Barbas de molho na OMC
Marcelo de Paiva Abreu*
O Estado de São Paulo, segunda-feira,
10.12.12
As regras para a escolha do sucessor de
Pascal Lamy como diretor-geral da Organização Mundial do Comércio (OMC)
estabelecem que as candidaturas para sua sucessão devem ser apresentadas este
mês. Ainda não está claro se o Brasil lançará candidato próprio ou se apenas
tentará influir na eleição. Por muitas razões, seria recomendável que não
lançasse candidato próprio.
Para recordar: Lamy foi escolhido em 2005 e
reconduzido em 2009. Beneficiou-se da fragmentação dos votos dos países em
desenvolvimento. No início do processo, apresentaram-se como candidatos Jaya
Cuttaree, das Ilhas Maurício; Carlos Pérez del Castillo, do Uruguai; Pascal
Lamy, da França; e Luiz Felipe de Seixas Corrêa, do Brasil. O Brasil não
poderia apoiar Pérez del Castillo, em vista dos atritos na reunião ministerial
de Cancún, em 2003, em torno da minuta de declaração ministerial preparada pelo
diplomata uruguaio, então presidente do Conselho-Geral da OMC. O documento
teria deixado de refletir adequadamente os interesses das economias em desenvolvimento
e, em particular, dos membros do que seria no futuro o G-20 da OMC, com o
Brasil, a Índia e a China em posição proeminente. Além da óbvia simpatia dos
EUA e da União Europeia, Pérez contou com o apoio dos anfitriões mexicanos, que
apoiavam os países desenvolvidos.
Pérez iniciou a campanha com grande
antecipação e Seixas Corrêa acabou sendo excluído da lista de candidatos na
primeira rodada. O Brasil foi colocado na posição penosa de ter de escolher, na
rodada final, entre Lamy e Pérez, acabando por apoiar o candidato
latino-americano. Pérez perdeu, apesar do favoritismo inicial, inclusive nas
cotações da tradicional casa de apostas londrina Ladbrokes. Se o Itamaraty
tivesse acompanhado as cotações da Ladbrokes, teria moderado suas ilusões
quanto ao candidato brasileiro ser a segunda escolha de quase todos.
Embora o rodízio regional não seja tradição
da OMC e do Gatt - desde 1947 coube a um representante de país em
desenvolvimento apenas o meio mandato do tailandês Supachai Panitchpakdi
(2002-2005) -, talvez agora seja, afinal, a vez de um candidato africano ou
latino-americano. A vacância da Secretaria-Geral da Conferência das Nações
Unidas para Comércio e Desenvolvimento (Unctad) pode ter relevância na sucessão
da OMC.
Para lançar candidato brasileiro, o governo
deveria levar em conta esse retrospecto desfavorável e avaliar se as arestas do
passado estariam superadas. Não se acredita que as memórias uruguaias ou
mexicanas sejam particularmente curtas, embora, por razões distintas, não sejam
prováveis candidaturas exitosas dos dois países. No caso do México, por Angel
Gurria ocupar a Secretaria-Geral da OCDE, e no do Uruguai, pela peculiaridade
da situação que ensejou a postulação de Pérez. O Brasil, por sua vez, ocupa a
Secretaria-Geral da FAO desde o início de 2012. Devem ser também lembradas
novas arestas latino-americanas criadas na esteira dos atritos no FMI, que
levaram à transferência da Colômbia da cadeira brasileira para a cadeira do
México.
Há outros obstáculos a considerar. O Brasil
disporia, em tese, de bom candidato, o embaixador Roberto Azevedo, seu
representante na OMC, com ampla experiência em diversos episódios relacionados
à solução de controvérsias na própria OMC, em particular os emblemáticos panels
sobre açúcar e algodão com resultados adversos para a União Europeia e os EUA.
Também contribuiu para a construção da boa imagem do Brasil como país
comprometido com o sistema comercial multilateral a participação muito positiva
na malograda reunião ministerial da OMC de julho de 2008, quando, a despeito
das posições obstrucionistas da China e da Índia, houve séria tentativa de
romper o impasse e salvar a Rodada Doha.
Desde então, essa imagem positiva do Brasil
na OMC tem sido erodida espetacularmente. Em parte, pelo aumento de tarifas, a
reboque da Argentina, em mais um episódio que demonstra que, no Mercosul, é o
rabo que abana o cachorro. Não se discute a legalidade de tais aumentos no
âmbito da OMC, pois resultam em tarifas dentro dos limites consolidados na
Rodada Uruguai. Mas não há dúvida de que tais aumentos violam compromissos -
que talvez não devessem ter sido assumidos - de congelamento da proteção
acordados no âmbito do G-20 financeiro.
Muito mais sérias para comprometer a imagem
multilateral do Brasil são as medidas ilegais que, de forma muito rudimentar,
aumentam significativamente a proteção ao setor automotivo, por meio de
tratamento discriminatório das importações na imposição do IPI, baseado em
critérios de conteúdo local.
No plano das ideias, a reputação brasileira
também tem sofrido, e poderá sofrer bem mais, com a insistência na proposta de
incorporar às tradicionais medidas de defesa comercial provisões relativas a
flutuações cambiais. Contas sumárias indicam que tarifas compensatórias de
flutuações cambiais desde 1998 teriam oscilado entre 2% ad valorem em 2001 e
233% em 2011!
O governo brasileiro deveria botar as
barbas de molho, abrir mão de candidatos nacionais e tentar influir nas
escolhas seja na OMC, seja na Unctad. Mas, com base no retrospecto recente,
talvez seja irrealista esperar bom senso do governo.
*Marcelo de Paiva Abreu, doutor em economia
pela Universidade de Cambridge, é professor titular no Departamento de Economia
da PUC-Rio.
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