Quantos anos tinha nas ocasiões citadas?
            Comecei a trabalhar muito cedo na vida, em torno de 12 anos, em trabalhos informais de adolescente (clube de tenis e supermercado), nos quais não havia registro em carteira ou pagamento regular de salário. Entre os 16 e 20 anos, fui auxiliar de escritório em duas grandes empresas (brasileira e multinacional), ao mesmo tempo em que passei a estudar  (segundo ciclo do secundário) pela noite. Após uma longa interrupção para estudos universitários de graduação e mestrado, entre 1971 e 1976 (que realizei no exterior, combinado ao exercício não regular de atividades remuneradas), retornei ao Brasil em 1977, passando a desempenhar-me como professor em faculdades de São Paulo.
            Meu trabalho como servidor público federal, na carreira de diplomata, teve início em dezembro de 1977, já com 28 anos. Desde essa época (um quarto de século já), servi no exterior em diversas missões diplomáticas e no Brasil (Ministério das Relações Exteriores, em Brasília), geralmente na área econômica. Mais recentemente fui chefe da Divisão de Política Financeira e de Desenvolvimento do Itamaraty, de 1996 a 1999, e desde outubro daquele ano sou Ministro Conselheiro na Embaixada em Washington, o mais importante dos postos externos do Ministério das Relações Exteriores.

2) Como era seu relacionamento com o chefe (ou o superior)?
            Tive vários chefes ao longo de uma carreira profissional que teve início muito jovem na iniciativa privada e depois se prolongou, no essencial, no governo. Sempre gozei da confiança de meus chefes, pela dedicação demonstrada no trabalho e pela boa disposição em cumprir sempre um pouco mais do que seria normalmente esperado. Com um desses chefes, trabalhei em diversas ocasiões na carreira diplomática, o atual representante diplomático do Brasil em Washington, Embaixador Rubens Antônio Barbosa. Com ele trabalhei ao ingressar na carreira diplomática e três vezes mais, sempre a seu convite e na base da confiança pessoal: desde 1977, portanto, venho desfrutando da confiança de um dos diplomatas mais distinguidos do serviços exterior brasileiro.


3) Analisando o passado, existe algum erro ou deslize - engraçado ou até constrangedor - que acredita ter cometido por conta da idade, da falta de experiência?
            Sim, logo ao início da carreira diplomática, por ter ingressado por concurso direto e não mediante curso do Instituto Rio Branco, como costuma ser a norma, tinha pouca experiência com linguagem diplomática e procedimentos tícpicos da carreira. Meu primeiro telegrama escrito destoava totalmente do estilo habital empregado no serviço exterior, algo como se um “paisano” fosse chamado a exercer o comando de alguma tropa militar. Isso revela que uma boa preparação, com o conhecimento adequado de normas e procedimentos aplicados em qualquer profissão ou atividade, é absolutamente essencial para um bom desempenho profissional. A boa disciplina no exercício das funções também constitui requisito essencial quando se trabalha numa grande burocracia, pois a boa organização no trabalho depende de um certo número de regras de convivência.

4) Que lições tirou do primeiro emprego?
            Nunca se deve chegar num primeiro emprego como se não se necessitasse de treinamento ou aperfeiçoamento técnico e profissional. Atitudes do tipo “eu sei fazer”, “eu sei tudo”, “deixa comigo”, geralmente conduzem a desastres, ou pelo menos a situações de constrangimento funcional. Um pouco de humidade e uma boa disposição para aprender e, antes de tudo, para perguntar são essenciais para um bom desempenho nas etapas iniciais da carreira.
            Como regra geral, e não apenas no primeiro emprego, tenho por norma que o bom aprendizado se resume geralmente a duas fontes de conhecimento e de aprendizado: bons livros e convivência com gente mais esperta e experiente. Geralmente se aprende mais na leitura e no convívio com gente capacitada e com experiência do que nos estudos formais de escola, onde se perde tempo com matérias que pouco servirão na vida. Não estou recusando a ncessidade do diploma, ou da disciplina e sistemática que são próprios do ensino convencional, mas todos podem constatar a desadequação dos curriculos escolares – necessariamente tradicionais e defasados – em relação a aspectos práticos que serão úteis no desempenho profissional.
            Repito: se aprende muito nos livros e no contato com gente mais esperta, o que de certa forma confirma uma velha constatação do senso comum: o verdadeiro aprendizado é auto-didata e a escola pode ensinar alguma coisa, mas educação mesmo é um processo necessariamente pessoal e derivado do esforço individual.

5) Para alguém que está procurando emprego na área, quais cuidados você recomenda para o candidato à vaga se sair bem (cuidados com aparência e roupas, comportamento social, somente preparo intelectual, maturidade, etc)?
            A carreira diplomática é obviamente única nos seus requisitos de entrada, não apenas em termos de uma grande bagagem intelectual acumulada ao longo de anos de estudo e preparação dedicada, mas também no sentido em que o diplomata deve exibir algumas qualidades de convivência e de interação social que serão importantes no desempenho posterior. Por isso os exames de ingresso na carreira envolvem não apenas disciplinas tradicionais, mas também entrevistas diretas com banca examinadora que julga as aptidões do candidato para aquele tipo de exercício profissional (a maturidade entra em linha de conta nesse contexto, assim como o comportamento social). O cuidado com sua própria aparência (modo de vestir, portanto) também é avaliado.

6) Para finalizar, preciso de mais três informações: idade, local de nascimento e faculdade(s) que cursou.
            Nasci em 19 de novembro de 1949, na cidade de São Paulo: estou portanto com 53 anos atualmente, praticamente a metade vividos no exterior.
Iniciei estudos de ciências sociais na Universidade de São Paulo em 1969, tendo interrompido porém os estudos no curso do segundo ano, após que medida arbitrária do regime militar então em vigor resultou na aposentadoria compulsória de vários professores (entre eles Fernando Henrique Cardoso, Florestan Fernandes, Octavio Ianni e vários outros). Retomei os estudos na Universidade de Bruxelas, onde me graduei em Ciências Sociais em 1974, com a apresentação de dissertação de licenciatura intitulada “Ideologia e Política no Desenvolvimento Brasileiro, 1945-1964”.
Completei mestrado em planejamento econômica na Universidade de Antuérpia em 1976, com tese de economia internacional intitulada “Problemas Atuais do Comércio Exterior Brasileiro: uma avaliação do período 1968-1974”.
Fiz inscrição para doutoramento em Ciências Sociais na Universidade de Bruxelas em 1976, mas retornei ao Brasil em 1977 interrompendo os estudos para ingresso na carreira diplomática; eles só seriam retomados em 1981, quando refiz meu projeto de tese e efetuei nova inscrição, sempre na Universidade de Bruxelas. Obtive o doutoramento por essa universidade em 1984, com defesa de tese que mereceu “grande distinção” sobre “Classes sociais e poder político no Brasil: uma avaliação dos fundamentos empíricos e metodológicos da revolução burguesa”.
Já fui professor de Sociologia e de Economia Internacional em diversos cursos de graduação e de pós-graduação em São Paulo e Brasília, desde 1985, assim como sou professor convidado em várias universidades estrangeiras. Atualmente sou orientador de mestrado do Instituto Rio Branco, a academia diplomática do Ministério das Relações Exteriores. Tenho diversos livros publicados no Brasil e no exterior, como pode ser constatado em minha página pessoal: www.pralmeida.org.

Paulo Roberto de Almeida, Washington: 22 de maio de 2003