Política fiscal não substitui a política monetária
do BC
O ministro da Fazenda, Guido Mantega, ao explicar em Washington a política
econômica do Brasil, declarou que o governo havia decidido substituir a
política monetária pela fiscal. Isso não é novidade para quem acompanha a
evolução da economia brasileira. Na recente reunião do Comitê de Política
Monetária (Copom), sob a influência do governo, as autoridades monetárias
tomaram uma decisão que as levou perto da renúncia à política de metas de
inflação. Mas nunca o ministro havia sido tão explícito em relação à mudança da
política econômica.
Existe, no entanto, uma grande dúvida quanto às possibilidades dessa
substituição, dado o contexto da economia brasileira.
A política monetária não se limita ao aumento ou queda da taxa de juros
básica. Também atua sobre o volume do crédito, seja por meio do recolhimento
compulsório sobre os depósitos à vista ou a prazo, seja por meio de exigências
quanto ao capital das instituições financeiras em relação a seus empréstimos,
com o objetivo principal de evitar o excesso de liquidez.
No seu arsenal de instrumentos de controle, pode escolher o que tem o
efeito mais rápido sobre a atitude dos bancos em relação à expansão de crédito.
Mas o grande inimigo dos instrumentos da política monetária é o governo, que
pode injetar na economia uma grande liquidez por meio de seus gastos, sejam
eles financiados por emissões monetárias ou pela captação de recursos com a
emissão de títulos da dívida pública colocados especialmente no exterior. E
esse excesso de liquidez, se favorece a atividade econômica, sem dúvida
propicia uma elevação das pressões inflacionárias.
Em princípio, a política fiscal poderia contribuir para a contenção da
alta dos preços, aliviando a carga tributária das empresas. Essa, porém, não é
a orientação do Ministério da Fazenda, que deixou claro que não pretende
reduzir as despesas do governo e continuará alimentando a liquidez da economia.
O esforço de poupança se limitará a não gastar todo o excesso de arrecadação.
Ou seja, não se reduz a carga tributária; ao contrário, ela é ampliada com o
novo Imposto sobre Operações Financeiras (IOF) e o aumento do Imposto sobre
Produtos Industrializados (IPI).
Deste modo, os gastos do governo - cada vez maiores e menos produtivos,
uma vez que o que menos se privilegia são os investimentos em infraestrutura -
criam uma pressão de demanda que a produção nacional não pode atender,
recorrendo as empresas à importação de componentes para ter preços mais
condizentes com os dos produtos estrangeiros.
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O BC e a subversão dos fatos - a mais longa marcha
Lourdes Sola*
O Estado de S.Paulo, 29 de setembro de 2011
Os 'Fatos são Subversivos' é o título de um livro de
Garton Ash, um dos mais lúcidos "historiadores do presente". É um
chamado à responsabilidade histórica dos formuladores de políticas públicas que
se valem de conjunturas de grande incerteza para fazer valer suas prioridades. "Os
fatos são subversivos (...) porque subvertem os argumentos dos líderes
democráticos eleitos tanto quanto dos ditadores (...), porque subvertem as
mentiras, as meias-verdades e os mitos de todos aqueles de fala fácil". O
argumento reporta-se a um contexto de incerteza ainda mais extremo do que o
atual cenário econômico. Mira as mentiras e meias-verdades oficiais que levaram
o povo e o Congresso americanos a legitimar a invasão do Iraque e à guerra no
Afeganistão em resposta ao 11 de Setembro. Sem esses recursos, retóricos, mas
nada inofensivos, a História mundial teria sido outra.
O que dá um sentido trágico a essa constatação é a
impossibilidade de reverter o que foi consumado com apoio em meias-verdades e
mitos. Restam dois recursos corretivos: as lições de História que os fatos
propiciam e a oportunidade para uma correção de rumos. Mesmo assim, há uma boa
dose de otimismo na constatação de Garton Ash, porque ancorada num suposto
forte: a vigência de instituições democráticas e de uma mídia investigativa,
graças às quais cedo ou tarde os fatos virão à luz. No essencial, tem razão,
pois toda tentativa de impedir que os fatos venham à tona traz à luz também um
déficit democrático. Que as decisões da presidente da Argentina, Cristina
Kirchner, ilustram. Ao subtrair da agenda pública a disparidade entre a taxa
oficial e a taxa efetiva da inflação, com medidas legais restritivas à
autonomia de consultores e jornalistas, lança luz sobre a subordinação do
Judiciário ao Executivo - e sobre indícios anteriores de regressão autoritária.
No novo contexto de incerteza global voltam a entrar em
pauta entre emergentes temas correlatos, como inflação, disciplina fiscal e
monetária, papel do mercado interno e crescimento. No Brasil volta à cena um
velho espectro - a questão da autonomia do Banco Central (BC) - que os mercados
e os analistas julgavam exorcizado desde 1999, graças ao mandato (informal)
para exercer sua autoridade no marco de um conjunto de regras e normas,
caracterizado como regime de metas de inflação. O debate que se seguiu à
redução abrupta da taxa de juros interbancária dá o que pensar. Há convergência
entre analistas quanto aos rumos da política econômica: substituição do regime
de metas de inflação por metas ad hoc para a taxa de juros, adoção de uma banda
oculta para as variações na taxa de câmbio. Dá o que pensar, também, sobre o
modo de fazer política do governo. Por um lado, há elementos que reforçam o
contraste entre a nossa trajetória e a da Argentina. O presidente do BC, o
ministro da Fazenda e assessores informais do governo vieram a público
legitimar tecnicamente as medidas mencionadas - sob o escrutínio dos seus
pares. Com isso atestam a vigência (tênue) de um requisito democrático: a
prestação de contas pelos decisores e a chance de responsabilização futura por
suas apostas. Isso compõe o quadro de credibilidade econômica acumulada ao
longo dos últimos anos, graças à qual foi afastada a possibilidade de
reproduzirmos o padrão errático da Argentina - o "efeito vodca".
Há duas questões intrigantes a respeito. Em que momento
definidor se consolidou a divergência de rumos entre os dois países? Além
disso, o argumento sobre a função subversiva dos fatos pressupõe que, uma vez
revelados, a capacidade para elaborá-los está dada e bem distribuída. Seria assim
sempre? A resposta à primeira questão é simples: os momentos definidores foram
as decisões políticas tomadas em duas encruzilhadas, em resposta aos choques
externos de 1999 e 2002-2003. Respectivamente, a adoção do tripé regime de
metas de inflação-flutuação cambial-superávit primário e a opção pela
continuidade em 2002-2003 e nos anos seguintes. Esse rumo é posto em causa pelo
governo, de forma concertada e pouco transparente. Baseia-se na aposta numa
crise sistêmica internacional deflacionária, que estaria a exigir políticas
fiscal e monetária expansivas aqui e agora. É uma questão em aberto, mas não se
esgota nisso. Vale a pena refletir também nos termos de Garton Ash. Na hipótese
de que o horizonte de crescimento dos emergentes seja menos negro do que o
suposto, quais as chances de que uma nova onda inflacionária em 2012-2013 tenha
um efeito subversivo sobre os mitos, as ideologias e meias-verdades de curso
oficial?
Há razões para ceticismo, estruturais e históricas. As
democracias de massa, num mundo globalizado, caracterizam-se pela existência de
um hiato entre a democratização das informações, por um lado, e a capacidade de
elaborá-las adequadamente, por outro. A experiência da inflação e das
flutuações no poder de compra internacional da moeda é imediata, brindada por
indicadores diários nos jornais televisivos. Dependemos da intermediação de
vários atores sociais para elaborar o que significam - incluídos os que detêm o
saber especializado, os ideólogos, os legisladores.
A experiência histórica também justifica o ceticismo.
Uma das características da trajetória econômica brasileira é a opção pelo que
caracterizo como "fuga para a frente". Diante da falsa disjuntiva
estabilidade ou crescimento, reapresentada em encruzilhadas históricas como
1956-1957, ou quando dos choques do petróleo no governo Geisel, ou no Plano
Cruzado, recria-se um impulso inexorável: por políticas expansionistas, ponto.
Hoje enfrentamos um teste de estresse. Mas se explica a resistência à
institucionalização da autonomia do Banco Central. É histórica, mas contou com
a cumplicidade dos mercados para os quais essa é uma questão residual - até
evidência em contrário.
* Ph.D em Ciência Política
pela Universidade de Oxford, professora aposentada da USP, é membro da Academia
Brasileira de Ciências.
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