Aquilo que aos olhos de um liberal puro pareceria uma iconoclastia, qual seja, o ato de distribuir renda ou riqueza que só podem ser frutos do trabalho individual, assume, na perspectiva de um socialista ou de um social-democrata, o caráter de uma ação não apenas desejável, como necessária; ela o seria para equilibrar "tendências" inerentemente concentradoras de renda na economia capitalista, requerendo, portanto, a intervenção corretora dos estados para criar um pouco mais de "igualdade".
O mais grave problema do maniqueísmo existente em torno dessas duas concepções aparentemente antinômicas é que elas dificultam um diálogo racional sobre como combinar, ao melhor das possibilidades próprias a cada uma delas, as virtudes dessas duas posições, que estão presentes na sociedade moderna e que se combatem como se fossem duas políticas excludentes. Na prática, as modernas democracias de mercado atendem aos requisitos da criação de riqueza, com base num espírito classicamente individualista, e ainda assim se propõem distribuir a renda gerada e a riqueza acumulada por meio de mecanismos legalmente formalizados.
O que o pensamento liberal argumenta, corretamente, é que não se pode distribuir renda sem antes produzi-la; e que se a distribuição é feita de forma compulsória sobre o estoque existente, e não sobre os fluxos que vão sendo criados pela economia de mercado, os limites são logo atingidos e os estímulos para a criação e a acumulação de riqueza desaparecem. O que a doutrina social-democrata proclama é que a economia de mercados livres tende a concentrar riqueza muito além do necessário para sua "reprodução ampliada" (seja lá o que isso queira dizer) e que a coletividade tem o direito de redistribuir o "excedente" com a finalidade de "justiça social". O liberal pretende que o estado garanta a sua propriedade, sua renda e seu patrimônio, ao passo que o socialista quer ver o mesmo estado taxando pesadamente os ricos para tornar a sociedade um pouco mais igualitária, ainda que não totalmente uniforme.
Esse é o estado da questão existente nas democracias modernas, sendo as duas tendências representadas, de um lado, pelos partidos conservadores ou liberais e, de outro, pelos socialistas, social-democratas e várias tribos de ‘progressistas’. Esses dois pólos costumam se alternar nos governos das economias contemporâneas de mercado, ora fazendo a balança pender do lado do individualismo liberal, ora do distributivismo socialista, com todas as nuances possíveis entre eles, dada a existência de burocracias consolidadas (e aparentemente distributivistas) em todos esses estados.
Pois bem, como poderiam, a partir daí, serem considerados os problemas dos mecanismos de acumulação e de distribuição de renda e riqueza, e quais efeitos provocados pelas diferentes formas de criar e de distribuir ambas? Comecemos por esclarecer que renda não é a mesma coisa que riqueza, embora os dois termos sejam utilizados de forma intercambiável no discurso político para exemplificar alternativas de políticas que podem ser (como são) usualmente confundidas. Simplificando muito, apenas para fins deste breve ensaio, digamos que renda seja o fluxo de valor criado numa economia de mercado, e riqueza são ativos acumulados sob diversas formas como resultado da concentração dessa renda. Esclareça-se, ainda, que numa economia avançada a maior parte dos ativos aparece, de fato, sob a forma de intangíveis.
Os mecanismos de distribuição no liberalismo clássico se dão pelo pagamento dos fatores: lucros e juros para o capital, salários para o trabalho, aluguéis para as propriedades, royalties ou direitos de autor para a propriedade intelectual, e assim por diante. A democratização social e os avanços da representação política, com o alargamento das franquias democráticas e a ampliação das obrigações do estado desde o início do século XX, redundaram na introdução de novos mecanismos fiscais – tributos diretos e indiretos, taxas sobre o patrimônio, etc. – que todos caminharam no sentido da progressividade (ainda que alguns países sejam conhecidos pela nítida regressividade dos impostos, como o próprio Brasil, por exemplo). O welfare state aprofundaria essas tendências e as legitimaria, alegando que políticas sociais são importantes inclusive por razões de eficiência econômica, já que a redistribuição de renda aumenta o consumo e, portanto, pode contribuir para o crescimento do PIB.
Fabianos e outros socialistas se converteram nos campeões do distributivismo à outrance, o que se, por um lado, diminuiu as disparidades mais gritantes nessas sociedades (especialmente nórdicas e da Europa ocidental, inclusive os EUA), também atuou, por outro lado, no sentido de favorecer a deslocalização de empresas e a busca de novas residências fiscais, menos intrusivas e pesadas (o que já constitui um dos efeitos negativos da "justiça social" via carga impositiva). Governos liberais, por sua vez, procuravam reduzir os desincentivos ao investimento produtivo pela via da redução de impostos, como fizeram vários governos republicanos nos EUA. Outros mecanismos foram sendo concebidos para redistribuir renda, inclusive alocações diretas, seguro desemprego, reconversão laboral, subsídios habitacionais, políticas regionais com incentivos fiscais e uma infinidade de programas que surgiram da iniciativa de políticos e da imaginação criadora de tecnocratas bem intencionados.
A verdade é que a parafernália de programas sociais criados pelo Estado de bem-estar agrava a crise fiscal; os governos aumentam a punção fiscal, não mais para fins de redistribuição, mas para seu próprio equilíbrio orçamentário. Países com maior carga fiscal, notadamente sobre o trabalho e sobre os lucros, são os que menos crescem e apresentam as menores taxas de empregabilidade (cf. James Gwartney et alii, “The Scope of Government and the Wealth of Nations”, Cato Journal, vol. 18, n. 2, 1998, p. 163-190). Essa evidência não impede aqueles que ignoram princípios elementares de economia e que desconhecem, por exemplo, a "curva de Laffer" (que prevê queda na arrecadação com o aumento dos impostos), de continuar propondo extorsão tributária – como o imposto sobre as grandes fortunas –, cujas consequências mais evidentes são o aumento da elisão fiscal e a fuga de capitais, entre outros efeitos.
A experiência prática e algumas equações econômicas ensinam que a melhor forma de se obter redistribuição de renda é através dos mercados – eventualmente por meio de alguma indução estatal, mas de preferência não diretamente pelo estado – e que é sempre melhor atuar sobre os fluxos de renda do que sobre os estoques de riqueza. Governos muito empreendedores na área fiscal acabam gerando efeitos inversos aos esperados, quando não uma diminuição significativa das oportunidades futuras de crescimento. Em todo caso, o mito da redistribuição de renda parece irremediavelmente entranhado nas democracias modernas, mesmo ao preço da diminuição da eficiência econômica. O debate não vai parar por aqui...
* Publicado originalmente em 27/09/2010.
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