Agradeço ao colega de academia e de lista no Facebook Alexandre Hage, a transcrição desta entrevista, que não tenho certeza de ter lido na época (provavelmente não, pois eu me encontrava no exterior, intensamente ocupado com bebê recente, e uma tese renascida, e não tinha acesso a muito material do Brasil, numa época em que internet ainda não existia).
Como foi ele quem a postou, na lista "
Comunidade de Internacionalistas", e reincide no "crime" dois anos depois de uma postagem inicial, cabe começar pela sua introdução necessária, como abaixo.
Paulo Roberto de Almeida
Alexandre HageOctober 12 at 12:14am
Esta postagem não é de RI, conforme sugere as regras da comunidade. Mas se trata de uma entrevista em que o autor versa a respeito daquilo que na qual se produz os estudos de relações internacionais, a universidade e a esfera da cultura. Por isso, a conveniência de exibi-la aqui.
JOSE GUILHERME MERQUIOR: MAIS UMA VEZ Mais uma vez porque eu havia posto aqui esta providencial entrevista do diplomata, feita em 1981, há uns dois anos. Muitas pessoas solicitaram minha amizade virtual (algumas devem ter me excluído, não as culpo). Por isso, a conveniência de reapresenta-la aos interessados.
Em tempo de grande dificuldade com as instituições que deveriam chamar para si a responsabilidade sobre uma ideia de país acredito que é crível botar aqui mais uma vez o que pensava Merquior sobre uma série de coisas: o papel da universidade que já estava em situação complicada em 1981, como ele fez questão de comentar; certo desprezo pela cultura que hoje se denomina elitista; por outro lado o apego às vezes demagógico e incauto a posturas desqualificadas de cultura que boa parte dos intelectuais endossa. Tudo isso que estava em gestação há trinta anos hoje já é o pantagruel de nossos tempos.
http://perspectivaonline.com.br/2015/06/03/merquior/ Entrevista com José Guilherme Merquior em 1981
perspectivaonline.com.br
Entrevista de José Guilherme Merquior, concedida à revista VEJA em 1981. Original aqui. Quarta-feira...
Entrevista de José Guilherme Merquior, concedida à revista VEJA em 1981.
Quarta-feira passada, jantando com
autoridades brasileiras na Granja do Ipê, residência oficial do chefe do
Gabinete Civil da Presidência da República, o ex-secretário do Estado
americano Henry Kissinger foi saudado pelo ministro João Leitão de Abreu
num discurso encastoado com finas citações de Platão e Aristóteles.
Como Platão e Aristóteles não costumam freqüentar banquetes em Brasília,
sua presença foi logo identificada como sinal da chegada ao governo de
José Guilherme Merquior – diplomata de carreira, crítico literário e
ensaísta com treze livros publicados que, em agosto, Leitão importou da
embaixada brasileira em Montevidéu para compor sua equipe no Palácio do
Planalto. Ali, uma das incumbências de Merquior é melhorar os discursos
do governo.
O conselheiro Merquior, carioca de 40
anos, é um personagem um tanto exótico na paisagem cultural brasileira –
e isso não só por ter passado boa parte de sua carreira em postos
tranqüilos e refinados, ideais para buquineiros, na Europa. Sua maior
singularidade é ter um temperamento polêmico numa terra em que a crítica
literária só costuma ser implacável com best-sellers estrangeiros. Seu
novo livro, “As Idéias e as Formas”, uma coleção dos artigos que
escreveu para jornais nos últimos três anos, lançado este mês pela
Editora Nova Fronteira, é um bom exemplo: lança farpas contra marxistas e
liberais, a psicanálise, modismos culturais e os costumes da
intelectualidade brasileira – que, a seu ver, está formando uma
república das letras de vocação despótica.
Ainda ficaram fora do livro dois
momentos extremos de sua contundência: a crítica em que acusa a
professora paulista Marilena Chauí de plagiar o filósofo francês Claude
Lefort e um ruidoso debate, pelos jornais, com o jornalista Paulo
Francis, cujo romance “Cabeça de Papel” Merquior anunciou como treino
para uma futura autobiografia intitulada “Cabeça de Vento”. Outro bom
exemplo da desenvoltura com que Merquior fala de seus temas preferidos é
esta entrevista concedida a VEJA na semana passada.
VEJA – Há um ano, o crítico
Eduardo Portella deixou o Ministério da Educação convencido de que este
governo não é lugar para intelectuais. O senhor acha que é?
MERQUIOR – Eu acho é que esse assunto
merece ser tratado de forma desmitificadora. Cada vez que é discutido de
maneira extremista, unilateralizada, o resultado é que se cria um mito.
Na França, por exemplo, Régis Debray escreveu há dois anos um livro
dizendo que intelectual, quando serve ao poder, é sempre como áulico ou
absolutista. Mas veio o governo socialista de François Mitterrand e
Debray está no Palácio Eliseu. A meu ver, uma atitude intelectualmente
séria é não tratar com categorias maniqueístas: não se pode sacralizar a
pureza do intelectual nem demonizar o poder do Estado, que não é um mal
em si.
VEJA – Não há no Brasil uma desconfiança recíproca entre o Estado e os intelectuais?
MERQUIOR – É impressionante o número de
intelectuais brasileiros que está dentro do Estado e faz de conta que
não vê. O que está dando pretexto a tanta retórica ideológica sobre essa
questão é apenas uma concepção vulgar de Estado, que só vê seu ramo
executivo. Ora, essa não é uma concepção correta, nem jurídica, nem
historicamente, nem para o Direito, nem para as ciências sociais. O
Estado não é só o governo. Fica muito engraçado ver tantos intelectuais
encastelados em posições universitárias, comportando-se como vestais
críticas do poder do Estado. Estão fazendo tudo isso dentro do Estado e
não sabem.
VEJA – O senhor antipatiza com a sociedade civil?
MERQUIOR – Antipatizo com o mito da
sociedade civil, que me parece ter duas origens. Uma, brota da esquerda.
Até 1970, certamente durante todos os anos 60. O pensamento marxista ou
marxistizante na América Latina, preso ao conceito leninista de
imperialismo, que era uma espécie de projeção da luta de classes para a
política internacional, fez o resgate ideológico do Estado.
VEJA – Resgate ideológico?
MERQUIOR – Isso mesmo. Pela tradição
marxista, o Estado sempre foi sinônimo do mal, de instrumento de
opressão. Mas, de repente, através da transposição de que eu falava, os
marxistas, tomados de fervor nacionalista, passaram a ver o Estado como
denominador comum das classes contra a opressão internacional. Isso foi
na era leninista. Agora, os marxistas brasileiros estão em plena era de
devoção ao pensador italiano Antonio Gramsci, o que num certo sentido
implica a volta às matrizes marxistas que sempre viram no Estado um
instrumento de opressão. Essa é a origem esquerdista do mito da
sociedade civil.
VEJA – Existe a origem direitista?
MERQUIOR – Claro. Os neoliberais
brasileiros – que, aliás, andam precisando de correção semântica, pois
na verdade são paleoliberais – juntaram-se à esquerda nessa festa de
rejeição do Estado. Porque num país como o nosso o Estado é, ou pelo
menos deve ser, um promotor de progresso, do equilíbrio social. Mas os
paleoliberais rejeitam essa função do Estado e por isso se juntaram aos
gramscianos na criação do mito da sociedade civil, chamada a resolver os
problemas brasileiros sem a interferência do Estado ou contra ela. Isso
é uma bobagem.
VEJA – Mas rendeu muito debate.
MERQUIOR – Uma das características
defeituosas do nosso debate intelectual – quando ele ocorre, pois a
outra característica é que ele é muito subdesenvolvido e raramente
ocorre – é a tendência à imediata ideologização. Os problemas são sempre
apresentados de maneira abstrata, principista e apriorista. Portanto, o
coeficiente de análise empírica, de exame concreto de realidades
verificáveis, é muito pequeno. O inglês Oscar Wilde dizia que os patrões
falam de coisas e os criados de pessoas. No debate político e
intelectual brasileiro, há muito pouca gente falando de coisas ou
pessoas. Fala-se de noções abstratas.
VEJA – Com que resultado?
MERQUIOR – O resultado, em outras
palavras, é que se restaurou no Brasil o estilo escolástico de debate.
Uma das melhores definições de escolástica como estilo retórico diz que
ela era uma maneira precisa de falar de coisas vagas. Para ver como isso
funciona na prática, basta acompanhar a discussão sobre democracia:
quase ninguém discute os mecanismos reais de representação. E o
resultado é que o debate, político e intelectual, ficou muito chato no
Brasil, pois a discussão sobre coisas concretas é sempre muito mais
remuneradora que a discussão sobre princípios.
VEJA – Qual seria o remédio?
MERQUIOR – Pessoalmente, há muitos anos
eu me espanto com a irresponsabilidade de alguns intelectuais que tendem
a minimizar, em nome de uma vesga modernice, o problema do ensino
básico, da alfabetização, de dotar as pessoas com o instrumental mínimo
do pensamento articulado, que é a capacidade de falar e escrever
corretamente. Fala-se mal, escreve-se mal, pensa-se mal no Brasil.
VEJA – Quem escreve mal?
MERQUIOR – Os cientistas sociais, os críticos literários, os políticos e, enfim, mas não por último, os escritores.
VEJA – São problemas de estilo?
MERQUIOR – Há problemas de estilo, sim.
No caso dos cientistas sociais, por exemplo, existe o problema do
jargão, uma certa resistência a escrever em português. Mas, antes disso,
na base disso, há uma coisa pior: a dificuldade sintática, a penúria
vocabular, a insuficiência gramatical. Aqui estamos falando de escrever
errado mesmo.
VEJA – Escrever mal é pecado grave para um cientista social?
MERQUIOR – Até o fim dos anos 40, os
cientistas sociais que tinham importância e prestígio no Brasil
escreviam admiravelmente bem – gente como Sérgio Buarque de Hollanda e
Gilberto Freyre. Eles renovaram o estilo literário das ciências sociais
brasileiras, que estava ainda muito preso ao modelo de Euclides da
Cunha. Agora, o estilo oficial dos cientistas sociais é o das teses
universitárias.
VEJA – O senhor tem má vontade para com teses?
MERQUIOR – Teses não são necessariamente
feitas para ser publicadas. Na Inglaterra, que tem excelentes costumes
acadêmicos, encontram-se intelectuais notáveis, reputadíssimos, que aos
60 anos, com uma carreira acadêmica plenamente realizada, têm dois ou
três livros publicados. Mas são livros de verdade
VEJA – Cite livros malfeitos.
MERQUIOR – Eu lembro “A Ideologia da
Cultura Brasileira”, do professor Carlos Guilherme Motta, como um livro
bem ruim. Não por ser propriamente mal escrito. Ele não tem distinção
literária, mas também não é especialmente mal escrito. Ele é mal
pensado, com uma arbitrariedade muito grande. Por exemplo, ao analisar o
Instituto Superior de Estudos Brasileiros (ISEB). Naquela fase, começo
dos anos 60, não se pode negar que o ISEB fosse um grupo de intelectuais
de esquerda pensando o Brasil com um certo grau de sofisticação
filosófica, com leituras existencialistas, orteguianas. Carlos Guilherme
Motta tratou esse movimento considerando apenas um artigo para jornal
de Hélio Jaguaribe. O livro é bairrista. Tudo gira em torno da
Universidade de São Paulo.
VEJA – Outro exemplo.
MERQUIOR – Cito um livro muito rico em
informações, único do gênero, de consulta obrigatória, que eu mesmo
tenho usado freqüentemente: “A História da Inteligência Brasileira”, de
Wilson Martins. É muito mal estruturado. O método de organizar autores
por ordem cronológica é um equívoco. O importante é a tendência
literária, não a cronologia.
VEJA – Na sua opinião, quem escreve bem no Brasil?
MERQUIOR – O memorialista Pedro Nava
escreve magnificamente. Os poetas Armando Freitas Filho e Mauro Gama,
também. Há uma recuperação dos padrões de elegância na ensaística mais
recente, em cientistas sociais, como Bolívar Lamounier. Estou citando, é
claro, as novidades.
VEJA – E entre os escritores de vanguarda, algum nome merece destaque?
MERQUIOR – A vanguarda brasileira anda
muito quieta, tão quieta que não a estou notando, ou se dissolveu – e
não sou eu quem vai botar luto por isso. A última vanguarda fecunda no
Brasil foi a de 1922, a geração modernista.
VEJA – Não está acontecendo nada de novo na cultura brasileira?
MERQUIOR – Literariamente, o único
fenômeno que noto é a febre do memorialismo, uma tendência tão forte que
já chegou até aos jovens, como o best-seller Fernando Gabeira. Gabeira,
aliás, escreve bem. Pelo menos, escreve com graça, que é uma virtude
que se exilou da literatura brasileira. Só li dele o primeiro livro, “O
Que É Isso, Companheiro?”, mas chego a me perguntar se uma parte do
sucesso que vem fazendo não é simplesmente porque escreve com graça.
VEJA – Como é o intelectual brasileiro?
MERQUIOR – No Brasil, há uma
intelectualidade, mas não uma intelligentsia. A diferença entre uma
coisa e outra é a mesma que distingue o gênero da espécie. A
intelligentsia é um tipo de intelectualidade, um tipo cujo modelo
histórico foram os intelectuais da Europa oriental no século passado,
sobretudo no império czarista. O que a caracteriza é a separação em que
os intelectuais vivem em relação à sociedade. São párias, até pela
situação de sua renda e seu status. Os intelectuais brasileiros mais
radicais não são párias de nossa sociedade, nem pela renda nem pelo
status. Se disserem que são, eu respondo com uma gargalhada. Eles se
beneficiaram do progresso econômico, subiram socialmente nos últimos
anos como o resto da classe média. Por isso, têm uma retórica muito
radical. Fingem que são uma intelligentsia. Mas, na prática, se
comportam como um setor do salariado, têm impulsos corporativistas.
VEJA – O senhor quer dizer que os intelectuais são muito ciosos de seus interesses de classe?
MERQUIOR – Basta ver a prática da
excomunhão em meios universitários, como se cassam mandatos intelectuais
no Brasil. O AI-5 intelectual nunca foi revogado. É a classe se
organizando em corporação. É típica a maneira como se reage no país à
polêmica. Quando um intelectual no Brasil se sente incomodado por um
crítico, ele não contra-ataca as idéias do crítico, ataca o próprio
crítico. Foi o que aconteceu comigo, na polêmica com a professora
Marilena Lefort…
VEJA – Quem?
MERQUIOR – Aliás, Marilena Chauí, que em
seu último livro psicografou trechos inteiros do francês Claude Lefort.
Quando eu denunciei isso em artigo, as pessoas que vieram em defesa da
Marilena procuraram desqualificar minha pessoa, a pretexto de que eu
trabalho para o governo. Eu me refiro a Maria Sylvia Carvalho Franco,
conhecida patrulheira ideológica paulista. Há exceções, felizmente. Eu
também critiquei Carlos Nelson Coutinho, porque não me convenceu sua
tentativa de provar que leninismo e democracia são compatíveis. Ele
entendeu que se tratava de uma discussão de idéias. Respondeu com seus
contra-argumentos marxistas. Quando isso acontece, há polêmica. Do
contrário, o que se tem é um bom exemplo do clero intelectual agindo
como seita. É uma das características de toda seita é o puritanismo, a
intransigência no plano da conduta e o dogmatismo.
VEJA – Aonde esse comportamento pode levar?
MERQUIOR – Está levando a uma
grafocracia. Criticam-se muito as várias cracias, mas não a grafocracia,
termo cunhado pelo marxista austríaco Karl Renner, depois da II Guerra,
para designar essa vocação moderna do intelectual para exercer o poder
através do que ensina ou escreve. O mal da grafocracia é que, com ela, o
humanismo deixa de ser um movimento intelectual para se transformar
numa ideologia, no sentido marxista da palavra, isto é, um sistema que
reflete os interesses de uma camada intelectual que se comporta como
clero.
VEJA – O filósofo Claude
Lévi-Strauss, depois de ensinar na USP, escreveu que no Brasil todos
querem ser eruditos, mas não têm a vocação nem o mérito. O senhor se
considera um erudito?
MERQUIOR – Como categoria neutra, sem dar
à palavra conotações de bem ou mal, admito que em alguns trabalhos
realizei um certo esforço de erudição. Mas a minha preocupação com a
erudição é instrumental, quero equipar-me com ela para tratar de
determinados problemas. Mas essa conversa do erudito que leu o último
livro é uma bobagem. Ninguém leu o último livro. Essa época acabou na
Renascença, quando as grandes bibliotecas tinham 500 volumes. A minha
tem 7 000 volumes e não tem o último livro. Por outro lado, a erudição
também vai ganhando um ar pejorativo serve para descartar certas idéias,
um certo tipo de pensamento a pretexto de que “são coisas de erudito”. A
insinuação é de que existe outro saber, por graça infusa, que dispensa
seus iluminados do trabalho de serem eruditos. Basta estar na posição
“correta”. Eu gostaria de saber quem dá esse atestado de dispensa.
VEJA – Entre a esquerda e a direita, onde é que o senhor fica?
MERQUIOR – Alguém definiu admiravelmente
bem as pessoas de minha posição ideológica. Foi o polonês Leszek
Kolakowski, num texto que é uma pérola –
“Como ser conservador, liberal e socialista”.
No fundo da visão conservadora, existe um elemento muito positivo, que
consiste em acreditar que nem todos os males humanos têm causas sociais,
sendo portanto elimináveis através de mudanças sociais. Do lado
liberal, a idéia básica, também verdadeira, é que a finalidade do Estado
é dar segurança, sem esclerosar a sociedade com um sistema demasiado
refratário à iniciativa individual. Enfim, o socialismo tem de válida a
idéia de que o pessimismo antropológico, por trás da posição
conservadora, não deve ter o poder absolutista de evitar as reformas
sociais citadas pelo reformismo esclarecido.
VEJA – Trocando em miúdos…
MERQUIOR – …Eu me sinto um pouco um
iluminista. Tenho confiança no progresso, acredito no progresso pela
racionalidade. Essa crença já foi característica dos socialistas, mas
hoje os socialistas mais sofisticados abandonaram seu compromisso
histórico com o evolucionismo, direita e esquerda ficaram muito
parecidas nesse aspecto: o repúdio aos tempos modernos. Adorno, que se
proclamava neomarxista, chamou nossa época de satânica. No século XVIII,
quem acreditava no progresso eram os filósofos. Atualmente, intelectual
que acredita no progresso é coisa rara. Hoje em dia, quem acredita no
progresso, felizmente, são as massas.