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quinta-feira, 4 de abril de 2024

Do BRIC ao BRICS e ao BRICS+: the cow went to the swamp… - Paulo Roberto de Almeida

Entre parcerias e alianças: a camisa de força do PT sobre a política externa e a diplomacia profissional 

Paulo Roberto de Almeida 

O BRIC era uma exploração de oportunidades econômicas. O BRICS virou uma contraposição puramente negativa ao G7. O BRICS+ representa uma gaiola de ferro autoritária que de fato enclausurou a diplomacia profissional brasileira na agenda de duas grandes autocracias. Querem saber como isso se deu?

Nas relações internacionais em geral, em especial no plano do comércio exterior, todo mundo é “parceiro” de todo mundo. As aspas da parceria se explicam por uma razão muito prosaica: do ponto de vista do produtor e vendedor de seus produtos, ou serviços, não cabe fazer distinção entre consumidores domésticos ou externos, entre o mercado nacional e os mercados globais, pois que todos os consumidores podem ser vistos, basicamente, como clientes pertencentes a uma coisa meio abstrata chamada “demanda global”. Tudo o que sai de uma fazenda, de uma fábrica, de um escritório de produtos intangíveis ou de serviços, quaisquer que sejam a natureza, o formato e as peculiaridades próprias de cada bem material ou imaterial, é para ser comprado e remunerado, ou seja, objeto de um pagamento em contrapartida. O capitalista (agrário ou urbano), o comerciante, o intermediário financeiro, não estão ligando minimamente se o consumidor final é branco ou preto, ocidental ou oriental, católico ou muçulmano, ou qualquer outra coisa, se por exemplo o destinatário final é simpático ou antipático ao seu governo, ou sua cultura, o que lhesinteressa é conquistar clientes, e assim ter o seu investimento produtivo, suas horas de trabalho, recompensados.

O comércio internacional é quase tão universal quanto o futebol, ou uma música especialmente atrativa e cativante. Montesquieu falava do doux commerce, o comércio que apazigua os costumes e coloca todo mundo no mesmo grau de satisfação, o produtor e o consumidor. Daí a facilidade em se ter parcerias nos quatro cantos do planeta. Num determinado momento, na belle époque por exemplo, se acreditou que a imbricação dos interesses econômicos, basicamente comerciais e financeiros, de todas as nações importantes do mundo serviria como um freio para novas grandes guerras destruidoras, como tinham sido as guerras napoleônicas, ao cabo das quais a Europa conheceu – com algumas exceções, como as revoluções políticas nacionais e a primeira guerra da Crimeia – um século de paz, antes de se ver novamente engolfada num conflito que vitimou dezenas de milhões, nos campos de batalha da Europa ocidental e oriental. 

Uma discriminação nefasta entre vencedores e perdedoresnas negociações de Paris, alimentou ódios e acrimônia nos dois lados, o que terminou por alimentar os revisionistas expansionistas dos anos 1930, que lançaram a Europa, depois o mundo, num novo grande conflito global, algo, aliás, ironicamente previsto por Keynes, no seu libelo acusatório escrito ainda durante a preparação do tratado de Versalhes, As Consequências Econômicas da Paz (1919). Ele foi profeta sem pretender, pois as duras disposições dessa paz lançaram a Alemanha numa nova aventura expansionista, com outras dezenas de milhões de vítimas, sem descurar os seis milhões de judeus do Holocausto.

A nova ordem global onusiana trouxe então várias décadas de paz ao mundo – ou talvez as armas atômicas o tenham feito –, com uma expansão extraordinária do comércio internacional, convertendo todos os países em parceiros unsdos outros, mesmo os potenciais adversários da (primeira) Guerra Fria. Existe, no entanto, uma diferença, e ela é substancial, entre parceiros e aliados; no primeiro caso, todos podem ser parceiros prosaicamente interessados em vender tudo o que lhes permitam vender suas vantagens comparativas e em adquirir tudo aquilo de que carecem seus agentes econômicos internos. No segundo caso, aos aliados quase tudo é permitido, ao passo que aos potenciais adversários se lhes subtraem os produtos sensíveis que poderiam servir de vantagem em algum confronto eventual. 

A cooperação entre parceiros pode ser ampla e irrestrita, uma vez que se trata de vantagens imediatas, mais conformes aos interesses de agentes privados do que propriamente às precauções dos governosAlianças especiais entre alguns parceiros depende, em última instância, de uma mesma filosofia de governo, de um mesmo espírito quanto aos objetivos gerais de um país, de sua Weltanschauung, diriam os alemães, sua visão do mundo. A OTAN surgiu dessa visão de que caberia defender um modo de vida – identificado a mercados livres e à democracia e direitos humanos – contra um projeto de sociedade claramente fundado sobre o controle totalitário da população por um Estado intrusivo, como aliás claramente descrito no Big Brother orwelliano de 1984

A impressão que se tem, ao contemplar a Weltanschauung lulopetista deste retorno dos companheiros ao poder no Brasil, é a de que eles confundem parceiros e aliados, pois que se dispõem a conviver cooperativamente com todos os países, independentemente daquilo que eles representam como filosofia de vida ou como objetivos de nações. Parceiros todos podem sê-lo, pois que não há como ou por que discriminar ofertantes e demandantes no grande mercado global em que o mundo pós (primeira) Guerra Fria se converteu, no bojo do chamado processo de globalização (com seus altos e baixos, mas caminhando ainda assim). 

Daí a ser “parceiro” num outro tipo de projeto, que implica uma transformação substancial do nosso modo de ser e de nos organizarmos, como sociedade livre, democrática e respeitadora (com as ressalvas que cabem) dos direitos humanos de todos os indivíduos, vai uma grande distância que não se sabe se ela está sendo aquilatada por aqueles que nos governam atualmente. Já foi anunciado, diversas vezes, pelos proponentes de uma “nova ordem global”, que esta deveria ser multipolar, mais democrática, mais justa e até mais humana, do que a velha ordem dominando pelos velhos colonialistas e imperialistas do passado, que moldaram a ordem atual ao final da Segunda Guerra Mundial, mas que relutam em aceitar as mudanças requeridas pela redistribuição do poder econômico no mundo. 

Esse é, mais ou menos, o argumento pelo qual alguns revisionistas da atual ordem global querem justificar a necessidade de se discutir uma “nova governança mundial”, por acaso um dos objetivos para o G20 sob a presente coordenação do governo brasileiro. Cabe reparar naqueles que mais enfaticamente vêm defendendo essa tal de “multipolaridade” – sem dizer o que isso significa exatamente –, quem mais invoca a necessidade dessa “nova ordem global’ – sem jamais especificar em que ela seria diferente, melhor, ou mais humana do que a atual –, para começar a questionar, finalmente, com quais parceiros o atual governo brasileiro pensa trabalhar mais estreitamente, até convertê-los em possíveis aliados de uma causa e de um objetivo nunca expressos claramente ou a quais finalidades serviriam.

Dando prosaicamente nomes aos “bois”, como recomendam os grandes estrategistas, verifica-se que os parceiros por acaso identificados com tais propósitos possuem nomes e endereços bem conhecidos: são eles a Rússia, notória violadora da Carta da ONU e dos principais tratados humanitários, a China, principal parceira comercial do Brasil e provedora essencial de nossos necessários saldos comerciais, e a Venezuela, aqui ao lado, um vizinho que parece mirar as estradas brasileiras para realizar o projeto do atual ditador de invadir e tomar território da vizinha Guiana (parte do qual já foi do Brasil no passado). São parceiros claramente problemáticos, exibindo contenciosos próprios,que não têm nada a ver com os interesses brasileiros no curto, no médio ou no longo prazo. Por vezes se tem a impressão de que o governo atual pretende convertê-los de parceiros emaliados políticos. Seria não só um equívoco diplomático, mas um grande erro estratégico, no bojo desta segunda Guerra Fria. 

Paulo Roberto de Almeida 

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