Países, como as pessoas, podem estagnar, ou até recuar. A China recuou durante dois séculos pelo menos, antes que o maoismo delirante terminasse de afundá-la um pouco mais.
A Argentina, aqui ao nosso lado, é outro caso exemplar de decadência espetacular: fazem pelo menos 80 anos que ela recua, e ainda não terminou.
Mesmo o Brasil, que aparentemente avança (pouco) materialmente, recua estrondosamente no plano intelectual e moral, para nada dizer do atraso mental de nossas elites empresariais, políticas e acadêmicas (ou seja, todo mundo).
Ninguém está ao abrigo desses saltos para trás, ou de uma lenta, quase imperceptível, decadência.
Não chorem pela Itália, ou pela Argentina. Olhem para dentro. E vejam os mesmos, ou outros, sinais da nossa própria estagnação, ou até retrocesso. Basta olhar, aliás, para nossa "elite" política...
Paulo Roberto de Almeida
Ícone da riqueza italiana, Milão se afunda na crise
WALTER MAYR / DER SPIEGEL
O Estado de S.Paulo, 08 de dezembro de 2013
Além das empresas de moda, já nas mãos de investidores externos, cidade acompanhou venda do Inter e da sede do 'Corriere della Sera'
Os dias em que Milão se considerava uma fortaleza, símbolo de crescimento e progresso, aparentemente se foram. Enquanto com a crise aumenta o número dos pobres, a elite da classe empresarial da cidade procura atrair investidores e ao mesmo tempo trava uma batalha com os tribunais em várias ações legais.
Beppe Severgnini é conhecido pela descrição peculiar que ele costuma fazer da Itália em seus best-sellers e por seus títulos inusitados, como: "Como sobreviver na Itália sem casar, sem atropelar ninguém ou ir para a cadeia".
Severgnini é uma figura bastante conhecida, e não apenas na Itália. A BBC e a The Economist apreciam este bizarro colunista, que, há 12 anos, recebeu da Rainha Elizabeth II o prêmio oficial do Império Britânico. Entrevistado em Milão, num dia de novembro, o escritor afirmou balançando a cabeça que já não compreende o mundo. "Em um único dia, eles venderam o meu clube de futebol e a sede do meu jornal."
O Corriere della Sera, que publica as colunas de Severgnini, era o orgulho e a alegria de Milão desde 1876. O clube, ao qual Severgnini dedicou três livros e entregou seu coração, é o F.C. Internazionale Milano, mais conhecido como Inter. Fundado em 1908, o Inter venceu inúmeras Copas Europeias e é o único clube italiano que jamais saiu da primeira divisão.
O Inter e o Corriere della Sera são - ou eram - parte de Milão quanto o teatro Alla Scala e o Duomo, a catedral.
Em novembro, o Corriere noticiou que 70% do Inter, que por 105 anos pertenceu a proprietários italianos, estava sendo vendido a um investidor indonésio. Depois de injetar 1,2 bilhão no clube, seu proprietário e presidente Massimo Moratti, um magnata das refinarias de petróleo, filho de uma das melhores famílias de Milão, concluiu que já não aguentava mais.
A notícia divulgada no site do Inter estava acompanhada pelo anúncio de que o Corriere estava vendendo sua sede em Via Solferino. A investidora financeira Blackstone, dos Estados Unidos, compraria o histórico palácio da editora, com seus 30 mil metros quadrados, 120 milhões. Os atuais donos poderiam permanecer por algum tempo no imóvel como inquilinos. A equipe editorial ficou revoltada com a venda.
"Os americanos podem comprar muitas coisas, mas não a história", comentou amargurado Severgnini. "E esta (sede) é história. Todo mundo já escreveu neste edifício: Pasolini, Pirandello, Sciascia e Moravia. Aqui nós caminhamos sobre as pegadas desses gigantes."
Imponência. Foi um desses gigantes, Indro Montanelli, que certa vez afirmou que Milão era "a verdadeira capital do país", porque o que começa em Milão, capital da região da Lombardia, em geral se difunde imediatamente por toda a Itália. Foi o caso do fascismo de Mussolini, que começou em 1919, e do berlusconismo, 75 anos mais tarde. Isto também se aplica ao milagre econômico depois da Segunda Guerra Mundial e ao desmoronamento do panorama político nos anos 1990.
Será agora mais que uma brincadeira do destino o fato de duas das mais importantes instituições de Milão, o Inter e o Corriere, estarem sendo parcialmente vendidas? Será que outras liquidações de marcas italianas se seguirão a estas? Tradicionais empresas do mundo da moda, Gucci, Fendi, Bulgari, Valentino e Loro Piana, já passaram para mãos estrangeiras. Atualmente, Versace tem planos para vender uma parcela minoritária da companhia.
"É muito provável que os canadenses logo mais comprem o Duomo também", gracejou em setembro o Corriere, "e que os paquistaneses comprem a Nutella".
Dificilmente outros países da União Europeia viram poucos investimentos externos diretos como a Itália nos últimos anos. Talvez seja esta uma das razões da crescente pressão para que empresas pertencentes a tradicionais famílias italianas se abram mais ao capital global.
Isto porém está suscitando também muita ansiedade. "Os anões da McKinsey querem nos transformar em uma nação de veneráveis garçons, violonistas, violinistas e enfermeiros geriátricos", retrucou com raiva Giulia Sapelli, que leciona administração de empresas em Milão.
O Corriere della Sera é o mais antigo jornal da Itália, e também o de maior circulação. A lista de acionistas do Corriere é um resumo elite industrial e financeira local. Quase todo mundo que se considera pertencente ao topo do topo da sociedade de Milão quer ter uma participação no Corriere. Entre seus acionistas estão Fiat, Pirelli, Mediobanco, Tod's e Benetton.
"Todo o establishment italiano estava no nosso conselho de diretores; hoje, estes não passam de líderes econômicos enfraquecidos", afirma Ferruccio de Bortoli, o diretor responsável. Sentado diante da primeira edição emoldurada do Corriere, de 5 de março de 1876, ele luta com a decisão de comprometer a lenda do Corriere por dinheiro, atestando o seu declínio.
Independência. Se necessário, De Bortoli pretende continuar publicando artigos nada lisonjeiros sobre os acionistas do jornal. Ele diz que não sente obrigado a tratar com luvas de pelica a Fiat e outros acionistas com vendas de bilhões de euros, "porque, afinal, o Corriere existe há mais tempo do que seus acionistas". Além disso, acrescenta, ultimamente eles vêm fornecendo material suficiente para manchetes negativas.
O presidente da indústria de pneus Pirelli, Mario Tronchetti Provera, por exemplo, o executivo mais bem pago da Itália em 2011, com um salário anual de 14,5 milhões, foi condenado em julho a 20 meses de cadeia por espionagem econômica.
O bilionário Salvatore Ligresti se encontra em prisão domiciliar por corrupção e fraudes contábeis. A Mediobanca, instituição bancária de proa da antiga Itália dos negócios, está sendo submetida a investigações.
Além disso, no último dia 1º de agosto, mais uma notícia negativa abateu a reputação de Milão: o Supremo Tribunal italiano manteve a condenação por fraudes fiscais do por quatro vezes primeiro ministro e magnata das comunicações de Milão, Silvio Berlusconi.
TRADUÇÃO DE ANNA CAPOVILLA
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