terça-feira, 25 de junho de 2024

O Brasil é um deserto de homens e ideias’- Rubens Barbosa (O Estado de S. Paulo)

 

Opinião |

‘O Brasil é um deserto de homens e ideias’

As reuniões do G-20, da COP-30 e do Brics talvez sejam as últimas oportunidades de o País firmar sua voz na defesa de seus interesses concretos


Por Rubens Barbosa

O Estado de S. Paulo, 25/06/2024 


O comentário sobre o Brasil de Oswaldo Aranha, feito há cem anos, continua atual. A falta de liderança no governo, no Congresso, no meio empresarial e na sociedade civil em geral torna difícil pensar um Brasil acima de interesses partidários, particulares e setoriais. A divisão política interna e a polarização de opiniões impedem que se discuta e, muito menos, que se forme consenso sobre um projeto nacional ou sobre a relevância do Brasil no mundo, suas prioridades e vulnerabilidades, com uma visão estratégica de médio e longo prazo.

A tarefa ainda é mais complicada não só pelas dificuldades internas, mas sobretudo porque o mundo passa por rápidas transformações com a emergência de uma nova ordem internacional. Na economia global, as regras são colocadas de lado e prevalecem o poder e interesses dos países individualmente considerados, com ênfase no protecionismo e em medidas restritivas unilaterais que desrespeitam as regras vigentes e chegam a ser utilizadas como armas na competição entre Estados.

Dentro desse quadro difícil, não se vê claramente a reação do Brasil. No discurso, o atual governo definiu corretamente suas prioridades: desenvolvimento econômico com redução da pobreza, estabilidade econômica com redução da taxa de juro e da inflação, além de uma nova política industrial. Externamente, voltar a ter uma voz no mundo e nas organizações multilaterais, dar prioridade ao meio ambiente, à mudança de clima e a liderar a América do Sul.

O problema é que, depois de um ano e meio de governo, tanto interna quanto externamente, as prioridades do governo não estão sendo concretizadas ou apenas parcialmente. A disfuncionalidade do governo e a falta de rumo e de objetivos claros fazem com que as reformas estruturais na economia, na área social e na educação e na saúde não estejam sendo alcançadas. A situação se complica ainda mais na política externa e de defesa e segurança nacional pela desorganização da ordem internacional com duas guerras (na Europa e em Gaza) e uma crescente competição e confrontação entre EUA e China, com efeitos políticos, econômicos e comerciais para todos os países. Apesar de ser uma potência média global, por não ter excedente de poder, não há espaço para o Brasil influir, com peso próprio, no curso das confrontações bélicas na Ucrânia e em Gaza.

Dada a atual configuração geopolítica e geoeconômica, o Brasil, país continental, com mais de 210 milhões de habitantes, oitava economia do mundo, não pode ficar refém de decisões ideológicas e de interesses partidários. Embora pertencendo ao Ocidente, por seus valores e princípios, o Brasil está cada vez mais dependente da Ásia, para onde vão 50% das exportações e 37% dos produtos agrícolas. Na defesa dos interesses nacionais, o governo atual não tem alternativa, a não ser adotar uma posição de equidistância na crescente confrontação entre o Ocidente e o antiocidente, liderado por China e Rússia e fortalecido com a ampliação do Brics. Neutralidade ativa, aliás, como a Índia está fazendo, ao jogar nos diversos tabuleiros com sua voz independente na defesa de seus interesses, mantendo boas relações com todos.

O Brasil precisa sair de uma posição defensiva, principista, e passar a defender explicitamente seus interesses. Voz poderosa nas questões ambientais, de segurança alimentar e de transição energética, o País já deveria ter questionado as restrições da União Europeia no tocante ao desmatamento e as exportações de produtos agrícolas, e às emissões de gás de efeito estufa quanto a produtos industriais (CBAM). A exemplo do que todos os países estão fazendo, devemos continuar a apoiar as medidas de defesa de meio ambiente e redução das emissões de gás carbônico, mas não devemos perder de vista a prioridade para o desenvolvimento econômico e a redução da pobreza, que virão com o aproveitamento de nossas riquezas na biodiversidade, de minerais críticos e raros, com valor agregado para favorecer a indústria, e da energia fóssil na Margem Equatorial, como estão fazendo a França, na Guiana Francesa, e a Guiana. A liderança da integração regional na América do Sul começa a ganhar forma na questão ambiental na Amazônia e nos programas de integração física no Norte (rodovias, ferrovias e hidrovias) e no Sul (rodovias), abrindo caminho para os produtos brasileiros chegarem à Ásia pelos portos do Pacífico.

As reuniões do G-20, da COP-30 e do Brics talvez sejam as últimas oportunidades de o Brasil firmar sua voz na defesa de seus interesses concretos e não entrar em um jogo político, sem ver suas propostas aceitas.

Recentemente, como contribuição a essa discussão, o Instituto Federalista e o Sagres divulgaram o documento Projeto de Nação – O Brasil em 2035. E atualmente encontra-se em fase final de elaboração, no Centro de Defesa e Segurança Nacional (Cedesen), documento sobre o lugar do Brasil no mundo, com o objetivo de promover uma ampla discussão sobre as perspectivas do Brasil, não limitada a apenas um pequeno grupo de economistas e acadêmicos. O Executivo, o Congresso e a sociedade civil têm uma grande responsabilidade de, por um momento, colocar interesses menores de lado e pensar nos rumos do País, hoje à deriva, com visão de médio e longo prazo.

 

PRESIDENTE DO INSTITUTO DE RELAÇÕES INTERNACIONAIS E COMÉRCIO EXTERIOR (IRICE), É MEMBRO DA ACADEMIA PAULISTA DE LETRAS

 

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Comentários são sempre bem-vindos, desde que se refiram ao objeto mesmo da postagem, de preferência identificados. Propagandas ou mensagens agressivas serão sumariamente eliminadas. Outras questões podem ser encaminhadas através de meu site (www.pralmeida.org). Formule seus comentários em linguagem concisa, objetiva, em um Português aceitável para os padrões da língua coloquial.
A confirmação manual dos comentários é necessária, tendo em vista o grande número de junks e spams recebidos.