Percival Farquhar, para quem não sabe, foi o "investidor imperialista" que construiu a Madeira-Mamoré -- e está retratado num romance semi-histórico de Márcio de Souza, Mad Maria, que também serviu de base para uma famosa telehistória da Globo, que nunca vi -- e também dezenas de outras obras que ainda estão por ai. Quem acha, por exemplo, que a Vale do Rio Doce era uma empresa genuinamente nacional até ser privatizada por FHC (sempre ele, mas no caso o processo começou com Collor e continuou sob Itamar), não deve saber que ela era do Percival Farquhar, sob o nome de Itabira Iron Ore Company, até ser expropriada por Vargas em 1942.
Pois é, nacionalistas, vocês precisam estudar mais a história do Brasil.
Em todo caso, fiquem com a resenha...
Paulo Roberto de Almeida
O imperador americano das PPPs
Charles A. Gauld:
Farquhar,
o último titã: um empreendedor americano na América Latina
São Paulo: Editora de Cultura, 2006, 520
p.; tradução de Eliana Nogueira do Vale.
Quem imagina que as PPPs sejam uma moderna contribuição
do governo petista para reagir a uma suposta “privataria da era neoliberal”,
faria bem em revisar sua lição de história. Elas começaram mais de um século
atrás, em pleno império, como solução à crônica falta de capitais, no Brasil,
para obras de grande porte. A monarquia e a velha república viveram de PPPs por
décadas, em modalidades não muito diversas das que hoje são mobilizadas para
assegurar um retorno adequado ao investimento privado: à época, os investidores
estrangeiros (na maior parte ingleses) tinham direito à famosa “garantia de
juros”, tipicamente de 6% ao ano.
Percival Farquhar foi, segundo Gauld, o “maior vulto
americano da história do Brasil”, demonizado pelos nacionalistas,
incompreendido pelos políticos, hostilizado pelos xenófobos e nada conhecido
pelos atuais promotores das PPPs “republicanas”. Nos países vizinhos ele seria
chamado de gringo explorador, o típico ianque imperialista que todos adorariam
odiar. No Brasil, foi respeitado no início de seus muitos investimentos em
obras públicas e empreendimentos extrativistas, passou a ser temido quando
adquiriu as dimensões de um Mauá estrangeiro e foi impiedosamente expropriado
ao longo da era Vargas. Poucos sabem que a Vale do Rio Doce começou pelas suas
mãos: a Itabira Iron Ore Company, que, aliás, já existia antes dele adquiri-la,
em 1919. A Vale, a Acesita, a Ports of Pará – construída para exportar a
borracha da Amazônia e que começou a funcionar no momento mesmo da crise
trazida pela concorrência da Malásia, em 1913 – e várias outras companhias
fundadas por Farquhar foram nacionalizadas no decorrer da dura batalha que ele
travou contra os demolidores do formidável império econômico que foi
construindo a partir de 1904.
A despeito do tom encomiástico, Gauld reconstrói, além
do itinerário desse imperialista exemplar, vários capítulos de nossa história
econômica: quase não há setores – que os militares chamariam de “estratégicos”
– em que ele não tenha colocado os capitais de seus associados estrangeiros:
bondes, ferrovias, navegação, portos, hidrelétricas, pecuária, processamento de
carne, agricultura e silvicultura, extração mineral, indústrias de papel e
siderurgia. Como Mauá, ele enfrentou inúmeros problemas, a maior parte vinda do
próprio Estado brasileiro, mesmo se ele praticou a arte (não inusitada) de
“comprar” deputados e jornalistas para defender os seus interesses.
Imperialista bizarro, Farquhar apreciava mais o risco do investimento do que a
cor do dinheiro; foi um verdadeiro pioneiro, como seus ancestrais quackers, podendo até ser equiparado,
sem nenhum exagero, aos nossos bandeirantes.
“Os brasileiros”, disse uma vez Farquhar, “chamaram
minha atenção pela rapidez de raciocínio, embora estejam igualmente prontos a
chegar a conclusões apressadas”. Em 1906 ele já se queixava da “constante
flutuação da taxa de câmbio” e, no final da vida, em 1952, registrava a “vã
manifestação de esperança”, mantida durante meio século, de que algum dirigente
corrigisse a “instável economia do Brasil, em perpétua inflação”. A obra
reflete o momento em que foi escrita (1962), quando os EUA consideravam que o
Brasil corria o risco de tornar-se uma “grande Cuba”. Gauld não esconde uma
incontida admiração pelo seu herói e certa impaciência com os nacionalistas
brasileiros. Os editores e a tradutora estão de parabéns pela corajosa
iniciativa de publicar esta obra esquecida sobre o mais poderoso capitalista
estrangeiro da história do Brasil, cujos historiadores parecem querer continuar
mantendo no anonimato.
Candidatos a uma boa dissertação doutoral estão convidados
a reescrever, de maneira não apologética, sua fabulosa história de vida, que se
confunde com meio século de história econômica brasileira, mas os próprios
editores brasileiros desconhecem que os papéis de Farquhar e os manuscritos de
Gauld estão depositados na biblioteca da universidade de Yale. Ao garimpo,
historiadores...
Paulo
Roberto de Almeida
[Brasília,
20 setembro 2006, 2 p.]
Publicada
em formato resumido e revisto na
revista
Desafios do Desenvolvimento
(ano
3, nº 27, outubro 2006)
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