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sábado, 11 de fevereiro de 2017

Diplomatas que pensam: qual é a nossa função? - Paulo Roberto de Almeida


Diplomatas que pensam: qual é a nossa função?

Paulo Roberto de Almeida (org.)
 [Reflexão sobre uma suposta “missão”; finalidade: auto-esclarecimento]

A pergunta da segunda parte do título, depois dos dois pontos, está obviamente relacionada à primeira parte: diplomatas que pensam. Como isso? Existem diplomatas que não pensam? Todo ser humano pensa, por definição cartesiana. Minha categoria dos “que pensam” tem, no entanto, sua razão de ser: como em toda carreira, profissão, ocupação, trabalho ou emprego, existem aqueles que desempenham mecanicamente suas funções, por necessidades, digamos assim, alimentares e de sobrevivência, que levam a vida como ela é, acompanhando pachorrentamente o ritmo das atividades gerais de sua comunidade de inserção, e existem aqueles que, ademais de se desincumbirem das tarefas às quais estão assignados (para ganharem um salário, para sustentarem a família, para satisfação e consumo próprios), também pensam um pouco além de sua profissão ou ocupação imediata. Eles pensam no significado de suas atividades, para si mesmos e para os outros, e concebem novas formas de desempenharem essas mesmas atividades, ou de introduzir novos métodos de trabalho que representam, de modo geral, um progresso (material ou intelectual) sobre o estado da arte existente.
Pois bem, este meu texto está voltado unicamente para esta segunda categoria, que se enquadra no conceito geral de “produtividade do trabalho humano”, na qual eu mesmo espero estar enquadrado. Produtividade, sendo muito rudimentar, é tudo aquilo que melhora, ou aumenta, a oferta da produção existente, com os mesmos recursos ou volume de insumos disponíveis, ou que produz a mesma quantidade de produtos com um volume menor de trabalho mecânico. A isso se dá também o nome de inteligência.
As funções dos diplomatas todo mundo sabe quais são. Grosseiramente, são três, resumidas em três verbos: informar, representar, negociar. Mas tudo isso pode ser feito de maneira mecânica: lendo os jornais do dia, se informando pelos canais disponíveis, e resumindo tudo isso para os chefes ou para a instituição, em bases correntes, ou seja, conjunturais; fazendo o trabalho de intermediação entre duas chancelarias, pelos meios burocráticos normais, os mais costumeiros e frequentes, ou outros informais (coquetéis, jantares, encontros); e comparecendo a reuniões formais, ali defendendo as instruções recebidas de sua secretaria de Estado. Estes são os diplomatas normais; os “anormais” (ou diferentes) são aqueles que, além disso, vão um pouco à frente, ao lado, ou mais adiante do que normalmente se espera deles: saem do conjuntural para o sistêmico, e buscam os fundamentos de suas ações; não informam apenas o que está se passando, mas se permitem explorar novas vias de conhecimento, inclusive em direção do passado, das memórias de tempos pretéritos, ou em novos caminhos ainda ignotos da maior parte dos colegas; sugerem, ou até criam, novas instruções, para resolver alguns problemas mais complexos do que o trivial costumeiro. Inovar tem o seu preço, que é o de romper hábitos arraigados e a segurança do déjà vu, a que estão acostumados a maioria das pessoas, talvez 99% da humanidade (exagero?).
Pois bem, uma segunda vez: meu texto está unicamente voltado para esta categoria de diplomatas, que pode ser (e costuma ser) uma minoria, e portanto sujeita à chamada “tirania da maioria”, de que falava Tocqueville (em outro sentido). Não importa muito: isso vale não só para os diplomatas, mas para todo mundo. Progressos da comunidade humana são impulsionados por aqueles que passam as noites nos laboratórios, lendo livros, imaginando coisas fora do comum, refletindo sobre como desempenhar suas atividades correntes de outra forma, mais cômoda, mais produtiva, mais imaginativa, fácil ou agradável; ou para responder a desafios terríveis: epidemias, catástrofes, trabalho penoso, carência de bens ou serviços para necessidades especiais, o que seja. Na vida diplomática, significa fazer com que seu país se adapte à dinâmica absolutamente impessoal, incontrolável, anárquica, com efeitos positivos e negativos ao mesmo tempo, decorrente do fluxo contínuo de interações humanas, sociais, “naturais”.
Vou ser mais claro: globalização não é de hoje, sempre existiu, sob diferentes formas. Ela geralmente se processa no plano micro: micro-social, microeconômico, micro-político, ou seja, no das relações humanas, em pequenas ou grandes sociedades. Ninguém controla esse conjunto de fluxos, que se processam espontaneamente, ou de modo deliberado, mas que respondem a necessidades naturais, a desejos humanos, à vontade das pessoas de terem segurança, bem-estar, riqueza, importância ou prestígio. São os governos os que tentam colocar em “ordem” essas interações e, ao fazê-lo, geralmente colocam um freio, ou impõem custos, a essas interações: por meio de impostos, tarifas, regulações, que dizem (ou pelo menos tentam dizer) o que os indivíduos ou as empresas podem, ou não, fazer. Governos, estados, são inerentemente antiglobalizadores, restritivos, cerceadores das liberdades humanas. Mas, num mundo babélico, entregue a nacionalismos estéreis, redutores, e até destruidores, se entende que elites dirigentes, governantes ou dominantes tentem colocar ordem em certos fluxos ou interações que podem se revelar temporariamente perturbadores da ordem existente.
Pois bem, uma terceira vez: o que os diplomatas que pensam têm a ver com tudo isso? Venho agora à segunda parte do título. Qual seria a nossa missão (já que estou me colocando entre os diplomatas que pensam)? Penso (ah, Descartes) que elas são de duas naturezas: uma didática, a outra facilitadora das interações humanas, sociais, ou seja, da globalização (que para mim é algo como a força dos ventos ou os fluxos das marés: eles existem, independentemente da nossa vontade, ou do cerceamento dos governos).
A didática é a de explicar para nossos concidadãos (mas não só eles) a natureza exata de nossa atividade, numa esfera que foge à compreensão e ao alcance da maioria das pessoas (que costuma viver em seu ambiente natural, local ou nacional). Mas ela é também dirigida aos nossos dirigentes, às elites que nos governam, que não são, longe disso, as mais esclarecidas possíveis. Políticos, em geral, são seres que vivem num mundo à parte, feito da reprodução de sua própria esfera de atividade: se eleger, se reeleger, e assim continuamente, constituindo uma classe em si e para si, no sentido hegeliano do conceito. Eles não têm tempo, disposição ou interesse para se informar sobre realidades mais complexas, e todas as realidades internacionais são sempre mais complexas do que as locais ou nacionais, nas quais vivem as pessoas, usualmente.
O diplomata que pensa precisa desfazer preconceitos (ideias pré-concebidas, geralmente erradas, ou limitadas), insuficiência de conhecimento, desconhecimento de línguas, falta de expertise no tratamento de realidades externas que povoam as mentes dos políticos que nos governam. Sua primeira tarefa é a de instruir, educar, o chefe da chancelaria, que pode não ser (geralmente não é) um ser semelhante, ou seja, um diplomata já instruído, formado, treinado para justamente tratar de questões que estão acima, ou ao lado, das preocupações imediatas dos dirigentes (que é o seu eleitorado, digamos assim). Essa é uma função importante: não se dobrar, de modo submisso, à ignorância, preconceitos e interesses imediatos dos políticos que podem pretender dominar também a esfera das relações exteriores da nação.
Junto com isso vem a função didática mais ampla, mais geral, que é (ou seria) a de explicar à sociedade, inclusive à comunidade dos acadêmicos, não só a natureza das ações do Estado a que servem, mas de justificar a tomada de certas posições e não de outras, que podem eventualmente desfrutar de maior apelo popular. Por exemplo: todo economista sensato, racional, deveria ser a favor do livre comércio, pois é a única forma eficiente de trazer mais prosperidade para o conjunto da humanidade, qualquer que seja ela, da tribo mais primitiva às sociedades mais avançadas. Que alguns economistas não o sejam, não importa, pois estes não são racionais, ou eles não conseguem explicar, com evidências empíricas, como o livre comércio seria prejudicial à sua própria sociedade.  Pois bem (uma quarta vez), todo político sensato diz que é favor do livre comércio, mas de fato persegue formas diversas de protecionismo, por simples razão de sobrevivência no voto dos seus “constituintes”, aqueles que podem perder o emprego pela competição da produção estrangeira. A concorrência, em qualquer plano no qual ela se dê, é sempre uma ameaça aos espíritos acomodados, aos hábitos arraigados, aos conservadores.
Sendo perfeitamente (em duplo sentido) didáticos, em nossa primeira função, poderemos viabilizar igualmente a segunda função, que seria a de facilitar, estimular as interações humanas e sociais, contribuir para a prosperidade do seu próprio povo e a de todos os demais. Todo os diplomatas – ou os que pensam – estão de acordo com minha definição de funções, que me parece ser também uma obrigação dos que pensam? Pois bem: o que estamos esperando para fazer aquilo que é a obrigação dos que pensam: ensinar e facilitar ações de maior volume possível de interações sociais, internacionais?
Digo isto, porque tenho encontrado mais burocracia do que didatismo entre os diplomatas, e pouco sentido de missão (acima do trivial costumeiro) no trabalho que desempenhamos. Tenho encontrado mais submissão do que inovação, mais repetição mecânica do déjà vu do que propostas em ruptura com o costumeiro, mais conformismo do que rebeldia (que é a base de todo progresso humano e social). Por falta de didatismo (que significa primeiro aprender por si mesmo, antes de ensinar aos outros) temos talvez incorrido em equívocos fundamentais, que perpetuam o atraso relativo do país, nossa fraca inserção internacional (que considero um erro extremamente grave, prejudicial ao nosso futuro), e que podem até ter feito o país retroceder no conjunto de comunidades humanas que se arrastam (por vezes penosamente) em direção a mais prosperidade e bem-estar, a despeito de todos os entraves colocados pelas burocracias nacionais (e seus políticos respectivos) a maiores fluxos livres de interações de todos os tipos entre os indivíduos e as comunidades que compõem a humanidade.
Por conformismo, temos colaborado muito pouco com as marés da globalização, com os ventos incontroláveis das interações humanas, lutando em primeiro lugar contra a mentalidade tacanha dos introvertidos, dos protecionistas, dos regulacionistas puros, daqueles que pretendem nos levar aos extremos do corporatismo sob o qual já vivemos (que também significa um pouco de fascismo mental). Os diplomatas que pensam poderiam, ao menos, pensar um pouco nisso, nessa nossa missão...

Brasília, 11 de fevereiro de 2017

quarta-feira, 30 de setembro de 2015

PEC da bengala tem regra de transicao para diplomatas

Se trata de uma bengala mais curta, que vai atrapalhar a vida dos mais velhos, e mais dependentes de uma bengala maior, e a bengala só vai aumentar gradualmente até chegar no limit dos setenta anos.
Paulo Roberto de Almeida

Senado aprova extensão da 'PEC da Bengala' para funcionalismo público
Ricardo Brito
O Estado de S. Paulo, 30/09/2015

Projeto que aumenta de 70 para 75 anos idade para aposentadoria compulsória de servidores da União, Estados, Distrito Federal e municípios segue agora para sanção da presidente.

Brasília - O plenário do Senado aprovou nesta terça-feira,29, por unanimidade, um projeto de lei complementar que aumenta de 70 para 75 anos a idade para aposentadoria compulsória dos servidores públicos da União, Estados, Distrito Federal e municípios. O projeto estende a todo o funcionalismo as regras da chamada PEC da Bengala, que ampliou a idade mínima da aposentadoria compulsória para os ministros do Supremo Tribunal Federal (STF), dos demais tribunais superiores e do Tribunal de Contas da União (TCU).

A proposta, de autoria do senador José Serra (PSDB-SP), seguirá para a sanção presidencial. O texto prevê que a aposentadoria compulsória aos 75 anos será aplicada em todo o serviço público: servidores federais, estaduais, municipais e do Distrito Federal; juízes, desembargadores e ministros do Judiciário; procuradores e promotores do Ministério Público; defensores públicos; e ministros e conselheiros dos tribunais e conselhos de contas.

"É um projeto ganha-ganha. Ganha o serviço público, os servidores que podem trabalhar mais cinco anos e o governo, que vai economizar R$ 1 bilhão dentro de um tempo", disse José Serra.

Os senadores mantiveram modificações feitas anteriormente pelos deputados federais, que haviam aprovado uma emenda ao texto original que beneficia os policiais. Até hoje, eles têm uma legislação específica para serem aposentados compulsoriamente aos 65 anos com direito aos proventos proporcionais ao tempo de contribuição, independentemente da natureza dos serviços prestados. Com o projeto, eles passam a ser incluídos na nova regra para serem aposentados, com os mesmos critérios, aos 75 anos.

Outra emenda que passou pela Câmara e foi aprovada pelo Senado cria uma transição para a aplicação da regra aos servidores do corpo diplomático brasileiro. A transição prevê que, a cada dois anos, o limite atual de 70 anos sofrerá o acréscimo de um ano até que se chegue aos 75 anos.

Segundo Serra, esse tratamento para o Itamaraty se justifica porque houve um aumento muito grande do número de diplomatas. "Temos hoje um excedente de diplomatas. O tratamento gradual contribuirá para não haver um verdadeiro afogamento da carreira", disse o senador.

Senado aumenta idade- limite para aposentadoria compulsória
CRISTIANE JUNGBLUT
O Globo, 30/09/2015

Servidores da União, estados e municípios poderão trabalhar até os 75 anos

“Ganham o serviço público, os servidores e o governo, que economizará R$ 1 bilhão”

O Senado aprovou ontem, por unanimidade, o projeto de lei complementar que aumenta de 70 anos para 75 anos a idade para aposentadoria compulsória dos servidores público da União, estados e municípios. Por 65 votos favoráveis, os senadores mantiveram as duas alterações feitas pela Câmara: uma que beneficia os policiais civis, incluindo- os na mesma regra, e outra criando uma regra de transição para os diplomatas. O projeto é de autoria do senador José Serra ( PSDB- SP) e vai à sanção da presidente Dilma Rousseff.

O Congresso já havia aprovado uma proposta de emenda constitucional — a chamada PEC da Bengala — elevando para 75 anos a aposentadoria compulsória dos magistrados e determinado que lei complementar trataria do restante das categorias. E é essa justamente a proposta do senador José Serra.

A proposta cria uma nova idadelimite para a aposentadoria dos servidores públicos. Antes, o servidor era obrigado a se aposentar aos 70 anos e agora pode permanecer por mais cinco anos, até os 75 anos. A medida abrange servidores do Executivo, Judiciário, Legislativo, Ministério Público, Defensoria Pública e Tribunais de Contas.

Serra elogiou as mudanças realizadas na Câmara. Ele lembrou que o Itamaraty está com um quadro excessivo de servidores e que a ampliação da permanência no trabalho dos atuais diplomatas poderia agravar o problema. Segundo Serra, no futuro, o governo terá uma economia de R$ 1 bilhão com o adiamento:

— É um projeto ganha- ganha. Ganham o serviço público, os servidores que podem trabalhar mais cinco anos e o governo, que vai economizar R$ 1 bilhão dentro de um tempo. Examinamos as emendas feitas na Câmara e estamos de acordo. O caso do Itamaraty se justifica porque houve o aumento grande no número de diplomatas, Temos um excedente de diplomatas. O tratamento gradual contribuirá para não haver um verdadeiro afogamento da carreira ( dos diplomatas).

O relator do projeto no Senado, senador Lindbergh Farias ( PTRJ), disse que a extensão da idadelimite está de acordo com a realidade atual, na qual os trabalhadores têm plenas condições de trabalhar por mais tempo:

— Esse projeto dá mais eficiência à realidade brasileira. No caso dos diplomatas, há uma regra progressiva para se chegar aos 75 anos. A cada dois anos, é aumentado um ponto, até atingir os 75 anos.

O senador Randolfe Rodrigues ( Rede- AP) apoiou a medida.

— É uma extensão indispensável, principalmente em momentos de crise.

sexta-feira, 21 de agosto de 2015

De volta ao ja conhecido: Ponha-se na Rua

Em 1808, com a chegada da real comitiva ao Rio de Janeiro, com alguns milhares de apaniguados, foram necessárias medidas drásticas para resolver o problema do alojamento. Consoante o espírito cordato dos lusitanos, funcionários da Corte iam escolhendo casas maneiro, e ali pespegando o símbolo simpático da escolha: PR; as duas letras indicando a ordem do Principe Real foram logo interpretadas pelo espírito galhofeiro do carioca como significando Ponha-se na Rua! Pronto: chegamos em sua culminação...
Paulo Roberto de Almeida 
Radar Veja,  sexta-feira, 21 de agosto de 2015

Avisos de despejo

Itamaraty atrasa repasses a funcionários no exterior
Itamaraty atrasa repasses a funcionários no exterior
A ajuda de custo para pagamento do aluguel dos funcionários que trabalham nas embaixadas e consulados está três meses atrasada.
Servidores do Itamaraty no exterior estão recebendo constrangedores avisos de despejo.
Por Lauro Jardim

sexta-feira, 6 de março de 2015

Formacao do Diplomata Brasileiro - Rogerio S. Farias, Gessica Carmo


Filhos da democracia: a descarioquização da diplomacia brasileira, por Rogério de Souza Farias e Géssica Carmo

Dictionary Series - Politics: democracy
 
 
 
 
 
 
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Em 1934, após uma longa viagem de trem, o médico João Guimarães Rosa chegou ao Rio de Janeiro. Sentiu-se “estonteado com o ambiente barulhento” e, depois, “com o luxo magnificente do [Palácio] Itamaraty.” Ele estava no grande salão da biblioteca para prestar um concurso para o cargo de cônsul com outros 58 candidatos. Na prova de francês, a primeira etapa, pediu-se para traduzir trecho do livro Nouvelle Anthropologie, de Henri de Lanteuil, e fazer uma versão do livro de João Ribeiro, História do Brasil. Um candidato levantou e abandonou a prova. Parecia impossível. Guimarães Rosa conseguiu chegar ao final, mas tinha certeza que não passara. Saiu da prova e pegou uma barca no cais Pharoux. Ficou indo e vindo de Niterói ao Rio de Janeiro, imerso em um profundo sentimento de insegurança. O resultado saiu e 30 foram reprovados — mas não ele. O mineiro passou nas sucessivas etapas, até as provas orais. Presenciada por numerosa plateia, o médico demonstrou uma segurança e um porte incomuns para evento de tal natureza. A reação de todos era de pasmo. Era um desconhecido. Não frequentara os saraus literários do Rio de Janeiro ou de São Paulo; tampouco, as redações de jornal ou as rodas intelectuais da capital. Era, talvez, o único dos dez concorrentes habilitados sem ter colocado os pés na Europa. Um amigo da família, que esteve na plateia, relatou a reação dos examinadores: estavam comovidos, atônitos e surpresos [1]. De onde saíra aquele talento?
O espanto com o fato de um médico que vivia no interior de Minas Gerais ter desempenho tão expressivo no concurso fazia sentido. A diplomacia era uma profissão predominantemente de cariocas e de uma minoria das elites das capitais regionais. Essa característica não foi monopólio brasileiro. A concentração social e regional foi algo que afetou todos os serviços exteriores até pelo menos o final da primeira metade do século XX. Nos Estados Unidos, entre 1898 e 1914, dois terços provinha da Costa Leste, tendo estudado em escolas particulares, como Groton, ou/e em Harvard, Yale e Princeton. Em Portugal, no serviço exterior salazarista (1926-1974), a maioria provinha de Lisboa, com formação em direito em Coimbra; na Alemanha, após a unificação, os diplomatas, em sua maioria, provinham de três das 211 fraternidades estudantis; na França, predominava a elite parisiense, particularmente os mais ricos ou com parentes na cúpula do aparelho de Estado. No Império austro-húngaro, havia um pouco mais de dispersão geográfica, mas somente 6% não era aristocrata em 1914[2].
A maioria dos serviços exteriores mudou substantivamente o padrão de seu recrutamento no século XX. O Brasil não foi diferente. Dando continuidade à série “Filhos da Democracia”, examinaremos o grupo de diplomatas que acedeu ao IRBr de 1985 a 2010 no aspecto específico do local de nascimento. Antes de iniciar, no entanto, deve-se levar em conta que, no período examinado, o país passou por várias mudanças do ponto de vista federativo. Optou-se por utilizar a distribuição existente em 2010, data final do marco temporal do estudo.
A primeira informação relevante é que o serviço exterior brasileiro foi caracterizado por uma elevada proporção de cariocas em suas fileiras no início do período republicano. No período Vargas (1930-1945), eles eram mais de 40%. Do governo Sarney para o Governo Lula, contudo, a participação de diplomatas nascidos no Rio de Janeiro passou por uma radical diminuição — caindo de 51% para 22%. Outra queda importante foi o número de servidores que nasceram no exterior. Se utilizarmos tal categoria como uma proxy, ainda que imperfeita, de filhos de diplomatas, pode-se dizer que o período posterior ao quadriênio Collor/Itamar levou a uma carreira menos endógena. As unidades da federação que mais avançaram, no mesmo período, foram Minas Gerais e São Paulo, sendo a segunda um caso especialmente relevante (ver tabela abaixo).
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Tabela 1: Distribuição de diplomatas por estado de nascimento [3].
Outra forma de analisar essa mudança é examinar pela categoria de cidade de nascimento (Mapa 1 e Tabela 2) [4]. Entre 1930-1945, há uma concentração tanto na região sudeste como na fronteira sul do Rio Grande do Sul. Já nos governos Sarney e Collor/Itamar, há uma concentração em poucas cidades. Seria só no governo FHC que diminuiria o peso das capitais, tendência essa avançada pelo governo Lula.
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Tabela 2 e Mapa 1: Distribuição de diplomatas por cidade de nascimento.
Essa mudança no status relativo do serviço exterior brasileiro, no entanto, não pode ser celebrada como uma nova era de abertura do método de recrutamento. Uma forma de analisar os dados é pelo filtro da distribuição regional. A desagregação dos dados por esse critério (Tabela 3) demonstra que a participação da região sudeste permaneceu praticamente a mesma. Há, certamente, uma tendência de queda se compararmos com o período Sarney (de 62,96% para 59,85%), mas ainda está acima do período 1930-1945 (58,68%). Essa situação vai de encontro com as tendências demográficas do país (Tabela 4), onde o sudeste ocupa somente 21,58% do contingente populacional – em uma tendência levemente declinante. Enquanto demograficamente as regiões norte e nordeste representam mais de 50% da população, há menos de 15% de diplomatas oriundos dessas áreas, apesar do leve crescimento no governo Lula.
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Tabela 3: Distribuição de diplomatas por região de nascimento.
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Tabela 4: Distribuição populacional do Brasil. Fonte: IBGE.
Examinar só por estado e cidade de nascimento é uma análise incompleta. Há, no Brasil, relativa mobilidade populacional. Pode haver casos, portanto, de pessoas nascidas em determinadas cidades que tiveram toda sua vida estudantil e profissional em outras localidades. Qual seria o impacto dessa situação na concentração regional e estadual de diplomatas? A questão, aqui, é saber identificar esse fluxo. Para formatar esses dados, foi criada uma categoria compreendendo as cinco unidades da federação com maior participação na carreira (Minas Gerais, Distrito Federal, Rio de Janeiro, Rio Grande do Sul, São Paulo) mais o exterior. Com base nela, foi feita uma tabela com a proporção, por período, de todos os diplomatas que não nasceram e nem fizeram graduação nessas localidades (Tabela 5). Antes de apresentá-la, é necessário considerar, primeiro, que quase metade dos diplomatas do período 1930-1945 não tinham ensino superior completo (ou a informação não foi reproduzida nos anuários). Isso limita a comparabilidade deste período com os demais. Segundo, não foram computadas atividades de pós-graduação e empregos anteriores da posse — foi utilizada somente a graduação. Os resultados são chocantes. Mesmo com a expansão do governo Lula, menos de 12% dos diplomatas recrutados não nasceram e tampouco estudaram nessas seis localidades. Isso quer dizer que um indivíduo nascido nas 22 unidades federativas remanescentes que não fizesse pelo menos sua graduação em uma das instituições de ensino superior dos cinco estados ou no exterior estaria em grande desvantagem.
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Tabela 5: proporção de diplomatas que não nasceram e não cursaram o ensino superior em Minas Gerais, Distrito Federal, Rio de janeiro, Rio Grande do Sul, São Paulo e exterior.
Isso é um problema. Enquanto, demograficamente, ocupam 52% do contingente populacional brasileiro, os oriundos desses estados enfrentam sérias dificuldades quando não se dirigem para os centros de ensino nas grandes metrópoles do país. Pode-se dizer, dessa maneira, que hoje a diplomacia brasileira representa melhor a composição regional do país se comparado com aquele momento em que Guimarães Rosa entrara no Itamaraty. Mas a concentração ainda permanece em pessoas que nasceram ou estudaram em Minas Gerais, Distrito Federal, Rio de Janeiro, Rio Grande do Sul, São Paulo e/ou no exterior. Transpor essa barreira é um grande desafio porque está associada à própria desigualdade da infraestrutura educacional do país. Não há dados padronizados do ensino superior, mas utilizando os da área de humanas do Exame Nacional de Ensino Médio de 2013, nas variáveis média por escola e percentual de alunos que tiraram notas mais altas, percebemos que, das mais de 14.700 escolas de ensino médio do país, poucas de fora do grupo selecionado (DF, MG, RJ, SP e RS) tem alto padrão de desempenho.
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Gráfico 1: médias das notas em humanas e percentual de todos os alunos no Nível 5 do ENEM. Dados do sítio eletrônico do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira. O tamanho de cada referência refere-se ao número de alunos participantes por instituição de ensino médio.
No ensino superior, a situação é quase a mesma. Utilizando os 192 primeiros colocados do Ranking Universitário da Folha de São Paulo de 2014, observamos que 51% das instituições de ensino superior estão concentradas no grupo de cinco estados selecionados acima. Se utilizarmos o critério das vinte primeiras colocadas, no entanto, a proporção chega a 75% [5]. O recrutamento do Itamaraty, dessa forma, só reflete (e reforça) um problema mais amplo da sociedade.
Mas o que fazer para dirimir esse problema? Pensou-se, no final da década de 1950, que a realização das provas para o Instituto Rio Branco em outros estados fosse ser um passo importante na melhor distribuição regional dos diplomatas brasileiros. Isso começou em 1961, com a realização da prova em sete cidades. Em 1995 foram dez, e em 2011, pela primeira vez, todas as fases do concurso foram aplicadas em todas as capitais da federação. Infelizmente, a realização das provas em um estado só teve impacto no recrutamento quando a infraestrutura educacional dessa localidade permitiu a apresentação de candidatos competitivos. Quando esse elemento não estava disponível, não há evolução significativa – como a introdução das provas em Cuiabá, Campo Grande e Manaus em 2005.
No final do governo Lula e no primeiro mandato do governo Dilma Rousseff, há relatos sobre viagens de alguns alunos do Instituto Rio Branco para acompanhar a execução das provas e realizar palestras em instituições de ensino em capitais mais afastadas. Não se tem notícia, contudo, se essa atividade continua sendo executada e se teve algum impacto sobre o interesse de estudantes dessas localidades pela carreira. Ademais, a iniciativa trabalha um aspecto meritório, a divulgação, a qual infelizmente tem impactos limitados sobre o tipo de problema apresentado acima – a carência de infraestrutura educacional.
Nessa dimensão, cabe apresentar o papel positivo que a Fundação Alexandre de Gusmão (FUNAG) desempenhou, no período examinado, na tarefa de vulgarizar o conhecimento de matérias cruciais para o bom desempenho no concurso. Essa pode ser uma via a ser explorada no futuro. Pode-se cogitar, por exemplo, o uso de aulas virtuais sobre aspectos relacionados ao concurso promovidas pela Fundação, usando o canal já existente no Youtube. Pode-se questionar tal iniciativa indicando que tal tarefa caberia ao setor privado. Infelizmente, nas franjas dos grandes centros urbanos do país, há escassa capacidade de o setor privado fazer oferta equivalente de material de estudo. A inação, aqui, serviria somente para reforçar a desigualdade. Mas isso não significa que o sistema atual seja ideal. Há a necessidade de maior diálogo entre a diretoria do IRBr e a FUNAG, além de estudos quantitativos mais adequados para identificar, com base nos candidatos ao concurso, qual material pode ser melhorado e quais foram julgados mais importantes.
Utilizar o modelo do atual Programa de Ação Afirmativa de Bolsa-Prêmio de Vocação para as áreas geográficas assinaladas acima seria uma proposta mais efetiva. Assim, a concessão de bolsas para alunos promissores de regiões sem a capacidade institucional de formar bons candidatos poderia dirimir o problema. Ainda que os desafios analisados acima sejam consequência de uma desigualdade geral da sociedade brasileira em termos regionais, uma política de bolsas seria um mecanismo para o Itamaraty ser novamente surpreendido pelos Guimarães Rosas de todos os rincões do país.

Referências:

  • Bruley, Yves e Soutou, Georges-Henri. Le Quai d’Orsay impérial: histoire du Ministère des Affaires étrangères sous Napoléon III. Paris: Editions A. Pedone, 2012.
  • Cecil, Lamar. The German diplomatic service, 1871-1914. Princeton, N.J.: Princeton University Press, 1976.
  • Godsey Jr., William D. The culture of diplomacy and reform in the Austro-Hungarian foreign office, 1867-1914. In: Mosslang, Markus e Riotte, Torsten. The diplomat’s world: a cultural history of diplomacy, 1815-1914. Oxford: Oxford University Press, 2008. p. 59-81.
  • Heinrichs, Waldo H. American ambassador: Joseph C. Grew and the development of the United States diplomatic tradition. New York: Oxford University Press, 1986.
  • Moskin, J. Robert. American statecraft: the story of the U.S. foreign service. New York: St. Martin’s Press, 2013.
  • Oliveira, Pedro Aires. O corpo diplomático e o regime autoritário (1926-1974). Análise social, n. 178, p. 145-66. 2006.
  • Rosa, Vilma Guimarães. João Guimarães Rosa, meu pai. 2ª edição: Nova Fronteira, 1999.
[1] Rosa: 1999, 311; Atas do concurso para terceiro oficial (1934). Concursos, relatórios, resultados finais. Lata 580. Maço 1. AHI-RJ. Maço 13.120. AHI-RJ.
[2] Moskin: 2013, 342; Heinrichs: 1986, 97; Oliveira: 2006; Bruley e Soutou: 2012, 338-48; Godsey Jr.: 2008, 17; Cecil: 1976, 64 e 79
[3] No período 1930-1945, estão na categoria diplomatas os servidores das carreiras consular e de Secretaria de Estado e não se diferenciou o Rio de Janeiro do Distrito Federal.
[4] Na Tabela 2 foram selecionadas as cidades que em qualquer dos cinco casos tivesse pelo menos 1,5% dos diplomatas no respectivo período.
[5]  http://ruf.folha.uol.com.br/2014/. Acesso em: 2 de março de 2015.
Todos os dados quantitativos foram retirados da base de dados referida no primeiro artigo da série “Filhos da Democracia”.
Rogério de Souza Farias is visiting scholar do Lemann Institute for Brazilian Studies e associate do Center for Latin American Studies da Universidade de Chicago, Estados Unidos (rofarias@gmail.com)
Géssica Carmo é  Bacharelanda em Relações Internacionais pela Universidade Federal de Uberlândia – UFU (gessicafdcarmo@gmail.com)

sexta-feira, 28 de março de 2014

Cachorros, diplomatas, bancos, EUA: um problema singular...

Recolhido numa matéria de imprensa, por uma agência que tem ampla aceitação e credibilidade entre países em desenvolvimento.
Cachorros sofrem, imerecidamente, discriminação, em certos edifícios, basicamente por problemas de limpeza e para não assustar outras pessoas.
Não se tinha notícia, até aqui, que diplomatas pudessem sofrer as mesmas dificuldades.
Vejamos a matéria primeiro:

UNITED NATIONS, Mar 25 2014 (IPS) - Addressing a closed-door meeting of the Group of 77 (G77) developing countries last week, a visibly angry Latin American delegate recounted the growing new hostility towards foreign diplomats in New York city.

In some residential buildings, he said, there were covert signs conveying an unfriendly message: “Pets and diplomats not welcome.”

It is bad enough for U.N. diplomats to be lumped together in the company of dogs and cats in the city’s high-rise buildings, he bluntly told delegates, but now “the banking sector is treating us as criminals.”

At a meeting of the 132-member G77, the largest single coalition of developing countries, speaker after speaker lambasted banks in the city for selectively cutting off the banking system from the diplomatic community, describing the action as “outrageous”.

Their anger was directed mostly at JP Morgan Chase (formerly Chemical bank) which was once considered part of the U.N. family – and a preferred bank by most diplomats – and at one time housed in the secretariat building.

Chase also handles most of the accounts and money transfers of the United Nations and its agencies, running into billions of dollars.

The U.S. treasury apparently has informed all banks that every single transaction of some 70 “blacklisted” U.N. diplomatic missions, and even individual diplomats, be meticulously reported back to Washington (perhaps as part of a monitoring system to prevent money laundering and terrorism financing).

The banks have responded that such an elaborate exercise is administratively expensive and cumbersome. So as a convenient alternative, they have closed down, or are in the process of closing down, all accounts, shutting out the diplomatic community in New York.


As one diplomat warned, if this situation continues, “we may have to request cash in diplomatic pouches from our home countries, and bank our money under mattresses.”
(...)
When the dispute first erupted in 2011, the U.S. Mission to the United Nations sent a letter sent to all member states in which it said that JP Morgan Chase is a private sector bank and its decisions are made for 'business reasons alone'.


"The government of the United States has no authority to force banks to continue to serve their customers or to open or close any accounts," it said.

Comento agora: 
A delegação americana não deveria ter dito que as decisões dos bancos são tomadas apenas por razões comerciais. Deveria ter ficado com apenas a primeira parte: o governo americano não se mete nas decisões comerciais, privadas, de bancos privados.
Quanto aos prédios que anunciam que "diplomatas não são bem-vindos", devem existir razões.
Quem sabe os diplomatas discriminados não organizam manifestações pacíficas em frente a tais prédios.
Eventualmente com cachorros...
Paulo Roberto de Almeida  

domingo, 23 de março de 2014

Diplomatas e os desafios do presente: acoes e omissoes - Paulo Roberto de Almeida

Diplomatas e os desafios do presente: ações e omissões

Paulo Roberto de Almeida

Diplomatas, antes de serem servidores do Estado, ou funcionários de algum governo, são cidadãos de um país, membros de uma nação, indivíduos possuidores de consciência individual, de valores morais, seja adquiridos em família, ou no curso de sua formação e exercidos ao longo de toda uma vida e no âmbito de suas atividades profissionais. Falar dos diplomatas enquanto pessoas significa reconhecer-lhes o caráter de cidadãos que buscaram exercer sua vocação nos assuntos internacionais do seu país. O país, por definição, é sempre maior do que a instituição que os abriga, e obviamente do que o próprio poder institucional, o Executivo, no qual exercem sua atuação.
Diplomatas também possuem certas características individuais que os distinguem dos demais servidores do Estado, ou de profissionais do setor privado. O local de nascimento é, em grande medida, um acidente geográfico; o serviço do Estado pode ser o produto de um determinado contexto social ou o resultado de uma escolha deliberada, mas a consciência está de certa forma vinculada à vocação do diplomata. Alguns podem ter nascido em um país, mas acabaram servindo a outros, como nos casos de Henry Kissinger e Madeleine Albright.
Diplomatas são potencialmente “internacionais”, ainda que eles possam ser patriotas entranhados, dispostos a dar a vida pelo seu país de origem, ou a serviço do Estado para o qual trabalham. A nação à qual pertence esse Estado é, também por definição, superior ao Estado, embora em alguns casos o Estado precede a nação, e pode até ter participado do seu processo de formação. Nesse tipo de situação, o Estado pode extravasar seus limites naturais e até seu mandato constitucional, que seriam os de servir à nação, para servir-se da nação. Como o Estado é uma entidade impessoal, cabe a um determinado governo a tarefa de submeter servidores do Estado aos seus interesses específicos, ou seja, colocá-los a serviço de políticas definidas pelo grupo político que detém o poder legalmente e temporariamente. 
Diplomatas são pessoas que, em primeiro lugar, precisam exibir um enorme conhecimento sobre o seu país e sobre o mundo. Para chegar a tal nível de saber, muito superior ao das pessoas comuns, talvez equivalente ao de vários especialistas reunidos – em economia, em direito, em história, em política, em línguas, em cultura, de modo geral – os diplomatas se preparam intensamente para o concurso de admissão, e depois continuam estudando seriamente, tanto para o desempenho prático de suas tarefas correntes, quanto para eventualmente ultrapassar novos patamares de qualificação que constituem requisitos para a ascensão funcional. O fato de os diplomatas se submeterem a tantas exigências de estudo, de poder observar outras realidades e de efetuar uma comparação entre essas realidade e a sua própria, os torna naturalmente propensos a manter um espírito crítico sobre todas e cada uma delas, inclusive e principalmente sobre a sua própria. Esse fato os torna naturalmente conscientes e preocupados.
Sobre o quê, exatamente, deveriam eles estar conscientes e preocupados? Obviamente sobre a realidade que os cerca, que condiciona o seu trabalho e que determina suas ações, ou omissões. Trata-se de uma constatação prima facie: existem ações e omissões, do trabalho diplomático, na vida profissional dos diplomatas, na sua percepção do mundo, que devem tocar algumas cordas em sua consciência, e talvez deixá-los preocupados com o sentido de algumas dessas ações ou omissões.
Não é preciso recorrer à palavra crise – bastante desgastada por usos e abusos recorrentes – para referir-se ao estado atual de preocupações dos diplomatas, com o seu trabalho, com o seu país, com a região.  Circunstâncias geográficas, relações de cercania impõem um conhecimento direto do que se passa ao redor, após o que essas realidades vizinhas passam a impactar no trabalho diplomático e também a consciência dos diplomatas. Seriam eles indiferentes ao que se passa no ambiente regional?
Nesses lugares, os valores da liberdade, da democracia, dos direitos humanos estão sendo claramente colocados em perigo. As condições essenciais para uma vida digna e para o exercício das liberdades individuais já desapareceram; ou elas estão sob constante ameaça, a continuarem as políticas atualmente em curso. A situação de indivíduos, ou de grupos inteiros, está sendo minada pelo exercício do poder arbitrário, pelo desrespeito à lei, pelo uso da força ou da violência contra os que não se submetem ao poder arbitrário. Mesmo a mais elementar das liberdades, a de expressão, vem sendo ameaçada pela progressiva extensão de um credo que, mesmo minoritário, utiliza-se do controle do poder para permitir, única e exclusivamente, a expressão de suas próprias crenças e opções políticas. Padrões morais que julgávamos estabelecidos desde o final das tiranias do século XX parecem ceder ao crescente predomínio daqueles que não pretendem se submeter ao império da lei; estes atuam como se as vitórias eleitorais lhes dão automaticamente o direito de impor seus interesses peculiares, geralmente de caráter partidário.
Diplomatas não deveriam ser indiferentes a essas realidades. Presentes em todos os lugares nos quais podem ser diretamente observados fenômenos como esses, ou muito bem informados pelos meios de comunicação disponíveis, eles podem refletir sobre todos eles, e formar suas próprias ideias sobre o sentido de suas ações – ou omissões – em face de realidades que rompem com certos padrões morais, ou com o que está escrito em leis fundamentais, ou até nos discursos oficiais.
O que os diplomatas observam, o que eles constatam, o que eles informam o que eles fazem, ou de deixam de fazer, as instruções que eles recebem, como tudo isso impacta suas consciências, como tudo isso se reflete em suas preocupações cidadãs, ou como simples seres humanos? Qual o sentido moral de certas ações ou omissões? Qual a coerência intrínseca entre elas e o que figura na lei, nos princípios fundamentais, ou ainda, nos valores que eles acreditam defender, que deram sentido ao seu esforço para ingressar na carreira e que lhe guiou os primeiros passos no itinerário que ele julgam digno de suas aspirações e dos projetos que eles fizeram para suas vidas e para o país?
Quando existe um questionamento sobre tudo isso é porque determinadas realidades estão impactando a consciência dos diplomatas enquanto cidadãos, estão preocupando os diplomatas enquanto representantes de um país, enquanto agentes de um Estado, eventualmente enquanto servidores de um determinado governo. As diferentes realidades recobertas por esses conceitos, os limites que alguns deles podem impor ao exercício de alguns outros não deveriam impedir os diplomatas de pensar sobre o sentido de suas ações – ou omissões – e de expressar seus sentimentos de alguma forma, mesmo que de maneira indireta e não identificada.
Em alguns momentos da vida de uma nação, a dignidade pessoal e a consciência de continuar aderindo a certas posturas morais, a defesa de valores e princípios que se conformam a padrões civilizatórios – os mais altos que a humanidade alcançou ao longo de uma longa e tortuosa caminhada nos séculos precedentes – todas essas expectativas individuais ou coletivas deveriam estar acima das contingências circunstanciais ou dos interesses de grupos que monopolizam, por momentos, o poder político.
Diplomatas sabem disso. Não deveria ser difícil expressar essas ideias concretamente, e dissentir, quando a dissensão está do lado dos padrões morais, contra interesses partidários que apontam claramente para outra direção. CQD.


Hartford, 23 março de  2014