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Este blog trata basicamente de ideias, se possível inteligentes, para pessoas inteligentes. Ele também se ocupa de ideias aplicadas à política, em especial à política econômica. Ele constitui uma tentativa de manter um pensamento crítico e independente sobre livros, sobre questões culturais em geral, focando numa discussão bem informada sobre temas de relações internacionais e de política externa do Brasil. Para meus livros e ensaios ver o website: www.pralmeida.org. Para a maior parte de meus textos, ver minha página na plataforma Academia.edu, link: https://itamaraty.academia.edu/PauloRobertodeAlmeida;

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segunda-feira, 1 de junho de 2020

Um novo livro sobre a diplomacia brasileira - Paulo Roberto de Almeida

Quase na praça

(Não, esta não é a capa, apenas uma ilustração que aprecio)

Acabei de revisar e enviei para preparação editorial um novo livro que representa uma compilação de artigos meus sobre a política externa e a diplomacia brasileira.
Eu não o considero um "scholarly work", como se diz na academia americana, ou seja, ensaios dotados de consistência analítica, de aparato bibliográfico, consistindo num acréscimo ao estado da arte no terreno da política externa e da diplomacia brasileira.
Não, não pretendo que ele seja isso: trata-se de um livro de combate, contra o estado lamentável no qual se encontra atualmente tanto uma quanto outra.
Um amigo, do exterior, que sabe de meus escritos, me escreveu o que segue a propósito de meu trabalho. Ele primeiro comentou a minha listagem de trabalhos – apenas para fins de seleção para algum livro futuro, lista que já coloquei aqui https://diplomatizzando.blogspot.com/2020/05/listagem-de-trabalhos-sobre-relacoes.html
– e depois se refere ao novo livro: 


Votre sélection de travaux scientifiques est une vraie encyclopédie de l'analyse sur la politique extérieure du Brésil à travers les temps ! C'est très impressionnant. Un véritable "outil de référence" pour les chercheurs sur la diplomatie brésilienne. Je vais m'y "plonger" (comme on dit en français...). Même si j'en connais déjà, avec une grande joie intellectuelle, un certain nombre.

Quant à votre nouvel ouvrage, je comprends bien entendu fort bien votre état d'esprit... C'est celui d'un patriote, d'un universitaire, d'un diplomate, d'un chercheur qui travaille depuis des décennies au profit du rayonnement international du Brésil. Et qui voit tout cela être détruit systématiquement avec des effets catastrophiques. C'est donc ce que l'on peut appeler un "ouvrage de combat" ! Combat contre la bêtise, l'ignorance, la vilénie (un mot assez "vieille France"...), la méchanceté...

Transcrevo o índice deste livro, 
Dentro em breve o livro estará disponível..
Paulo Roberto de Almeida


O Itamaraty num labirinto de sombras: ensaios de política externa e de diplomacia brasileira
(Brasília: Diplomatizzando, 2020, 225 p.)

Índice

Prólogo     11

1. A política externa e a diplomacia em tempos de revolução cultural    17
2. De uma diplomacia a outra no Itamaraty: conceitos e práticas   23
3. A destruição da inteligência no Itamaraty   29
4. A ideologia da diplomacia brasileira      33
5. Os desastres da política externa do olavo-bolsonarismo    37
6. Questões de diplomacia e de política externa do Brasil     43
7. Desafios da diplomacia no Brasil, do lulopetismo ao bolsonarismo    51
8. O espectro do globalismo: a emergência da irracionalidade oficial    55
9. Manifesto Globalista     59
10. Um ornitorrinco no Itamaraty    71
11. O Itamaraty e a diplomacia brasileira em debate   75
12. Política externa e diplomacia brasileira no século XXI     83
13. A diplomacia brasileira em tempos de olavo-bolsonarismo     101
14. A diplomacia brasileira na corda bamba, sem qualquer equilíbrio   111
15. Pandemia global e pandemia nacional: um futuro pior que o passado    125
16. A diplomacia e a negociação como fundamentos das relações internacionais  135
17. Meu ‘manifesto’ diplomático: em defesa do Itamaraty  149
18. O mundo pós-pandemia: contextos políticos e tendências internacionais   153
19. A política externa e a diplomacia brasileira em tempos de pandemia global  167
20. A diplomacia brasileira em uma fase de inédito declínio histórico    197
22. O Itamaraty no seu labirinto    209

Apêndices:
Uma pequena reflexão sobre o trabalho de resistência intelectual      217
Livros publicados pelo autor     219
Nota sobre o autor     225

Frontispício


There are, if not universal values, at any rate a minimum without which societies could scarcely survive. Few today would wish to defend slavery or ritual murder or Nazi gas chambers or the torture of human beings for the sake of pleasure of profit or even political good – or the duty of children to denounce their parents, which the French and Russian revolutions demanded, or mindless killings. There is no justification for compromise on this. But on the other hand, the search for perfection does seem to me a recipe for bloodshed, no better even if it is demanded by the sincerest of idealists, the purest of heart. No more rigorous moralist than Immanuel Kant has ever lived, but even he said, in a moment of illumination, ‘Out of the crooked timber of humanity no straight thing was ever made.’ To force people into the neat uniforms demanded by dogmatically believed-in schemes is almost always the road to inhumanity.

Isaiah Berlin, “On the pursuit of ideal”, New York Review of Books (17/03/1988), In: Isaiah Berlin, The Proper Study of Mankind: an anthology of essays (London: Chatto & Windus, 1997), p. 15-16. 


Este livro é dedicado a todos os meu colegas de carreira que conseguem preservar a alta qualidade intelectual dos padrões de trabalho e o sentido de profissionalismo exemplar no desempenho de suas tarefas correntes no âmbito do Itamaraty, assim como aos que, além disso, se preocupam em pensar o passado, o presente e o futuro da política externa brasileira.


Prólogo



Desocupado lector: sin juramento me podrás creer que quisiera que este libro, como hijo del entendimiento, fuera el más hermoso, el más gallardo y el más discreto que pudiera imaginarse.
Pero no he podido yo contravenir al orden de naturaleza, que en ella cada cosa engendra su semejante. (...)
Muchas veces tomé la pluma para escribirle, y muchas la dejé, por no saber lo que escribiría...

Miguel de Cervantes, Don Quijote de la Mancha, Prólogo;
Edición del IV CentenarioReal Academia Española, Asociación de Academias de Lengua Española, 2004, p. 7-8.


Como Cervantes, mas sem ter o mesmo talento e a sua garra – de combatente em Lepanto, de prisioneiro dos mouros, de escritor dedicado – tomei da pena e dos meus cadernos de notas, sentei-me várias vezes à mesa do computador para juntar palavras e frases, sempre hesitando quanto ao que dizer e o que testemunhar, em face da profusão de surpresas e de infaustos acontecimentos acumulados ao longo do último ano e meio. Na seleção de textos que caberia reter, as hesitações e opções eram muitas, eliminando ensaios aqui, incluindo artigos e entrevistas ali, refinando argumentos, imaginando qual título escolher, o que exatamente se deveria manter, o que retirar, da grande massa de escritos produzidos abundantemente ao longo do período. 
Em condições normais, meus livros são rápida e facilmente compostos, após uma preparação de alguns meses: eles são montados quase que linearmente, da introdução à conclusão, depois de um esforço delongado de reflexão e de grande impulso de redação, o que normalmente me toma seguidas madrugadas solitárias na elaboração do produto final. Mas, tais noites de vigília escrevinhadora constituem a parte mais fácil. Em geral, o livro já está pronto em minha cabeça, sem ainda existir de fato, apenas me faltando escrevê-lo, o que é apenas um desenlace lógico. Um hábito longamente mantido numa trajetória de vida toda ela dedicada a leituras, notas e reflexões, levou-me a que eu sempre tomasse o cuidado de anotar leituras e as ideias que delas eventualmente brotassem; também registrava rapidamente, em muitos cadernos acumulados desde cedo, observações de viagem, impressões de palestras, sumários de encontros e de reuniões de trabalho; tenho guardados esses obscuros objetos de um não secreto desejo de anotar o que escuto ou leio.
Também me ajudou um outro hábito, cultivado mesmo sem a estrita obrigação de exercê-lo: o costume de redigir textos de apoio a palestras ou intervenções em seminários, ainda que não pretendesse lê-los na ocasião, assim como o cuidado de preparar notas sistemáticas para as incontáveis aulas de uma longa e diversificada carreira docente (que sempre mantive em paralelo ao exercício da diplomacia profissional), o de compilar listas dos livros lidos e a ler (algum dia), tudo isso sendo acumulado em muitas pilhas de papel, mais recentemente em centenas de working files no computador. Quando me decidi, por exemplo, a redigir a tese de doutoramento, ainda na era pré-informática, depois de alguns anos de laboriosas pesquisas e de leituras “revisionistas”, espalhei os muitos cadernos de notas numa mesa de jantar, com a máquina de escrever à minha frente, para, finalmente, começar a datilografar os meus argumentos, que já estavam todos idealmente concebidos, antes de tomar uma forma escrita quase definitiva.
Com este livro, contudo, foi diferente, já que ele não deveria normalmente existir, exceto pela necessidade do momento, dos tempos que correm. O mesmo tinha ocorrido com um anterior, Miséria da diploma: a destruição da inteligência no Itamaraty (2019), que tampouco teria sido redigido, não fossem as circunstâncias da época, tanto quanto as agora enfeixadas sob a consigna da resistência intelectual em face de desafios momentosos, não exatamente para mim, mas para a instituição à qual estou ligado desde pouco mais de quatro décadas: o Itamaraty. As características de cada momento explicam que ambos os livros tragam o nome da instituição em seus títulos, primeiro como “miséria” e “destruição da inteligência”, agora como um “labirinto de sombras”. Não necessito explicar em que consistiam a misériae a destruição, uma vez que o livro se encontra livremente disponível em meu blog Diplomatizzando, cabendo aos interessados simplesmente descarregá-lo a partir desse pequeno quilombo de resistência intelectual. 
O labirinto de minha trajetória (um pouco à la Herman Hesse) também tem a ver com o título deste pequeno livro, que surge não como uma obra planejada – podendo ser inscrita em alguma coletânea futura, tipo Gesamtwerk –, mas como simples instrumento de combate, uma catapulta de ideias, aqui lançadas contra esses minotauros de pacotilha que estão conspurcando a política externa de um país outrora respeitado no mundo, assim como deformando a sua diplomacia que se dizia, na região e fora dela, entre as melhores do mundo. Essa distinção, meritória, foi infelizmente perdida no último ano e meio. Sim, eu e meus colegas do Itamaraty fomos levados a um labirinto obscuro, ameaçador, do qual não sabemos quando iremos sair. Não, não contamos com nenhum Teseu; só com nossa força e espírito de resistência.
De resto, vivemos tempos realmente tormentosos e torturados, com o país lançado como jangada de pedra num vasto oceano sem rumo, para usar a metáfora de Saramago. Nossa diplomacia está encerrada nesse labirinto obscuro, sem qualquer fio de Ariadne, e sem qualquer mapa do caminho. Foi esse o cenário preocupante que me levou a novamente compilar textos esparsos e publicar um novo livro que, como o anterior, não deveria existir. Não creio, entretanto, que a sociedade brasileira, menos ainda o Itamaraty, requeiram, para o restabelecimento de suas condições normais de trabalho e de funcionamento, de qualquer herói momentâneo, de alguma personalidade messiânica, que os venham salvar das muitas disfunções registradas no período recente.
Eu deveria estar me ocupando de trabalhos mais sérios, de verdadeiros scholarly works, ou seja, ensaios fundamentados em pesquisas de arquivos, empiricamente embasados, para completar meus muitos trabalhos de relações econômicas internacionais e de história diplomática, sobretudo para oferecer a continuidade de minha obra sobre a trajetória de nossa inserção global, iniciada com Formação da diplomacia econômica (2001; 2005; 2017), que se ocupou essencialmente do século XIX. Tenho já avançado um segundo volume, tratando da República até a Segunda Guerra Mundial, antes de um terceiro planejado, indo de Bretton Woods aos nossos dias. Tudo isso, porém, ficou momentaneamente para trás, em face dos tremendos desafios que se precipitaram – que desabaram, seria o termo mais exato – sobre nossa diplomacia e sobre a política externa desde o início de 2019. 
Vários anos antes que Cervantes finalizasse sua novela, um dos parceiros de escrita e de similares viagens e aventuras – que ele aliás admirava –, Camões, já tinha decretado o que ouso agora parafrasear: “Cesse tudo o que a Musa antiga canta, / Que outro ‘desafio’ mais alto se alevanta”. Esse desafio é o de enfrentar, contestar e denunciar a deplorável situação da política externa e da diplomacia brasileira, rebaixadas no plano internacional a um grau nunca antes visto em nossa história, talvez nem mesmo nos tempos do tráfico negreiro e da escravidão, ou naquele do regime militar. O Brasil está praticamente excluído de concertações que estão sendo feita entre interlocutores dos principais países e dirigentes das organizações multilaterais em torno de vários itens da agenda internacional, inclusive e principalmente porque seus representantes diplomáticos ousam, estupidamente, proclamar-se contra o multilateralismo (como se isso fosse meritório), assim como eles também se posicionam contra o monstro metafísico que eles chamam de globalismo. 
Sem pretender me comparar ao bardo das navegações, e menos ainda ao escritor do Siglo de Oro, também tenho de deixar de lado pesquisas mais exigentes para me dedicar a esta pequena digressão de oportunidade, apenas para não deixar sem respostas os muitos ataques que ambas, a política externa e a diplomacia, vêm sofrendo nas mãos (e pés) dos amadores ineptos que a comandam de fora, sem ter nenhum preparo para tal, com a ajuda dos poucos profissionais da carreira que se dispuseram a servi-los nessa miserável tarefa de destruição, não só de um estilo, mas também da própria substância de nossa diplomacia. 
Este novo livro, como antecipado no frontispício, pretende ser uma homenagem aos colegas da diplomacia profissional que se empenham em manter a alta qualidade de seu trabalho, defendendo os padrões elevados de competência técnica pelos quais nossa diplomacia ficou conhecida ao longo de décadas, um reconhecimento que, infelizmente, agora se desfez. Ele compila, como vários outros anteriores, ensaios, entrevistas e artigos e elaborados ao longo de meses de trabalho, todos eles animados pelo mesmo espírito de ativismo participativo, de honestidade intelectual e – por que não dizer? – desse contrarianismo que se identifica com minha postura básica no trabalho acadêmico: o ceticismo sadio. Ele se situa, não apenas no terreno daquilo que os franceses chamam de histoire immédiate, mas também num terreno que pode, e deve, ser situado no contexto do jornalismo de debate, senão de combate, aqui representado pelas críticas que formulo à infeliz política externa bolsonarista e à ainda mais lamentável diplomacia olavista (se é que elas existem, o que, de verdade, não acredito). 
O fato é que ambas envergonham o Brasil e não podem, absolutamente, ser consideradas como pertencendo, de alguma forma, ao arco de nossas tradições históricas em política externa e menos ainda se inserem nas tradições conhecidas de nossa diplomacia profissional. Em sua grande maioria, os textos aqui incluídos foram redigidos logo após que conclui meu livro anterior sobre a mesma temática, Miséria da Diplomacia: a destruição da inteligência no Itamaraty(livremente disponível em meu blog Diplomatizzando, que desde 2006 constitui uma espécie de quilombo de resistência intelectual contra certas distorções em nossas políticas públicas). Não posso reclamar da matéria prima que permitiu a redação das peças aqui coletadas, pois ela é abundante, ainda que sua qualidade própria, ou consistência explicativa sejam extremamente medíocres. Enfim, sempre se pode fazer do limão uma limonada, como se diz na linguagem popular. 
A inspiração maior de cada um destes textos, ademais das estupendas entrevistas e dos impactantes escritos do embaixador Rubens Ricupero, em defesa do espírito próprio de nossa diplomacia tradicional, também pode ser encontrada em brilhantes ensaios de Sir Isaiah Berlin, em sua luta constante contra os horrores de todos os dogmatismos e fanatismos conhecidos na história da humanidade, que levaram certas “revoluções culturais” às piores desumanidades, em busca de uma perfeição lunática inatingível. O Brasil também passa por uma espécie de “revolução cultural”, tão destruidora, talvez, quanto o precedente chinês, não exatamente em vidas humanas (pelo menos até aqui), mas da ciência, da cultura (em seu sentido mais nobre), do simples sentido humano da pesquisa aplicada e do debate respeitoso. O livro se abre justamente por uma referência a essas “revoluções (in)culturais”, que significam, antes de mais nada, o estrangulamento da inteligência, o cerceamento do espírito crítico e da liberdade de pensamento e expressão. 
Como também disse Isaiah Berlin, no seu ensaio sobre a “busca do ideal” – que abre o livro The Crooked Timber of Humanity: chapters in the history of ideas –, a “primeira obrigação pública é a de evitar extremos sofrimentos”, sejam estes físicos ou espirituais. No momento em que encerro este prefácio, não sabemos ainda quando o Brasil poderá atravessar, com um mínimo de sofrimento, os horrores da atual pandemia, cujo impacto poderia ser bem menor se não tivéssemos, na direção do país, uma pequena tropa de dogmáticos e de fanáticos que não cumprem sequer a primeira obrigação pública, no sentido que lhe deu Isaiah Berlin. 
Infelizmente, ainda estamos convivendo, em nosso país, com essa deformação que Emanuel Kant chamou de “madeira torta da humanidade”. Este compêndio de ensaios faz parte de meu esforço para tentar ajudar a endireitar, não exatamente o país, mas pelo menos o “pau torto” de sua política externa e da sua diplomacia. 


Paulo Roberto de Almeida

Brasília, 31 de maio de 2020


Diplomacia alienada de Ernesto Araújo fecha-se em gueto ideológico - Matheus Leitão (Veja)

Uma matéria antiga, mas que eu ainda não havia lido, e por isto reproduzo. O conceito de alienação tem a ver com o jovem Marx, que a usou como todos os jovens hegelianos o faziam na primeira metade do século XIX. Fazia tempo que eu não mais via esse conceito. Usei muito, em meus tempos de colegial e de universidade. Para mim, todo mundo que não era marxista era alienado.
Paulo Roberto de Almeida

Diplomacia alienada de Ernesto Araújo fecha-se em gueto ideológico

Matheus Leitão
Revista Veja, 22/05/2020

https://veja.abril.com.br/blog/matheus-leitao/diplomacia-alienada-de-ernesto-araujo-fecha-se-em-gueto-ideologico/

A diplomacia do governo Jair Bolsonaro tem colecionado derrotas. O fato de os Estados Unidos estarem estudando a suspensão dos voos provenientes do Brasil é apenas o mais claro sinal desse isolamento. Os países vizinhos querem reforçar fronteiras para se protegerem da escalada de casos de coronavírus no país. O Le Monde publicou nesta semana um forte editorial contra o presidente Jair Bolsonaro. Enquanto isso, em seminários virtuais o Itamaraty mostra a dimensão da sua alienação da realidade.
A Fundação Alexandre Gusmão já foi um importante centro de pensamento de política exterior, com discussões de grande pluralidade, mas tem abrigado seminários com convidados irrelevantes e que repetem a mesma ladainha ideológica do chanceler Ernesto Araújo.
A série de palestras, que já chegou à sua terceira edição e caminha para uma quarta, traz, entre os convidados, seguidores de Olavo de Carvalho, um dos gurus da gestão Bolsonaro, além de juristas e blogueiros, entre outras subcelebridades.
O último ciclo de palestras aconteceu nesta segunda-feira, 19, e contou com a participação da juíza de Direito Ludmila Lins Grilo; do diretor de opinião do site Brasil Sem Medo, Bernardo Küster; e do analista político e escritor Flavio Morgenstern.
Eles fizeram duras críticas ao isolamento social para conter a pandemia; condenaram o fato de as recomendações da Organização Mundial da Saúde (OMS) interferirem nos atos dos administradores públicos; alimentaram teorias conspiratórias sobre o comunismo, ataques cibernéticos, espionagens e sobre a China – país onde começaram os primeiros casos de contaminação do novo coronavírus. Não faltaram, claro, ataques à imprensa.
Ludmila Grilo, em seu perfil no Twitter, se define com uma frase de Olavo de Carvalho (“A coragem nasce do amor ao próximo”). Bernardo Küster incentiva o cancelamento das assinaturas dos veículos de comunicação tradicionais; e Morgenstern já foi condenado a pagar uma indenização de R$ 120 mil ao cantor Caetano Veloso por ter criado a hashtag #CaetanoPedófilo, em 2017, fazendo uma referência à relação de Caetano com a ex-mulher Paula Lavigne, 27 anos mais nova. Ou seja, eles escolhem a dedo para ouvir apenas quem reforças suas idiossincrasias.
Seria só mais um fato bizarro dos muitos do ministro Ernesto Araújo, mas a Fundação sempre teve um papel importante na formação do pensamento dos jovens diplomatas e na formulação da própria política externa.
Em entrevista à coluna, o diplomata Rubens Ricupero destacou um risco que, nesta semana, outros articulistas reforçaram. O país está virando um pária, e a política externa tem excluído o Brasil dos eixos relevantes no mundo. Internamente tem se fechado mais no seu gueto ideológico. Até no regime militar não foi assim. Pelo contrário, chanceleres como Azeredo da Silveira, do período Ernesto Geisel, e Ramiro Saraiva Guerreiro, do período João Figueiredo, ampliaram a influência do Brasil no mundo através da política externa do “pragmatismo responsável”.

O declínio do império americano

Não durou um século. O britânico ainda se manteve à frente, com um século e meio, embora não total.
O chinês está recém começando: será bom na economia, menos na cultura, desastroso na política e na defesa das liberdades. É, por enquanto, um império orwelliano.
Paulo Roberto de Almeida

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'Mundo alarmado' começa a questionar 'soft power' dos EUA
Antes mesmo das 'cenas de guerra civil', Berlim já havia começado a se afastar de Washington

Sob o título "Mundo alarmado pela violência nos EUA", Drudge Report, New York Times e outros, com Associated Press, reportaram como diferentes jornais, do chinês Global Times ao italiano Corriere della Sera, vêm reagindo às cenas dos últimos dias.

"Nações ao redor do mundo assistem em horror", começa o texto, que destaca o alemão Bild. Abrindo foto na capa de domingo, com a manchete "Este é o policial assassino que incendiou a América", o tabloide de Berlim vê "cenas de guerra civil".

A conflagração já ecoa na disputa geopolítica, a começar da África, como mostra a Foreign Policy. O South China Morning Post, ao manchetar o plano de Trump de criar "um bloco anti-China" a partir do G7, destacou que "o soft power e a liderança dos EUA foram danificados".

O próprio encontro do G7 nos EUA foi "adiado após Angela Merkel dizer que não atenderia", noticiou o NYT na home. O site Politico havia antecipado a informação, detalhando que a chanceler alemã e Trump, em conversa, "discordaram acaloradamente" sobre temas como a China.

O serviço de notícias da Alemanha, Deutsche Welle, reportou que, antes mesmo da violência, "Coronavírus torna alemães mais críticos dos EUA". Segundo pesquisa Kantar, "73% dizem que sua opinião dos EUA deteriorou" e "só 37% querem laços mais próximos", contra 50% em setembro.

DOS EUA À CHINA

O Wall Street Journal cobre de perto, nas últimas duas semanas, o afastamento entre Alemanha e EUA —e a aproximação da primeira com a China.

Destacou que Pequim "mantém montadoras alemãs em alta velocidade", com recuperação nas vendas, que VW e outras vão investir bilhões no país e até que dois aviões cheios de executivos alemães partiram para a China.

Por outro lado, "Embaixador dos EUA na Alemanha vai sair" após dois anos de confrontos com Merkel.

GUERRA FINANCEIRA

Com chamada na home, coluna no Financial Times alerta que "Nós podemos estar entrando num mundo pós-dólar".

Em suma, "China e outros emergentes, assim como alguns países ricos como a Alemanha, adorariam se afastar do domínio do dólar, desejo acentuado pelo uso cada vez maior das finanças como armamento", referência às sanções. Destaca movimentos não só da China, mas da União Europeia.

POLÍCIA LÁ E CÁ

Jair Bolsonaro tentou faturar via Twitter a ameaça de Trump contra os "terroristas" nos EUA, mas foi João Dória quem enfiou o país no noticiário da revolta. Por Washington Post, com AP, a polícia paulista correu mundo "mirando o grupo anti-Bolsonaro" —e ganhou apoio do governador também via Twitter.

Minha postura quanto ao chancer designado (15/11/2018)

Transcrevo abaixo o que eu escrevi a propósito da designação, na tarde do dia anterior, de um colega de carreira para ser o chanceler do governo Bolsonaro.
Por que fiz isso?
Porque desta a tarde anterior eu fui questionado, aliás informado, porque não estava prestando atenção à designação de novos ministros pelo presidente eleito, no bunker do CCBB, e fui informado, no final da quarta-feira, 14 de novembro, dessa designação, que tinha sido aventada algum tempo antes, e na qual eu não quis acreditar, pois se tratava de um "diplomata júnior", como se diz, recentemente promovido a ministro de primeira classe (não, ele nunca foi embaixador). 
Desculpei-me com o jornalista que me informou da designação e pelo fato de não poder dizer muito a respeito do colega, pois sinceramente não sabia de nada sobre seu pensamento, a não ser pelo fato de ele ter co-assinado um livro sobre o Mercosul em 1996 (que eu resenhei) e ter recém publicado um estranho artigo sobre "Trump e o Ocidente", aliás na revista da qual eu era o editor, Cadernos de Política Exterior, como diretor do IPRI, que eu era desde agosto de 2016 (demitido pelo já chanceler, em março de 2019).
Eu não tinha tido tempo, até então, de refletir detidamente sobre seu artigo – lembro-me que quando chegou achei muito bizarro, mas eu não sou de censurar nada – e sobretudo de ler seu blog – Metapolítica 17: contra o globalismo –, cujo endereço na rede eu sequer sabia, tendo sido informado por esse jornalista sobre o nome em questão.
Mas, só fiz essa postagem, porque continuei a ser indagado por jornalistas sobre o que eu pensava do chanceler designado, e eu não pensava nada, ou quase nada.
Fiz então essa postagem, e só depois fui ler os materiais do chanceler designado. 
Confesso que fiquei estarrecido com o que li, como deveria ficar qualquer diplomata normal.
Começou aí a minha exoneração, e avisei meus assistentes que nossa gestão acabaria no dia 1o. ou 2 de janeiro de 2019. Demorou um pouco mais, pois talvez não tivessem encontrado quem colocar em meu lugar.
Mas, já no dia 2 "congelaram" o programa de trabalho que eu havia feito para começar a ser desenvolvido imediatamente. Não consegui fazer nada, pois logo depois veio minha saída.
O texto abaixo é apenas o testemunho de um momento.
Paulo Roberto de Almeida
Brasília, 1 de junho de 2020.

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On Thu, Nov 15, 2018, 10:59 Paulo Roberto de Almeida <paulomre@gmail.com> wrote:
Minha postura quanto ao chanceler designado

Paulo Roberto de Almeida 
Brasília, 15/11/2018

Fui consultado, por colegas, amigos, mas sobretudo por jornalistas, sobre minha opinião a respeito do diplomata indicado para assumir o cargo de ministro das Relações Exteriores do Brasil.
Eis o que posso dizer a respeito.

Permito-me não expressar neste momento minha opinião sobre esse colega, pela simples razão de que eu o conheço muito pouco. Conheci-o quando ele ingressou na carreira, em 1992,  e ele trabalhava na mesma área, mas em outras funções, em que eu estava, que era o Mercosul, mas depois nos perdemos completamente de vista, devido aos acasos da carreira, com remoções distintas e estágios totalmente desencontrados na Secretaria de Estado.
Eu fiquei 13,5 anos completamente afastado de qualquer cargo na SERE durante todo o regime lulopetista, e não pude, assim, acompanhar sua trajetória no período 2003-2016.
Apenas recentemente soube que ele era casado com a filha do ex-SG Luiz Filipe de Seixas Corrêa, também diplomata.
Não tinha a menor ideia de que ele mantinha uma campanha política militante em favor do candidato vencedor, como transpareceu na imprensa cerca de um mês atrás.
Ou seja, certamente eu o conheço formalmente, mas desconhecia totalmente suas ideias e opiniões políticas.
Difícil assim manifestar qualquer opinião pessoal a respeito desse colega, com quem nunca convivi durante praticamente 26 anos de carreiras paralelas mas jamais coincidentes ou convergentes no tempo ou no espaço.
Se ele foi escolhido pelo presidente eleito a exercer a função política de comandar a diplomacia brasileira no próximo governo, só posso desejar-lhe sucesso na função.
Como diplomata de carreira, vou continuar exercendo meus deveres de maneira totalmente profissional, da mesma forma como eu sempre fiz ao longo de meu desempenho funcional, ao lado de atividades acadêmicas que também sempre exerci, sem prejuízo da carreira ou do exercício funcional.
Isso é tudo, no momento, que eu poderia dizer de modo objetivo sobre o chanceler designado, e de forma intelectualmente honesta, sobre sua postura política ou filosófica, pois ainda não consegui ler muita coisa sobre suas ideias. 
Apenas ontem (14/11/2018), e depois da nomeação, tomei conhecimento pela primeira vez de que ele mantém um blog pessoal, para a expressão dessas ideias, o que eu também faço, no Diplomatizzando, mas, no meu caso, geralmente para transcrição de matérias de terceiros, com alguns poucos comentários de minha parte. Não me envolvo, nunca me envolvi, em atividades partidárias, e pretendo assim manter-me invariavelmente à margem desse tipo de opção. 
Minhas prioridades principais, no presente momento, ou desde sempre, consistem em preservar o Itamaraty e a diplomacia brasileira de quaisquer desvios indesejados, em termos ideológicos ou políticos, que possam ser considerados nefastos para a manutenção de sua alta qualidade intelectual, de sua grande capacidade de trabalho, puramente profissional, e de uma postura isenta no plano político-ideológico. Acredito, como aliás deve ser, que a política externa é determinada pelo chefe de Estado e de governo, como ocorre nos regimes presidencialistas, cabendo ao Itamaraty aconselhá-lo da melhor forma possível visando à defesa estrita dos altos interesses da nação e do Estado.
Eis a minha postura pública.
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Paulo Roberto de Almeida

O que é o artigo 142 da Constituição - UOL

Esse debate não deveria render nenhuma CONTROVÉRSIA.
As FFAA não possuem PODER MODERADOR, e não têm NENHUM PAPEL para dirimir conflitos entre poderes, como pretende, EQUIVOCADAMENTE, o jurista Ives Gandra.
Lamento ter de discordar do jurista, mas imagino que, além do fato de ser um conservador e ultra religioso – e NISSO se enganar quanto ao capitão genocida que nos governa, que não é nem conservador, nem religiosa, sendo apenas um OPORTUNISTA mentiroso –, ele pode ser motivado pelo fato de ter uma filha trabalhando para o governo e um filho lotado no TST.
Transcrevo uma matéria sobre o assunto:

O que é o artigo 142 da Constituição. E por que ele está causando polêmica 
30/05/2020 04h00 
O presidente Jair Bolsonaro (sem partido) publicou ontem uma entrevista do jurista Ives Gandra Martins em que ele fala sobre o Artigo 142 da Constituição. A mensagem passada é que este artigo daria às Forças Armadas um poder de moderação quando houver um conflito entre os Poderes. Bolsonaro divulgou o vídeo no mesmo dia em que afrontou o STF (Supremo Tribunal Federal) e declarou que "ordens absurdas não se cumprem". Foi uma reação à operação da Polícia Federal que teve como alvo apoiadores do governo.  

Veja mais em https://noticias.uol.com.br/politica/ultimas-noticias/2020/05/30/o-que-e-o-artigo-142-e-por-que-ele-esta-causando-polemica.htm?fbclid=IwAR3nG2yG3z8BAiIEDGXqUg72x2RBlJkqDexwj5bevhvuxxPkUVBy7G84NcM&cmpid=copiaecola

O dever de um cidadão consciente - Paulo Roberto de Almeida

Existem momentos, na vida de uma nação, nos quais o dever do cidadão é o de deixar o arado, a ferramenta, a pluma, e dirigir-se à Ágora, para discutir os destinos da comunidade, o futuro da família e a defesa da pátria ameaçada.
Nem sempre o perigo está fora; geralmente vem de dentro, dos que querem arvorar-se em tiranos.
O primeiro dever do cidadão consciente é o de dizer NÃO.
O segundo é o de discutir com seus pares as medidas apropriadas de defesa das liberdades, da democracia, da vida de cada um e da dignidade da nação.
Paulo Roberto de Almeida
Brasília, 1/06/2020

O triunfo de Pirro dos submissos - Hussein Kalout

Certos diplomatas se esmeram em agradar os donos temporários do poder.
Causam vergonha a si próprios,

Análise: Os limites do oportunismo vira-casaca no Itamaraty

Hussein Kalout
Hussein Kalout*, O Estado de S.Paulo 
01 de junho de 2020 | 09h00 
Instituições de Estado hierárquicas, como o Itamaraty, devem responder ao comando político. Se muda o governo, muda a orientação. Cabe à máquina do Estado e a seus funcionários implementar as novas diretrizes. No regime democrático, o governo eleito tem o direito de executar o programa endossado nas urnas. Possui a potestade de mobilizar a estrutura estatal para perseguir seus objetivos, desde que observada a Constituição e demais normas vigentes, inclusive as derivadas do direito internacional. 
Essa configuração é o que garante unidade na ação do Estado e de suas burocracias segundo a regra democrática. Seria equivocado, contudo, crer que essas burocracias hierarquizadas e profissionais – em particular os diplomatas, mas também os militares, os policiais federais ou os auditores da Receita, entre outros – constituem meras engrenagens da máquina estatal. Esses corpos de funcionários são também guardiães de visão estratégica de Estado. 
É por isso que algumas políticas públicas, como a política externa, são síntese entre as ênfases e orientações do governo do dia (a dimensão de política pública) e objetivos nacionais que não variam ao sabor das conjunturas, mantendo certa perenidade (a dimensão de política de Estado). 
No Itamaraty atual, a dimensão de política de Estado foi vilipendiada. Sinal disso é a exigência aos funcionários de uma fidelidade canina à ideologia extremista imposta à nossa diplomacia. Quando se exige que embaixadores defendam o governo não com compostura e sobriedade, mas passem a atuar como militantes, como se viu em cartas de alguns deles a jornais e parlamentares na Europa. Quando alguns deles resolvem envolver-se em altercações públicas desqualificando o interlocutor, rompe-se o delicado equilíbrio entre política partidária, política pública e política de Estado. 
A diretriz hoje vigente cobra fervor à causa. Os que se lambuzam na trincheira da luta ideológica, abandonam a diplomacia e adentram o campo minado da militância, transformam-se em integrantes de uma falange atuante no exterior. Nesse contexto, alguns personagens mais afoitos, no afã de mostrar serviço, exageram no oportunismo para se consolidarem no cargo, adulando de maneira rastejante os atuais donos do poder. Alguns, de um ridículo atroz, eram até ontem figurões do governo de esquerda que hoje denunciam. Outros eram medíocres funcionários de governo de centro que se notabilizavam pela sabujice aos mais poderosos. 
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O chanceler Ernesto Araújo no Itamaraty Foto: Fabio Pozzebom/Agência Brasil
Sempre houve arrivismo em carreira hierárquica e competitiva como a diplomática. A novidade, contudo, é a interpretação contundente de certos diplomatas em seu novo papel de cruzados na defesa da visão de mundo extremista subjacente à atual política externa. O cenário atual é terreno fértil para os propensos a virar a casaca, muito embora, talvez ingenuamente, os oportunistas não percebam que, caso sobrevenha nova mudança de orientação política, certamente não lhes será dada a oportunidade de voltar atrás e repaginar seu perfil uma vez mais. Esses casos mais patológicos já integram lista informal que anda circulando no Itamaraty entre a maioria silenciosa e acabrunhada. 
A diplomacia não pode ser tecnocracia descolada das escolhas da população, mas deve ter preservada sua dimensão de política de Estado, que existe para salvaguardar o interesse maior do país, inscrevendo a busca de objetivos de curto e médio alcance na moldura mais ampla dos princípios duradouros. Essa combinação única entre inovação e tradição, entre ênfases táticas e estratégia de longo prazo, utiliza a burocracia diplomática não apenas como instrumento de ação, mas também aproveita a memória institucional, o conhecimento acumulado e a credibilidade do patrimônio diplomático, de modo a produzir decisões que correspondem aos interesses maiores do país. 
A atual diplomacia da ruptura reacionária tem transformado o Brasil num pária internacional, isolado em sua própria região e relegado a um ator de terceira linha, cuja única aposta é numa abjeta vassalagem ao governo Trump. Essa aposta pode render algumas doses de cloroquina, mas não garante a defesa dos interesses nacionais ou nossa participação na reunião do G-7 a ser organizada pelos EUA. Ou talvez até renda essa participação, desde que novas concessões unilaterais do Brasil sejam oferecidas de bandeja, a um custo novamente desproporcional. 
O arrivismo desmedido, o oportunismo e o carreirismo foram meros detalhes no passado, uma vez que eram fenômenos que se apresentavam dentro de um quadro de racionalidade da política externa. Hoje, no entanto, possuem um sentido distinto. Tornam-se sinônimo de cumplicidade com a destruição empreendida pela diplomacia extremista vigente. Quando este momento de irracionalidade for superado, um acerto de contas será natural e necessário. 
O Brasil terá de enfrentar o custo exorbitante da política externa irracional e tresloucada para tentar reconstruir o que foi destroçado. Quando esses custos forem contabilizados, não há dúvida de que os oportunistas de ocasião, vistos como sócios dessa empreitada nefanda, também terão que arcar com sua parcela de responsabilidade. E então desvirar a casaca não será opção. Esses oportunistas terão cruzado o Rubicão. 
*HUSSEIN KALOUT, 44, é Cientista Político, Professor de Relações Internacionais e Pesquisador da Universidade Harvard. Foi Secretário Especial de Assuntos Estratégicos da Presidência da República (2016-2018) e atuou como consultor das Nações Unidas e do Banco Mundial. Escreve semanalmente, às segundas-feiras.

Um ministrinho da defesa muito pequenininho - Paulo Roberto de Almeida

O ministro da defesa militar deve contentar os áulicos e deixar temerosos os demais militares que estão vendo que o Titanic do capitão irá soçobrar, mesmo sem nenhum iceberg pela frente. Ou melhor: tem vários blocos gelo pela frente, mas nenhum é tão poderoso quanto o desvario do capitãozinho de um navio que navega à vista, sem o auxilio de instrumentos e decidido a provar que a sua rota é a melhor possível.
O ministrinho da defesa trará desgosto ao conjunto da corporação ao demonstrar que não conhece o Brasil, nem sabe que o mundo é redondo. Pena para o Brasil: soçobrará com armas e bagagens.
Paulo Roberto de Almeida
Brasília, 1/06/2020

Martim Vasques da Cunha: Almas tirânicas (9/09/2018)

 MARTIM VASQUES DA CUNHA

Almas tirânicas

Candidatos mostram vontade alucinada pelo poder

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Martim Vasques da Cunha, durante o 3º Congresso Nacional do MBL, em São Paulo, em 2017
Martim Vasques da Cunha, durante o 3º Congresso Nacional do MBL, em São Paulo, em 2017 - Joel Silva - 11.nov.17/Folhapress
Nesta eleição de 2018, o que os brasileiros precisam, como exemplo de político, é de alguém com a ousadia moral de um Sólon (638 - 558 a.C.).

Modelo de legislador para Platão, Sólon, ao perceber os primeiros sinais de decadência na frágil ordem da pólis ateniense, afirmou que a culpa dessa situação nunca foi dos deuses do Olimpo, como muitos queriam pensar, mas sim dos próprios gregos.

Por não terem compreendido a "medida invisível" da justiça divina que mora dentro de cada alma, revoltaram-se contra a natureza das coisas, prejudicando a estabilidade social e política de Atenas.

Obviamente, ele foi escorraçado pelo povo, e sua única escolha foi o exílio, para que o "julgamento do tempo" desse a resposta justa, conforme a "medida invisível" que orientava a sua alma em direção à verdade transcendente.

Hoje em dia, pouca coisa mudou —e, se mudou, foi para pior. O claro sinal de nossa decadência está no jogo de empurra-empurra, no qual a responsabilidade sempre é do Estado, do PT, de Donald Trump, da Ursal, do finado Roberto Marinho, e, quiçá, do vizinho da esquina.

Na verdade, a culpa de estarmos neste pandemônio é da nossa natureza mesquinha, enraizada numa inveja espiritual que os acadêmicos catalogaram de "o homem cordial" e, assim, vivem iludidos de que são iguais a Sólon.

Eis o problema: segundo as nossas cabeças pensantes, o que manda na história é a luta pelo poder —e ela faz o sujeito imaginar que pode vencer tudo.

Essa seria a característica principal de um homem tirânico, que detém o poder absoluto, sobre tudo e sobre todos. Segundo Platão, em "A República", a alma do tirano quer impor uma ordem estranha ao mundo.

Seu íntimo mal sabe da existência dela, pois, por ser uma consequência da alma democrática, não possui nenhuma hierarquia em suas paixões --e, portanto, nenhum domínio sobre as qualidades que devem ter o bom estadista: sabedoria, coragem, temperança e justiça.

O tirano desconhece essas quatro qualidades; elas vivem dentro dele em constante embate, sem nenhuma lógica, exceto a do sentimentalismo excessivo, refletido num carisma que, por ter um toque messiânico, cativa a opinião popular.

Logo, é o mais infeliz de todos os homens, porque depende dos outros para a sua aprovação e, quando não a consegue, tenta impô-la por meio da coerção.

Portanto, na política brasileira, estamos completamente rodeados por almas tirânicas, apenas com uma diferença ou outra de gradação.

Todos os políticos são bem vestidos ou bem assessorados, mas nenhum é sincero para mostrar que estão possessos por uma vontade alucinada pelo poder.

São cegos para verem além deste mundo, procurando uma justiça que, acompanhada pelo adjetivo "social", só tende a criar ruínas, em vez das fortalezas que planejaram.

Mas não estão sozinhos: jornalistas, professores, estudantes, artistas, filósofos —várias pessoas contribuem para esse embotamento da razão, seja da esquerda ou da direita, levando-nos a um período histórico que só tem paralelos com o da Alemanha de 1933, e o da decadência de Atenas em torno de 350 a.C., em que se via uma patologia com uma lógica bem peculiar, baseada na nossa ignorância.

Quando a ordem do indivíduo se opõe à desordem da sociedade, sobram apenas uns poucos que resistem a essa tentação, refugiados em suas cidadelas. Infelizmente, a ameaça do espectro tirânico na eleição de 2018 faz a alma brasileira ir a um velório de projetos falidos e de ilusões, a ser vendido como se fosse a única realidade. Resta saber se tal alucinação durará por muito tempo. Até lá, seremos como cegos que conduzem outros cegos —e assim tombaremos na mesma vala.
MARTIM VASQUES DA CUNHA
Doutor em ética e filosofia política (USP); pós-doutorando pela EAESP/FGV e autor de "Crise e Utopia - O Dilema de Thomas More" e "A Poeira da Glória - Uma (Inesperada) História da Literatura Brasileira"