Desigualdade na América Latina: lições da história
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Buenos
Aires, dezembro de 2014, Intal-BID
Quais
são os ensinamentos que uma visão de longo prazo sobre a desigualdade na
América Latina nos oferece? [1] Sem dúvida
muitos, e vários deles de grande utilidade para pensar os desafios do presente.
Estas são algumas das conclusões decorrentes da leitura das apresentações
realizadas no seminário “A
inequidade na América Latina a longo prazo”, organizado pelo BID, pelo
Banco Mundial e pela Cepal no auditório do Instituto para a Integração da
América Latina e do Caribe (BID-Intal) em Buenos Aires, de 3 a 5 de dezembro de
2014. Entre outras contribuições, a perspectiva temporal nos permite observar o
peso que variáveis como a educação, a política tributária, a propriedade da
terra, a configuração das elites, as diferentes estratégias econômicas e os
fatores demográficos e naturais tiveram sobre a equidade, ao mesmo tempo que
nos permite discernir o que aconteceu com as desigualdades de classe, gênero e
étnicas ao longo da história. Neste artigo, baseado nas principais descobertas
de um grupo de trabalhos apresentados no seminário, em primeiro lugar se fará
referência à controvérsia central sobre a história da desigualdade da região e
às mais recentes contribuições apresentadas a esse respeito. A seguir, será
analisada em perspectiva temporal a evolução das desigualdades de gênero e
étnicas. E, por último, se abordará um exemplo de trajetória de longo prazo da
desigualdade, finalizando o artigo com algumas reflexões sobre o uso da
história para ajudar a pensar os desafios do presente.
Se
há consenso sobre o aumento registrado nas desigualdades de renda nas últimas
décadas do século 20 na região, à medida que olhamos mais para o passado, as
posturas divergem. De todo modo, a perspectiva mais aceita entre os
historiadores é a que remete as inequidades à época da Colônia. Em termos
gerais e com nuances entre os diversos autores, essa perspectiva se baseia no
caráter extrativo da economia colonial, nas restrições ao desenvolvimento
econômico que as coroas espanhola e portuguesa impuseram às suas colônias, na
estrutura da propriedade da terra e na poderosa configuração de elites locais
que depois se cristalizou nas repúblicas nascentes em forma de instituições,
estrutura de classes e coalizões de poder que perpetuaram e reforçaram as
desigualdades anteriores. A apresentação de Luis Bértola no seminário
aprofundou-se nessa linha argumentativa. Ele defendeu a necessidade de observar
a desigualdade passada não só com relação à renda, mas também em uma perspectiva
ampla, incluindo a estrutura social da colônia, em particular, a existência de
escravos e de outras formas de subordinação e servidão, restrições à cidadania
e ao acesso à terra, entre outras dimensões. E, embora estes elementos pudessem
não se refletir na renda, sem dúvida constituíam formas de desigualdade
profundas. Por outro lado, assinalou que o problema da região a partir do
século 19 foi principalmente a volatilidade econômica, já que os avanços e os
retrocessos do desenvolvimento representaram profundas flutuações em termos de
desigualdade. Além disso, destacou a necessidade de revisar a relação entre
crescimento e desigualdade, afirmando que, pelo que parece, para crescer a
região teve que gerar desigualdade, mas que, por sua vez, essa desigualdade foi
uma base frágil para conseguir um crescimento sustentável. Passando para os
casos nacionais, a título de exemplo, a apresentação de Jorge
Gelman e Daniel Santilli sobre Buenos Aires da colônia até o fim do
século 19 seguiu em termos gerais essa perspectiva de desigualdade com raízes
históricas.
Uma perspectiva diferente foi sustentada por Jeffrey
Williamson na sua apresentação (Gráfico 1). A partir da construção de
uma série de dados de longa duração (os primeiros datam do século 15) ele
afirma que nos primeiros anos da conquista a produção de excedente era muito
baixa para produzir desigualdades expressivas. Esta aumenta só a partir do
século 17, mas até fins do século 19 se mantém abaixo da inequidade registrada
nesse momento na Europa e nos Estados Unidos. Depois da Primeira Guerra Mundial
é que a região começará a elevar seus níveis de inequidade, ao mesmo tempo que
a Europa começará a diminui-los. A pergunta é o que aconteceu depois de 1910
que levou a esse aumento da desigualdade na região que persiste até hoje. A
apresentação de María
Gómez León, a partir de uma visão metodológica nova sobre a estrutura
de classes do Brasil de 1839 a 1950, pode se inscrever nesta linha
argumentativa. Seu trabalho identifica períodos da história brasileira
caracterizados por um crescimento da classe média junto com um declínio nos
níveis de desigualdade, particularmente no final do século 19 e início do 20.
Assim, a imagem tradicional de um Brasil caracterizado por uma estrutura social
polarizada é questionada.
A
desigualdade latino-americana é uma persistência histórica?
Gráfico 1
A
apresentação de Pablo
Astorga sobre a desigualdade funcional na América Latina entre 1900 e
2011 também leva à revisão de certas ideias sobre o passado. O autor constrói
uma série de dados novos sobre salários reais comparável a longo prazo para
seis países da América Latina[2] e faz cálculos
próprios do coeficiente de Gini entre grupos ocupacionais. A partir deles,
afirma que não se verifica um padrão comum de evolução da desigualdade na
região a partir do século 19; na verdade, registram-se diferenças expressivas
nos padrões nacionais no final da primeira industrialização e durante meados do
século 20. Pelo contrário, assevera que sim parece haver um dado comum na
tendência a uma desigualdade crescente a partir de 1960, que teve seu auge no
final do século passado. Em linhas gerais, o quadro apresentado não pareceria
ser coerente com a hipótese de uma desigualdade alta e relativamente constante
no século 20, dado que se observam diferenças significativas não só entre
países, mas também em cada um deles ao longo do tempo. Um dado interessante
para os desafios do presente é que o autor não encontra em nenhum país uma fase
de concomitância de um aumento sustentável da participação do salário
acompanhado de uma redução na dispersão salarial. Em outras palavras, quando a
participação do trabalho na distribuição da riqueza sobe também teria aumentado
a desigualdade entre os diversos trabalhadores. Sua contrapartida lógica,
particularmente no final do século 20, é a sincronia entre um aumento no
salário real médio e um aumento da dispersão. Como corolário, conclui que o que
parece estar faltando na história econômica dos seis países analisados são
episódios impulsionados por dinâmicas de mercado de um aumento do salário médio
articulado com uma redução da dispersão salarial. Trata-se de um tema de grande
importância, já que esta apresentação estabelece uma relação da distribuição
primária, entre capital e trabalho, com a secundária, entre indivíduos e
domicílios. E, com efeito, a redução da desigualdade de renda exige uma melhora
tanto de uma quanto da outra, e essa sincronia também não se percebe no
presente.
A
apresentação de Leticia
Arroyo Abad junto com Peter
Lindert também expõe conclusões novas. Os autores realizaram o que
chamaram de o primeiro estudo multipaís sobre como os governos
latino-americanos utilizaram os impostos e o gasto público para atuar sobre a
distribuição da renda. Para isso, construíram uma série histórica para seis
países latino-americanos,[3] em combinação
com estudos recentes sobre os padrões de redistribuição fiscal do século 21. Da
apresentação se deduzem, entre outros, os seguintes ensinamentos. Em primeiro
lugar, eles sustentam que o gasto social se acelerou no pós-guerra. Depois,
mostram que na América Latina a redistribuição ocorre basicamente dos jovens
para os idosos, principalmente por meio do sistema de pensões. Em terceiro
lugar, eles afirmam que desde a Independência a região investiu pouco em
educação e infraestrutura. Em quarto lugar, assinalam que, em termos gerais, a
progressividade foi escassa na região. Em quinto, demonstram que o investimento
humano em capital implicou maiores – embora mais dilatados - benefícios do que
as políticas de transferência de renda; e, por último, afirmam que o gasto
social na região, além de volátil, foi pró-cíclico.
Desigualdades de gênero e raça em perspectiva histórica
A evolução ao longo do tempo das desigualdades de gênero e étnica ou racial,
como foi chamada em várias apresentações, foi outro dos temas do seminário. Silvana
Maubrigades apresentou uma análise realizada junto com María
Magdalena Camou sobre a distribuição da renda e da participação
feminina no mercado de trabalho na América Latina desde o início do século 20
(Gráfico 2). O trabalho afirma que a desigualdade de gênero em matéria de renda
se expressa basicamente de duas formas: por meio de uma entrada mais restrita e
tardia das mulheres no mercado de trabalho e por meio da existência de uma
brecha salarial em comparação com os homens. A análise conclui que existe uma “path
dependence” (às vezes traduzida como “dependência histórica”) importante em
nível nacional no tocante à evolução do mercado de trabalho, porque os países
com maiores níveis de educação e de participação feminina no mercado de trabalho
(como a Argentina e o Uruguai) são também os de menor desigualdade de gênero na
matéria. Concluem, em termos gerais, que o nível de desenvolvimento de um país
é previsor do nível de participação feminina no mercado de trabalho. No
entanto, o estudo mostra que a formação não tem resultados lineares em termos
da redução da desigualdade, visto que nem sempre se correlaciona com um aumento
da participação feminina no mercado de trabalho nem com uma redução da brecha
salarial. Esta conclusão é também importante para o presente: diversos
trabalhos mostram que nem todas as desigualdades diminuem de forma articulada
e, em particular, que a nossa região foi mais equitativa na distribuição de
bens educativos do que na distribuição da renda e que essas disparidades
continuam no presente.
Gráfico 2
Nesse
mesmo sentido, mas relativos a grupos étnicos, encontram-se as conclusões
apresentadas por Enriqueta
Camps junto com Stanley
Engerman. Esta apresentação visou analisar o impacto da raça e da
desigualdade na formação de capital humano nos séculos 19 e 20 na América
Latina. Destaca-se que durante o século 20 a educação tornou-se de massa na
América Latina, pelo menos nos níveis fundamental e médio, ao mesmo tempo que a
desigualdade educativa se reduziu, incorporando as mulheres e pessoas de todas
as raças. No entanto, também se destaca que o impacto da queda do coeficiente
de Gini educacional não foi notado sobre o Gini de renda até a década de 1990.
Uma abordagem sobre este tema no caso do Brasil foi realizada pela apresentação
de Justin
Bucciferro. O autor parte da constatação de que durante a última década
se evidenciou uma importante redução da desigualdade racial no Brasil com
relação aos níveis de emprego e renda, do alfabetismo e da educação. A partir
daí, ele se pergunta se o declínio faz parte de uma tendência de longo prazo ou
se responde a fatores estritamente conjunturais. O trabalho contém evidências
sobre a desigualdade racial no Brasil desde 1827 até hoje, concentrando-se na
análise da expectativa de vida, nos níveis de analfabetismo, na quantidade de
anos de escolaridade e nas rendas médias mensais, desagregados por grupos
(negros, pardos, brancos, asiáticos e indígenas). A evidência o leva a concluir
que, em termos gerais, houve uma redução da desigualdade no Brasil ao longo do
tempo, e que esta tendência é anterior às últimas décadas (Quadro 1). No
entanto, ele acrescenta que o progresso para uma maior igualdade entre os
grupos étnicos foi errático e teve resultados diversos segundo o grupo
analisado.
Quadro 1
Estas
pesquisas mostram, entre outros elementos, além da persistência de
desigualdades de gênero e entre os grupos étnicos, que os avanços não são
lineares no tempo nem em todas as dimensões. Talvez seja útil trazer como
referência um aprendizado dos estudos sobre estigmatização que apontam o
caráter pertinaz e multiforme dos estigmas: quando parecem terem sido
eliminados em uma dimensão, concentram-se, reaparecem ou se expressam em
outras. Sem dúvida com as desigualdades de gênero e de raça acontece algo
similar: os avanços em certas áreas nos obrigam a ficar mais atentos para
detectar as persistências ou ainda o reforço de inequidades em outras. O
aumento da participação feminina no mercado de trabalho, por exemplo, não
necessariamente implica uma redução das brechas de renda ou, mais ainda,
estaria acarretando uma maior sobrecarga do tempo de trabalho doméstico e
extradoméstico das mulheres. Portanto, neste caso, se ganha em uma dimensão da
desigualdade, mas se perde em outra.
Desigualdade a longo prazo: um caso de padrão cíclico
Um resultado interessante é a observação de um padrão cíclico na desigualdade
de renda a longo prazo no caso do Chile (Gráfico 3). Javier
Rodríguez Weber analisou na sua apresentação a relação entre
crescimento econômico e desigualdade levando em conta a incidência tanto dos
fatores institucionais quanto das forças de mercado em três períodos da
história desse país de 1850 em adiante. Entre suas descobertas, mostra que nem
sempre o crescimento implicou desigualdade, mas que o fundamental é o tipo de
crescimento, mostrando que a curva de Kuznets (a hipótese de que toda fase de
crescimento provoca um aumento inicial da desigualdade) não é de jeito nenhum
uma lei válida para todos os países nem para todos os estilos de
desenvolvimento. Centrado depois no período 1938-1973, no qual houve uma grande
queda na desigualdade, encontra o peso positivo da regulamentação estatal da
economia visível na promoção da industrialização e em uma forte política de
recomposição do salário mínimo real. Por último, estuda o período 1973-2009,
assinalando que até 1989 (fim da ditadura de Pinochet) se produz um expressivo
aumento da desigualdade, devido a uma forte redistribuição a favor das elites,
produzida a partir de uma queda dramática do salário real e da abertura do que
o autor denomina novos terrenos para a extração de lucros, referindo-se
basicamente à privatização da educação e da segurança social.
Gráfico 3
Encerramento
Este artigo se propôs a apresentar alguns dos aprendizados decorrentes de uma
perspectiva de longo prazo sobre a desigualdade na região. Em primeiro lugar,
os trabalhos sugerem que as controvérsias sobre a desigualdade não estão
sanadas. Parece que se encaminha para uma maior diversificação de perspectivas
ou, possivelmente, para uma suspensão da possibilidade de uma visão única para
todos os países e períodos, em virtude dos novos estudos sobre os diversos
casos nacionais, da maior luz sobre períodos que haviam ficado até agora sob
certa penumbra e, sem dúvida, das novas variáveis e indicadores que sejam
levados em conta para captar a desigualdade, principalmente se for adoptada uma
perspectiva multidimensional da mesma.
No entanto, hoje já se conta com uma grande quantidade de dados, construção de
séries históricas e indicadores diversos que constituem uma fonte de informação
e conhecimentos de grande utilidade para enfrentar os desafios do presente.
Sabe-se bastante mais sobre o que teve peso tanto nas fases de redução quanto
de aumento da desigualdade de renda, em especial entre indivíduos e pessoas.
Temos certezas com relação ao fato de que as políticas e as instituições contam
e que é impossível explicar a persistência da desigualdade sem colocar no
centro da análise a dinâmica dos grupos sociais, em particular das elites. A
história dos países também questiona certas ideias: nem todo crescimento gera
desigualdade, já que isso depende do estilo de desenvolvimento, e tampouco a
desigualdade melhora necessariamente em todas as dimensões de forma articulada
e inexoravelmente. Além disso, incorporam-se outras perspectivas sobre a
distribuição, por exemplo, a que observa as transferências produzidas entre
gerações, uma dimensão pouco presente nos estudos dos nossos países. Em suma,
tenta-se responder à interrogação inicial sobre as contribuições da perspectiva
de longo prazo com algumas reflexões sobre os muitos ensinamentos que a
perspectiva de longo prazo pode nos deixar; e também convidar os leitores a
encontrar suas próprias respostas nestas e nas demais apresentações do
seminário.
[1] Este texto foi escrito pelo consultor Gabriel Kessler.
[2] Trata-se da Argentina, Brasil, Chile, Colômbia, México e
Venezuela.
[3] Trata-se da Argentina, Chile, Colômbia, Costa Rica, Peru e
Uruguai.
Gráfico 1. Estimativa da tendência à desigualdade na América Latina, 1491-1929
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Obs.: Gráfico traduzido. Fonte: Apresentação de Jeffrey Williamson.
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Gráfico 2: Inequidade global e a brecha de gênero
Obs.: Gráfico traduzido. Fonte: Apresentação de Silvana Maubrigades.
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Quadro 1: Expectativa de vida ao nascer (anos) por raça, 1950-2008
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1950 |
1960 |
1980 |
1991 |
2008 |
BRANCA |
47,5 |
54,7 |
66,1 |
70,8 |
73,1 |
NÃO BRANCA |
40,1 |
44,7 |
59,4 |
64,0 |
67,0 |
DIFERENÇIA |
7,4 |
10,0 |
6,7 |
6,8 |
6,1 |
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Gráfico 3. A "melhor estimativa" de desigualdade na distribuição de renda no Chile. 1850-2009. Coeficiente de Gini.
Obs.: Gráfico traduzido. Fonte: Apresentação de Rodríguez Weber.
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