POLÍTICA EXTERNA
A diplomacia ‘repentista’ de Lula
Com a cabeça nos tempos da Guerra Fria, presidente tornou assertiva sua posição à esquerda na economia e na geopolítica
Para um presidente da República inteligente mas pouco instruído que optou por priorizar a política externa, deixando a política interna para seus ministros, os primeiros cinco meses de mandato estão corroendo rapidamente sua autoridade e credibilidade. Com a cabeça nos tempos da polarização da Guerra Fria, Lula tornou assertiva sua posição à esquerda quer na economia quer na geopolítica.
Na economia, por exemplo, criticou a hegemonia do dólar no comércio mundial, na viagem à China. Também defendeu a criação de uma moeda alternativa ao fim de seu encontro em Brasília com 11 presidentes de países sul-americanos em maio. “Por que hoje um país precisa correr atrás de dólar para exportar, quando ele poderia exportar em sua própria moeda, e os bancos centrais certamente poderiam cuidar disso”, indagou Lula na ocasião, não escondendo a pretensão de ser porta-voz dos interesses da região.
No plano político, surpreendeu ao afirmar nos Emirados Árabes Unidos que o presidente ucraniano, Volodimir Zelenski, é tão culpado quanto o presidente russo, Vladimir Putin, pela invasão da Ucrânia pela Rússia. E, depois de dizer que “a construção da guerra foi mais fácil do que será a saída da guerra, porque a decisão da guerra foi tomada por dois países”, defendeu a criação de uma espécie de G20 político com o objetivo de restabelecer a paz naquela região.
Além disso, durante o encontro com os líderes sul-americanos, também surpreendeu ao conceder ao presidente da Venezuela, Nicolás Maduro, uma reunião fora da agenda oficial. Na ocasião, afirmou que esse país – classificado pelos relatórios da OEA como “um regime autocrático e sem garantias de liberdades fundamentais” – estaria sendo alvo de “narrativas, em referência às afirmações de que é uma ditadura”. E criticou Washington por desclassificar a legitimidade de Maduro e impor sanções contra seu regime. No dia seguinte, o presidente do Uruguai, um conservador, e do Chile, um esquerdista, protestaram. Não se pode tapar o sol com a peneira, violação de direitos humanos não é narrativa, alegaram.
Muitas foram as críticas sobre os equívocos e bobagens que Lula vem cometendo e falando em matéria de política externa. Uma das mais felizes foi a do diplomata brasileiro Marcos Azambuja, ex-embaixador na França e na Argentina e ex-secretário-geral do Itamaraty. Em entrevista ao jornal Valor Econômico, ele lembrou, no plano formal, que diplomacia é feita com “palavras medidas milimetricamente, com precisão conceitual e rigor semântico”. E também disse que Lula vem primando pela desatenção à linguagem e pela imprecisão conceitual. “Não pode improvisar linguagem em temas de terreno minado”, como os de política externa. No plano substantivo, Azambuja enfatizou que a falta de “disciplina das ideias” do presidente está levando o Brasil a ter uma política externa “espontânea e improvisada”, o que tende a reduzir a estatura internacional do país.
Como as críticas foram respeitosas e procedentes, e Lula ainda tem três anos e meio de mandato, o mais sensato é que ele as ouça enquanto é tempo. Sem ser pretensioso nem professoral, eu sugeriria a ele que aproveitasse uma manhã de sábado e se concentrasse por pelo menos meia hora na leitura de um discurso pronunciado na tribuna da Câmara em 26 de agosto de 1959 por um deputado que mais tarde seria ministro das Relações Exteriores e da Fazenda. Trata-se de San Tiago Dantas, e sua fala disse respeito a uma reunião de chanceleres sul-americanos da qual participou. Ocorrida no Chile, ela foi convocada para discutir uma política externa dos países da América do Sul capaz de defender a democracia em plena Guerra Fria.
A base do documento aprovado foi a proposta brasileira, apresentada pelo então titular do Itamaraty, ministro Horácio Lafer. A proposta enfatizava a importância do império da lei, da independência dos Poderes e do controle da legalidade dos atos de governo. Defendia eleições livres e classificava como antidemocrática a perpetuação dos governantes no poder. Enfatizava a importância dos direitos individuais, do direito de manifestação do pensamento e da liberdade de imprensa.
O argumento básico do documento era que apenas com base nesses princípios os governos sul-americanos conseguiriam adotar políticas capazes de promover o desenvolvimento econômico, reduzir desigualdades sociais e assegurar a independência dos povos. “Se o florescimento da democracia na comunidade regional depende do desenvolvimento econômico e se este por sua vez depende da cooperação internacional, é claro que entre esta e o fortalecimento da democracia há uma relação de causalidade indisfarçável, à qual cumpre dar adequada expressão jurídica”, concluiu San Tiago, um nome até hoje respeitado por suas posições avançadas em seu tempo, ao justificar e defender a posição brasileira.
Publicado em 1983 pela Câmara na série Perfis Parlamentares, um livro com 695 páginas, esse discurso tem 16 páginas. Mas, se concentrar atenção somente nas páginas 281, 282 e 283, Lula poderá seguir, para seu próprio sucesso político e em benefício do país, o conselho de Azambuja: “Na defesa de valores e de interesses os países precisam usar da sobriedade nas palavras e na moderação no tom; com valores, interesses, sobriedade e moderação costuma-se errar menos”, disse ele, após propor ao presidente que não se comporte mais como um repentista – o cantor nordestino que responde com naturalidade o verso que virá enquanto ainda está cantando o verso anterior. “Na diplomacia, esse é um exercício perigoso”, concluiu.
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