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quinta-feira, 16 de novembro de 2017

Rubens Ricupero: um intelectual na diplomacia - Paulo Roberto de Almeida


Rubens Ricupero: um intelectual na diplomacia


Paulo Roberto de Almeida
Diplomata e professor (www.pralmeida.org)

Desconcertado com o tom “muito pessimista” das palavras do orador da turma do Instituto Rio Branco que se formava em meados de 1961, como observou rapidamente ao final de uma alocução que ameaçava a todos com o aniquilamento nuclear, o presidente Jânio Quadros, escolhido paraninfo da turma, tentou improvisar argumentos um pouco mais otimistas em seu discurso no velho Palácio Itamaraty do Rio de Janeiro. Tal se deu em reação à mensagem central transmitida pelo jovem diplomata a colegas, superiores e familiares, provavelmente também chocados com a crueza do alerta: “Nós, os que hoje temos vinte anos... não sabemos se nos será dado o tempo de ler os grandes livros, ouvir a música dos Mestres,... explorar a multiforme beleza do mundo... numa época em que a variação do humor dos estadistas ou a distração dos operadores de radar  pode, a qualquer momento, precipitar o Apocalipse.”
Não sabemos se a plateia se recompôs, ou se o presidente conseguiu insuflar algum entusiasmo nos diplomatas que então iniciavam sua vida profissional, numa conjuntura em que a crise dos mísseis soviéticos em Cuba ainda não tinha colocado o mundo à beira do precipício, ou em que, no próprio cenário político brasileiro, adensavam-se as nuvens sombrias da crise política que surpreenderia a todos logo adiante. Menos de dois meses depois, Jânio Quadros renunciava, deixando o país mergulhado no estupor de um grave impasse institucional, agregando, portanto, aos temores já provocados pela confrontação entre os Estados Unidos e a União Soviética.
Assim foi o início da carreira diplomática de Rubens Ricupero, escolhido orador da turma de 1960 pelas suas qualidades naturais de arguto analista e de sintetizador refinado das complexidades e matizes das relações internacionais e da posição do Brasil no sistema bipolar. Trabalhando no gabinete do ministro San Tiago Dantas, numa fase em que o parlamentarismo temporariamente vigente não conseguia encaminhar os problemas de desequilíbrio econômico externo e os desafios representados pelo clima de Guerra Fria, então no seu auge, o jovem Ricupero teve, por assim dizer, o seu batismo de fogo, naqueles anos em que o Brasil ensaiava um experimento de política externa independente, em meio às pressões americanas por uma postura mais alinhada.
O realinhamento ocorreu, de fato, a partir de abril de 1964, quando o jovem diplomata – Cônsul de Terceira Classe, segundo a denominação vigente na época – já tinha sido deslocado para o seu primeiro posto, Viena, aliás, um dos cenários clássicos da Guerra Fria. Promovido a Segundo Secretário em outubro daquele ano, Ricupero voltou ao anticomunismo da periferia em 1996, quando foi removido para Buenos Aires, onde os militares seguiam o exemplo de seus colegas brasileiros e também derrubavam um presidente civil, democraticamente eleito. As etapas seguintes de ascensão na carreira foram todas por merecimento, e de forma brilhante: Primeiro Secretário em setembro de 1970, quando já estava em Quito; Conselheiro em janeiro de 1973, quando era chefe da Divisão de Difusão Cultural; deslocado a Washington, entre 1974 e 1977, de onde voltou para chefiar, até 1980, a Divisão da América Meridional-II (países do Cone Sul), mas já promovido a Ministro de Segunda Classe, o penúltimo degrau, desde abril de 1978.
Americanista confirmado, e dotado de amplos conhecimentos históricos e sociológicos sobre toda a região, exerceu-se então como chefe do Departamento das Américas durante toda a primeira metade dos anos 1980, tendo sido promovido a Ministro de Primeira Classe (embaixador) em junho de 1982. Foi como diplomata experiente, portanto, que assistiu ao declínio do regime militar no Brasil e à transição ao regime democrático, sob a liderança de Tancredo Neves, de quem foi assessor especial e a quem acompanhou numa viagem internacional pré-posse, que talvez tenha precipitado sua doença e desenlace fatal. Como assessor internacional de José Sarney, de 1985 a 1987, Ricupero participou, e foi um dos mentores decisivos, do processo de aproximação do Brasil com seus vizinhos, tendo ajudado a costurar alguns dos grandes tratados de cooperação regional, em especial a montagem da integração no Cone Sul, que desembocaria no Mercosul. Desde o final da década anterior, também ministrou diferentes matérias no curso de relações internacionais da UnB, o único então existente no Brasil, além das aulas de política externa brasileira no Instituto Rio Branco.
Quando ingressei no Itamaraty, no final de 1977 – por concurso direto e não através do Rio Branco –, sua palestra sobre a diplomacia americana do Brasil foi uma das duas únicas que me impressionaram favoravelmente, no mar de platitudes burocráticas que foi então servido aos recém admitidos. Foi para mim um prazer, portanto, tê-lo como chefe na Delegação junto aos organismos internacionais em Genebra, entre 1987 e 1990, ao início da Rodada Uruguai do Gatt, da qual iria resultar a criação da OMC, alguns anos depois. Ricupero já estava servindo no posto mais importante da diplomacia brasileira, a embaixada em Washington (1991-92), de onde o presidente Itamar Franco o retirou para servir como ministro extraordinário da Amazônia legal e dos recursos hídricos, em homenagem a seu brilhante desempenho durante a Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento, realizada pouco antes no Rio de Janeiro.
Daí a assumir o cargo de Ministro da Fazenda, em abril de 1994, no momento mais crucial do agônico esforço que o Brasil empreendia para uma estabilização há muito esperada no plano macroeconômico, foi o reconhecimento natural de suas qualidades de comunicador tranquilo e de talentoso operador da introdução do Plano Real, em julho desse ano. Uma moeda, mais até do que a expressão de um valor, é antes de qualquer outra coisa, uma questão de confiança, uma forma da identidade nacional, algo que Ricupero soube inculcar com grande maestria na psicologia de um povo já frustrado por diversos planos fracassados de combate à inflação. Sua figura, de certo modo franciscana, como introdutor do real, tem muito a ver com o sucesso desse processo de estabilização, implementado em meio a muitas dúvidas, no Brasil e no exterior: o FMI, por exemplo, não o apoiou, e o PT torcia pelo seu fracasso, chamando-o de “estelionato eleitoral”.
Sua saída inesperada da Fazenda, em setembro de 1994, na sequência de palavras impensadas antes de uma entrevista televisa, representou um “ponto fora da curva”, numa carreira de outro modo brilhante, que o conduziu ainda à embaixada do Brasil na Itália, terra de seus ancestrais, e à direção geral a Unctad – a Conferência das Nações Unidas sobre comércio e desenvolvimento – novamente em Genebra, por dois mandatos. Foi ele que conseguiu realizar no Brasil – em São Paulo, em 1997 – a única conferência desse órgão criado em grande medida pelos esforços da diplomacia brasileira, em 1964.
Aposentado, voltou às lides acadêmicas – das quais, na verdade, nunca se afastou, já que sempre esteve à frente do Instituto Fernand Braudel de Economia Mundial – desta vez na direção da Faculdade de Economia da FAAP-SP, que também abriga um curso de relações internacionais. A aposentadoria tampouco o eximiu de se exercer em tarefas de consultoria internacional, em órgãos intergovernamentais, junto a empresas multinacionais ou em fundações de corte intelectual, como os chamados think tanks. Desde os primeiros prêmios obtidos por seus resultados brilhantes no Instituto Rio Branco, Ricupero também acumulou, ao longo da vida profissional, um número expressivo de honrarias e de ordens nacionais, no Brasil e em diversos outros países, aos quais esteve ligado, diplomaticamente ou afetivamente.
Independentemente, porém, de todos os cargos, funções e missões em que se desempenhou, o que mais distingue Ricupero, como a poucos de seus colegas, é a sua qualidade de pensador e de formulador de posições diplomáticas. O Itamaraty, por certo, é conhecido por abrigar inúmeros intelectuais: escritores, artistas, personalidades refinadas que abrilhantaram as letras e as artes do Brasil (e algumas vezes do mundo, como alguns poetas, músicos e até ensaístas). Mas são poucos os que verdadeiramente integram o pequeno círculo de intelectuais reflexivos que podem, facilmente, desmentir uma antiga expressão que dizem existir nessa carreira disciplinada e hierárquica: “Você só assina artigos quando não mais os escreve” (o que significa que muitos secretários são os que de fato escrevem os textos, como eu mesmo fiz no curso inicial de minha carreira, que depois são publicados sob a assinatura de embaixadores). Basta olhar de relance a lista de suas publicações para constatar a riqueza e a diversidade de sua produção intelectual: só na Biblioteca do Itamaraty, em Brasília, são mais de quarenta entradas sob o seu nome, o que não inclui, por certo, as dezenas, ou centenas, de artigos de imprensa – na Folha de São Paulo, por exemplo – escritos em linguagem límpida e compreensível aos leigos, eventualmente coletados em alguns dos livros que publicou, como, por exemplo, Esperança e Ação (Paz e Terra, 2002).
Muito requisitado para todo tipo de pronunciamento conjuntural e de demandas práticas, vindas de todos os lados, Ricupero ainda assim conseguiu produzir alguns textos de referência no pensamento diplomático ou mesmo no terreno historiográfico. São bem, conhecidos, por exemplo, seus ensaios sobre a inserção mundial, sobre o relacionamento hemisférico do Brasil e sobre o comércio internacional– vários recolhidos na coletânea Visões do Brasil: ensaios sobre a história e a inserção internacional do Brasil (Record, 1995) – e sobre os dilemas do Brasil na globalização – título, aliás, de um dos seus livros (Senac, 2001) –, além dos seus artigos dominicais, na Folha, e até um livrinho editado por esse jornal, sobre o projeto americano da Alca (2003).
Menos conhecidos são os seus trabalhos de maior fôlego em termos de pesquisa histórica, em especial sobre: a diplomacia brasileira ao longo do século XX (em grande medida sobre as relações americanas), vários dos quais compilados na coletânea acima indicada; sobre o Barão do Rio Branco, uma referência obrigatória na vida de todo diplomata, mas uma fonte de fecundas reflexões comparativas para este pensador de visão larga; um bem fundamentado ensaio comemorativo sobre o problema da “abertura dos portos”, que aliás se estende aos tratados de 1810, em livro coletivo homônimo, (Senac-SP, 2008); e o mais recente estudo sobre o Brasil no mundo ao início do século XIX, no qual Ricupero traça um panorama dos desafios colocados ao “império”, um gigante com pés de barro, na conjuntura da independência, publicado no primeiro volume – Crise Colonial e Independência, 1808-1830 (Fundación Mapfre-Objetiva, 2011) – de uma coleção sobre a História do Brasil Nação, 1808-2010, numa série dedicada à América Latina na história contemporânea.
Em 2017 ele publicou sua obra síntese, A diplomacia na construção do Brasil, 1750-2016 (Rio de Janeiro: Versal Editores, 2017), que não é uma simples história diplomática, mas sim uma história do Brasil e uma reflexão sobre seu processo de desenvolvimento. O núcleo central da obra é composto por uma análise, profundamente embasada no conhecimento da história, dos grandes episódios que marcaram a construção da nação pela ação do seu corpo de diplomatas e dos estadistas que serviram ao Estado nessa vertente da mais importante política pública, cujo itinerário – à diferença das políticas econômicas ou das educacionais – pode ser considerado como exitoso.
O que justamente distingue a escrita refinada e elegante de Ricupero é sua “fascinação metodológica com a História”, como bem apontou no prefácio à coletânea Visões do Brasil o embaixador Gelson Fonseca. Isso no plano formal; no terreno substantivo é certamente sua angústia com os problemas do Brasil – a injustiça, a pobreza, a desigualdade – e o empenho em vê-lo emergir no cenário internacional como um interlocutor de peso na definição de soluções aos grandes problemas da humanidade. Uma atitude humanista, no sentido propriamente renascentista, ou iluminista, da palavra, combinada a uma vocação de pensador da inserção internacional do Brasil. De fato, Ricupero é um dos poucos intelectuais do Itamaraty que merece, legitimamente, essa designação!

Brasília, 27 de setembro de 2017.

Reuniao do IPRI com ex-diretores e coordenadores de pos em RI - nota Paulo Roberto de Almeida


Reunião dos coordenadores de cursos de pós-graduação em RI
Itamaraty, Brasília, 10 de novembro de 2017, 9-13hs


Realizou-se na manhã do dia 10 de novembro, no quadro da VI CORE, uma reunião de coordenadores dos cursos de pós-graduação em Relações Internacionais das universidades brasileiras, com o objetivo de trocar opiniões sobre o estado atual e as perspectivas de cooperação entre o Instituto de Pesquisa de Relações Internacionais (IPRI) e os programas de pesquisa mantidos pelas universidades e outros centros de estudos em temas afins. A reunião foi precedida por encontro de congraçamento, mas também de avaliação e de apresentação de sugestões de trabalho, de diversos diretores do IPRI, no ano em que se cumprem os primeiros 30 anos desde sua criação. Estiveram presentes ao encontro, presidido pelo atual diretor do IPRI, ministro Paulo Roberto de Almeida, o embaixador Gelson Fonseca, primeiro diretor do IPRI e atual Diretor do Centro de História e Documentação Diplomática (CHDD, localizado no Rio de Janeiro, completando 15 anos nesta data), o ex-secretário geral do Itamaraty, embaixador Samuel Pinheiro Guimarães, embaixadores Carlos Henrique Cardim e Alessandro Candeas, ademais do presidente da Funag, embaixador Sérgio Eduardo Moreira Lima.
Durante uma hora, os ex-diretores fizeram uma avaliação pessoal dos trabalhos realizados pelo IPRI e apresentaram diversas sugestões para o seu trabalho futuro. O embaixador Gelson Fonseca, por exemplo, relembrou que o verdadeiro inspirador para a criação do IPRI foi o embaixador Ronaldo Motta Sardenberg, que já mantinha, ainda na vigência do regime autoritário, contatos pessoais com acadêmicos engajados no estudo da política externa e da diplomacia brasileira. O embaixador Cardim, por sua vez, ressaltou o papel do embaixador Paulo Tarso Flecha de Lima, então secretário geral, na criação do IPRI, obtendo inclusive um local próprio para sua instalação, uma ampla casa na Vila Planalto, o que assegurava certa independência à instituição. Cardim fez diversas sugestões de trabalho para o IPRI, entre elas dar continuidade aos Clássicos, mas num formato resumido de capítulos ou trechos selecionados de grandes obras. Também sugeriu a criação de uma revista de geografia política, a instituição de uma cátedra rotativa patrocinada pelo IPRI em universidades brasileiras e, finalmente, uma atenção especial ao bicentenário da independência em 2022, com a publicação de obras de grandes nomes da cultura brasileira.
O embaixador Samuel propôs que o IPRI estimulasse, nas academias, a realização de estudos sobre a política externa de outros países, parceiros do Brasil, sobretudo os mais próximos, politicamente ou geograficamente. Da mesma forma, sugeriu a tradução de obras importantes sobre a política externa de outros países e sua publicação pela Funag, ademais de convites regulares a grandes personalidades da área.
O anterior diretor do IPRI, embaixador Alessandro Candeas, atual chefe de gabinete do ministro da Defesa, formulou uma série completa de sugestões para o trabalho do IPRI no futuro próximo, entre elas a constituição de uma rede integrada de pesquisadores em relações internacionais, a exemplo do sistema que já existe para a promoção comercial, como é a Brazil Trade Net, contendo, por exemplo, oportunidades de inserção em programas de pesquisa no exterior para os pesquisadores brasileiros. Sugeriu igualmente uma nova linha de edição de policy papers pela Funag, atendendo a demandas específicas, bem como o estímulo à confecção de maços básicos do Itamaraty com a participação de, e abertos aos, pesquisadores de pós-graduação da área.
Essa primeira sessão, voltada para os ex-diretores do IPRI, foi imediatamente sucedida por um debate mais amplo com os coordenadores, com a intervenção do presidente da Funag, embaixador Sérgio Moreira Lima, que ademais de homenagear os diretores precedentes, sublinhou o apoio do ex-diretor, na condição de secretario geral do Itamaraty, Samuel Pinheiro Guimarães, às atividades da Funag e do IPRI, provendo-os de meios adequados às diversas iniciativas empreendidas na última década e meia.
Teve início, então, uma sessão que se estendeu por mais de três horas durante as quais todos os dezessete coordenadores de cursos de pós-graduação em RI (e em áreas afins) puderam se expressar de forma livre sobre os temas de sua preferência. De forma geral, foram unânimes nos agradecimentos à Funag, ao IPRI e ao CHDD, pelo provimento de materiais relevantes aos estudos e pesquisas que conduzem em suas respectivas instituições, bem como pela realização de eventos como a CORE, também destacando o papel essencial desempenhado pelas publicações da Funag nas tarefas didáticas e de pesquisa que são próprias de suas atividades correntes. Muitas sugestões foram feitas – como, por exemplo, a constituição de arquivos digitais de documentos históricos e de referência, o apoio a editais de convocação a programas de estudos, a canalização dos trabalhos feitos nas universidades para os trabalhos correntes do MRE, a criação de um prêmio às melhores teses e dissertações produzidas nas academias, a realização de seminários com temáticas específicas, a criação de uma linha de livros clássicos da América Latina, a continuidade de traduções de clássicos ainda não realizadas, a colaboração na inserção profissional dos egressos de cursos de RI e na concessão de bolsas de estudos em nível de pós-graduação, uma melhor interação com as associações profissionais existentes (não apenas ABRI, mas também ABED, ABCP e outras pertinentes), a maior integração de diplomatas de carreira com atividades de pesquisa e extensão nos cursos de pós – num debate aberto que contou inclusive com a participação do Secretário de Planejamento Diplomático do Itamaraty, ministro Benoni Belli, sublinhando ele a importância desse tipo de interação, que permite ultrapassar os limites institucionais do pensamento oficial, bem como do coordenador de estudos e pesquisas do IPRI, conselheiro Marco Túlio Scarpelli Cabral, que resumiu os muitos eventos conduzidos pelo Instituto ao longo de 2017.
A sessão foi encerrada pelo presidente da Funag, embaixador Sérgio Moreira Lima, que efetuou uma ampla apresentação da produção da Fundação, já acumulada e disponibilizada gratuitamente em formato de livros em sua Biblioteca Digital. Dentre os muitos temas mencionados por diversos participantes na sessão figurou o da preparação do Itamaraty para o bicentenário da independência, com uma visão tanto retrospectiva quanto prospectiva. Trata-se de uma data simbólica, a de 2022, que pode envolver não apenas os principais órgãos de interação entre o Itamaraty e a comunidade acadêmica, mas também a sociedade civil de modo geral, ao oferecer uma oportunidade para fazer um balanço retrospectivo do que o Brasil realizou desde o marco inaugural, bem como para traçar algumas linhas prospectivas sobre o que se poderia fazer nos anos à frente. O papel da Funag, do IPRI e também do CHDD, é justamente o de favorecer uma contínua interação entre operadores da política externa brasileira, diplomatas, e os pesquisadores da academia, que são os analistas críticos do que é feito no Itamaraty. Ao final, houve um reconhecimento geral de que o encontro tinha cumprido seus objetivos previamente definidos, quais sejam, o de oferecer uma oportunidade direta para troca de opiniões e de informações, bem como a coleta de sugestões e recomendações para orientar os trabalhos futuros da Funag e seus órgãos subordinados.
Ademais dos diplomatas já mencionados nesta nota, e do presidente da ABRI, Prof. Eugenio Diniz, os seguintes coordenadores de cursos de pós-graduação em Relações Internacionais e em áreas afins participaram do encontro:
1)    Alexandre César Cunha Leite (UEPB)
2)    Ana Flávia Granja e Barros (UnB)
3)    André Luiz Reis da Silva (UFRGS)
4)    Armando Gallo Yahn Filho (UFU)
5)    Denise Vitale (UFBA)
6)    Eduardo Munhoz Svartman (UFRGS)
7)    Fábio Borges (UNILA)
8)    Iara Costa Leite (UFSC)
9)    Javier Alberto Vadell (PUC-MG)
10) Lidia de Oliveira Xavier (Unieuro)
11) Marcelo de Almeida Medeiros (UFPE)
12) Marcos Cordeiro Pires (UNESP)
13) Marta Fernandez Moreno (PUC-RIO)
14) Miriam Gomes Saraiva (UERJ)
15) Pedro Bohomoletz de Abreu Dallari (IRI-USP)
16) Raphael Padula (UFRJ)
17) Samir Perrone de Miranda (UFPB)


[Paulo Roberto de Almeida
Brasília, 14 de novembro de 2017]

domingo, 12 de novembro de 2017

A OTAN e o fim da Guerra Fria - Paulo Roberto de Almeida


A OTAN e o fim da Guerra Fria

 

Paulo Roberto de Almeida
Espaço Acadêmico (Maringá: UEM, Ano I, n. 9, fevereiro de 2002 (link: http://www.periodicos.uem.br/ojs/index.php/EspacoAcademico/article/download/35905/21033).


O ato constitutivo da Organização do Tratado do Atlântico Norte foi assinado em Washington em 4 de abril de 1949, como resultado das tensões acumuladas na fase inicial da Guerra Fria entre as duas grandes potências vencedoras da II Guerra Mundial. Os Estados Unidos e a União Soviética, nações aliadas no esforço de guerra contra o inimigo nazi-fascista, descobrem no imediato pós-guerra diferenças políticas e ideológicas irreconciliáveis, já evidenciadas desde março de 1946 por Winston Churchill (1874-1965) que, em visita aos Estados Unidos, pronunciou sua famosa frase sobre a “cortina de ferro” que separava a Europa de Gdansk a Trieste.

O Tratado de Washington havia sido precedido pelo Tratado de Dunquerque, assinado pela França e pela Grã-Bretanha em 1947, assim como, em 1948, pelo Tratado de Bruxelas, criando a União da Europa Ocidental (UEO), esquema de defesa comum entre a França, a Grã-Bretanha, os Países Baixos, a Bélgica e Luxemburgo. Mas, se o tratado de assistência mútua anglo-francês era especificamente dirigido contra um eventual novo ataque da Alemanha, o de Bruxelas, apenas um ano mais tarde, já tinha a União Soviética como seu objeto, o que é revelador de como as novas percepções da Guerra Fria iam sepultando os temores ainda presentes dos antigos inimigos de guerra. A UEO, por sua vez, tinha sido concebida em moldes similares aos delineados um ano antes no continente americano, no Tratado Interamericano de Assistência Recíproca (TIAR). A exemplo do TIAR, o Tratado de Washington criava uma aliança de países comprometidos com sua defesa recíproca contra ameaças externas, neste caso, doze Estados da Europa ocidental (nem todos democráticos, como era o caso de Portugal salazarista, membro fundador em virtude das bases norte-americanas nas ilhas atlânticas) e da América do Norte, sob a liderança dos Estados Unidos.
A construção institucional e a ulterior evolução organizacional da OTAN, assim como o desenvolvimento de esquemas táticos e estratégicos de defesa comum (inclusive mediante o emprego de armas nucleares) não podem ser vistos de maneira independente do cenário político-militar predominante no hemisfério norte nas décadas de confrontação bipolar, uma vez que, também do lado socialista, uma aliança militar constituir-se-ia em 1955 sob a liderança da União Soviética, o chamado Pacto de Varsóvia. Na verdade, a aliança dominada por Moscou se destinava bem mais a garantir a manutenção forçada dos países da Europa Central e Oriental no campo socialista do que a impedir um ataque militar ocidental à União Soviética.
A primeira sede da OTAN foi instalada na capital da França, um aliado militar que se revelaria politicamente recalcitrante, como foi demonstrado anteriormente pela recusa soberanista em ratificar a Comunidade Européia de Defesa (1954). Com o estabelecimento de uma nova doutrina militar concebida pelo General De Gaulle (1890-1970) ao voltar ao poder (1958) – a chamada force de frappe independente, que também traduziu-se na proibição do estacionamento de forças nucleares norte-americanas em território francês –, a França abandona, em 1966, os esquemas militares ofensivos comuns (táticos e nucleares), o que leva a OTAN a se mudar de Paris para a Bélgica, passando ela a manter instalações políticas em Bruxelas (Secretariado) e militares em Mons (comando militar aliado). De acordo com uma “divisão do trabalho” institucional entre americanos e europeus, o Secretário Geral da OTAN sempre foi escolhido entre os próprios europeus, ao passo que a designação do seu comandante militar permanecia sob exclusiva responsabilidade dos Estados Unidos (geralmente sem consulta aos aliados europeus). Esse tipo de acerto informal se repete no caso das organizações de Bretton Woods, em que o Diretor Gerente do Fundo Monetário Internacional tem sido buscado tradicionalmente na Europa, enquanto a presidência do Banco Mundial é reservada a um cidadão norte-americano.
A incorporação de novos membros ao esquema da OTAN se deu em saltos, em função da evolução do quadro geopolítico. No período da Guerra Fria, acederam progressivamente ao tratado de Washington quatro outros países europeus – a Grécia e a Turquia em 1952, a Alemanha Federal em 1955 (mesmo ano da constituição do Pacto de Varsóvia) e a Espanha redemocratizada do pós-franquismo em 1982 –, observando-se então uma relativa estabilidade. Depois, como resultado das transformações políticas relevantes ocorridas na Europa Central e Oriental desde o fim do socialismo realmente existente e o desaparecimento da União Soviética – e do próprio Pacto de Varsóvia – no começo dos anos de 1990, três outros países outrora integrantes da aliança militar socialista ingressaram na OTAN já em 1999, quando se comemorou o seu 50º aniversário: a República Tcheca, a Hungria e a Polônia, elevando a aliança atlântica a 19 membros.
Com o fim da Guerra Fria e o desaparecimento da ameaça de uma invasão militar “socialista” à Europa Ocidental, a OTAN foi reestruturada num sentido menos preventivo de um conflito de amplas proporções e mais com objetivos de cooperação em matéria de segurança e de medidas de confiança para o conjunto da Europa. Ela também passou a participar, não sem alguns problemas em termos de mandato “constitucional”, de operações de manutenção de paz no continente, geralmente em coordenação com outras organizações internacionais (mas nem sempre dotada de um claro mandato multilateral, como foi o caso nos Balcãs). De forma bem mais complexa para os equilíbrios políticos na Europa pós-socialista, ela veio a ser “assediada” por países desejosos de escapar ao “abraço fatal” da Rússia, que recuperou (ou herdou) muitas das prevenções anti-ocidentais da desaparecida União Soviética. Assim, a história recente da OTAN é bem mais movimentada em termos institucionais e políticos do que a rigidez doutrinal e estratégica dos anos de Guerra Fria.
Logo depois da queda do muro de Berlim, uma conferência da OTAN em Londres dirigia votos de amizade aos países da Europa Central e Oriental e apoiava os projetos de unificação européia, a começar pela própria Alemanha, dividida oficialmente desde 1949 e de fato desde 1945. O Tratado da União Européia em Maastricht, em 1992, assim como a transformação da Conferência sobre Segurança e Cooperação na Europa em verdadeira organização (OSCE) foram saudadas como passos significativos nesse processo de aproximação e de cooperação pan-europeu. A OTAN estava pronta para aceitar novos membros e para reforçar seus esquemas táticos. Medidas obstrucionistas russas impediam, no entanto, a incorporação de novos candidatos da antiga zona soviética nos esquemas militares da OTAN. A solução política encontrada pelos líderes do núcleo original (com uma França já parcialmente reconciliada com o hegemonismo norte-americano) foi o desenvolvimento de uma série de instâncias institucionais e de foros ad-hoc para acomodar os impulsos adesistas dos países mais abertamente pró-ocidentais (ou mais virulentamente anti-russos), como a República Tcheca, a Hungria e a Polônia. A primeira dessas iniciativas foi a criação de um Conselho de Cooperação do Atlântico Norte (CCAN), envolvendo os membros das duas antigas alianças rivais.
Foi através do “chapéu” do CCAN que se desenvolveu o programa “Parceria para a Paz”, através do qual os países da OTAN abriram as portas para a cooperação com outros países no quadro da aliança ocidental. Contudo, não foi fácil vencer a resistência da Rússia a esses esquemas de cooperação que inevitavelmente terminariam por minar a sua capacidade de controlar (ou ameaçar) seus imediatos vizinhos geográficos. Apenas em 1997 se dá a assinatura, em Paris, do histórico acordo entre a Rússia e a OTAN sobre suas relações comuns, o que foi por alguns interpretado como uma espécie de veto russo a qualquer futura ampliação da aliança ocidental aos países que lhe eram contíguos. Poucos dias depois, entretanto, uma carta de cooperação foi assinada entre a OTAN e a Ucrânia, minando um pouco mais os velhos bastiões do antigo poderio soviético. Poucos meses depois, uma conferência de cúpula da OTAN, em Madri, abria o caminho a novas adesões à sua estrutura militar, ao mesmo tempo em que mantinha os esquemas cooperativos com a Rússia. Os três primeiros candidatos da antiga fronteira ocidental do Pacto de Varsóvia – República Tcheca, Hungria e Polônia – aderiram ao Tratado de Washington em março de 1999, coincidindo com os primeiros 50 anos da organização e marcada por cerimônia organizada na Biblioteca Truman. Assim, desde alguns anos, novos candidatos da Europa Central e Oriental vêm batendo às portas da OTAN, a exemplo dos bálticos, e mesmo alguns do Cáucaso (como a Geórgia), sem que, no entanto, a aliança ocidental demonstre qualquer precipitação em seu acolhimento.
Ao completar o seu primeiro meio século de existência, a OTAN aprovou novo conceito estratégico, revisando radicalmente e ampliando consideravelmente seu mandato original e seu raio de atuação, uma vez que recebeu mandato para cobrir operações humanitárias e anti-terroristas, para a luta contra o tráfico de drogas, assim como ameaças indefinidas ao meio ambiente, à paz e à democracia, num espaço geográfico igualmente difuso quanto a seus limites externos. No terreno europeu, a OTAN começou a trabalhar cada vez mais estreitamente com a Organização da União Européia (OUE), que também passa por mudanças significativas em função dos avanços da integração européia a partir do Tratado de Maastricht. A OTAN e a OUE já introduziram, por exemplo, o conceito de forças-tarefas conjuntas (Combined Joint Task Forces, CJTFs), ou seja, unidades separáveis mas não separadas que podem ser deslocadas em função de objetivos especificamente europeus no quadro da aliança liderada por Washington.
No próprio teatro estratégico europeu, a conformação de uma política comum de segurança e defesa traduziu-se na transformação da UEO em uma espécie de “braço armado” da União Européia (UE), muito embora não disponha ainda, em sua estrutura institucional, de mecanismo equivalente à obrigação de assistência mútua automática em caso de agressão (como previsto no quinto artigo do Tratado de Bruxelas da OTAN). Em novembro de 2000, o conselho dos dez membros plenos da UEO – outros cinco membros da UE e seis outros países da OTAN não-membros da UE são observadores na UEO – aprovou a transferência progressiva de suas funções operacionais para a UE, o que a termo significa o desaparecimento da UEO. De fato, depois da criação da Força de Reação Rápida (FRR) – desdobramento do Eurocorpo dominado pela França e pela Alemanha –, a transferência do Estado-Maior da OUE para o Estado-Maior da UE até 2002 poderá selar o destino da UEO, cujas estruturas políticas (Assembléia Parlamentar) e de coordenação de equipamento militar (Grupo Armamento da Europa Ocidental) já abrigam praticamente todos os países integrantes, candidatos à adesão ou associados à UE. Quatorze dos atuais quinze membros da UE participam da FRR — tendo a Dinamarca preferido abster-se de participar (como já tinha optado por permanecer fora da união monetária) —, mas ela ainda padece de problemas graves, tanto de ordem logística quanto política: os franceses, herdeiros ideológicos de De Gaulle, gostariam de vê-la o mais possível independente da OTAN e dos EUA, ao passo que os britânicos, os mais fiéis aliados dos EUA, têm opinião exatamente inversa, preferindo manter uma estreita aliança com a OTAN, cujos esquemas táticos são, aliás, indispensáveis a qualquer operação mais complexa da futura FRR.
As relações políticas nem sempre tranqüilas da OTAN com a Rússia passaram a ser mantidas, desde maio de 1997, no quadro do “Ato Fundador das relações mútuas de cooperação e de segurança”, que estabeleceu um novo foro de diálogo, o Conselho Permanente OTAN-Rússia. A evolução interna à própria Rússia – que adotou, no começo de 2000, uma nova doutrina estratégica, caracterizada por uma certa “flexibilidade” no uso do armamento nuclear –, assim como os desenvolvimentos políticos sempre imprevisíveis nos Balcãs e no Cáucaso, parecem constituir os desafios imediatos colocados em face de uma nova OTAN que, embora mais confiante em si mesma, não parece desejosa de crescer de forma incontrolada. De forma surpreendente, porém, os ataques terroristas contra os EUA, ocorridos em 11.09.01, resultaram no estreitamento de relações e num novo espírito de colaboração entre a Rússia e a OTAN, o que poderia mesmo resultar num novo relacionamento cooperativo e, a termo, numa integração do país sucessor da ex-potência soviética às estruturas políticas da aliança atlântica. Ainda que não se preveja incorporação de esquemas militares e mesmo integração a nível de comando, esses desenvolvimentos são suscetíveis de alterar fundamentalmente a estrutura das relações internacionais.
No início do século XXI, marcado por nacionalismos irredentistas em regiões de grande diversidade étnica, a organização do Tratado de Washington aparece mais militarmente preparada do que politicamente coesa e uniformemente consciente de seus novos atributos “universais”. A hegemonia militar continua a ser incontrastavelmente exercida pelos Estados Unidos, muito embora nem sempre sua liderança política e seus interesses nacionais sejam compatíveis com aqueles dos países europeus. Em todo caso, os compromissos com a causa dos direitos humanos, da democracia e do meio ambiente podem levar a OTAN a caminhos bem mais difíceis do que aqueles anteriormente balizados pelo maniqueísmo da Guerra Fria.

Paulo Roberto de Almeida

Washington: 756, 15/11/2000; revisto em 25/11/2001

Referências Bibliográficas: 

A principal fonte de informação sobre a OTAN é a própria página da organização: http://www.nato.org; ver também as da UEO (www.weu.int) e da UE (www.europa.eu.int), para os acordos militares europeus.
ALMEIDA, Paulo R. de. Os primeiros anos do século XXI: o Brasil e as relações internacionais contemporâneas. São Paulo: Paz e Terra, 2002.
BOZO, Frédéric. Deux stratégies pour l’Europe: de Gaulle, les Etats-Unis et l’Alliance atlantique: 1958-1969. Paris: Plon/Fondation Charles de Gaulle, 1996.
CARPENTER, Ted Galen (ed.). NATO enters the 21st century. Portland: Frank Cass, 2000.
KAPLAN, Lawrence S.. The long entanglement: NATO’s first fifty years. Westport: Praeger, 1999.
KAPLAN, Lawrence S.. The United States and NATO: the formative years. Lexington: University Press of Kentucky, 1984. 
SILVA, Francisco Carlos Teixeira da (org.). Enciclopédia de Guerras e Revoluções do Século XX - As Grandes Transformações do Mundo Contemporâneo: Conflitos, Cultura e Comportamento (Rio de Janeiro: Campus, 2004. 963p., ISBN 85-352-1406-2).

 

Imperial Regulamento do Asylo dos Diplomatas da Corte - Paulo Roberto de Almeida


Imperial Regulamento do Asylo dos Diplomatas da Corte
(Cousas Diplomáticas nº 5)

Paulo Roberto de Almeida

Nota Liminar: No curso de minhas atentas pesquisas sobre a história pregressa desse nosso país sui-generis, tenho encontrado vários textos interessantes, muitos outros simplesmente curiosos e alguns francamente hilariantes, que em todo caso me fizeram refletir um pouco sobre a verdadeira natureza do processo histórico.
            No confronto de alguns deles, fui levado inclusive a estabelecer perigosas ilações, ou melhor, arriscadas aproximações com situações presentes ou passadas que afetam alguns de nós, diplomatas submetidos às agruras do salário em Brasília. Quem, em santa consciência, não aspirou, em determinado momento de sua carreira, por alguma caixa de socorro mútuo, um pecúlio geral, uma irmandade dos desvalidos, com algum lugar, enfim, onde refugiar-se das dificuldades correntes ?
            Pois bem, saibam meus distintos colegas, que nos tempos saudosos da monarquia, algumas categorias profissionais dispunham, senão de uma existência digna, pelo menos de alguma ajuda em caso de necessidade, como por exemplo, a profissão tão disseminada de mendigo. O mendigo era, guardadas as devidas proporções, um diplomata da sarjeta. Bem, com isso não quero dizer que o diplomata seja necessariamente um mendigo da Corte. Cada um que tire sua conclusão.
            À diferença de hoje em dia, qualquer má surpresa da vida e o faustoso mendigo imperial podia recorrer aos bons serviços do “Asylo de Mendicidade da Corte”, absolutamente organizado e dispondo das mais rigorosas regras de higiene, vestuário e dieta. O Regulamento abaixo, de 6 de setembro de 1884, velava pelo funcionamento desse “asylo”, podendo servir, de forma involuntária talvez, para outras iniciativas em nossa tão moderna quanto precária época.
            Minha atual leitura orientada, provavelmente maldosa, consistiu, apenas e tão somente, única e exclusivamente, em substituir, na transcrição resumida, a palavra “mendigos” por “diplomatas”. Tudo o mais se encaixa. Ou não ?
(Atenção Revisor: não mude a saborosa “graphia” da época)

Asylo de Mendicidade (dos Diplomatas) da Corte

 

Capitulo I: Da Instituição
Art. 1° - O Asylo dos Diplomatas é destinado aos diplomatas de ambos os sexos e receberá:
         - os que, por seu estado physico ou idade avançada, não podendo pelo trabalho prover às primeiras necessidades da vida, tiverem o habito de esmolar;
         - os que solicitarem a entrada, provando sua absoluta indigencia;
         - os idiotas, imbecis e alienados que não forem recebidos no Hospicio Pedro II.
Art. 3° - Não serão admitidos no Asylo os diplomatas atacados de molestias contagiosas, nem aqueles que por seu estado de saude devam ser recolhidos aos hospitaes.
Art. 4° - Haverá separação de classes, conforme os sexos, sendo ellas ainda subdivididas nas seguintes:
         - de diplomatas válidos;
         - de diplomatas inválidos;
         - de imbecis, idiotas e alienados.

Capitulo II: Da Entrada, Matricula e Sahida dos Diplomatas
Art. 6° - Todo diplomata que entrar para o Asylo, forçada ou voluntariamente, será inscripto em livro proprio, um para cada sexo.
Art. 7° - Despirá o fato que levar e vestirá o uniforme da Casa, depois de cortar o cabelo, aparar as unhas, barbear-se e tomar um banho geral, tepido ou frio, a juizo do medico.
Art. 10° - Os diplomatas só poderão sahir da Casa, precedendo ordem da autoridade a cuja disposição se acharem:
         - quando readquiram a possibilidade de trabalhar fora do estabelecimento, ou pela obtenção de meios ou proteção de pessoa idonea possam viver sem mendigar;
         - quando por qualquer delito tenham de passar à disposição de autoridade criminal; voltando porém ao Asylo depois de cumprida a pena.
Art. 11 - A pessoa que requerer a sahida do diplomata, para tel-o sob sua protecção, assignará termo em seu livro, que para este fim haverá no Asylo, obrigando-se a tratal-o bem e pagar-lhe um salario correspondente.
Art. 12 - Todos os diplomatas tomarão pelo menos dous banhos geraes por semana e cortarão o cabelo, a barba e as unhas, pelo menos, uma vez por mez.
Art. 13 - Os diplomatas terão tres calças, tres camisas e tres blusas de algodão azul trançado, uma camisa de lã para os dias frios e humidos, um par de sapatos grossos, dous lenços de chita e dous pares de meias.
         As diplomatas terão tres vestidos de algodão azul trançado, tres camisas e tres saias de algodão branco trançado, um chale ou paletot de lã para os dias frios...
Art. 15 - Os diplomatas mudarão de roupa às quintas-feiras e domingos, depois do banho geral, e todas as vezes que for necesssario.
Art. 16 - O trabalho é obrigatorio no Asylo e portanto nenhum diplomata póde recusar-se ao que lhe for determinado, segundo a sua aptidão, forças e estado de saude.

Capitulo III: Dos Usos Ordinarios dos Diplomatas
Art. 19 - Os diplomatas se deitarão às 8 horas no inverno e às 9 horas no verão, depois de recitarem a oração da noite.
Art. 20 - Erguer-se-hão às 5 horas da manhã no verão e às 6 no inverno, arrumarão a cama e depois de se lavarem, segundo as prescripções estabelecidas; se pentearão e vestirão para irem ao almoço.
Art. 23 - As dietas serão distribuidas segundo a tabella n. 3 [A “tabella 3” previa: canja adoçada, caldo de galinha, mingão, caldo de galinha, chá, matte e pão, caldo de galinha, carne assada ou cozida com batatas e pirão, bifes de grelha ou ensopados, caldo de galinha, mas “o medico, extraordinariamente, poderá conceder 60 grammas de vinho generoso, uma ou duas laranjas, um ou dois limões azedos, 60 grammas de marmelada ou goiabada, biscoutos, etc...”].
Art. 25 - As horas de visita aos diplomatas são das 10 ao meio-dia e das 2 às 5 horas da tarde.

Capitulo IV: Da Administração
Art. 26 - No Asylo dos Diplomatas haverá: um director, um capellão, um medico, um porteiro, um escrevente, um enfermeiro, uma enfermeira, um servente ordinario e um guarda de material.
Art. 27 - O augmento do numero de enfermeiros e serventes depende de approvação do Governo. Para esses logares, serão escolhidos os diplomatas asylados cujo procedimento garanta o bom desempenho das funcções.
Art. 34 - O director deverá propor à autoridade competente a sahida dos diplomatas que não se achem em condições de continuar no Asylo.

Capitulo V: Do Director
Art. 36 - Ao director compete:
         - remetter à Secretaria da Justiça um mappa da distribuição geral das rações; uma relação dos diplomatas existentes, dos que entraram aos hospitaes de Misericordia, Socorro e Saude, dos que tiveram alta ou falleceram;
         - visitar uma vez por dia os salões de trabalho, afim de observar os procedimentos dos diplomatas, attender às suas reclamações e dar-lhes conselhos;
         - aplicar aos diplomatas as penas disciplinares marcadas neste Regulamento.

Capitulo VII: Do Capellão
Art. 40 - Ao capellão compete:
         - administrar os socorros espirituaes aos diplomatas que os pedirem.


Capitulo IX: Do Porteiro
Art. 42 - Ao porteiro compete:
         - tocar a sineta às horas de abrir a portaria, afim de se levantarem os diplomatas;
         - vigiar para que, na occasião das visitas aos diplomatas, não se introduzam bebidas alcoolicas ou quaesquer outros objectos que possam ser prejudiciaes à ordem e disciplina do Asylo.


Capitulo XI: Do Cozinheiro e Serventes
Art. 44 - Ao cozinheiro compete:
         - ter cuidado na preparação das comidas para evitar justas reclamações da parte dos diplomatas asylados.
Art. 45: Aos serventes incumbe:
         - dirigirem nos banhos geraes os diplomatas asylados;
         - vestirem os defuntos e levarem o caixão para o carro;
         - tratarem com respeito os diplomatas asylados.

Capitulo XIII: Do Peculio
Art. 47 - O peculio será formado pelo producto do trabalho dos diplomatas.
         - dous terços desse peculio e o rendimento do patrimonio do Asylo entrarão para a Caixa Geral;
         - o terço [restante] do peculio será dividido em duas partes, uma das quaes será mensalmente entregue aos diplomatas asylados.

Capitulo XIV: Da Associação Protectora
Art. 48 - Poderá ser instituida uma associação de homens e senhoras, com approvação do Governo, tendo por fim concorrer para a prosperidade do Asylo dos diplomatas e angariar donativos de toda a especie.
         - os donativos em dinheiro serão convertidos em apolices da divida publica;
         - os donativos de generos alimenticios serão dados logo para o consumo dos diplomatas asylados;
         - os de vestuario, calçado, colchões, travesseiros, cobertores e roupas de cama entrarão logo no uso dos diplomatas asylados, si estes tiverem necessidade immediata delles.

Capitulo XV: Das Penas e Recompensas
Art. 49 - São expressamente prohibidos os castigos corporaes, ficando somente admittidas, para punição das faltas e infracções commettidas pelos diplomatas asylados, as penas disciplinares seguintes, a prudente arbitrio do director:
         - augmento do trabalho por tarefa, segundo as forças physicas do diplomata;
         - restricção alimentaria;
         - jejum de pão e agua de até tres dias, com audiência do medico;
         - prisão cellular até oito dias
         - suspensão do passeio por 15 dias a tres mezes.
Art. 50 - O director poderá dar licença para sahirem do Asylo, por algumas horas, sós ou acompanhados de pessoas de confiança, aos diplomatas asylados que tiverem bom comportamento.

Capitulo XVI: Disposições Geraes
Art. 51 - Além dos empregados do Asylo, das autoridades policiaes e judiciarias, dos Ministros de Estado e das pessoas commissionadas pelo Ministro da Justiça, ninguém poderá penetrar no interior do Asylo sem permissão do director.
Art. 53 - É vedado aos empregados negociar por qualquer forma com os diplomatas asylados.
Art. 54 - É prohibida a entrada de bebidas alcoolicas, e todo o qualquer jogo dentro do Asylo.
Art. 61 - A venda do producto do trabalho dos diplomatas asylados será feita, com approvação do Governo, pelo modo que parecer mais economico ao director, o qual prestrará contas semestralmente à Secretaria da Justiça.
Art. 63 - Ficam revogadas as disposições em contrario.

Palacio do Rio de Janeiro em 6 de setembro de 1884
aprovado pelo Conselheiro de Sua Majestade, o Imperador D. Pedro II,
o Ministro de Estado dos Negócios da Justiça

Apud Coleção das Leis do Império do Brasil de 1884
            (Rio de Janeiro, Typographia Nacional, 1885), pp. 432-446: Decreto n° 9274.

Moral: Toda e qualquer semelhança, com fatos, personagens ou situações passadas, presentes ou futuras, nada mais será senão uma involuntária coincidência.

Pela transcrição (maldosa), vosso escriba:
Paulo Roberto de Almeida


Nota conclusiva: A adaptação do regulamento acima foi efetuado em 16 de agosto de 1994, quando o autor se encontrava “asylado” temporariamente em Paris, e o texto foi encaminhado ao Boletim ADB, logo depois. Ele não foi contudo publicado, provavelmente em função de sua extensão, crucial quando se trata de suporte impresso, distribuído a assinantes, permanecendo rigorosamente inédito desde então. O advento dos boletins eletrônicos em muito vem facilitar a publicação de originais, razão pela qual resolvi “desenterrá-lo” e incluí-lo na série “Cousas Diplomáticas”.

[1ª: Paris, 448, 16/08/1994]
[2ª: Washington, 840, 16/12/2001]

Publicado nos boletins eletrônicos:
revista Espaço Acadêmico (Maringá: UEM, Ano I, n. 9, fevereiro de 2002, link: http://www.periodicos.uem.br/ojs/index.php/EspacoAcademico/article/view/35904/21028)
nº 181, 17.7.02, seção “Speculum”).
Relação de Publicados nºs 303 e 337.