Obra reeditada de José Guilherme Merquior evidencia seu legado como intelectual brasileiro
»O Argumento Liberal« não é só uma prova da erudição do ensaísta, morto em 1991, mas uma defesa da liberdade
Marcos Vasconcelos Filho*,
Especial para o Estado, 12/07/2020
Concorde-se ou não com seu ideário, José Guilherme Merquior (1941-1991) encarnou uma espécie rara para os trópicos: o neoiluminista. É o nosso Steven Pinker em sociopolítica. Tragado da existência aos 49 anos por um câncer, foi dono de uma formação das mais completas: em direito, filosofia, letras e sociologia. Diplomata de carreira, cultivou o ensaísmo como sua grande paixão e teve tempo também de editar 22 livros, inclusive »Poesia do Brasil« (1963), uma antologia publicada com o poeta Manuel Bandeira (1886-1968), da qual Merquior se orgulhava e a releu emocionadamente até o último suspiro de vida.
A editora É Realizações, detentora de seu acervo pessoal, acaba de reeditar, enriquecido de posfácios e documentos inéditos, o nono título de uma coleção: »O Argumento Liberal«. É um livro que podemos qualificar de transitório, sem ocasionar uma ruptura com a análise estética tão do gosto do crítico literário. Constitui uma tetralogia, junto de »As Idéias e as Formas« (1981), »A Natureza do Processo« (1982) e »O Elixir do Apocalipse« (1983). A fim de lançar os princípios do programa liberal-social, cujas linhas de contorno se amarrariam com »Liberalism: Old and New« (1991) – testamento intelectual merquioriano –, o volume destoa um pouco dos anteriores. Cumpre a recusa de jargões e chavões e traz novo tom a sua dicção: uma vontade engajada de dialogar com um público mais amplo.
»O Argumento Liberal«, sob a promessa de se preservar de dogmatismos partidários e esquematismos doutrinários, compõe-se de quatro seções. Essas vão de perspectivas gerais, de teor filosófico-político, a quadros nacionais e latino-americanos. Os seus 28 textos (mais da metade deles, aliás, estampados no »Estadão«) mantêm o prazer pelo recurso muitas vezes efêmero da crônica como ferramenta analítica. Ocasião, rememoração ou recensão, as matérias, curtas em sua maioria, se revelam heterogêneas, contudo não desencontradas, em que pese, logo à primeira parte do livro, a cansativa tarefa de encarar a sofisticação do longo capítulo em torno da dialética, num alerta para o seu uso ideológico em sacrifício de seu potencial heurístico.
Vico (1668-1744), Kant (1724-1804), Hegel (1770-1831), Don Pepe (1856-1929), Polanyi (1886-1964), Sraffa (1898-1983), Miguel Reale (1910-2006), Macpherson (1911-1987), Louis Dumont (1911-1998), North (1920-2015), Rawls (1921-2002), Castoriadis (1922-1997), Semprún (1922-2011), Colletti (1924-2001), Lefort (1924-2010), Ernest Gellner (1925-1995) – supervisor de Merquior na London School of Economics –, Kołakowski (1927-2009), Habermas (1929-), Robert Thomas (1938-), R. Debray (1940-), os nossos Rondon (1865-1958), Gilberto Freyre (1900-1987), Sérgio Buarque de Holanda (1902-1982), Bornheim (1929-2002), Schwartzman (1939-) e Roberto Romano (1946-) — eis alguns dos muitos nomes, uns desconhecidos, com que, quase zonzo, o leitor topará.
Na aguda visão de Merquior, uma das bandeiras do social-liberalismo deveria ser a defesa do progresso civilizatório enquanto processo histórico em construção, aberto a possibilidades; portanto, oposto a leis, determinismos, utopias, predições futurológicas, evoluções cíclicas, pessimismos e escapismos nostálgicos.
Outra divisa é a insistente crença na objetividade (não na neutralidade) do conhecimento para se explicar os fenômenos sociais a partir de testificação rigorosa; todavia, sem exclusão dos seus efeitos factuais imprevistos e contingentes (aí está a Covid-19).
De igual maneira, o constitucionalismo nortearia a luta por justiça, com a permanente vigilância das licenciosas leituras de certas e abusivas hermenêuticas em jurisprudência – um dos sintomas do poroso pós-modernismo contracultural, época em que, dos indivíduos às instituições, desmonta-se o raciocínio lógico-formal em favor do voluntarismo irracionalista, com traumática violentação da realidade.
Além de outras reflexões em redor dos conceitos de poder, revolução, sociedade civil, social-democracia, propriedade, e da famosa insinuação de plágio cometido pela professora Marilena Chaui (1940-), quem consultar »O Argumento Liberal« não poderá desperceber o seu miolo, em que o autor teoriza as concepções de legitimidade. Essa categoria consiste na noção-base de aferência e de contemporaneidade de suas premissas. Só assim serão evitados desvirtuamentos de compreensão, pois se há uma constante na obra de Merquior é a inegociável batalha democrática em prol da liberdade; não somente fechada à sacralização neoliberal da economia de mercado e à demonização do Estado, mas voltada a todas as dimensões (psicológica, ética, histórica, política e cultural) para a autorrealização humana, neste país tão iníquo e subjugado pelo patrimonialismo, impossível de se dar ao luxo de abrir mão de qualquer dos nossos direitos sociais.
*Marcos Vasconcelos Filho é ensaísta, professor da Universidade Federal de Alagoas (Ufal), doutor em sociologia pela UFS e autor de »José Guilherme Merquior: da Estética à Política« (2020), entre outros livros
Um comentário:
Documentário sobre Merquior.
https://www.youtube.com/watch?v=B33OrnSZj-4
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