Meu artigo fala mais de minha própria experiência, como uma espécie de preparação, ou de preliminar, a uma exposição mais clara, explícita, sobre o que acho da diplomacia brasileira e sobre como deveria ser uma "política externa ideal", algo que talvez não exista.
Em todo caso, esse artigo foi escrito em novembro passado, a pedido de um jornal.
Paulo Roberto de Almeida
Brasília, 4 de fevereiro de 2018
Depois da diplomacia companheira: o que vem pela
frente?
Paulo Roberto de Almeida
Todo diplomata que
pretenda escapar das áreas literárias – contos, romances, poesia, ou seja, os produtos
habituais da literatura – e que queira se dedicar ao seu objeto próprio de
trabalho, precisa passar pelo controle político da instituição. Ele se
defronta, nesse caso, com dois instrumentos regulatórios (e com dois problemas
de consciência) sobre o que ele teria a dizer no terreno da diplomacia: um
deles é a Lei do Serviço Exterior, que disciplina o comportamento do autor que
pretenda discorrer sobre os temas que podem integrar a agenda de trabalho da
instituição; o outro é a chamada “Lei da Mordaça”, uma circular restritiva emitida
em 2001 para reforçar os controles existentes no primeiro instrumento, controlando
mais estritamente qualquer manifestação pública e introduzindo o que se poderia
chamar de censura prévia.
O que isto significa? Qualquer
manifestação pública sobre temas correntes da política externa – às vezes até determinados
assuntos “históricos” – obriga o diplomata a requerer preventivamente a devida
autorização para publicar textos ou conceder qualquer entrevista identificada
aos meios de comunicação. E quanto ao problema de consciência? Trata-se,
reconhecidamente, de um terreno mais “pantanoso”, pois que o diplomata
acadêmico – o que é exatamente o meu caso –, aquele que se dedica a pesquisar,
dar aulas, escrever e publicar sobre temas de relações internacionais e de
política externa corrente, pode se encontrar cingido por certas normas
suficientemente vagas no terreno aqui referido, para constranger sua pluma e
sua palavra nas análises que possa empreender e divulgar. As autorizações
tardam a vir, e como o trabalho acaba sendo conduzido por algum assessor júnior
dos gabinetes, a tendência é a de se efetuar cortes e pedidos de mudança numa
escala e escopos bem mais amplos do que seria desejável ou útil, para a
discussão de algum problema concreto.
Digo isto porque já
enfrentei esse tipo de situação diversas vezes, com alguns cortes de parágrafos
em meus livros, ou mesmo advertências a posteriori quando da publicação de
algum artigo ou entrevista julgados não conformes ao espírito da política
oficial. Já acumulei duas ou três sanções formais durante o “antigo regime”
neoliberal que, com a assunção do regime companheiro, foram agravadas por meio
da vedação virtual a qualquer cargo na Secretaria de Estado no decorrer dos 13
anos de lulopetismo diplomático, quando meus artigos certamente dissentiam
fortemente da linha do “comitê central” do partido neobolchevique. Sobrevivi ao
período, não sem um alto preço pago em termos de evolução funcional e perdas
financeiras, mas estou de novo incorporado ao trabalho corrente, embora num
cargo de tipo acadêmico.
A Lei do Serviço Exterior
se resume basicamente a dois dispositivos: não se pronunciar sobre a política
externa oficial sem a devida autorização e conhecimento superior; não utilizar
expedientes de ofício para outras finalidades que não o próprio trabalho de
chancelaria. As punições que recebi, sob a forma de comunicações formais, se
deram a propósito de pronunciamentos gerais que efetuei sobre política
internacional, e mais especificamente sobre temas do comércio internacional. Mas
isto se deu quando o Brasil ainda não tinha sido dominado pelo pensamento único
dos companheiros e por suas preferências ideológicas, inclusive em matéria de
política externa. Nesta, como todos se recordam, fomos bafejados por uma
“diplomacia ativa e altiva”, e também “soberana”, como lembravam a todo instante
seus principais promotores. Como eu nunca fui de aderir a modismos, ou de me
curvar às verdades do momento, continuei a fazer minhas análises, que sempre
entendi objetivas e de espírito puramente acadêmico, e a publicar,
ocasionalmente, artigos em revistas e ensaios em livros, que nunca sofreram,
cabe esclarecer, qualquer sanção formal no regime companheiro.
A sanção, na verdade, veio
sob outra forma: um veto não declarado, mas real e mesquinho, a qualquer
trabalho na Secretaria de Estado, o que significou, na prática, uma longa
travessia no deserto funcional, que redundou em ostracismo administrativo e
total bloqueio na carreira. Esse foi o preço pago por ousar desafiar o adesismo
em vigor, uma situação patética na qual todo o Itamaraty foi colocado a serviço
do “guia genial dos povos”, e suas preferências políticas orientadas pelos
apparatchiks do partido e seus mestres em outras esferas. Durante esse longo
período, publiquei algumas matérias de atualidade, e até alguns livros de
pesquisa, mas deixei muitas outros trabalhos – que poderiam, eventualmente se
enquadrar na esfera da Lei do Serviço Exterior – dormindo em pastas de “trabalhos
a terminar”, entregues à “crítica roedora dos ratos”, como declarou em tempos
recuados um desses dissidentes das verdades oficiais.
Parece que esse tempo finalmente
passou. O Brasil, nesta fase de transição para um novo governo, a partir de
2019, retornou a uma política externa que corresponde, de modo mais adequado, a
padrões tradicionais, ou seja, a uma diplomacia não partidária, voltada de
maneira consensual para os interesses nacionais de uma forma não sectária, como
foi o caso durante o regime companheiro, aliado voluntário de ditaduras na
região e em outros continentes. Num momento em que se abre um novo período
eleitoral, ao abrigo do qual serão discutidas opções fundamentais de políticas
públicas, econômicas e setoriais – entre elas a própria política externa –, é
importante que diplomatas também participem de um debate nacional no qual eles
possam oferecer ao menos o testemunho de sua experiência e o seu conhecimento
especializado numa das principais interfaces de relacionamento do Brasil com o
mundo.
Poderei, neste caso, retornar
às minhas pastas de trabalhos inconclusos, onde se encontram muitos registros
de meu combate silencioso, durante a década e meia que se passou, em prol de
uma diplomacia menos ideológica e de uma política externa mais conforme o
interesse nacional.
[Paulo Roberto de Almeida
Brasília, 26 de novembro de 2017, 3 p.
Artigo de opinião; colaboração a periódico]
Gazeta do Povo (28/11/2017,
link: http://www.gazetadopovo.com.br/opiniao/artigos/depois-da-diplomacia-companheira-o-que-vem-pela-frente-di5ffopc0ywu56cc29s8s5hsr).
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