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quinta-feira, 29 de agosto de 2013

Martin-Luther King: Americano, nao Afro-Americano - Demetrio Magnoli

E ele não disse 'África' 
Demétrio Magnoli
O Estado de S. Paulo, 29/08/2013

Demétrio Magnoli é sociólogo e doutor em Geografia Humana pela USP.

Meio século atrás, à sombra do Memorial de Lincoln, em Washington, Martin Luther King pronunciou 1.667 palavras. Nenhuma delas era "África" - ou "africanos", ou mesmo "afro-americanos". Nessa ausência se encontra a prova da atualidade do discurso mais célebre do século 20. Deveríamos ouvi-lo novamente, prestando atenção no contraste entre aquela linguagem e a utilizada hoje pelos arautos das políticas de raça.
King aludiu à Proclamação de Emancipação, de Abraham Lincoln, "um grande farol de esperança para milhões de negros escravos", mencionou as "algemas da segregação" e as "correntes da discriminação" que, cem anos depois, ainda aleijavam "a vida dos negros", e falou sobre a "solitária ilha de pobreza, em meio a um vasto oceano de prosperidade material", na qual viviam os negros. No discurso de agosto de 1963, os negros eram definidos por referências situacionais (escravidão, segregação, pobreza), não por uma essência identitária (raça, etnia, cultura ou origem).
Americanos, não "afro-americanos" - isso são os negros, na linguagem de King. Os negros, que experimentam "o exílio em sua própria terra", marcharam à "capital de nossa nação" para cobrar uma promessa de igualdade escrita "pelos arquitetos de nossa República" na Declaração de Independência e na Constituição. A luta para resgatar aquela "nota promissória" ergueria "nossa nação das areias movediças da injustiça racial para a sólida rocha da fraternidade". Ela não deveria "conduzir-nos a desconfiar de todas as pessoas brancas", pois "muitos de nossos irmãos brancos (...) compreenderam que o destino deles está preso ao nosso" e que "a liberdade deles está inextricavelmente ligada à nossa".
A linguagem de King não desafiava apenas as leis de segregação, seu alvo imediato, mas uma narrativa sobre a origem dos Estados Unidos, seu alvo distante. Tal narrativa, uma versão da ideia do melting pot, se coagulara no final do século 19 como reação à libertação dos escravos e como chave lógica para a segregação racial oficial. Ela descrevia os Estados Unidos como uma nação de colonos brancos rodeada por minorias raciais (indígenas, asiáticos e negros africanos). No discurso que completa 50 anos, King contestava todo esse cortejo de noções identitárias emanadas do pensamento racial. Não, dizia, a nação é outra coisa - é aquilo que está escrito nos textos fundadores!
A contestação de King separava-o de uma longa tradição da política negra nos Estados Unidos. W. E. B. Du Bois entalhara o mito da raça na fachada da venerável NAACP, a principal organização negra americana. Ele não acreditava no valor explicativo de "grosseiras diferenças físicas de cor, cabelos e ossos", mas invocava "forças sutis" que "dividiram os seres humanos em raças claramente definidas aos olhos do historiador e do sociólogo".
"Nós", dizia Du Bois, "somos americanos por nascimento e cidadania" e "em virtude de nossos ideais políticos, nossa linguagem, nossa religião". Contudo, acrescentava, "nosso americanismo não vai além disso", pois, "a partir desse ponto, somos negros, membros de uma raça histórica que se encontra adormecida desde a aurora da criação, mas começa a acordar nas florestas escuras de sua pátria africana". Afro-americanos: o termo, cunhado muito depois na bigorna do multiculturalismo, foi concebido no início do século 20 como um fruto do pensamento racial. A atualidade do discurso de King encontra-se precisamente na sua ruptura com a visão de Du Bois, que era um reflexo da narrativa racista sobre a nação branca.
Du Bois, revisitado pelo multiculturalismo, não o universalismo de King, é a fonte das políticas oficiais de raça no Brasil. Um documento de "orientações curriculares" para a "educação étnico-racial" da Secretaria Municipal de Educação de São Paulo, datado de 2008, sintetiza as diretrizes que, a partir do MEC, disseminam entre os jovens estudantes a noção de divisão da humanidade em raças. O texto deplora a vasta diversidade de cores utilizada pelos indivíduos em declarações censitárias, que contribuiria "para diminuir o potencial político da população afro-brasileira".
"A pluralidade de cores no país diz quem é o povo brasileiro, mas não sua identidade étnico-racial", segundo os sábios da secretaria. A solução para a carência identitária residiria numa especial reinterpretação das palavras dos declarantes. Operando como "um agente social de reconhecimento eficaz do outro", transformando-se "em alguém mais ativo no processo de identificação", o recenseador produziria em tabelas e gráficos a "população afro-brasileira" que não emerge das autodeclarações. Em termos diretos, trata-se de manufaturar uma fraude censitária com a finalidade de gerar as tais "raças claramente definidas aos olhos do historiador e do sociólogo" de que falava Du Bois. Destinado a professores, o texto veiculava a mensagem inequívoca de que na sala de aula a linguagem da raça é um imperativo absoluto, em nome do qual se deve ignorar a informação censitária factual.
"Eu tenho o sonho de que meus quatro pequenos filhos viverão, um dia, numa nação onde não serão julgados pela cor da sua pele, mas pelo teor de seu caráter." A sentença nuclear do discurso de King não solicitava o reconhecimento de identidades étnicas ou de direitos raciais. Ela exigia que os Estados Unidos aplicassem o princípio, contido nos seus documentos fundadores, segundo o qual "todos os seres humanos são criados iguais". A igualdade entre indivíduos livres de todas as cores, não um acordo político entre coletividades raciais distintas, era a reivindicação do 28 de agosto de 1963. Eis por que aquele dia permanece tão atual, lá e aqui.

Eu também tenho um sonho. Sonho com o dia em que milhões de exemplares do discurso de Martin Luther King sejam distribuídos, clandestinamente, como material subversivo nas escolas brasileiras.

sexta-feira, 26 de abril de 2013

Republica Federativa da Promiscuidade: o capitalismo estatal do Brasil - Demetrio Magnoli


Eike, emblema e indício

25 de abril de 2013 | 2h 05
Demétrio Magnoli *
Eike Batista valia US$ 1,5 bilhão em 2005, US$ 6,6 bilhões em 2008, US$ 30 bilhões em 2011 e US$ 9,5 bilhões em março passado, depois de 12 meses em que seu patrimônio encolheu num ritmo médio de US$ 50 milhões por dia. Desconfie das publicações de negócios quando se trata do perfil dos investimentos de grandes empresários. Apenas cinco anos atrás uma influente revista de negócios narrou a saga de Eike sem conectá-la uma única vez à sigla BNDES. Mas o ciclo de destruição implacável de valor das ações do Grupo X acendeu uma faísca de jornalismo investigativo. Hoje o nome do empresário anda regularmente junto às cinco letrinhas providenciais - e emergem até mesmo reportagens que o conectam a outras quatro letrinhas milagrosas: Lula.

A história de Eike é, antes de tudo, um emblema do capitalismo de Estado brasileiro. Durante o regime militar, Eliezer Batista circulou pelos portões giratórios que interligavam as empresas mineradoras internacionais à estatal Vale do Rio Doce. Duas décadas depois seu filho se converteu no ícone de uma estratégia de modernização do capitalismo de Estado que almeja produzir uma elite de megaempresários associados à nova elite política lulista.

"O BNDES é o melhor banco do mundo", proclamou Eike em 2010, no lançamento das obras do Superporto Sudeste, da MMX. O projeto, orçado em R$ 1,8 bilhão, acabava de receber financiamento de R$ 1,2 bilhão do banco público de desenvolvimento, que também é sócio das empresas LLX, de logística, e MPX, de energia. No ano seguinte o banco negociou com o empresário duas operações de injeção de capital no valor de R$ 3,2 bilhões, aumentando em R$ 600 milhões sua participação na MPX e abrindo uma linha de crédito de R$ 2,7 bilhões para as obras do estaleiro da OSX, orçadas em pouco mais de R$ 3 bilhões, no Porto do Açu, da LLX. Hoje o endividamento do Grupo X com o banco mais generoso do mundo gira em torno de R$ 4,5 bilhões - algo como 23% do seu valor total de mercado.

"A natureza sempre foi generosa comigo", explicou Eike. "As pessoas ricas foram as que mais ganharam dinheiro no meu governo", explicou Lula. A política, não a economia, a "natureza" ou a sorte, inflou o balão do Grupo X. Dez anos atrás o BNDES não era "o melhor banco do mundo". Alcançou essa condição por meio de uma expansão assombrosa de seu capital deflagrada no final do primeiro mandato de Lula da Silva. A mágica sustentou-se sobre o truque prosaico da transferência de recursos do Tesouro Nacional para o BNDES. O dinheiro ilimitado que irrigou o Grupo X e impulsionou uma bolha de expectativas desmesuradas no mercado acionário é, num sentido brutalmente literal, seu, meu, nosso, dos filhos de todos nós e das crianças que ainda não nasceram, mas pagarão a conta da dívida pública gerada pela aventura do empresário emblemático.

Eike é emblema, mas também indício. A saga da célere ascensão e do ainda mais rápido declínio do Grupo X contém uma profusão de pistas, ainda não exploradas, das relações perigosas entre o círculo interno do lulismo e o mundo dos altos negócios.

Na condição de "consultor privado", em julho de 2006 o ex-ministro José Dirceu viajou à Bolívia, num jatinho da MMX, exatamente quando o governo de Evo Morales recusava licença de operação à siderúrgica de Eike. Nos anos seguintes, impulsionado por um fluxo torrencial de dinheiro do BNDES, o Grupo X atravessou as corredeiras da fortuna. Durante a travessia, em 2009 o empresário contou com o beneplácito de Lula para uma tentativa frustrada de adquirir o controle da Vale, pela compra a preço de oportunidade da participação acionária dos fundos de pensão, do BNDES e do Bradesco na antiga estatal. Naquele mesmo ano o fracasso de bilheteria Lula, o Filho do Brasil, produzido com orçamento recordista, contou com o aporte de R$ 1 milhão do empreendedor X.

A parceria entre os dois "filhos do Brasil" não foi abalada pela reversão do movimento da roda da fortuna. Em janeiro passado, a bordo do jato do virtuoso empresário, Eike e o ex-presidente visitaram o Porto do Açu. O tema do encontro teria sido um plano de transferência para o Açu de um investimento de R$ 500 milhões de um estaleiro que uma empresa de Cingapura ergue no Espírito Santo. Em março, depois que Lula lhe recomendou prestar maior atenção às demandas dos empresários, Dilma Rousseff reuniu-se com 28 megaempresários, entre eles o inefável X. Dias depois, numa reunião menor, a presidente e um representante do BNDES se teriam sentado à mesa com Eike e seus credores privados do Itaú, Bradesco e BTG-Pactual.

Equilibrando-se à beira do abismo, o Grupo X explora diferentes hipóteses de resgate. O BNDES, opção preferencial, concedeu um novo financiamento, de R$ 935 milhões, à MMX e analisa uma solicitação da OSX, de créditos para a construção de uma plataforma de petróleo. Entrementes, diante da deterioração financeira do "melhor banco do mundo", emergem opções alternativas. No cenário mais provável, o Porto do Açu seria resgatado por uma série de iniciativas da Petrobrás e da Empresa de Planejamento e Logística. A primeira converteria a imensa estrutura portuária sem demanda em base para a produção de petróleo na Bacia de Campos. A segunda esculpiria um pacote de licitações de modo a ligar o porto fincado no meio do nada à malha ferroviária nacional, assumindo os riscos financeiros da operação.

No registro do emblema, a vasta mobilização de empresas estatais e recursos públicos para salvar o Grupo X pode ser justificada em nome da "imagem do País no exterior", como sugere candidamente o governo, ou da proteção da imagem do próprio governo e de seu modelo de capitalismo de Estado, como interpretam as raras vozes críticas. No registro do indício, porém, o resgate em curso solicitaria investigações de outra ordem e de amplas implicações - que, por isso mesmo, não serão feitas.
* Demétrio Magnoli é sociólogo e doutor em Geografia Humana pela USP. E-mail:demetrio.magnoli@uol.com.br.

quinta-feira, 31 de janeiro de 2013

A (Des)Ilusao (Latino-)Americana, ou Eduardo Prado revisitado - Demetrio Magnoli

Mais de 120 atrás, Eduardo Prado, um brilhante intelectual monarquista, inimigo, portanto, da República (nao tanto pelo regime em si, mas pelo furor jacobino que ele provocou na primeira fase), já se insurgia contra a integracao (nao latino-americana, mas) hemisférica.
Em seu livro "A Ilusao Americana" ele já denunciava o imperialismo americano (para gáudio dos antiamericanos de hoje), mas também proclamava, azedamente, que "a solidariedade americana é uma mentira".
Os companheiros de hoje se empenham no antiamericanismo primário e pretendem fazer a integracao exclusivamente latino-americana, com os resultados que se sabem...
Bem, a história é longa, e eu voltarei a ela um dia desses, por enquanto mais um artigo de um crítico da diplomacia lulo-petista.
Paulo Roberto de Almeida

Lula e a falência da 'Doutrina Garcia'

O Estado de S.Paulo, 31 de janeiro de 2013
Demétrio Magnoli *
 
Lula sabe mais que os "intelectuais progressistas" reunidos em seu instituto para, nas palavras do assessor Luiz Dulci, "definir um plano de trabalho para o desenvolvimento e integração" da América Latina. Há muito reduzidos à condição de intelectuais palacianos, os convidados celebraram os "avanços" na integração regional e a miraculosa clarividência do ex-presidente. O anfitrião, contudo, pediu-lhes algo diferente da bajulação habitual: a formulação de uma "doutrina" da integração latino-americana. No 11.º ano de poder lulista, o pedido traz implícito o reconhecimento de um fracasso estrondoso de política externa - e da crise regional que se avizinha.

"Não tem explicação, depois de mais de 500 anos, eu inaugurar a primeira ponte entre Brasil e Bolívia; não em explicação, depois de mais de 500 anos, eu inaugurar a primeira ponte entre Brasil e Peru", proclamou o ex-presidente, sem ser corrigido por nenhum dos intelectuais que decoravam o ambiente. O trem inaugural da Estrada de Ferro Madeira-Mamoré chegou a Guajará-Mirim em abril de 1912. Os presidentes Café Filho e Paz Estenssoro inauguraram a Estrada de Ferro Brasil-Bolívia, em Santa Cruz de La Sierra, em janeiro de 1955. A Ponte da Amizade, sobre o Rio Paraná, uma ousada obra de engenharia, foi inaugurada em 1965, conectando o Paraguai às rodovias brasileiras e ao Porto de Paranaguá. As pontes que Lula inaugurou estavam previstas na Iniciativa para a Integração da Infraestrutura Regional Sul-Americana (IIRSA), aprovada na conferência de chefes de Estado de Brasília, em 2000, no governo FHC. De lá para cá, sob o lulismo, integração regional converteu-se em eufemismo para alianças políticas entre governantes "progressistas".

Desde 2003, com a nomeação de Marco Aurélio Garcia como assessor especial da Presidência, a política brasileira para a América Latina foi transferida da alçada do Itamaraty para a do lulopetismo, impregnando-se de reminiscências políticas antiamericanas, terceiro-mundistas e castristas. O coquetel conduziu-nos ao impasse atual, que Lula é capaz de identificar mesmo se tenta disfarçá-lo pelo recurso à bazófia autocongratulatória.

A "Doutrina Garcia" rejeita a ideia de livre-comércio, que funcionou como pilar original do Mercosul. A Argentina dos Kirchners aproveitou-se disso para violar sistematicamente as regras do Mercosul, desmontando o edifício da zona de livre-comércio. No seu instituto, Lula denunciou a "preocupação maior de relação preferencial com os EUA ou com a Europa ou com qualquer um, menos entre nós mesmos". Entretanto, na celebrada última década, a América Latina não aprofundou o comércio intrarregional, limitando-se a estabelecer uma "relação preferencial" com a China, que absorve nossas exportações de commodities. O primitivismo ideológico impede até mesmo a conclusão de um tratado comercial Brasil-México, elemento indispensável em qualquer projeto de integração latino-americana.

A "Doutrina Garcia" acalenta a utopia de uma integração impulsionada por investimentos estatais e de grandes empresas financiadas por recursos públicos. Contudo a estratégia de expansão regional do "capitalismo de Estado" brasileiro esbarrou nas resistências nacionalistas de argentinos, bolivianos e equatorianos, que assestaram sucessivos golpes em negócios conduzidos pela Petrobrás e por construtoras beneficiadas por empréstimos privilegiados do BNDES. Numa dessas amargas ironias da História, o espectro do "imperialismo brasileiro" reemergiu como acusação dirigida por líderes latino-americanos "progressistas" contra o governo "progressista" de Lula.

A "Doutrina Garcia" almeja promover a liderança regional do Brasil, preservar o regime autoritário cubano e erguer uma barreira geopolítica entre América Latina e EUA. Em busca da primeira meta, o Brasil colidiu com as pretensões concorrentes da Venezuela de Hugo Chávez, que criou a Aliança Bolivariana das Américas (Alba). A concorrência entre o lulopetismo e o chavismo paralisa a União de Nações Sul-Americanas (Unasul), esvaziando de conteúdo suas reuniões de cúpula. Em busca das outras duas metas, que compartilha com o chavismo, o Brasil ajudou a converter a Comunidade dos Estados Latino-Americanos e Caribenhos (Celac) numa ferramenta de proteção da ditadura castrista e de desmoralização da Carta Democrática da Organização dos Estados Americanos (OEA). Dias atrás, Cristina Kirchner definiu a ascensão de Cuba à presidência rotativa da Celac como o marco de "uma nova época na América Latina". Ela tem razão: é o fim da curta época na qual os Estados da região levaram a sério seus proclamados compromissos com os direitos humanos e as liberdades públicas.

Distraídos, os intelectuais palacianos nada perceberam, mas a falência da "Doutrina Garcia" foi registrada no radar de Lula. De um lado, abaixo do celofane brilhante da Unasul e da Celac, desenvolve-se um processo que deveria ser batizado como a desintegração da América Latina. A principal evidência disso se encontra na emergência da Aliança do Pacífico, uma área de livre-comércio formada sem alarido por México, Colômbia, Chile e Peru, aos quais podem se juntar o Panamá e outros países centro-americanos. De outro, lenta, mas inexoravelmente, desmorona a ordem castrista em Cuba, aproxima-se uma incerta transição na Venezuela chavista e dissolve-se o consenso político kirchnerista na Argentina. Quando clama por uma nova "doutrina" da integração latino-americana, o ex-presidente revela aguda consciência da encruzilhada em que se colocou a política externa brasileira.

A consciência de um problema é condição necessária, mas não suficiente, para formular suas possíveis soluções. Lula e seu cortejo de intelectuais não encontrarão uma "doutrina" substituta sem lançar ao mar o lastro de anacronismos ideológicos do lulopetismo. Isso, porém, eles não farão.

* Demétrio Magnoli é sociólogo e doutor em Geografia Humana pela USP. E-mail: demetrio.magnoli@uol.com.br.

quinta-feira, 2 de agosto de 2012

O sentido "historico" do julgamento do Mensalao - Demetrio Magnoli

O julgamento da História

Demétrio Magnoli 
O Estado de S.Paulo, 2/-8/2012
"O mais atrevido e escandaloso esquema de corrupção e de desvio de dinheiro público flagrado no Brasil", segundo a definição do procurador-geral da República, Roberto Gurgel, no seu memorial conclusivo, começa a ser julgado hoje pelo STF. A palavra "história" está um tanto desgastada. Quase tudo, de casamentos de celebridades a jogos de futebol, é rotineiramente declarado "histórico". O adjetivo, contudo, deve ser acoplado ao julgamento do mensalão - e num duplo sentido. A Corte Suprema está julgando os perpetradores de uma tentativa de supressão da independência do Congresso Nacional e, ao mesmo tempo, dará um veredicto sobre um tipo especial de corrupção, que almeja a legitimidade pela invocação da História (com H maiúsculo).
Silvio Pereira, o "Silvinho Land Rover", então secretário-geral do PT, tornou-se uma figura icônica do mensalão, pois, ao receber o veículo, conferiu ao episódio uma simplória inteligibilidade: corruptos geralmente obtêm acesso a "bens de prazer" e a "bens de prestígio" em troca de sua contribuição para os esquemas criminosos. No caso, porém, o ícone mais confunde do que esclarece. "Vivo há 28 anos na mesma casa em São Paulo, me hospedo no mesmo hotel simples há mais de 20 anos em Brasília, cidade onde trabalho de segunda a sexta", disse em sua defesa José Genoino, então presidente do PT e avalista dos supostos empréstimos multimilionários tomados pelo partido.
Genoino quer, tanto por motivos judiciais quanto políticos, separar sua imagem da de Silvinho - e não mente quando aborda o tema da honestidade pessoal. Os arquitetos principais do núcleo partidário do mensalão não operavam um esquema tradicional de corrupção, destinado a converter recursos públicos em patrimônios privados. Eles pretendiam enraizar um sistema de poder, produzindo um consenso político de longo alcance. O episódio deveria ser descrito como um acidente necessário de percurso na trajetória de consolidação da nova elite política petista.
José Dirceu, o "chefe da quadrilha", opera atualmente como lobista de grandes interesses empresariais, não compartilha o estilo de vida monástico de Genoino, mas também não parece ter auferido vantagens pecuniárias diretas no episódio em julgamento. O então poderoso chefe da Casa Civil comandou o esquema de aquisição em massa de parlamentares com o propósito de assegurar a navegação de Lula nas águas incertas de um Congresso sem maioria governista estável. Dirceu conduziu a perigosa aventura em nome dos interesses gerais do lulismo - e, imbuído de um característico sentido de missão histórica, aceitou o papel de bode expiatório inscrito na narrativa oficial da inocência do próprio presidente. Há um traço de tragédia em tudo isso: o mensalão surgiu como "necessidade" apenas porque o neófito Lula rejeitou a receita política original formulada por Dirceu, que insistira em construir extensa base governista sustentada sobre uma aliança preferencial entre PT e PMDB.
A corrupção tradicional envenena lentamente a democracia, impregnando as instituições públicas com as marcas dos interesses privados. O caráter histórico do episódio em julgamento deriva de sua natureza distinta: o mensalão perseguia a virtual eliminação do sistema de contrapesos da democracia, pelo completo emasculamento do Congresso. A apropriação privada fragmentária de recursos públicos, por mais desoladora que seja, não se compara à fabricação pecuniária de uma maioria parlamentar por meio do assalto sistemático ao dinheiro do povo. Os juízes do STF não estão julgando um caso comum, mas um estratagema golpista devotado a esvaziar de conteúdo substantivo a democracia brasileira.
No PT, "Silvinho Land Rover" será, para sempre, um "anjo caído", mas o tesoureiro Delúbio Soares foi festivamente recebido de volta, enquanto Genoino frequenta reuniões da direção e Dirceu é aclamado quase como mártir. O contraste funciona como súmula da interpretação do partido sobre o mensalão. Ao contrário do dirigente flagrado em prática de corrupção tradicional, os demais serviam a um desígnio político maior - um fim utópico ao qual todos os meios se devem subordinar. São, portanto, "heróis do povo brasileiro", expressão regularmente usada nas ovações da militância petista a Dirceu.
O PT renunciou faz tempo à utopia socialista. Na visão do "chefe da quadrilha", predominante no seu partido, o PT é a ferramenta de uma utopia substituta: o desenvolvimento de um capitalismo nacional autônomo. Segundo tal concepção, o lulismo figuraria como retomada de um projeto deflagrado por Getúlio Vargas e interrompido por FHC. Nas condições postas pela globalização, tal projeto dependeria da mobilização massiva de recursos estatais para o financiamento de empresas brasileiras capazes de competir nos mercados internacionais. A constituição de uma nova elite política, estruturada em torno do PT, seria componente necessário na edificação do capitalismo de Estado brasileiro. Sobre o pano de fundo do projeto de resgate nacional, o mensalão não passaria de um expediente de percurso: o atalho circunstancial tomado pelas forças do progresso fustigadas numa encruzilhada crucial.
A democracia é um regime essencialmente antiutópico, pois seu alicerce filosófico se encontra no princípio do pluralismo político: a ideia de que nenhum partido tem a propriedade da verdade histórica. Na democracia as leis valem para todos - mesmo para aqueles que, imbuídos de visões, reclamam uma aliança preferencial com o futuro. O "herói do povo brasileiro" não passa, aos olhos da lei, do "chefe da quadrilha" consagrada à anulação da independência do Congresso. Ao julgar o mensalão, o STF está decidindo, no fim das contas, sobre a pretensão de uma corrente política de subordinar a lei à História - ou seja, a um projeto ideológico. Há, de fato, algo de histórico no drama que começa hoje.

*   SOCIÓLOGO, DOUTOR EM GEOGRAFIA HUMANA PELA USP. E-MAIL: DEMETRIO.MAGNOLI@UOL.COM.BR

quinta-feira, 18 de agosto de 2011

Uma critica radical a politica externa - Demetrio Magnoli

Atenção, Dilma, ele assina em teu nome
Demétrio Magnoli - O Estado de S.Paulo
18 de agosto de 2011

O ditador Bashar Assad encontrou nos enviados do Ibas (Índia, Brasil e África do Sul) os bonecos de ventríloquo ideais para transmitir ao mundo a sua versão dos eventos sangrentos em curso na Síria. O comunicado final da delegação, um dos documentos mais abjetos jamais firmados pelo Brasil, pinta o cenário de um regime engajado na sua reinvenção democrática, mas assediado pela violência de grupos armados opositores. A assinatura brasileira converte Antônio Patriota em cúmplice de um Estado policial que se dedica à matança de sua população. Patriota, contudo, é funcionário de Dilma Rousseff. A assinatura dele é a dela.

O Itamaraty difunde a narrativa oficial síria, segundo a qual o derramamento de sangue se deve à violência de setores da oposição. Há nisso uma nota sinistra, só audível por quem conhece o passado recente da Síria. Refiro-me a Hama e a fevereiro de 1982. Nessa cidade sunita operavam guerrilheiros islâmicos que combatiam o regime de Hafez Assad, pai de Bashar. Após uma emboscada dos rebeldes contra forças militares, o ditador ordenou o bombardeio de toda a cidade, por terra e ar. Num tempo anterior à internet e aos celulares, há escassas, mas pungentes, imagens do resultado. No fim, Hama parecia as cidades alemãs extensivamente bombardeadas na guerra mundial.

Um dos filhos do ditador supervisionou o ataque e se gabou de matar quase 40 mil pessoas, uma cifra confirmada pelas estimativas independentes. Quando os escombros ainda ardiam, o governo vazou para a imprensa libanesa a notícia das dimensões da carnificina, enviando uma mensagem ao povo sírio. A mensagem foi decodificada, em muitos sentidos. Até há pouco, aos murmúrios, os sírios se referiam ao massacre por meio de um sombrio eufemismo: "os incidentes de Hama". Agora, enfrentando munição real, os manifestantes voltam às ruas num ânimo quase suicida, pois sabem que só têm a alternativa de derrubar o regime. Patriota deveria ter a decência de pensar duas vezes antes de colar o selo do Itamaraty sobre a versão de Damasco: na linguagem dos Assad, a expressão "gangues terroristas" é a senha para aplicar a "lei de Hama".

Além de tudo, a versão é falsa. Em 17 de julho, uma conferência nacional de 450 líderes opositores, laicos e religiosos, conclamou à desobediência civil pacífica. O regime respondeu armando 30 mil milicianos da minoria alauita, a fim de reconfigurar o cenário como um conflito sectário. Artilharia, tanques e navios alvejam Hama, Homs, Deir ez-Zor e Latakia. O saldo provisório já atinge 2 mil mortos. Líderes da tribo baqqara, de Deir ez-Zor, autorizaram o uso de armas contra incursões assassinas do Exército, de casa em casa, que não poupam crianças. Vergonha: o gesto desesperado de pessoas acuadas serve como o pretexto para Patriota reverberar a senha de uma ditadura inclemente.

Pretexto é a palavra certa. O Itamaraty não se importa com os fatos: segue uma agenda ideológica. A Constituição prescreve, no artigo 4.º, que o Brasil "rege-se, nas suas relações internacionais" pelo princípio da "prevalência dos direitos humanos". Dilma prometeu respeitar o artigo constitucional. O compromisso, expresso num voto contra o Irã, não resistiu a um outono. Em março, a abstenção na resolução da ONU de intervenção na Líbia evidenciou uma oscilação. Em junho, a recusa da presidente em receber a dissidente iraniana Shirin Ebadi, Nobel da Paz, sinalizou o recuo. Em 3 de agosto, a rejeição a uma condenação da Síria no Conselho de Segurança da ONU concluiu a restauração da política de Lula, Celso Amorim e Marco Aurélio Garcia. No seu desprezo inigualável pelo mandamento constitucional, o comunicado do Ibas equivale a uma celebração orgiástica da velha ordem.

Num Roda Viva, da TV Cultura, indaguei a Celso Amorim sobre os motivos do governo para ignorar sistematicamente o artigo 4.º da Constituição. O então ministro do Exterior retrucou invocando o princípio da autodeterminação dos povos e da não intervenção, contemplados no mesmo artigo, mas em posição inferior. A resposta vale tanto quanto as promessas reformistas de Assad. Na verdade, como fica explícito num livro do ex-secretário-geral do Itamaraty Samuel Pinheiro Guimarães, a linha do governo deriva de uma curiosa tradução do objetivo de promover a "multipolaridade" nas relações internacionais. "Multipolaridade", no idioma de nossa atual cúpula diplomática, exige a redução da influência global dos EUA - o que solicitaria o apoio brasileiro aos regimes antiamericanos, sejam eles quais forem.

A Turquia perdeu a paciência com a Síria e exigiu uma imediata retirada militar das cidades assediadas. Sob pressão popular, governos árabes condenam, sem meias palavras, a selvagem repressão. O Egito alertou Damasco sobre a ultrapassagem de um "ponto de não retorno". Nas ruas do Cairo e de Beirute, manifestações pedem o isolamento de Assad. Longe da região, irresponsável, alheio às obrigações assumidas pela comunidade internacional, o governo brasileiro converte-se num dos últimos bastiões de um Estado policial sanguinário. Desse modo, numa única tacada, viola um elevado princípio constitucional da nossa democracia e agride o interesse nacional, afastando-nos da meta legítima de uma cadeira permanente no Conselho de Segurança da ONU.

Não há muito a fazer. A Comissão de Relações Exteriores do Senado é presidida por um neolulista chamado Fernando Collor. A oposição renunciou ao confronto político de ideias, limitando-se à pescaria de ocasião na lagoa pútrida da corrupção nos ministérios. Os intelectuais de esquerda, sempre prontos a fulminar com os raios de sua fúria santa os desvios retóricos do editorial de um grande jornal, não produzem manifestos de contestação aos atos do lulopetismo - ainda mais se justificados pela doutrina do antiamericanismo. Resta escrever: atenção, Dilma, Patriota assina em teu nome!

SOCIÓLOGO E DOUTOR EM GEOGRAFIA HUMANA PELA USP. E-MAIL: DEMETRIO.MAGNOLI@TERRA.COM.BR

sexta-feira, 22 de julho de 2011

Licoes da historia sobre a crise do euro - Demetrio Magnoli

O Partido do Euro
Demétrio Magnoli
O Estado de S.Paulo, 21 de julho de 2011

William Jennings Bryan perdeu duas eleições presidenciais americanas, mas passou à História por um discurso pronunciado em 1896 perante a convenção do Partido Democrata. Em nome dos agricultores endividados, ele classificou o padrão ouro como uma ferramenta dos interesses de "ociosos detentores de capital ocioso". Se, na sequência do crash de 1929, os bancos centrais das potências tivessem ouvido seu alerta sobre o risco de "crucificar a humanidade numa cruz de ouro", teriam provavelmente evitado a Grande Depressão. Hoje, tanto tempo depois, Jean-Claude Trichet continua imune às lições daquela catástrofe: sob seu comando, o Banco Central Europeu (BCE) parece decidido a crucificar a Europa na cruz do euro.

"Nós não obtivemos absolutamente nada, exceto que coletamos dinheiro de um monte de pobres diabos e o espalhamos aos quatro ventos", explicou Montagu Norman, presidente do Banco da Inglaterra, num franco, porém tardio, reconhecimento da culpa dos bancos centrais que empurraram o mundo para a Depressão. O BCE faz exatamente o mesmo com seus planos de austeridade para os países endividados da periferia da zona do euro. Segundo o preceito que os orienta, os devedores pagarão o valor de face de todos os títulos emitidos. Na ausência do recurso à desvalorização da moeda, o dinheiro não emanará de uma recuperação econômica, mas exclusivamente de cortes de gastos públicos, salários e aposentadorias. O programa fundamentalista fracassará no terreno da política antes ainda de naufragar na esfera da economia.

A Grécia reproduz uma desastrosa trajetória deflacionária experimentada pela Grã-Bretanha após a restauração do padrão-ouro, em 1925, e pela Argentina presa à cruz do dólar nos anos 1990. Um ano depois do primeiro pacote de empréstimos a retração da economia amplia o estoque de uma dívida que, todos sabem, não será paga. A única saída para a Grécia é a retomada do crescimento no futuro próximo, mas a curiosa solução imposta pelo BCE consiste em aumentar a dose do tóxico remédio recessivo. Irlanda e Portugal percorrem etapas distintas da mesma estrada de destruição irracional de riquezas, que já se abre como um destino implacável à Espanha e à Itália.

Na hora da reunificação alemã, o primeiro-ministro Helmut Kohl passou por cima da independência formal do Bundesbank e decidiu que a moeda da antiga RDA seria trocada por marcos ocidentais segundo uma paridade de equivalência. A independência do BCE não ultrapassa os limites dos interesses vitais das nações europeias. Contudo, na falta de consenso entre os estadistas da Alemanha e da França, Trichet transfigurou-se numa espécie de czar da Europa. Sua versão da Santa Aliança é uma coalizão profana do BCE com os bancos alemães e franceses detentores dos títulos das dívidas europeias.

A América Latina tem algo a ensinar à Europa. Três décadas atrás, sob o impacto da crise das dívidas externas, os países latino-americanos patinaram na lama da estagnação enquanto o Plano Baker, de 1985, desviava recursos sociais para o caixa dos bancos credores. A recuperação só começou com o Plano Brady, de 1989, que criou um mercado de renegociação do valor dos títulos da dívida. Hoje, o czar Trichet rejeita por princípio a alternativa lógica de reestruturação das dívidas europeias, recusando-se a admitir que um empréstimo irresponsável deriva das irresponsabilidades combinadas do tomador e do emprestador. Sua opção por Baker, em detrimento de Brady, equivale à celebração de um fracasso conhecido.

Na periferia da zona do euro, ao contrário do que aconteceu na América Latina do passado recente, rigorosos planos de austeridade são aplicados em plena vigência das liberdades públicas, pondo em risco a estabilidade dos sistemas políticos nacionais. A derrota do partido governista nas eleições gerais portuguesas de junho reiterou uma norma verificada antes na Irlanda e na Grécia, bem como nas eleições regionais espanholas e italianas. Em Portugal, como nos demais países em crise, o partido oposicionista triunfante declarou sua adesão integral ao programa de empobrecimento firmado com a União Europeia (UE) e o FMI. O voto não tem valor, pois tudo o que importa foi decidido de antemão - eis a mensagem enviada por derrotados e vitoriosos aos cidadãos. De fato, no lugar dos partidos nacionais, emerge algo como um Partido do Euro, dirigido do exterior pelo BCE de Trichet.

O projeto do euro surgiu como resposta criativa ao dilema político posto pela reunificação alemã. A Europa não constituía uma zona monetária ideal, mas o euro devia existir para subordinar a Alemanha ao imperativo da unidade europeia. O czar Trichet parece alheio a essa história quando prescreve uma fórmula econômica que exclui do cálculo estratégico a razão política. A alemã Angela Merkel e o francês Nicolas Sarkozy, fiadores tácitos do presidente do BCE, fazem travessuras numa sala de cristais ao permitirem que o destino da UE oscile ao sabor dos dogmas anacrônicos de um banqueiro central.

Planos de austeridade radicais só combinam com a democracia em tempos de guerra. Na América Latina da crise das dívidas, eles foram montados à sombra das ditaduras militares - e seus devastadores efeitos sociais aceleraram o colapso dos regimes autoritários. Na Europa da crise do euro, a erosão da confiança nos sistemas políticos nacionais assume, ao menos provisoriamente, a forma de uma rebelião fragmentária, sem lideranças ou plataformas de ação comum, que se expressa em greves, protestos de rua e também no crescimento eleitoral de ultranacionalistas e neocomunistas.

Na hora da introdução do euro, em 1999, o historiador Niall Ferguson deu apenas uma década de vida à moeda europeia. Angela Merkel e Sarkozy parecem empenhados em fazer a mórbida profecia se cumprir. Fio a fio, eles desmancham o frágil trançado da União Europeia.

SOCIÓLOGO E DOUTOR EM GEOGRAFIA HUMANA PELA USP. E-MAIL: DEMETRIO.MAGNOLI@TERRA.COM.BR

quinta-feira, 9 de junho de 2011

O Brasil está doente: e a enfermidade é mental... (Demetrio Magnoli)

Palocci como sintoma
Demétrio Magnoli
O Estado de São Paulo, 09 de junho de 2011

Ninguém pediu a revelação de conselhos ou relatórios confidenciais. Antônio Palocci, porém, foi ao Jornal Nacional para dizer que a lista de clientes de seus serviços de consultoria constitui, em si mesma, uma informação ultrassecreta. É bizarro: um dos homens do círculo mais próximo de Lula, ex-ministro da Fazenda, coordenador de campanha de Dilma Rousseff, futuro poderoso ministro à espera de nomeação ganhou milhões de empresas com múltiplas interfaces com o Estado - mas se nega a declinar o nome dos responsáveis por sua fortuna súbita. "Ele foi muito leal com seus clientes", fulminou cruelmente o vice Michel Temer. A lista de Palocci, sugerem as aparências, constitui um artefato capaz de destruir reputações políticas e empresariais numa única explosão. Mas, apesar de tudo, o affaire deveria ser interpretado menos como a própria enfermidade do que como um sintoma.

Palocci irrompeu na paisagem nacional há 15 anos, como prefeito petista de Ribeirão Preto, quando decidiu privatizar a companhia telefônica municipal. O gesto equivalia a cortar com faca um artigo de fé do seu partido - que, à época, demonizava noite e dia o programa de desestatização do governo FHC. Certo ou errado, o alcaide iconoclasta tinha o dever político de introduzir no PT o debate sobre as relações entre mercado e Estado, tentando persuadir o partido a revisar suas convicções. Isso ele nunca fez.

O nome de Palocci elevou-se à constelação de estrelas do lulismo em maio de 2002, na Adega do Leone, restaurante português da recorrente Ribeirão Preto. Ali, num jantar restrito, por sua iniciativa, Lula foi convencido a assinar a Carta ao Povo Brasileiro, pela qual o candidato prometia submeter-se aos paradigmas macroeconômicos oriundos do Plano Real. O documento seria escrito a seis mãos: as duas de Palocci e outras quatro de companheiros ex-trotskistas por ele convocados. Era um programa substituto, que anulava de facto a plataforma aprovada no 4.º Congresso do PT, em Olinda, um ano antes.

Meses depois, alçado por Lula ao Ministério da Fazenda, Palocci cercou-se de uma equipe de economistas de inspiração monetarista, muito mais ortodoxos que os de FHC, convertendo-se num talismã insubstituível da nata empresarial do País. Da prefeitura à Adega e dela à Fazenda, Palocci traçou uma linha reta, desenhando no seu extremo uma seta de norte: a sua política seria formulada do lado de fora do partido, num intercâmbio direto entre o governo e o mercado. Contudo, e isso é crucial, ele jamais rasgaria a sua carteira de filiação ao PT, fonte das conexões pessoais, dos símbolos políticos e das reminiscências históricas indispensáveis ao projeto de poder que persegue.

Não, Palocci não é "o Delúbio de Dilma", como pretende um Ronaldo Caiado seduzido pelo brilho fácil do paralelo falso. O ex-tesoureiro do PT é uma engrenagem mecânica de uma máquina político-partidária. O ex-tesoureiro do Brasil é um visionário político: ele acreditou que a Nação poderia ser governada à margem dos partidos, por um mediador situado entre Lula e as altas finanças. E, desgraçadamente, tinha razão. No verão de 2005, em meio ao tumulto do "mensalão", Gilberto Carvalho, encarnação operativa de Lula, confidenciou ao ministro da Fazenda que ele era o sucessor acalentado pelo presidente.

A cadeira presidencial, reservada para o poderoso ministro, escapou-lhe como decorrência de seus próprios atos desastrados. Palocci deixou a província, mas a província não desencarnou de Palocci. O príncipe embalado por Lula, querubim de uma elite econômica sem nenhum princípio, destruiu o plano sucessório palaciano ao protagonizar uma trama sórdida, um crime de Estado urdido para desmoralizar uma testemunha honesta. No 27 de março de 2006, dia da renúncia, parecia encerrada a longa jornada palocciana em direção ao Planalto.

De fato, não era assim. De acordo com o diagnóstico estratégico de Palocci, o Brasil do lulopetismo é uma imensa República bananeira disfarçada atrás das fachadas de mármore de instituições políticas sem valor. Pela diferença mínima de um voto, o STF deu-lhe razão, rejeitando a mera abertura de processo sobre suas responsabilidades na violação dos direitos básicos de um homem comum. Então, na vereda aberta pelos juízes encarregados de proteger a igualdade perante a lei, guiado por uma bússola política imutável, o aventureiro provinciano retomou sua marcha.

"Um ex-ministro da Fazenda tem alto valor de mercado", explicou candidamente um Palocci já milionário. O sucesso de muitos zeros da firma pessoal de consultoria nada esclarece sobre a sabedoria palocciana no campo da economia, mas diz tudo sobre a natureza de uma elite empresarial incapaz de distinguir a palavra "nação" da palavra "mercado". Os clientes secretos do coordenador da campanha de Dilma talvez tenham obtido vantagens competitivas imediatas, mas apostaram principalmente no mercado futuro. Dez ou vinte milhões não são muito pelo quase certo primeiro-ministro de um governo fraco. É um preço de oportunidade por um provável futuro presidente da República.

"Qualquer João da Silva já teria seus registros devassados pela Receita, Banco Central e Polícia Federal, a requerimento do procurador", exclamou um procurador de Brasília, indignado com a recusa de Roberto Gurgel, procurador-geral da República, de abrir investigações preliminares sobre a parceria público-privada do consultor mais bem pago do País. Gurgel segue o precedente criado pelo STF. Como os juízes do tribunal supremo, o chefe do Ministério Público está dizendo que Palocci não é um João da Silva ou um Francenildo Costa. Que ele está além e acima do alcance da lei.

Palocci tem uma opinião tão ruim sobre o sistema político brasileiro e a elite econômica nacional que acreditou na hipótese de ele se tornar presidente. Mesmo depois de sua demissão, não se provou que ele está errado. Eis aí a enfermidade.

SOCIÓLOGO E DOUTOR EM GEOGRAFIA HUMANA PELA USP.
E-MAIL: DEMETRIO.MAGNOLI@TERRA.COM.BR

sexta-feira, 15 de abril de 2011

As mentiras contadas pelo poder - Demetrio Magnoli

Um artigo do sociólogo -- meu colega de "tribo", portanto, mas eu não me considero muito membro dessa confraria, por não exercício de função, a não ser analítica -- Demétrio Magnoli sobre as mentiras políticas que circulam atualmente no Brasil.
Como sempre, a versão (deformada) da história passa por verdade política. Mas ela precisa ser denunciada.
Destaco este trecho, que tem a ver com política externa:
Num “país de todos”, a política externa subordina-se a valores consagrados na Constituição, como a promoção dos direitos humanos. Sob o lulismo, a palavra constitucional vergou-se diante de ideologias propensas à celebração de ditaduras enroladas nos trapos de um visceral antiamericanismo. Em Cuba, Lula comparou os prisioneiros políticos do castrismo aos presos comuns brasileiros. Na ONU, os representantes do País opuseram-se a investigações e denúncias sobre violações de direitos humanos. Na América Latina, o Brasil deu cobertura ao enrijecimento do autoritarismo chavista, flertou com a reivindicação de concessão às FARC do estatuto de “força combatente” e engajou-se na aventura burlesca promovida por Hugo Chávez em Honduras. Alhures, numa iniciativa desastrosa, o Brasil tricotou o fracassado acordo tripartite com o Irã, escarnecendo da política internacional de não proliferação nuclear.

Fiquem com uma leitura crítica e reflexiva
Paulo Roberto de Almeuda

Partido Único
DEMÉTRIO MAGNOLI
Revista Interesse Nacional (n. 13, abril-junho 2011)

Há quase um ano, Dilma Rousseff deflagrava as atividades públicas de sua campanha presidencial com um périplo em Minas Gerais. O estado parecia, para petistas e tucanos, o terreno onde se travaria uma batalha eleitoral decisiva. Contudo, entre tantos lugares, a candidata de Lula embrenhou- -se pelas veredas de São João del Rei, até o túmulo de Tancredo Neves, no qual depositou flores. O gesto era mais que oportunismo eleitoreiro paroxístico. Havia, nele, uma declaração sobre a história. Meses depois, na primeira semana de horário eleitoral gratuito, José Serra colou um retrato de Lula à sua imagem, sugerindo uma associação política. O gesto, ilustração de manual de um truque oportunista autodestrutivo, continha uma declaração sobre a história. Tanto quanto a declaração de Dilma, era uma narrativa falsa, essencialmente mentirosa.

Em princípio, num plano superficial, as duas mentiras evidenciam a pobreza política de uma campanha presidencial na qual os protagonistas desdenharam a capacidade de discernimento dos eleitores. É um equívoco analítico, porém, tratá-las como falsificações simétricas. O triunfo de Dilma e a derrota de Serra revelam a desigualdade entre as duas mentiras. A produção de uma narrativa falsa sobre a história recente do Brasil serve ao projeto hegemônico do lulismo. Quando o governo Dilma completou cem dias, a oposição praticamente desapareceu da paisagem nacional, não como resultado de algum tipo de restrição das liberdades pelo governo, mas como fruto da falência política do PSDB e do DEM.

No túmulo de Tancredo
Lula e o PT acercaram-se de Delfim Netto, celebraram com Jader Barbalho, aliaram-se a José Sarney, trocaram figurinhas com Paulo Maluf, assopraram as cicatrizes de Fernando Collor, uniram-se a Renan Calheiros. O que é um Tancredo, perto disso? Uma diferença, entre tantas, está na circunstância de que a figura homenageada por Dilma na sua peregrinação a São João del Rei deixou o mundo dos vivos para ingressar no firmamento dos símbolos.

Tancredo é uma representação: o ícone da transição pactuada que deu origem à Nova República. O PT vilipendiou aquela transição e decidiu não fazer parte da ordem que nascia. Primeiro, expulsou seus três deputados que votaram por Tancredo no Colégio Eleitoral. Depois, recusou-se a homologar a Constituição de 1988. O que fazia a candidata de Lula no berço simbólico de tudo o que o PT queimou na maior encruzilhada de nossa história recente?

A coerência absoluta é privilégio das seitas políticas, responsáveis apenas perante seus próprios dogmas. Todos os partidos de verdade, aqui e alhures, experimentam ambivalências ao olhar para trás, na direção de seu passado. Mas o lulopetismo encontra-se numa categoria separada. A narrativa histórica implícita na peregrinação ao túmulo de Tancredo situa-se em algum ponto entre a esquizofrenia e o distúrbio bipolar. E, no entanto, há método na loucura.

O PT surgiu como leito de confluência de muitas águas e diferentes histórias. Na média, identificava-se como um partido de ruptura, socialista mas avesso ao “socialismo real”. Os trabalhadores, numa vertente, e o “povo de Deus”, em outra, formavam a base social imaginada do petismo original. Depois, à medida que se aproximava do poder, o PT converteu-se num partido da ordem. A conversão, contudo, jamais assumiu as formas de uma releitura honesta de seu passado e de uma crítica política das ideias originais.

A antiga corrente interna liderada pelo deputado José Genoíno bem que tentou, mas o PT não seguiu a dura trilha de aggiornamento pela qual, ao longo de meio século, os partidos marxistas da Segunda Internacional se transfiguraram na atual social-democracia europeia. Na hora do triunfo de Lula, a distância incomensurável entre palavras e atos teve de ser vencida pelo recurso a um salto fraudulento: a Carta aos Brasileiros, articulada por Antonio Palocci, escrita por ex-trotskistas e assinada pelo candidato como negação do programa partidário. Não é trivial encarar o passado quando se joga esconde-esconde com o presente.

A esquizofrenia salta aos olhos. Nos seus dois mandatos, Lula pilotou a política econômica com o software elaborado por FHC e foi buscar no ninho tucano o operador dos manetes do Banco Central. Em campanha, Dilma jurou que rezará as três orações do livro da ortodoxia: câmbio flutuante, metas de inflação e superávit primário. Paralelamente, as resoluções do Congresso do PT de 2007 lamentavam a queda do Muro de Berlim e reiteravam tanto as “convicções anticapitalistas” quanto o compromisso com a “luta pelo socialismo”.

No partido, desde as crises da cueca e do caseiro, ninguém mais ousa sugerir um aggiornamento – uma carência que se traduz pelo agravamento dos sintomas de esquizofrenia. A dicotomia desenvolve-se como uma bifurcação de negações complementares: a prática de governo lulopetista não pode encontrar expressão na plataforma partidária e as palavras escritas pelo partido não podem encontrar correspondência nos programas de governo.

O lulopetismo fabricou não uma, mas duas versões da história do Brasil. A original, apoiada na chave da ruptura, diz que a nação alcançou a independência quando Lula subiu a rampa do Planalto, após a longa noite de “500 anos” na qual “a elite governou este país”. Uma segunda, apoiada na chave da continuidade, diz que Lula restaurou uma estrada de emancipação projetada por Getúlio Vargas (“o presidente que tirou toda a nação de um estágio de semiescravidão”), implantada por Juscelino Kubitschek (“quem conscientizou o país de que o desenvolvimento nacional é uma prerrogativa intransferível de um povo”) e pavimentada por Ernesto Geisel (“o presidente que comandou o último grande período desenvolvimentista do país”). As duas versões, contraditórias entre si, convivem numa harmonia perfeita regulada pelas necessidades e circunstâncias políticas.

As versões contraditórias contêm, ambas, um elemento invariante, que é o conto de uma queda. De acordo com ele, a presidência de FHC representou uma catástrofe nacional: a venda do templo e a conspurcação dos lugares santos. Nessa linha, diante do túmulo de Tancredo, Dilma crismou o ex-presidente tucano como chefe dos “exterminadores do futuro”. A peregrinação da candidata lulista a São João del Rei cumpria uma função de produção de sentido. Ela estava lá para escrever algumas novas linhas na versão continuísta da narrativa histórica do lulopetismo. O Brasil, informa-nos a versão revisada, moveu-se continuamente na direção do futuro, numa jornada inaugurada por Getúlio Vargas, que prosseguiu com Juscelino Kubitschek, Ernesto Geisel e a Nova República, até desviar-se tragicamente de seu rumo, na hora da ascensão de FHC. À luz dessa versão, Lula surgiu para, providencialmente, resgatar a nação do abismo, mostrando-lhe a senda de volta à estrada principal.

Da Carta aos Brasileiros à homenagem prestada por Dilma ao fundador da Nova República, o lulopetismo percorreu um longo caminho e eliminou bagagens pesadas, que representavam fardos políticos. O socialismo, embalsamado nas resoluções partidárias, foi expurgado da cena pública. Os radicais do “povo de Deus” deixaram o partido, rumo ao PSOL, ou foram acomodados na periferia buliçosa, mas inefetiva, do MST. O novo partido da ordem ocupou o centro do palco político, tecendo a coalizão com o PMDB e forjando um bloco de poder extraparlamentar que, sob o influxo das empresas estatais e dos fundos de pensão, abrange uma fatia significativa do grande empresariado, as centrais sindicais e os chamados movimentos sociais. Em São João del Rei, Dilma depredava a história – mas a mentira fazia sentido.

O retrato de Lula
Depois da peregrinação de Dilma, Serra tinha a oportunidade de fazer uma declaração esclarecedora sobre a história, na abertura de sua campanha na televisão. O principal candidato oposicionista poderia colar no muro, ao lado do seu, os retratos de Tancredo Neves, Itamar Franco e FHC. Legitimamente, poderia ir adiante, enfileirando no lado oposto os retratos de José Sarney, Fernando Collor, Lula e Dilma Rousseff. Entretanto, escolheu colar no seu muro o retrato de Lula. A decisão – adotada pelo próprio candidato ou por seu marqueteiro genial, tanto faz – condensa a falência política da oposição.

O gesto farsesco teve um impacto avassalador, palpável o suficiente para ser registrado tanto nas pesquisas quanto nas conversas de rua: nos dias seguintes, milhões de eleitores de Serra desertaram indignados, declarando-se fartos do baile de máscaras promovido pelo candidato. Os eleitores tinham razão: aquele não era um equívoco episódico, mas o prolongamento e a conclusão lógica de uma estratégia de campanha alicerçada sobre a abdicação do direito de fazer oposição.

Bem antes do gesto catastrófico, a campanha já se equilibrava precariamente sobre uma corda frouxa, trançada com os fios complementares da arrogância e da covardia. A arrogância transparecia na crença quase mística nos efeitos da comparação entre as biografias de Serra e da candidata oficial. A covardia, na decisão inabalável de não confrontar o lulismo com uma visão alternativa sobre o governo, o Estado e a nação. Sob o manto de uma estratégia supostamente eficaz, derivada dos altos níveis de aprovação do governo e da figura de Lula, Serra apresentava-se como o gerente mais confiável do continuísmo. No fim, a derrota não representou um fracasso eleitoral, mas o sintoma epidérmico de uma doença grave que corrói o organismo dos partidos de oposição. O mal de que padecem o PSDB e o DEM é a incapacidade de oferecer à nação uma plataforma alternativa à do lulopetismo.

Algo de curioso aconteceu quando, na contagem de votos do segundo turno, desenhou-se inequivocamente o resultado final. Então, rompendo um protocolo da democracia, Serra retardou o discurso de reconhecimento da derrota, escolhendo pronunciar-se depois de Dilma. No seu pronunciamento, o candidato oposicionista não se referiu à presidente eleita como presidente de todos os brasileiros, preferindo conclamar seus seguidores a ocuparem a “trincheira” da “luta pela democracia”. Desse modo, encerrou num diapasão sectário, inadequado à vigência indiscutível das liberdades políticas, uma campanha marcada pela hesitação em fazer oposição.

Naquele discurso final, Serra jactou-se dos 44% de votos válidos obtidos no segundo turno e os dirigentes do PSDB enfatizaram o valor dos triunfos em São Paulo e no Sul. Há algo aí, sem dúvida, mas o quadro inteiro é bastante diferente daquilo que sugeria o partido derrotado. Dilma venceu esmagadoramente no Nordeste, mas triunfou também no Sudeste, graças aos resultados de Minas Gerais e do Rio de Janeiro, e obteve um empate técnico no Rio Grande do Sul. As bancadas oposicionistas no Senado e na Câmara sofreram severa redução, produzindo esmagadoras maiorias governistas.

Os números frios não contam a história eleitoral inteira. A passagem de Serra ao segundo turno, graças ao crescimento de última hora da candidatura de Marina Silva, decorreu de fatores largamente estranhos às campanhas dos candidatos. Segundo todos os indícios disponíveis, Dilma resolveria a eleição no primeiro turno não fossem os efeitos de uma tripla conjunção: o escândalo do tráfico de influência de Erenice Guerra na Casa Civil, os ataques verbais destemperados de Lula contra a imprensa e uma polêmica sobre o tema do aborto que emergiu nas igrejas e na internet.

Derrotas eleitorais são eventos normais nas democracias. A derrota eleitoral de Serra é maior do que sugerem as estatísticas e os mapas publicados no final das apurações. Contudo, ainda mais expressivo é o fracasso político da oposição. Da campanha de 2010 não emanou um discurso coerente de ação política oposicionista. A conclamação patética à “trincheira” da “democracia” evidenciou o vazio. Hoje, diante dos olhos de todos, ele é preenchido pelas guerrilhas personalistas intestinas que, destituídas de algum conteúdo de interesse público, desmoralizam os partidos de oposição.

A candidata de Lula tinha o favoritismo desde o início da disputa eleitoral. Contava com o apoio do presidente, que a classificou como seu “pseudônimo”, e também da maior parte das elites política e empresarial. Além disso, crucialmente, beneficiava-se das altas taxas de crescimento econômico dos últimos anos, nos quais o Brasil surfou a “etapa chinesa” da globalização. Para ter uma chance de mudar o cenário previsível, Serra precisaria agir como estadista – isto é, como a figura que se ergue acima das circunstâncias, desafia o senso comum, afronta setores de sua própria base partidária e oferece aos eleitores uma narrativa política transparente, equilibrada e franca. Em campanha, o candidato tucano não se furtou a dirigir críticas fragmentárias ao governo e à sua candidata. Porém, como estilhaços de uma granada perdida, elas nunca formaram um conjunto coerente, capaz de sintetizar uma aspiração de mudança.

Serra não tem, contudo, a responsabilidade integral pelo fracasso político de sua campanha. A abdicação de agir como oposicionista tem um precedente tão próximo quanto ainda vívido. Nas eleições presidenciais de 2006, a campanha de Geraldo Alckmin entrou em colapso logo após o primeiro turno, quando o candidato cobriu-se com os logotipos das empresas estatais para sublimar o debate sobre as privatizações de FHC. Alckmin e Serra, cada um na sua hora, destruíram suas campanhas por meio de gestos paralelos de rendição política. Há, nisso, bem mais que uma coincidência.

De olho no retrovisor
No primeiro debate televisivo da campanha, Serra afirmou que não disputa eleições “de olho no retrovisor”. A frase de efeito não apenas denota desconforto com o passado como também veicula uma canhestra tentativa de passar uma borracha sobre a história. De mais a mais, evidencia uma surpreendente incompreensão da democracia: eleição é o momento no qual a nação revisita suas opções pretéritas e reflete sobre as diferentes estradas que conduzem ao futuro.

Atrás da frase, estava a esperança de circundar a discussão sobre o governo FHC – a mesma esperança que conduziu Alckmin a fantasiar-se como campeão das empresas estatais. O governo FHC representou o ápice da aventura política do PSDB. Nas duas eleições sucessivas, o repúdio tácito à própria herança, com seus acertos e erros, impediu que os tucanos analisassem criticamente o governo Lula e o PT, inscrevendo-os numa narrativa inteligível da trajetória recente do Brasil. A candidatura de Dilma Rousseff, tal como arquitetada por Lula, convertia a eleição num plebiscito sobre o lulismo. Não era viável, a não ser pela renúncia a fazer oposição, driblar a natureza plebiscitária do pleito. A alternativa era aceitá-la – mas mudando seus termos, por meio de um debate político esclarecedor.

O governo FHC inscreve-se, como o governo Lula, na trajetória brasileira pós-redemocratização. Nessa trajetória, firmaram-se consensos nacionais: o império da lei, das liberdades públicas e da democracia; a estabilidade econômica, a inserção do País na corrente da globalização; o resgate da “dívida social” gerada pelo modelo de crescimento implantado na ditadura militar. Tais consensos se consolidaram na “era FHC”. A política econômica seguida por Lula foi, no essencial, uma continuidade do programa delineado com o Plano Real. As políticas sociais de Lula foram, basicamente, desdobramentos das de FHC, com ampliações relevantes derivadas da conjuntura internacional favorável.

A oposição tinha a oportunidade de narrar essa história, apontando passo a passo a resistência do PT aos avanços obtidos no passado recente. O PT expulsou seus deputados que foram ao Colégio Eleitoral votar em Tancredo. O PT rejeitou o Plano Real. O PT denunciou, pela voz de Lula, o Bolsa-Escola como “bolsa esmola”. As conversões tardias do lulopetismo, queimando o que adorava e adorando o que queimava, deveriam ser expostas aos eleitores, a fim de traduzir em outros termos o debate sobre o passado proposto pelo próprio PT. A oposição não fez nada disso, em duas eleições, porque perdeu o rumo desde o segundo mandato de FHC.

Na moldura propiciada pela política de equilíbrio macroeconômico, o governo FHC redefiniu o lugar do Estado na economia, por meio do programa de privatização e da implantação das agências reguladoras. Além disso, avançou na profissionalização da burocracia e da gestão públicas, iniciando a desmontagem do Estado patrimonial herdado da “era Vargas”. No plano político, cautelosa e lentamente, começou a libertar a máquina administrativa da vasta rede de interesses clientelistas tecida por elites regionais e grupos partidários.

Contudo, o impulso das reformas arrefeceu na hora da aprovação da emenda da reeleição, que demandou compromissos em arco, abrangendo justamente as elites ameaçadas pelo programa de modernização do Estado. No segundo mandato, o sistema político enrijeceu-se e as forças inerciais fizeram sentir seu peso. As reformas política, eleitoral, sindical e trabalhista, tão necessárias, foram sacrificadas em nome da governabilidade. Sob o impacto das crises financeiras internacionais e de graves erros de gestão da política energética, o governo sofreu desgastes sucessivos, que prepararam o triunfo de Lula em 2002.

Uma derrota eleitoral não significa, necessariamente, uma derrota política. Mas, já na campanha eleitoral de 2002, o PSDB e o DEM relutavam em fazer uma defesa clara, contundente defesa da obra do governo FHC. O PT, pelo contrário, engajava-se na construção de uma narrativa oportunista, presa à dupla âncora do nacionalismo e do corporativismo, que atribuía às privatizações os problemas sociais do País. Ali, os principais partidos da atual oposição decidiam ignorar “o retrovisor”, cedendo o terreno doutrinário e ideológico ao petismo.

A renúncia à defesa do legado ajudou o lulopetismo a pintar em cores farsescas toda a política brasileira dos últimos oito anos. Lula governou com software macroeconômico de seu antecessor, mas seu partido jamais reconheceu essa dívida, que propiciou o crescimento com estabilidade. Lula não reverteu as privatizações de FHC, mas seu partido continuou a exibi-las como uma abominação. Lula ampliou vastamente as transferências sociais de renda que condenara, mas passou a acusar a oposição de classificá-las como “bolsa esmola”. A destruição sistemática da inteligibilidade da linguagem política serviu à construção da atual hegemonia do lulopetismo – mas apenas porque o PSDB e o DEM fugiram do campo de batalha das ideias.

A crítica à campanha de Serra em 2010 não é apenas inevitável, mas também necessária. Contudo, ela se transfigurará em novo subterfúgio escapista dos partidos de oposição se não se olhar para “o retrovisor”. No fim das contas, o candidato do PSDB foi fiel a seu partido, reproduzindo os hábitos e costumes inaugurados antes ainda da passagem da faixa presidencial de FHC para Lula.

A oposição que não temos
O lulismo, que prossegue com Dilma Rousseff,¬ não é a política macroeconômica do governo, tomada de empréstimo de FHC, mas uma concepção sobre o Estado e a nação. A sua vinheta de propaganda diz que o Brasil é “um país de todos”. Eis a mentira a ser exposta. O Estado remodelado ao longo dos dois mandatos de Lula é um conglomerado de interesses privados. Nele se acomodam a elite patrimonialista tradicional, a nova elite política petista, grandes empresas associadas aos fundos de pensão, centrais sindicais chapa-branca e movimentos sociais financiados pelo governo.

Num “país de todos”, a administração pública é conduzida por uma burocracia profissional. Sob Lula, a tradição de colonização privada da máquina pública amplificou-se e assumiu formas singulares, que resultam da emergência das novas elites oriundas do PT, dos sindicatos e dos movimentos sociais. Mais do que nunca, o Brasil precisa de uma reforma do Estado. O lulismo, que conferiu a José Sarney o estatuto de “homem incomum”, não a fará. A oposição, entretanto, não levanta essa bandeira, que se choca com o patrimonialismo entranhado em todos os partidos políticos.

Num “país de todos”, o movimento sindical expressa a vontade dos trabalhadores organizados. O lulismo repaginou o imposto sindical de origem varguista para estender o financiamento compulsório às centrais sindicais. A nova burocracia sindical, como a antiga, está subordinada ao Estado – com a diferença muito importante de que a sua corrente central também se conecta ao aparelho político do PT. Os partidos de oposição não reagiram à montagem da versão lulista da CLT, preferindo buscar pontos de apoio nas correntes periféricas do neopeleguismo. Nada indica que ousarão propor a adoção da Convenção 87 da OIT, retomando a palavra de ordem da liberdade sindical que um dia pertenceu ao PT e à CUT.

Num “país de todos”, a cidadania é um contrato apoiado no princípio da igualdade perante a lei. No Brasil do lulismo, os indivíduos ganharam rótulos raciais oficiais, que já começam a regular o exercício de direitos e ameaçam produzir fronteiras sociais intransponíveis. A única pesquisa científica de opinião pública sobre o tema das cotas raciais, realizada poucos anos atrás no Rio de Janeiro por uma ONG racialista, revelou que uma maioria de dois terços, formada por pessoas de todas as cores de pele, rejeita a introdução da raça na lei. Mesmo assim, a aprovação parlamentar das primeiras leis raciais da história do País não foi confrontada pelo PSDB ou pelo DEM, só encontrando resistência em algumas figuras da oposição, como notadamente o senador Demóstenes Torres (DEM – GO).

Num “país de todos”, a política externa subordina-se a valores consagrados na Constituição, como a promoção dos direitos humanos. Sob o lulismo, a palavra constitucional vergou-se diante de ideologias propensas à celebração de ditaduras enroladas nos trapos de um visceral antiamericanismo. Em Cuba, Lula comparou os prisioneiros políticos do castrismo aos presos comuns brasileiros. Na ONU, os representantes do País opuseram-se a investigações e denúncias sobre violações de direitos humanos. Na América Latina, o Brasil deu cobertura ao enrijecimento do autoritarismo chavista, flertou com a reivindicação de concessão às FARC do estatuto de “força combatente” e engajou-se na aventura burlesca promovida por Hugo Chávez em Honduras. Alhures, numa iniciativa desastrosa, o Brasil tricotou o fracassado acordo tripartite com o Irã, escarnecendo da política internacional de não proliferação nuclear.

Vozes da oposição exercitaram a crítica, mas apenas no episódio da aprovação parlamentar do ingresso da Venezuela no Mercosul os partidos oposicionistas marcaram claramente seu inconformismo com a política oficial. Na campanha eleitoral, sob o curioso argumento de que não se trata de assunto capaz de ganhar as atenções da maioria, Serra emudeceu quase por completo sobre os problemas estratégicos e de princípio da política externa lulista. Os partidos de oposição parecem desconhecer o impacto dos temas dos direitos humanos, das liberdades públicas e da democracia na sociedade brasileira. A persistente relutância em expor as relações entre a natureza autoritária do PT e as orientações de política internacional do lulismo constitui uma aula completa sobre o estado falimentar do PSDB e do DEM.

O governo Lula conservou os fundamentos da política macroeconômica herdada mas, aos poucos, começou a plantar as sementes de um modelo econômico baseado no protagonismo estatal. As agências reguladoras sofreram vertiginoso esvaziamento. À tríade constituída por Eletrobras, Telebras e Petrobras atribuíram-se novas funções, de reorganização anticompetitiva dos mercados nos quais operam. A alteração da Lei Geral de Telecomunicações para favorecer a Oi, os ensaios do Projeto Nacional de Banda Larga, a engenharia financeira da hidrelétrica de Belo Monte e o marco regulatório do pré-sal representam indícios clamorosos da reconstituição de um modelo de capitalismo de Estado abandonado nos anos 1990.

O BNDES, banco público de fomento, e os fundos de pensão, patrimônios privados controlados efetivamente pelo governo, desempenham papéis cruciais na estratégia econômica geral do lulopetismo. O poder financeiro discricionário desses atores propicia vultosas transferências de recursos para o grande empresariado que orbita ao redor do Estado. As sucessivas capitalizações do BNDES, com recursos do Tesouro, funcionam de fato como um vasto subsídio público a empresários privados, escolhidos a dedo pelo poder político de turno.

O novo modelo econômico, ainda esboçado, adquirirá amplitude com uma anunciada coleção de obras faraônicas, que se estende de Belo Monte ao Trem-Bala e alcança os projetos de infraestrutura e esportivos ligados à Copa do Mundo e às Olimpíadas. Entretanto, ao que parece, os partidos oposicionistas nada têm a dizer sobre o modelo em gestação, que subordina o interesse público aos interesses privados. Assim, depois de renunciarem à defesa programática das agências reguladoras e das privatizações, o PSDB e o DEM curvam-se a uma estratégia de desenvolvimento baseada na emissão de dívida pública e no desperdício em larga escala dos recursos nacionais.

O Plano Real e a política de estabilidade econômica configuraram um programa de governo com profundo apelo popular. FHC foi eleito e reeleito em primeiro turno, derrotando Lula por duas vezes, pois esse programa abriu a estrada para o crescimento com distribuição de renda. O chão estabelecido na “era FHC” solicitava um novo programa de apelo popular, voltado para a universalização efetiva dos direitos sociais. Contudo, o PSDB e o DEM jamais formularam tal programa – e, como resultado, perderam a audiência da maior parte da população de baixa renda. Nas eleições de 2010, mais que um corte regional, verificou-se um recorte social no eleitorado: Serra foi batido na população de baixa renda até mesmo em São Paulo.

O lulopetismo alicerça-se sobre uma doutrina conservadora, que veste fantasias de esquerda. Lula também não formulou um programa de universalização dos direitos sociais, preferindo concentrar-se numa audaciosa expansão dos programas de transferência direta de renda, que geram imediatos dividendos eleitorais. Na “era Lula”, pouco se fez nas esferas da educação, da saúde e da segurança pública. No “país de todos”, os pobres continuam sem escolas públicas e hospitais de qualidade e seguem à mercê do crime organizado. Serra desperdiçou a oportunidade de apresentar ao País um ambicioso plano de metas destinado a universalizar os direitos sociais num horizonte temporal previsível, ordenado por um cronograma verificável. Mas, afinal, por que ele daria esse passo, se os partidos oposicionistas desistiram há tempo de falar ao povo?

Um eleitorado sem representação
Lula abordou a sua sucessão como uma campanha de reeleição. No Brasil, como na América Latina em geral, o instituto da reeleição tende a converter o Estado numa máquina partidária. A presidência, os ministérios, as empresas estatais e as centrais sindicais neopelegas foram mobilizadas para assegurar o triunfo da candidata oficial. A economia, no ano eleitoral de 2010, avançou em desabalada carreira, num ritmo alucinante propiciado pelo crédito farto e pelos fluxos especulativos de investimentos estrangeiros. Eduardo Campos em Pernambuco, Jaques Wagner na Bahia, Sérgio Cabral no Rio de Janeiro, Antonio Anastasia em Minas Gerais, Geraldo Alckmin em São Paulo, todos candidatos da continuidade, obtiveram a vitória nos pleitos estaduais sem a necessidade de segundo turno. Por que, então, a “mulher de Lula”, o pseudônimo do mito vivo, disputando em condições excepcionalmente favoráveis, não triunfou no primeiro turno?

Os institutos de pesquisa registravam, na época da campanha eleitoral, uma taxa de aprovação do governo Lula em torno de 80%. Cerca de dois terços da aprovação recordista originavam-se de indivíduos que conferem ao presidente a avaliação “bom”, não “ótimo”. Nesse grupo, uma maioria não votou na “mulher de Lula” no primeiro turno. Dilma precisou de segundo turno, disputando contra um Serra carente de discurso político, assim como o próprio Lula precisou do turno final quando concorreu com um Alckmin que se negava a defender a herança de FHC.

Os resultados eleitorais de 2010, tanto quanto os de 2006, permanecem abertos a análises e polêmicas. Há, porém, uma evidência indiscutível: uma parte expressiva do eleitorado brasileiro, superior a 40%, rejeita nitidamente o lulopetismo. A sociedade brasileira – moderna, urbana, complexa – não se ajusta à sedimentação de seu sistema político sob o peso de um hegemon. A rejeição ao petismo expressa- -se na sociedade sob as mais diversas formas. Essa oposição, entretanto, não se traduz adequadamente nos atuais partidos oposicionistas – e, portanto, também não encontra expressão parlamentar. É um sinal preocupante sobre o estado de saúde de nossa democracia.

DEMÉTRIO MAGNOLI, sociólogo e doutor em Geografia Humana, integra o GACINT-USP e assina colunas de opinião nos jornais O Estado de S. Paulo e O Globo.

quinta-feira, 5 de agosto de 2010

O Ministerio da Utopia (SAE) - Demetrio Magnoli

Ministério da utopia
Demétrio Magnoli
O Estado de S. Paulo, 05/08/2010

Intelectuais tendem à utopia, pois ela precisa de uma descrição e eles são seus autores. Isaiah Berlin não está entre os filósofos mais célebres precisamente porque é um pensador antiutópico. "As utopias têm o seu valor - nada amplia de forma tão assombrosa os horizontes imaginativos das potencialidades humanas -, mas como guias da conduta elas podem se revelar literalmente fatais", anotou Berlin. As utopias almejam a completa realização de um conjunto de premissas, com a exclusão de todas as outras. É um caminho muito perigoso, "pois, se realmente acreditamos que tal solução é possível, então com certeza nenhum preço será alto demais para obtê-la".

A democracia constitui um sistema político avesso à utopia porque, por definição, rejeita atribuir estatuto de verdade incontestável a qualquer conjunto de premissas ideológicas. Os intelectuais utópicos têm um lugar na democracia - o de instigadores do debate público. Mas o sistema democrático de convivência de ideias contraditórias se estiola quando eles são alçados à posição de sábios oficiais e suas utopias são convertidas em verdades estatais.

Samuel Pinheiro Guimarães, até outro dia secretário-geral do Itamaraty, foi guindado à Secretaria de Assuntos Estratégicos (SAE). No novo cargo, elaborou um documento intitulado O Mundo em 2022, ainda em versão preliminar, que circula no governo e no Itamaraty. Trata-se de um delineamento das tendências do sistema internacional, com propostas de políticas estratégicas do Brasil. Dito de modo direto, é a plataforma de uma utopia ultranacionalista, a ser aplicada num hipotético governo de Dilma Rousseff, que colide com os valores e as tradições da democracia brasileira.

Num texto escrito em português claudicante, o intelectual utópico expõe uma doutrina antiamericana que solicita uma curiosa articulação estratégica entre Brasil, Rússia, Índia e China "para reformar o sistema internacional e torná-lo menos arbitrário". Os Brics, acrônimo cunhado no interior de um banco de investimentos, constituem um "bloco" apenas na acepção restrita de que seus integrantes passaram a influenciar a governança econômica global. Eles, porém, não compartilham interesses geopolíticos relevantes - uma evidência clamorosa que escapa por completo à percepção de Guimarães, moldada por um obsessivo antiamericanismo.


Os equívocos teóricos pouco significam, perto das prescrições políticas. Nostálgico do "Brasil-potência" dos tempos de Ernesto Geisel, Guimarães atribui ao Estado os papéis de "estimular o fortalecimento de megaempresas brasileiras (...) para que possam atuar no cenário mundial globalizado" e de conduzir um programa de investimentos em pesquisa e desenvolvimento de amplas implicações militares. Os significados desta última proposição podem ser entrevistos na passagem em que o autor define o Tratado de Não-Proliferação Nuclear como o "centro" de um processo ameaçador de "concentração de poder militar". A leitura do documento oferece indícios sugestivos para a compreensão da lógica subjacente à aproximação entre Brasil e Irã e à operação diplomática brasileira de cobertura do programa nuclear iraniano.


No programa ultranacionalista, ausências falam tanto quanto presenças. Ao longo de 54 itens, não há nenhuma menção aos direitos humanos. Não é surpreendente: um livro de Samuel Pinheiro Guimarães, publicado em 2006, qualificou a defesa dos "direitos humanos ocidentais" como uma forma de dissimular "com sua linguagem humanitária e altruísta as ações táticas das Grandes Potências em defesa de seus próprios interesses estratégicos". A militância do governo Lula contra a política internacional de direitos humanos - expressa na ONU, em Cuba, no Irã, no Sudão, na China e em tantos outros lugares - não é um fenômeno episódico, mas reflete uma visão de mundo bem sedimentada. Lastimavelmente, as ONGs brasileiras de direitos humanos financiadas pela Fundação Ford trocaram a denúncia de tal militância pela aliança com o governo na difusão da doutrina dos "direitos raciais".

A utopia regressiva de Samuel Pinheiro Guimarães colide com a Constituição, que veta a busca de armas nucleares e situa a promoção dos direitos humanos no alto das prioridades de política externa do Brasil. Se a sua plataforma política aparecesse na forma de artigo, isso não seria um problema - e, talvez, nem mesmo uma fonte de debates interessantes. As coisas mudam de figura quando ela emerge como documento de Estado, produzido num Ministério encarregado de formular as diretrizes estratégicas do País.

O governo Lula exibe, sistematicamente, inclinação a partidarizar o Estado. A contaminação ideológica da política externa é uma dimensão notória dessa inclinação. Há, contudo, um antídoto contra a doença, que é a supervisão parlamentar das diretrizes estratégicas de política externa. Nos EUA, uma nação presidencialista como a nossa, as prioridades e os orçamentos do Departamento de Estado são submetidos ao crivo do poderoso Comitê de Relações Exteriores do Senado, expressão do controle social, bipartidário, sobre uma política de Estado. O Senado brasileiro tem uma Comissão de Relações Exteriores e Defesa Nacional. Entretanto, sua gritante ineficácia, que exprime uma carência quase absoluta de poder real, proporciona ao governo as condições para a continuidade da folia ideológica em curso.

A SAE foi concebida como uma jaula dourada para acomodar (e ridicularizar) Roberto Mangabeira Unger, quando ele aderia ao governo que definira como "o mais corrupto da história". Agora, sob Guimarães, a jaula transforma-se em linha de montagem de uma utopia ultranacionalista que funcionaria como a régua e o compasso da inserção internacional do Brasil. A Nação tem o direito inalienável de se proteger contra o Ministério da Utopia, sujeitando a política externa ao escrutínio democrático dos parlamentares.

sábado, 8 de maio de 2010

A concepcao de desenvolvimento de certas pessoas...

Um capitalismo de Estado, engordado com o dinheiro de todos os brasileiros, para premiar os amigos do poder com grandes obras subsidiadas...

Lula celebra Geisel em Belo Monte
DEMÉTRIO MAGNOLI
O Estado de S.Paulo, 29 de abril de 2010

Belo Monte lembra Itaipu, de muitas formas. O estudo de viabilidade da usina, então batizada Kararaô, começou em 1980, durante a construção de Itaipu. O nome do general-presidente Ernesto Geisel está ligado às duas obras. Itaipu nasceu do consórcio binacional firmado um ano antes de sua posse, mas tornou-se um ícone do modelo de desenvolvimento que ele personificou. O conceito original de Kararaô foi elaborado durante o seu quinquênio, como parte de um grandioso plano de exploração do potencial hidrelétrico da Amazônia. De Kararaô a Belo Monte, mudou a abordagem dos impactos sociais e ambientais do projeto. Por outro lado, a engenharia financeira da hidrelétrica, tal como exposta no seu leilão, evidencia a restauração da visão geiseliana sobre o Brasil.

Lula definiu Geisel como "o presidente que comandou o último grande período desenvolvimentista do País". A crítica ao desenvolvimentismo geiseliano não partiu dos liberais, então um tanto calados, mas da esquerda. As grandes obras de infraestrutura de sua época foram financiadas à custa do endividamento estrutural do Estado e pagas ao longo de mais de uma década de inflação. No preço oculto das variadas Itaipus, esses objetos do encantamento de Lula, deve-se contar a crise política crônica que destruiu o regime militar e envenenou os governos Sarney e Collor tanto quanto a impotência do Estado para investir em serviços públicos de saúde e educação. Tais lições, aprendidas na transição política que viu nascer o PT, são hoje renegadas, no discurso e na prática, por um presidente embriagado de soberba.

Geisel ofereceu energia barata para a indústria, subsidiando-a pela via da exclusão social de milhões de brasileiros. Uma ditadura comum pode fazer isso por algum tempo, mas é preciso uma ditadura à chinesa para sustentar tal estratégia de desenvolvimento. Kararaô não seguiu adiante pois esgotara-se o fôlego financeiro e político do modelo de Geisel. Desde a redemocratização, sob pressão dos eleitores, os governos iniciaram um redirecionamento dos fundos públicos para as finalidades sociais. O leilão de Belo Monte representa uma inflexão nessa curva virtuosa.

A engenharia financeira da usina se subordina ao dogma geiseliano da tarifa barata. O suposto benefício não passa de um subsídio indireto aos empresários industriais e comerciais, que consomem juntos quase 70% da oferta total de eletricidade. A tarifa comprimida afugentou os investidores privados, convertendo o Estado no financiador principal da obra. O BNDES entrará com 80% dos recursos, a juros subsidiados e prazo de pagamento de 30 anos. Como o BNDES não dispõe desse capital, o Tesouro pagará a conta, emitindo dívida pública.

O preço real da eletricidade que será produzida, escondido atrás da tarifa de mentira, corresponde à remuneração do capital investido na obra, mais os custos e lucros da concessionária. A diferença entre o preço real e a tarifa recairá sobre os brasileiros de todas as faixas de renda, inclusive sobre a geração que ainda não vota. Itaipu, segunda versão: apesar daquilo que dirá a candidata governista no carnaval eleitoral, o povo fica condenado a subsidiar a energia consumida pelo setor empresarial.

Lula celebra Geisel no templo profano do capitalismo de Estado. Contudo, se o general confinava as empresas parceiras à lucrativa função de empreiteiras, o presidente que o admira prefere o sistema de aliança no consórcio concessionário. O jogo, mais complexo, assumiu a forma de uma contenda entre aliados pela distribuição de poder e benesses financeiras. À sombra da regra da tarifa subsidiada, manejando os recursos públicos e o capital dos fundos de pensão, que trata como se fossem públicos, o governo impôs o controle estatal sobre o consórcio.

A Eletrobrás, imaginada como uma Petrobrás do setor elétrico, terá a hegemonia na operação da usina, pela via da participação de 49,98% da Chesf no consórcio vencedor. À meia luz, no ambiente propício aos acertos heterodoxos, desenvolve-se o processo de domesticação dos parceiros privados, que aceitarão posições subordinadas em troca de generosas isenções tributárias e da almejada participação como empreiteiros. O leilão foi apenas o ponto de partida da negociata multibilionária, que seguirá seu curso longe dos olhos da opinião pública.

A nova Itaipu custará estimados R$ 30 bilhões. Na sequência, vem aí o leilão do trem-bala, com custo similar, também financiado essencialmente por meio de emissão de dívida pública. O PT nasceu no ano da concepção de Kararaô e no rastro da crítica de esquerda ao peculiar nacionalismo geiseliano, com a sua aliança entre o Estado-empresário e uma coleção de grandes grupos privados associados ao poder. Três décadas depois, é no capitalismo de Estado que ele busca um substituto para a descartada utopia socialista.

"No Brasil dos generais, quem quisesse crescer tinha de ter uma relação de dependência absoluta com o setor público", explicou um alto executivo da construtora Norberto Odebrecht, que participou da fase derradeira da construção de Itaipu. O fundador da empresa mantinha relações estreitas com Geisel. Seu neto, Marcelo, atual presidente da Odebrecht, conserva uma coerência de fundo com as ideias do avô. É essa coerência que o levou a afirmar, três meses atrás: "O Chávez tem vários méritos que o pessoal precisa reconhecer. Antes dele, a Venezuela estava de costas para a América do Sul e de frente para os EUA. Vocês podem questionar o que quiserem, mas é inequívoca a contribuição que Chávez deu à integração do continente americano. É inequívoco, também, que os objetivos são nobres."

Marcelo Odebrecht pode ou não ter objetivos "nobres", mas não é ingênuo nos negócios - nem em política. A Odebrecht negocia a sua incorporação ao consórcio de Belo Monte. Ela tem bilhões de motivos para gostar do capitalismo de Estado.

É SOCIÓLOGO E DOUTOR EM GEOGRAFIA HUMANA PELA USP. E-MAIL: