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quarta-feira, 8 de julho de 2020

Com Bolsonaro, Brasil perdeu sua independência em política externa e passou a ser submisso de Trump - Entrevista Celso Amorim (Clarin)

 

"Com Bolsonaro, Brasil perdeu sua independência em política externa e passou a ser submisso de Trump", diz Amorim

Clarin, 8/07/2020

 

https://www.msn.com/pt-br/noticias/brasil/com-bolsonaro-brasil-perdeu-sua-independ%C3%AAncia-em-pol%C3%ADtica-externa-e-passou-a-ser-submisso-de-trump-diz-amorim/ar-BB16um0L?li=BBwanrb

 

Falando do Rio de Janeiro, onde mora, o ex-chanceler do Brasil nos governos de Itamar Franco (1992-1995) e de Luiz Inácio Lula da Silva (2003-2011) disse que a política externa brasileira foi independente inclusive nos governos militares. Mas, na sua visão, essa independência se evaporou nos 18 meses do governo do presidente Jair Bolsonaro e com o chanceler Ernesto Araújo no Itamaraty. Para ele, a política externa brasileira é hoje de “submissão” ao governo de Donald Trump. Quando perguntado sobre o fato de Bolsonaro ter sido eleito por 57 milhões de votos (55% do eleitorado) e, segundo pesquisas, contar com avaliação ótima e boa por parte de 30% dos brasileiros, ele respondeu que os mandatos também devem ser respeitados por quem foi eleito. “Hoje, temos mais mortes por coronavírus do que tivemos na Guerra do Paraguai e do que os Estados Unidos tiveram na Guerra do Vietnã”, disse. Para Amorim, que serviu como representante do Brasil nas Nações Unidas, não existem “trocas de farpas” entre Bolsonaro e o presidente da Argentina, Alberto Fernández, mas ataques claros por parte do líder brasileiro. Ele lamentou que iniciativas brasileiras como a Unasul, que surgiu quando era chanceler de Lula, percam força e deixem um vazio na política externa regional.

 O ex-chanceler Celso Amorim disse, em entrevista ao Clarín em Português, que o atual governo rompe a tradição de independência da política externa brasileira.


A seguir a entrevista exclusiva ao Clarín em Português.

Qual é a sua opinião sobre a política externa brasileira em relação à América Latina? Como o senhor vê essa relação?

Amorim: A política externa brasileira, se é que se vai dar esse nome, tem uma linha mestra que é a submissão aos Estados Unidos. Tudo o mais é decorrência disso. Às vezes entra uma dose mínima de pragmatismo porque há outras ponderações, sobretudo na área econômica, mas a linha mestra é essa. Então, a linha da política externa brasileira na América Latina é uma consequência disso. A gente reconhece o governo golpista, oriundo de um golpe na Bolívia, não é? A gente tem uma posição de intervenção para quase nos aventurarmos a participar de uma intervenção, na época sob o nome de operação humanitária, na Venezuela. As expressões, tanto do presidente quanto do ministro das Relações Exteriores, são muito agressivas em relação à Argentina. Com isso, eu resumo. Isso já era assim. Mas agora com o coronavírus isso ficou muito agravado porque a visão que outros países têm do Brasil, mesmo países com governos conservadores, esses países não querem grande proximidade com o Brasil. Há pouco tempo, o presidente Duque, da Colômbia, tinha feito um convite ao presidente do Uruguai, Lacalle Pou, e ao Piñera para uma reunião sobre coordenação com relação ao coronavírus. Três governos conservadores e não convidam o Brasil. O Brasil hoje é inconvidável. Você sabe quando você dá aquela festa e tem aquele fulano que não pode vir porque ele compromete a festa? O Brasil está assim. Além de, digamos, dessa atitude muito conservadora. Mas você pode ser conservador e ter bom senso. Mas trata-se de um conservadorismo totalmente incoerente até com os princípios da Constituição brasileira e das tradições brasileiras, que já nos afastava de alguns países. O coronavírus acabou criando essa situação em que o Brasil é hoje, e digo isso com pena e com nenhuma alegria, é um pária internacional. E é um pária internacional. Na região, disfarça um pouco porque ninguém pode ignorar o Brasil. O país que é metade da América do Sul. Importante em PIB, em território, em população e com dez fronteiras, ninguém pode ignorar, para o bem ou para o mal. Mas é um país com o qual ninguém quer ter uma proximidade muito grande.

- E por quê? Por que o senhor acha que o Brasil é ‘inconvidável’?

Amorim: Nós temos uma coisa totalmente incompatível com um país das nossas dimensões. Esse alinhamento, que não é nem automático, que é submisso aos Estados Unidos. Isso é uma coisa incompatível com países até com governos mais à direita porque eles não gostam disso, não gostam dessa atitude de submissão. Eu lembro que Lula tinha, obviamente, excelentes relações com o (Ricardo) Lagos, com a (Michelle) Bachelet, mas teve uma relação muito profissional com o (Sebastián) Piñera e profissional e cooperativa com o (Álvaro) Uribe. Uribe (ex-presidente da Colômbia) se dizia amigo do Lula. É claro que não quer dizer que tinham ideias parecidas. Hoje em dia é totalmente diferente. Ninguém quer proximidade com o Brasil. Já era assim em função de atitudes que vinham se tomando, mas acho que se agravou muito com duas coisas. Primeiro com as atitudes em relação ao clima, à mudança climática. Porque talvez outros países que dependem de aporte estrangeiro, como Colômbia, Peru, não querem se identificar com uma posição que é a brasileira, com aumento considerável das queimadas neste ano e até em relação ao ano passado, que já estava altíssima, e atitude de indiferença total em relação a esse tema que já nos afasta da Europa e de outros. E não digo nem em relação aos Estados Unidos. Se ganhar (Joe) Biden lá isso vai ser muito complicado aqui para o governo brasileiro se adaptar porque é uma linha de submissão ao Trump e à linha dele. Além de tudo isso, veio o coronavírus e a atitude inconsequente do Brasil. Você está na Argentina. O que o Brasil tem de tão diferente da Argentina para que a Argentina, mesmo indexando as diferenças no total das populações, a Argentina tenha dez vezes menos casos e dez vezes menos mortes do que o Brasil? Dez vezes menos, gente. A Argentina é, em termos de população, mais ou menos como São Paulo.



Celso Amorim, ao lado do chanceler Felipe Solá, na posse do presidente da Argentina, Alberto Fernández, em dezembro de 2019. Para o ex-chanceler do Brasil, não existe troca de farpas entre Fernández e Bolsonaro, mas agressões por parte do líder brasileiro.


- A Argentina tem cerca de 45 milhões de habitantes.

(Comparado com a população do estado de São Paulo) a grosso modo, não é? E tem um doze avos das mortes. O que é que explica isso? Esse descaso brasileiro. Saiu uma matéria no Financial Times mostrando os três negacionistas do coronavírus. O Boris Johnson, o Trump e o Bolsonaro. Mas o Bolsonaro foi o pior deles porque até esses outros... o Boris Johnson fez um mea culpa.

- Ele teve Covid-19.

Amorim: Teve e saiu de lá (do hospital) falando bem do National Health. O National Health, que é o SUS lá deles e que foi, obviamente, uma criação dos Trabalhistas. Enfim. E o próprio Trump, apesar de ter falado muitos absurdos, ele mesmo se dissocia. Diz, ‘veja como o Brasil está mal’, ‘se estivéssemos como eles, olha como estaríamos mal’. Então, é um caso assim singular. Olha, outra coisa, falam em troca de farpas entre Alberto Fernández e Bolsonaro. Mas isso não é certo. Uma coisa é você ter uma posição de princípios, visitar o Lula na cadeia, isso não é uma agressão ao Bolsonaro. Isso é uma prova de amizade. Aliás, quando outros governantes vinham aqui, aliás até o papa João Paulo que veio aqui durante a ditadura foi visitar o Lula, porque era um grande líder, não é? Isso é uma coisa. Outra coisa é você falar ‘esquerdalha’, dizer, como o chanceler disse, que forças do mal ganharam na Argentina. É uma coisa, assim, que não existe, não existe na diplomacia. Você sabe que isso é sensível. Você lembra da reação do Itamar (ex-presidente Itamar Franco) quando o Menem (ex-presidente Carlos Menem) falou sobre o salário mínimo no Brasil. É uma anti-diplomacia no conteúdo e na forma. Às vezes é no conteúdo, mas a forma disfarça um pouquinho. Agora não.

- Mas não será que tem a ver com o resultado da eleição?

Amorim: Só um instantinho. Quero terminar de responder sua pergunta. Eu não vejo projeto para a América Latina. Nenhum. Ah, poderiam dizer, tem um projeto conservador para a América Latina. Não, não é. Eles criaram o Prosul, obviamente, para não dizer que não têm nada. Mas o Prosul não existe. Não tem Conselho de Defesa, não tem nada. É uma coisa para dizer que não fizeram nada. Então, eu não vejo projeto, o projeto é seguir a política americana.

- Como foi possível fazer a Unasul com tantas diferenças ideológicas, incluindo, como o senhor citou, o (ex-presidente colombiano, de direita) Álvaro Uribe? E a outra pergunta é, na sua visão a Unasul acabou e o Prosul surgiu para substituí-la?

Amorim: Olha, o Prosul não é nada. É uma cortina de fumaça. Ele não tem a generosidade necessária para um processo de integração. Para fazer integração, você tem que lutar pelo seu interesse, mas você também tem que fazer concessões. Você tem que ter interesses comuns. Não há isso. Mas voltando à Unasul. Eu não sei se acabou. Na minha opinião, o Brasil sair da Unasul é ilegal, é inconstitucional no Brasil porque é um tratado. Eu sei que o ponto não é pacificado juridicamente, mas no espírito, é um tratado internacional, aprovado pelo Congresso Nacional. Eu acho que o Brasil não poderia sair por uma decisão do Executivo. Eu sei que é uma coisa que tem aí uma certa polêmica porque lá atrás você achava que para entrar teria que ter aprovação, mas para sair não. Mas não é possível. Imagine o Brasil sair da ONU, você não acha que o Congresso Nacional vai recriminar? O Brasil sair da Organização Mundial de Saúde (OMS), não pode. No mundo integrado como é hoje, é diferente um foro. Quer sair do BRICS, espero que não, mas aí tudo bem. É um foro. Mas a Unasul foi criada por tratado internacional. Então, eu acho que isso é ilegal. Mas independentemente de ser ilegal, claro que para funcionar nós vamos ter que ter posições políticas. Nós vamos ter que ter mudanças muito grandes. Eu acho que é indispensável. Quer mudar o nome, porque o nome lembra o Chávez? Eu sempre costumo dizer que a maior contribuição do Hugo Chávez (ex-presidente da Venezuela) foi o nome (da Unasul). Porque a Área de Livre Comércio entre os países já tinha sido estabelecida por iniciativa brasileira. Começou com Itamar Franco, a ideia, e você se lembra disso, uma reunião do Grupo do Rio, em Santiago (Chile, em 1993). Me coube levar adiante.

- A Unasul começou a surgir quase com o Mercosul, então.

Amorim: Aí, nós retomamos essa ideia. Qual é a origem da Unasul? Integração do Mercosul com a Comunidade Andina, que, na verdade, começa com o Mercosul e o Peru e que depois se expande para a Comunidade Andina e, o interessante, é que um país que tinha resistido muito a Área de Livre Comércio lá atrás que era a Colômbia. O grande avanço foi entre a Comunidade Andina e o Mercosul, e quando nós celebramos o Acordo 4, na sede da Aladi, dez anos depois de ter ido à Aladi por orientação do Itamar Franco e, justamente a chanceler da Colômbia diz assim, ‘com esse acordo estamos criando uma área de livre comércio da América do Sul’. Ela diz isso. O que foi uma ideia do Itamar Franco. Ela diz isso. Eu era muito cuidadoso, sensibilidades na Colômbia, ou mesmo no Peru, porque eles estavam negociando com os Estados Unidos, queria o concreto e ela falou. Então, isso é a área de livre comércio e depois os acordos feitos com Suriname e Equador, que são mais modestos do ponto de vista econômico. E o nosso comércio com a América do Sul aumentou enormemente, e não só importações, mas exportações. E eu acho que a Unasul, digamos, é o coroamento institucional disso tudo e possibilitou a criação de outros mecanismos. Veja bem, os dois mecanismos mais importantes foram o Conselho de Defesa, que, nesse caso, o Uribe resistiu um pouco, mas acabou entrando ativamente, e o Instituto Sul-Americano em Governança de Saúde, que teve até sede no Rio de Janeiro. Dois mecanismos muito ativos. O da saúde discutia, inclusive, compras coletivas que barateavam as compras de medicamentos para a região. O Conselho de Segurança é uma coisa de confiança. Você perguntou como a Unasul reuniu líderes tão diferentes. Está escrito, porque foi uma iniciativa do Brasil, que é o pluralismo. A Unasul se guia por várias coisas, a democracia, a paz e também o pluralismo. Tirar a ideia de que era uma ideia ideológica. Não era. Não era mesmo. Quando a Bolívia teve uma crise e quase teve uma guerra civil, ela pediu a ajuda da Unasul, e com Bachelet (ex-presidente do Chile, Michelle Bachelet) na presidência. Mas quem foram os três governos progressistas? Brasil, Argentina e Colômbia para ajudar a paz na Bolívia.

Tudo é passível de melhora, de autocrítica, mas não sair.


Celso Amorim: "A política externa brasileira, se é que se vai dar esse nome, tem uma linha mestra que é a submissão aos Estados Unidos. Tudo o mais é decorrência disso".


- Na sua visão, a Unasul deixa um vazio? Porque numa situação dessas, como a que ocorreu com a Bolívia, a quem os governos da América do Sul podem recorrer?

Amorim: Pois é. Vão ter que recorrer à OEA (Organização de Estados Americanos) que ajudou a fazer o golpe na Bolívia. A Unasul faz muita falta. Como dizia o ministro (Azeredo da) Silveira, ainda no governo militar (chanceler entre 1974-1979), com quem trabalhei, a gente faz a nuvem, mas não pode fazer chover. Mas era importante, importantíssima. Politicamente importante, economicamente importante, com uma área de livre comércio importante. A América do Sul, como conjunto e como comércio, só perdia para os Estados Unidos como destino das exportações brasileiras e com uma grande diferença pela questão das manufaturas. Então, é uma estupidez, uma idiotice. Os acordos de livre comércio não foram denunciados, mas você sabe, com uma política desfavorável, vai diminuindo, como está diminuindo nossa participação com a Argentina.


Celso Amorim e o então candidato à Presidência argentina Alberto Fernández visitaram o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva na prisão na Polícia Federal, em Curitiba. Para Amorim, o fato não deveria ter afetado a relação com Bolsonaro. Ele lembrou que na ditadura militar brasileira, o papa visitou Lula e que gestos assim fazem parte das relações. (Foto: Henry Milleo/dpa).


- O senhor falou sobre a política externa brasileira e sobre a Unasul. Como o senhor vê o Mercosul hoje? Porque hoje existe um distanciamento ideológico entre o presidente da Argentina, Alberto Fernández, e os outros três presidentes dos países fundadores do bloco: Bolsonaro, do Brasil, Lacalle Pou, do Uruguai, e Mario Abdo Benítez, do Paraguai.

Amorim: Desculpe muito. Você está na Argentina e deve saber isso muito mais do que eu, mas eu acho que há mais distância do presidente Bolsonaro. Concordo com você que há uma distância ideológica, de visões do mundo, mas como disse o próprio Alberto Fernández, não é preciso ter a mesma visão do mundo para você, pragmaticamente, cooperar. Não é necessário que isso aconteça. Vi até quando o presidente Bolsonaro quis (na campanha presidencial uruguaia) manifestar apoio ao Lacalle Pou e esse apoio ser recusado veementemente. Lacalle Pou não quer essa intervenção externa. Eu acho que, na realidade, há uma diferença de visões, sem dúvida, eu acho que há por parte do Brasil uma visão, nitidamente, ideológica. Pelo que eu tenho acompanhado, as relações do Alberto Fernández com Chile e com Uruguai são normais. Não que sejam de beijos e abraços, mas são normais. Só com o Brasil é que as relações ficaram muito afetadas por causa das nossas atitudes. Mas, para te responder, eu acho que, agora, o Mercosul é como a gente na quarentena. É sobrevivência. É não fazer nada que afete a sobrevivência. Acho que não se pode ter grandes iniciativas, tem que ser tudo assim, vamos tocando, é feijão com arroz, como dizia o (ex-ministro da Fazenda) Maílson da Nobrega. Não gosto muito dessa expressão, mas é como tem que ser. É inconcebível um grande projeto da Argentina com o Brasil, mas também é inconcebível um grande projeto do Brasil com o Uruguai. Não vejo acontecer. Na fronteira com o Paraguai, chegaram a cavar valas, que nem na Segunda Guerra Mundial. O Brasil é um terror, um terror que está aumentando. Nós passamos de 60 mil mortos. O Brasil é cerca de 2,5% da população mundial. E é 12% das mortes no mundo. É muito triste, gente. É de chorar. É de chorar pelos nossos compatriotas mortos e pela imagem do Brasil. Obviamente, eu me identifico com o governo Lula e trabalhei no governo Itamar e, aliás, trabalhei no governo Collor, era chefe do departamento econômico (do Itamaraty) quando foi assinado o Tratado de Assunção. E depois o Acordo de Ouro Preto (para a fundação do Mercosul) no governo Itamar. É muito triste em relação a qualquer governo. Olha, do ponto de vista de política externa, pelo menos desde Geisel. E para falar a verdade, em política externa, desde sempre. Eu não me lembro de nenhum momento tão baixo da política externa brasileira. Não me lembro de um momento em que todos os jornais do mundo... porque na Guerra Fria, mesmo com barbaridades que aconteceram aqui dentro e como havia o comunismo e como havia uma política, e o Brasil crescia muito, falavam mal de um lado e bem do outro. Aceitavam, pragmaticamente. Hoje em dia as pessoas têm medo porque... um governo que caminha para uma coisa... agora está meio domesticado, mas não se sabe por quanto tempo. Mas que corre o risco de se tornar um autoritarismo, unipessoal, para não usar a palavra ditadura, mas eles vêm como uma ameaça na região. Isto está na The Economist, no Financial Times, não é nenhum órgão de esquerda. O presidente Bolsonaro dizendo que ele quer mudar a imagem do Brasil, não sei como, porque a maior campanha contra o Brasil é feita pelo governo.

- A questão da preocupação com a democracia começou quando o presidente começou a participar daqueles atos com cartazes contra o Supremo, ali, na sua opinião, começa essa imagem?

Amorim: Olha, acho que já estava muito forte por várias razões, quando o (ex) secretário de Cultura cita o Goebbels como modelo, com símbolos nazistas; o (ex) ministro da Educação diz as barbaridades que diz. Enfim, não estou querendo ser cronológico. Algumas coisas foram depois, outras foram antes. A ministra de Direitos Humanos retira a anistia de certas pessoas. Substitui pessoas conhecidas, com tradição na área de direitos humanos, por militares. Não tenho nada contra militares. Fui ministro da Defesa e me dei muito bem com eles. Mas, gente, não são as pessoas para tratar disso, obviamente. Botar um bando de militares da reserva na comissão de mortos e de desaparecidos, não tem cabimento. É como colocar a diretoria do Flamengo para fazer o treino final do Vasco na Copa. É mais ou menos isso. Com relação à Argentina, não é só a questão da democracia, mas a atitude hostil. O ministro da Economia (Paulo Guedes) disse, logo no começo, que a Argentina não interessa, não é prioridade, foi o que ele falou. Tudo isso deixa a imagem do Brasil muito ruim. As agressões a Bachelet. Até ao pai da Bachelet morto, gente. São coisas de civilidade. Posso ter o maior adversário político, mas não vou falar sobre os antepassados deles que morreram. A questão do clima também. Porque que os deputados democratas dos Estados Unidos escreveram aquela carta com tudo isso, e falam também do clima, de LGBT.

(Em carta, grupo de congressistas do Comitê de Relações Exteriores afirmou que a diplomacia americana deveria ter condenado "recentes ações que tiveram como alvo as comunidades LGBT, indígena e afro-brasileira").

O Brasil vota, sistematicamente, contra os direitos reprodutivos da mulher. Não tem a palavra aborto nessas resoluções porque a gente sabe que é complicado para outros países também. Mas o Brasil passou a agir de acordo com a orientação norte-americana. Não estou dizendo coisas que tenho a impressão não. São coisas que eu sei. O Brasil deixou de apoiar uma resolução na ONU sobre acesso a medicamento no contexto da Covid-19, há dois meses. O México teve 179 patrocínios, quase uma unanimidade. O Brasil não copatrocinou. Por quê? Porque nos Estados Unidos o Trump já estava brigando com a Organização Mundial de Saúde (OMS) e como a OMS era citada na resolução, o Brasil não votou contra porque não houve voto. Mas o Brasil não copatrocinou. Então, é uma vergonha.


- O senhor critica o que na sua visão é o rompimento de tradições da política externa brasileira...

Amorim: Olha, quem primeiro instaurou o gabinete da OLP (Organização para a Libertação da Palestina) no Brasil foi o (Ernesto) Geisel (1974-1979). Vai ver nosso chanceler o chamaria de ‘comuna-Geisel’. Fui diplomata durante mais de 50 anos, incluindo o período de ministro. Vou lhe dizer, nunca tive vergonha da diplomacia brasileira. Eu podia não concordar, mas isso é outra coisa. Hoje em dia é uma vergonha permanente. Essa coisa da eleição do presidente do BID (Banco Interamericano de Desenvolvimento)... O governo Bolsonaro, aliás, com o ministro (Paulo) Guedes, tinha um candidato (para a presidência do BID) que eu nem sei se é bom, provavelmente não é, mas que era candidato. Mas os Estados Unidos, romperam uma tradição de 60 anos, porque eles nunca tinham tido candidato, e o Brasil não protestou por isso. Ao contrário, retirou seu candidato e apresentou uma nota. Quando eu vi a nota, quase me espantei. Pensei que fosse para reclamar, ou pelo menos uma reclamadinha. Não, era para elogiar. Não tem cabimento. Quando saiu uma decisão dos Estados Unidos sobre o aço, o Brasil divulgou uma nota, uma nota para explicar. Eu nunca vi isso desde o governo Geisel, do governo Figueiredo (1979-1985), obviamente nos governos democráticos, todos, o Brasil sempre teve um perfil... O governo de Fernando Henrique Cardoso (1995-2003) tinha muita ligação, eu acho, em alguns aspectos com os Estados Unidos, mas manteve um perfil de, digamos, não necessariamente de altivez, mas de independência na área internacional. Por isso, o Brasil era respeitado. O Brasil agia sempre com independência. E não era essa vergonha. Não entendo por que nossos militares não acordam para isso. Não que eu queira que os militares deem golpe. Mas eles, que estão no governo, deviam deixar o Bolsonaro pra lá. Eu falo isso com grande pesar porque eu fui ministro da Defesa e trabalhei intensamente nessa área, no governo Lula e no governo Dilma também, em áreas avançadas como submarino de propulsão nuclear, estávamos discutindo programa nuclear com a Rússia, um programa de satélite com a China e, ao mesmo tempo, mantendo boas relações com os Estados Unidos. Eu fico pasmo quando vejo isso se perder.


Ex-ministro das Relações Exteriores e da Defesa, Amorim diz lamentar que projetos brasileiros estejam agora tomando outros rumos. "O Brasil agia sempre com independência", diz. (Foto: AFP PHOTO/Pedro França).


- O senhor acha que está havendo uma desconstrução da política externa brasileira e uma mescla, e não 

independência, das Forças Armadas em um governo civil?

Amorim: Eu acho, e até do governo militar. No Geisel, quando os militares... e ali tinha o lado bom e não tão bom que é a questão dos direitos humanos. Mas teve também o acordo nuclear com a Alemanha que os EUA se opuseram. Então, ele agia com independência e isso não mudou no governo Figueiredo, que eu saiba. Então, essa submissão nunca existiu. E o programa do submarino nuclear é um programa único no mundo. Aí, nós vamos lá e o presidente (Bolsonaro) fala mal e até da mulher do presidente francês. Eu acho que o objetivo não confessado é que os franceses rompam o acordo militar conosco. Não tenho provas. Não dá para ter relações hostis. Quando Lula foi presidente esteve três vezes nos Estados Unidos. Uma com (George W.) Bush e outra com (Barak) Obama. É uma relação de trabalho. O Bush esteve aqui. Hoje em dia o Brasil não é respeitado. Hoje só chamam o Brasil quando é para desempenhar um papel pífio. Contra a China, contra a Venezuela, aí chamam.

- O presidente Bolsonaro foi eleito com 57 milhões de votos. Hoje teria em torno de 30% ou 35% de apoio. O que o senhor acha que pode acontecer?

Amorim: Acho que não será a esquerda que vai tirar o Bolsonaro. Mas, gente, estamos com mais de 60 mil mortos. É mais do que os Estados Unidos perderam na Guerra do Vietnã, muito mais do que perdemos na Guerra do Paraguai. Não houve nenhuma situação no Brasil que se aproximasse do que temos hoje. Mas, por outro lado, não vejo com muita clareza como se pode formar uma coalizão. Eu entendo que tenha que se respeitar o mandato, mas o mandato também deve ser respeitado por quem o está exercendo. Mas quem tem bola de cristal é mago. O que eu ambiciono é que o Brasil tenha um governo normal, como foram todos os que conheci depois dos governos militares. Hoje, está tudo muito triste. Um governo normal que respeite o Supremo Tribunal Federal, que respeite o Congresso. Eu me preocupo muito com a política externa porque não tem defesa. Na economia, na saúde sempre tem alguém para defendê-las. O principal trunfo da diplomacia é a credibilidade.

 

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