Um acordo UE-EUA de livre comércio?
Paulo Roberto de Almeida
(trechos do capítulo conclusivo de um próximo livro meu, sobre a integração regional)
Voltam a
frequentar as páginas dos jornais do mundo norte-atlântico notícias sobre uma aspiração
antiga, de certa forma recorrente e, até o momento, “inconclusiva”: a retomada,
e eventual finalização, de negociações para a assinatura de um acordo de livre
comércio entre as duas maiores economias do planeta, a União Europeia, de um
lado, e os Estados Unidos, de outro (com o potencial, inclusive, de “arrastar”
o Canadá e o México, já sócios deste último no Nafta, e, possivelmente, outros
países associados, por diferentes tipos de acordos, à UE ou aos próprios
Estados Unidos).
Se realmente
levada a termo, essa antiga ideia de promotores da liberalização comercial dos
dois lados do Atlântico tem o potencial de produzir uma pequena revolução na
economia mundial. Sua importância, na verdade, é bem maior do que a própria
dimensão dos fluxos comerciais que seriam criados a partir desse acordo,
reconhecidamente limitada, uma vez que as duas grandes economias já desfrutam
de amplo grau de abertura e de imbricação recíprocas, independentemente da
conclusão bem sucedida – isto é, sem muitas exceções setoriais – de um acordo
desse tipo. Afinal de contas, ambas economias regionais já estão vinculadas
entre si por laços históricos de comércio, investimentos, licenciamentos
tecnológicos, joint-ventures industriais, seja no âmbito bilateral, seja no
contexto da OCDE, além da intensa troca de capital humano que se estabelece
continuamente nas mais diferentes esferas da cooperação científica e
educacional, para não falar, obviamente, das barreiras notoriamente limitadas
que existem para os mais diversos intercâmbios que existem, desde mais de três
séculos entre as duas regiões, tanto sob a forma de poucos obstáculos
substantivos às trocas privadas e oficiais, como na modalidade tarifaria, com
alíquotas bastante reduzidas praticadas na maior parte dos casos. Ou seja,
existem poucos entraves ao intenso fluxo de bens, serviços, capitais, tecnologia,
pessoas entre essas duas grandes regiões econômicas do mundo, a da UE e a da
América do Norte, inclusive porque a segunda foi construída, historicamente,
pela primeira, até que o dinamismo da segunda, expressa em suas maiores taxas
de crescimento da produtividade, veio a colocar em segundo plano o peso da
primeira, a fonte original da ordem econômica global, tal como a conhecemos nos
últimos cinco séculos.
Mas, se o
impacto econômico efetivo desse tipo de acordo é pequeno, por que destacar com
tanta ênfase, o que não parece deixar de ser, até aqui,
uma mera possibilidade teórica, tantas vezes anunciada e tantas vezes frustrada
em sua implementação prática? Existem muitas razões, e elas têm a ver com
diferentes aspectos que foram discutidos ao longo do livro, e que podemos agora
retomar seletivamente para algumas lições que podem ser extraídas dos capítulos
precedentes e como guias para o possível mundo do futuro de médio ou de longo
prazo.
A importância de um
acordo entre dois gigantes do comércio internacional – os quais, justamente,
estão no centro do fenômeno da regionalização, um pelo lado do livre comércio,
o outro pela integração profunda – situa-se precisamente no fato concreto de
que ambos mobilizarão proporção relevante, atualmente determinante, do PIB
global e do comércio internacional, mesmo se o acordo, em si, não agregará
muito aos fluxos que já vem sendo efetivados “naturalmente” entre os dois lados
do Atlântico. Se e quando efetivado tal acordo – e as apostas contrárias também
são poderosas –, ele terá um impacto profundo em termos institucionais (ou
seja, sobre o sistema internacional de comércio e suas rodadas de negociação) e
em relação a terceiros mercados, para dentro e para fora dos dois blocos eventualmente
unidos pelo livre comércio. Mais ainda, um acordo desse tipo parece sintetizar
todos os bons efeitos e todos os defeitos, todos os méritos e muitos vícios do
minilateralismo comercial.
Cabe
destacar, em primeiro lugar, que o que se discute entre a União Europeia e os
Estados Unidos não é nenhuma forma mais elaborada de integração, e sim um
acordo de livre comércio, pura e simplesmente, embora bem mais abrangente e
complexo do que aqueles usualmente registrados na OMC, provavelmente concebido,
aos olhos americanos, no estilo e no formato do Nafta. A retomada dessas
negociações, depois de muitos anos de torpor burocrático, apresenta evidências
de novos elementos, de caráter político, que não estavam presentes quando se
cogitou, originalmente, de um tipo qualquer de desarme tarifário entre os
mesmos personagens (a UE contando, então, com um número bem mais reduzido de membros).
A resposta está, provavelmente, no fator China, mas convém, antes de qualquer
outra consideração, ressaltar o impacto positivo de um real arranjo
liberalizador que se faça entre a UE e os Estados Unidos.
De fato, a
primeira consequência mais geral de um acordo desse tipo é, essencialmente, um efeito
demonstração, ou seja, o exemplo positivo dado pelo engajamento de dois grandes
parceiros, na verdade os maiores, do sistema multilateral de comércio, no
sentido de confirmar a vocação liberalizadora que esteve presente no momento de
criação do Gatt e que se manteve mais ou menos constante nas primeiras cinco ou
seis rodadas de negociações comerciais multilaterais. Infelizmente, esse
impulso começou a se perder a partir dos anos 1970, quando, tanto em função do
menor peso das tarifas nos processos liberalizadores – já que elas tinham sido
consideravelmente reduzidas desde o final dos anos 1940, adquirindo maior
importância, então, os temas sistêmicos, ou de caráter regulatório – quanto em
virtude da perda de competitividade de velhas indústrias labor-intensive dos países desenvolvidos em face dos chamados
“novos países industrializados”, alguns periféricos da Ásia e da América Latina
(Coreia do Sul, Taiwan, Hong-Kong, Brasil, México, etc.) que passaram a
competir agressivamente em grandes nichos de mercados nos quais possuíam
vantagens comparativas (calçados, têxteis, manufaturas leves, etc.). Acresce a
isto a crise fiscal e de “estagflação” dos países avançados, mais ou menos coincidente
com a primeira e a segunda crise das dívidas externas dos países em
desenvolvimento, que redundou no renascimento de instintos protecionistas no
seio mesmo do sistema, entre aqueles que tinham garantido, até então, o sucesso
das rodadas de liberalização de comércio.
O mundo
atravessou, desde essa época, fases de maior ou menor fechamento comercial, ao
mesmo tempo em que ensaiava a revitalização dos velhos princípios
multilateralistas que haviam guiado os negociadores em Bretton Woods, e que
tinham resultado na criação de uma primeira organização mundial de comércio,
inscrita na Carta de Havana (março de 1948), mas que infelizmente não foi
implementada na prática. Em todo caso, o processo foi retomado na segunda fase da
rodada Uruguai (entre 1991 e 1992), quando se decidiu relançar a ideia de uma
organização de pleno direito – uma vez que o Gatt era um simples acordo entre
partes contratantes, dotado de um secretariado mínimo, esquema que tinha
permanecido “provisoriamente” em vigor durante meio século – o que foi
concretizado em Marraqueche (1993), com a assinatura da Ata Final da rodada, da
qual emergiu a OMC (1995).
Mas a
institucionalização da OMC também foi contemporânea da maior expansão já vista
dos acordos regionais preferenciais, um pouco em todos os continentes, como já
constatado nos capítulos precedentes. O minilateralismo parecia querer ganhar
preeminência sobre o multilateralismo e, de fato, nas estratégias comerciais
das grandes, como nas das pequenas e médias potências da economia mundial,
ganhava força a ideia de que a solução para os problemas de acesso a mercados e
de compatibilização de regras não tarifárias não estava mais no âmbito do Gatt,
ou da OMC (dependendo do tipo de acordo), mas na constituição de blocos
restritos, ditos de regionalismo aberto, mas potencialmente discriminatórios.
O anúncio,
portanto, de que Estados Unidos e UE vão voltar a discutir a criação de uma
vasta zona de livre comércio recíproco – a maior do mundo, talvez só superável
quando os países membros da Asean e seus parceiros da bacia da Ásia Pacífico
fizerem a sua, em algum momento da próxima década – é auspiciosa, no sentido em
que essa iniciativa pode representar um novo impulso à (conclusão da?) Rodada
Doha de negociações comerciais multilaterais, cuja partida foi dada em 2001.
Supõe-se que, uma vez concretizada a nova superaliança comercial, seus
dispositivos liberalizadores representem inclusive um avanço sobre o estado
atual das negociações comerciais, em termos de desmantelamento de barreiras e do
estabelecimento de regras uniformes para o mútuo reconhecimento de padrões
industriais e de diversas outras normas que podem atuar (deliberadamente,
segundo os casos) como medidas protecionistas disfarçadas.
As
respectivas barreiras tarifárias, em si, são pouco relevantes, representando
uma média de 3% para os produtos manufaturados, mas como o comércio inter,
intraindustrial e também intrafirmas, entre os dois lados, é especialmente
intenso, mesmo uma pequena diminuição dos custos pode significar, no plano
microeconômico, um incremento significativo para as empresas engajadas no
intercâmbio, estimulando inclusive novos investimentos diretos estrangeiros,
das duas regiões e de terceiras partes. Subsistem zonas de protecionismo
setorial, sobretudo na agricultura – e aqui é provável que ambos lados
conservem não apenas entraves protecionistas, como subsídios por vezes abusivos
–, bem como políticas de sustentação de setores ditos estratégicos (como
aviação civil, por exemplo) que poderiam ser objeto de mais alguma unificação
de critérios nas medidas de apoio doméstico ou comunitário.
Haveria, do
lado americano, bem menos resistências políticas e sociais, no Congresso ou dos
sindicatos, a um acordo com os europeus, uma vez que não estariam presentes as
mesmas preocupações com um suposto “dumping social” mexicano que quase
comprometeram a aprovação do Nafta, exigindo a negociação de acordos paralelos
para lograr a superação de paranoias setoriais e a aprovação congressual. Em
resumo, tanto no plano teórico – como a efetivação de economias de escala e os
estímulos ao crescimento econômico, do emprego e da renda – quanto no plano
prático – tendo em vista a uniformidade relativa de padrões produtivos e
financeiros, já obtida no âmbito da OCDE –, diferentes elementos concorrem para
reforçar os traços positivos que esse tipo de integração comercial entre as
duas maiores economias planetárias pode representar não apenas para as partes
no acordo, mas para outros parceiros externos e, sobretudo, para o sistema
multilateral de comércio.
(...)
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