Este livro é dedicado a todos os meu colegas de carreira que conseguem preservar a alta qualidade intelectual dos padrões de trabalho e o sentido de profissionalismo exemplar no desempenho de suas tarefas correntes no âmbito do Itamaraty, assim como aos que, além disso, se preocupam em pensar o passado, o presente e o futuro da política externa brasileira.
Prólogo
Desocupado lector: sin juramento me podrás creer que quisiera que este libro, como hijo del entendimiento, fuera el más hermoso, el más gallardo y el más discreto que pudiera imaginarse.
Pero no he podido yo contravenir al orden de naturaleza, que en ella cada cosa engendra su semejante. (...)
Muchas veces tomé la pluma para escribirle, y muchas la dejé, por no saber lo que escribiría...
Miguel de Cervantes, Don Quijote de la Mancha, Prólogo;
Edición del IV Centenario; Real Academia Española, Asociación de Academias de Lengua Española, 2004, p. 7-8.
Como Cervantes, mas sem ter o mesmo talento e a sua garra – de combatente em Lepanto, de prisioneiro dos mouros, de escritor dedicado – tomei da pena e dos meus cadernos de notas, sentei-me várias vezes à mesa do computador para juntar palavras e frases, sempre hesitando quanto ao que dizer e o que testemunhar, em face da profusão de surpresas e de infaustos acontecimentos acumulados ao longo do último ano e meio. Na seleção de textos que caberia reter, as hesitações e opções eram muitas, eliminando ensaios aqui, incluindo artigos e entrevistas ali, refinando argumentos, imaginando qual título escolher, o que exatamente se deveria manter, o que retirar, da grande massa de escritos produzidos abundantemente ao longo do período.
Em condições normais, meus livros são rápida e facilmente compostos, após uma preparação de alguns meses: eles são montados quase que linearmente, da introdução à conclusão, depois de um esforço delongado de reflexão e de grande impulso de redação, o que normalmente me toma seguidas madrugadas solitárias na elaboração do produto final. Mas, tais noites de vigília escrevinhadora constituem a parte mais fácil. Em geral, o livro já está pronto em minha cabeça, sem ainda existir de fato, apenas me faltando escrevê-lo, o que é apenas um desenlace lógico. Um hábito longamente mantido numa trajetória de vida toda ela dedicada a leituras, notas e reflexões, levou-me a que eu sempre tomasse o cuidado de anotar leituras e as ideias que delas eventualmente brotassem; também registrava rapidamente, em muitos cadernos acumulados desde cedo, observações de viagem, impressões de palestras, sumários de encontros e de reuniões de trabalho; tenho guardados esses obscuros objetos de um não secreto desejo de anotar o que escuto ou leio.
Também me ajudou um outro hábito, cultivado mesmo sem a estrita obrigação de exercê-lo: o costume de redigir textos de apoio a palestras ou intervenções em seminários, ainda que não pretendesse lê-los na ocasião, assim como o cuidado de preparar notas sistemáticas para as incontáveis aulas de uma longa e diversificada carreira docente (que sempre mantive em paralelo ao exercício da diplomacia profissional), o de compilar listas dos livros lidos e a ler (algum dia), tudo isso sendo acumulado em muitas pilhas de papel, mais recentemente em centenas de working files no computador. Quando me decidi, por exemplo, a redigir a tese de doutoramento, ainda na era pré-informática, depois de alguns anos de laboriosas pesquisas e de leituras “revisionistas”, espalhei os muitos cadernos de notas numa mesa de jantar, com a máquina de escrever à minha frente, para, finalmente, começar a datilografar os meus argumentos, que já estavam todos idealmente concebidos, antes de tomar uma forma escrita quase definitiva.
Com este livro, contudo, foi diferente, já que ele não deveria normalmente existir, exceto pela necessidade do momento, dos tempos que correm. O mesmo tinha ocorrido com um anterior, Miséria da diploma: a destruição da inteligência no Itamaraty (2019), que tampouco teria sido redigido, não fossem as circunstâncias da época, tanto quanto as agora enfeixadas sob a consigna da resistência intelectual em face de desafios momentosos, não exatamente para mim, mas para a instituição à qual estou ligado desde pouco mais de quatro décadas: o Itamaraty. As características de cada momento explicam que ambos os livros tragam o nome da instituição em seus títulos, primeiro como “miséria” e “destruição da inteligência”, agora como um “labirinto de sombras”. Não necessito explicar em que consistiam a misériae a destruição, uma vez que o livro se encontra livremente disponível em meu blog Diplomatizzando, cabendo aos interessados simplesmente descarregá-lo a partir desse pequeno quilombo de resistência intelectual.
O labirinto de minha trajetória (um pouco à la Herman Hesse) também tem a ver com o título deste pequeno livro, que surge não como uma obra planejada – podendo ser inscrita em alguma coletânea futura, tipo Gesamtwerk –, mas como simples instrumento de combate, uma catapulta de ideias, aqui lançadas contra esses minotauros de pacotilha que estão conspurcando a política externa de um país outrora respeitado no mundo, assim como deformando a sua diplomacia que se dizia, na região e fora dela, entre as melhores do mundo. Essa distinção, meritória, foi infelizmente perdida no último ano e meio. Sim, eu e meus colegas do Itamaraty fomos levados a um labirinto obscuro, ameaçador, do qual não sabemos quando iremos sair. Não, não contamos com nenhum Teseu; só com nossa força e espírito de resistência.
De resto, vivemos tempos realmente tormentosos e torturados, com o país lançado como jangada de pedra num vasto oceano sem rumo, para usar a metáfora de Saramago. Nossa diplomacia está encerrada nesse labirinto obscuro, sem qualquer fio de Ariadne, e sem qualquer mapa do caminho. Foi esse o cenário preocupante que me levou a novamente compilar textos esparsos e publicar um novo livro que, como o anterior, não deveria existir. Não creio, entretanto, que a sociedade brasileira, menos ainda o Itamaraty, requeiram, para o restabelecimento de suas condições normais de trabalho e de funcionamento, de qualquer herói momentâneo, de alguma personalidade messiânica, que os venham salvar das muitas disfunções registradas no período recente.
Eu deveria estar me ocupando de trabalhos mais sérios, de verdadeiros scholarly works, ou seja, ensaios fundamentados em pesquisas de arquivos, empiricamente embasados, para completar meus muitos trabalhos de relações econômicas internacionais e de história diplomática, sobretudo para oferecer a continuidade de minha obra sobre a trajetória de nossa inserção global, iniciada com Formação da diplomacia econômica (2001; 2005; 2017), que se ocupou essencialmente do século XIX. Tenho já avançado um segundo volume, tratando da República até a Segunda Guerra Mundial, antes de um terceiro planejado, indo de Bretton Woods aos nossos dias. Tudo isso, porém, ficou momentaneamente para trás, em face dos tremendos desafios que se precipitaram – que desabaram, seria o termo mais exato – sobre nossa diplomacia e sobre a política externa desde o início de 2019.
Vários anos antes que Cervantes finalizasse sua novela, um dos parceiros de escrita e de similares viagens e aventuras – que ele aliás admirava –, Camões, já tinha decretado o que ouso agora parafrasear: “Cesse tudo o que a Musa antiga canta, / Que outro ‘desafio’ mais alto se alevanta”. Esse desafio é o de enfrentar, contestar e denunciar a deplorável situação da política externa e da diplomacia brasileira, rebaixadas no plano internacional a um grau nunca antes visto em nossa história, talvez nem mesmo nos tempos do tráfico negreiro e da escravidão, ou naquele do regime militar. O Brasil está praticamente excluído de concertações que estão sendo feita entre interlocutores dos principais países e dirigentes das organizações multilaterais em torno de vários itens da agenda internacional, inclusive e principalmente porque seus representantes diplomáticos ousam, estupidamente, proclamar-se contra o multilateralismo (como se isso fosse meritório), assim como eles também se posicionam contra o monstro metafísico que eles chamam de globalismo.
Sem pretender me comparar ao bardo das navegações, e menos ainda ao escritor do Siglo de Oro, também tenho de deixar de lado pesquisas mais exigentes para me dedicar a esta pequena digressão de oportunidade, apenas para não deixar sem respostas os muitos ataques que ambas, a política externa e a diplomacia, vêm sofrendo nas mãos (e pés) dos amadores ineptos que a comandam de fora, sem ter nenhum preparo para tal, com a ajuda dos poucos profissionais da carreira que se dispuseram a servi-los nessa miserável tarefa de destruição, não só de um estilo, mas também da própria substância de nossa diplomacia.
Este novo livro, como antecipado no frontispício, pretende ser uma homenagem aos colegas da diplomacia profissional que se empenham em manter a alta qualidade de seu trabalho, defendendo os padrões elevados de competência técnica pelos quais nossa diplomacia ficou conhecida ao longo de décadas, um reconhecimento que, infelizmente, agora se desfez. Ele compila, como vários outros anteriores, ensaios, entrevistas e artigos e elaborados ao longo de meses de trabalho, todos eles animados pelo mesmo espírito de ativismo participativo, de honestidade intelectual e – por que não dizer? – desse contrarianismo que se identifica com minha postura básica no trabalho acadêmico: o ceticismo sadio. Ele se situa, não apenas no terreno daquilo que os franceses chamam de histoire immédiate, mas também num terreno que pode, e deve, ser situado no contexto do jornalismo de debate, senão de combate, aqui representado pelas críticas que formulo à infeliz política externa bolsonarista e à ainda mais lamentável diplomacia olavista (se é que elas existem, o que, de verdade, não acredito).
O fato é que ambas envergonham o Brasil e não podem, absolutamente, ser consideradas como pertencendo, de alguma forma, ao arco de nossas tradições históricas em política externa e menos ainda se inserem nas tradições conhecidas de nossa diplomacia profissional. Em sua grande maioria, os textos aqui incluídos foram redigidos logo após que conclui meu livro anterior sobre a mesma temática, Miséria da Diplomacia: a destruição da inteligência no Itamaraty(livremente disponível em meu blog Diplomatizzando, que desde 2006 constitui uma espécie de quilombo de resistência intelectual contra certas distorções em nossas políticas públicas). Não posso reclamar da matéria prima que permitiu a redação das peças aqui coletadas, pois ela é abundante, ainda que sua qualidade própria, ou consistência explicativa sejam extremamente medíocres. Enfim, sempre se pode fazer do limão uma limonada, como se diz na linguagem popular.
A inspiração maior de cada um destes textos, ademais das estupendas entrevistas e dos impactantes escritos do embaixador Rubens Ricupero, em defesa do espírito próprio de nossa diplomacia tradicional, também pode ser encontrada em brilhantes ensaios de Sir Isaiah Berlin, em sua luta constante contra os horrores de todos os dogmatismos e fanatismos conhecidos na história da humanidade, que levaram certas “revoluções culturais” às piores desumanidades, em busca de uma perfeição lunática inatingível. O Brasil também passa por uma espécie de “revolução cultural”, tão destruidora, talvez, quanto o precedente chinês, não exatamente em vidas humanas (pelo menos até aqui), mas da ciência, da cultura (em seu sentido mais nobre), do simples sentido humano da pesquisa aplicada e do debate respeitoso. O livro se abre justamente por uma referência a essas “revoluções (in)culturais”, que significam, antes de mais nada, o estrangulamento da inteligência, o cerceamento do espírito crítico e da liberdade de pensamento e expressão.
Como também disse Isaiah Berlin, no seu ensaio sobre a “busca do ideal” – que abre o livro The Crooked Timber of Humanity: chapters in the history of ideas –, a “primeira obrigação pública é a de evitar extremos sofrimentos”, sejam estes físicos ou espirituais. No momento em que encerro este prefácio, não sabemos ainda quando o Brasil poderá atravessar, com um mínimo de sofrimento, os horrores da atual pandemia, cujo impacto poderia ser bem menor se não tivéssemos, na direção do país, uma pequena tropa de dogmáticos e de fanáticos que não cumprem sequer a primeira obrigação pública, no sentido que lhe deu Isaiah Berlin.
Infelizmente, ainda estamos convivendo, em nosso país, com essa deformação que Emanuel Kant chamou de “madeira torta da humanidade”. Este compêndio de ensaios faz parte de meu esforço para tentar ajudar a endireitar, não exatamente o país, mas pelo menos o “pau torto” de sua política externa e da sua diplomacia.
Paulo Roberto de Almeida
Brasília, 31 de maio de 2020
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