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quarta-feira, 26 de fevereiro de 2014

Venezuela: pronunciamento da oposicao brasileira

O SR. ALOYSIO NUNES FERREIRA (Bloco Minoria/PSDB - SP. Pronuncia o seguinte discurso. Com revisão do orador.) – Sr. Presidente, Srªs e Srs. Senadores, cederia de bom grado também ao Senador Pedro Simon, que tem todos os títulos para exercer sobre todos nós a mais tutelar das precedências.

Sr. Presidente, Srªs e Srs. Senadores, o Brasil inscreveu na Constituição de 1988, mais precisamente no art. 4º da nossa Carta Magna, os compromissos que temos, que o nosso País tem, que a República brasileira tem na ordem internacional. Entre outros, são esses os compromissos: guiar-se pela prevalência dos direitos humanos e também pela não intervenção e pela autodeterminação dos povos.
Estamos assistindo, Sr. Presidente, a uma escalada de radicalização política na Venezuela. Todos acompanhamos com enorme preocupação o que ocorre nesse país vizinho. O Presidente Nicolás Maduro, pupilo do falecido ditador Hugo Chávez, depois de haver exercido ilegitimamente, por algum tempo, a presidência da República – tempo necessário para preparar eleições nas quais se elegeu por uma margem diminuta de votos, num pleito contestado pela oposição –, defrontando-se com uma oposição crescente do seu povo, inconformado com a situação de caos econômico, inflação desenfreada, escassez de produtos e escalada do autoritarismo, esse presidente opta pela violência e repressão.
São mais de 500 presos, pessoas que foram detidas, algumas liberadas; 45 venezuelanos continuam na cadeia hoje. Há oito mortos, conhecidos até agora, a se lamentar. O presidente insiste em garrotear a liberdade de expressão, censurando a imprensa, pressionando os canais de televisão e de rádio. Chegou até, Sr. Presidente, a interferir no funcionamento da internet para impedir a comunicação entre os cidadãos em províncias consideradas por ele como inimigas, províncias onde prevalece o voto e a liderança da oposição. A cada dia, a ideia de que aquele país possa prosseguir sob a presidência de semelhante desequilibrado parece mais remota.
A Presidente Dilma, evidentemente, manifestou-se sobre esse assunto, provocada pela imprensa, na reunião de Bruxelas, e não poderia ter sido mais infeliz a sua declaração. Primeiro, ela começa por uma obviedade: a Venezuela não é a Ucrânia. Muito grato, Senhora Presidente, pela lição. Todos nós sabemos disso. Mas, a partir dessa obviedade, dessa platitude, a Presidente da República emite um conceito profundamente inquietante a respeito do valor que ela empresta à democracia na apreciação que tem de determinada situação, de determinado país, no caso, um país membro do Mercosul, que atualmente exerce a presidência rotativa desse organismo. Minimizando a situação democrática, minimizando e malbaratando o déficit democrático crescente e a escalada de violência promovida pelo governo Maduro, Sua Excelência diz apenas: “Precisamos levar em conta os avanços na área da saúde e na área da educação que a Venezuela tem conhecido.” Em primeiro lugar, eu não sei se são tão grandes assim esses avanços. O fato é que a Venezuela é um dos países mais violentos. Caracas, talvez, seja a campeã mundial da violência, medida pelo número de homicídios. Não sei até onde vão esses avanços, mas não há avanço econômico e social, ainda que fosse real, que possa ser alcançado ao preço do desprezo das instituições democráticas, da democracia, do respeito aos direitos humanos.
A Presidente da República do Brasil jamais poderia fazer esse tipo de balanço – de um lado, os avanços supostos ou reais na área da educação e da saúde; de outro lado, o sistema democrático em frangalhos –, para que prevalecesse a sua apreciação sobre o aspecto econômico e social da realidade da Venezuela de hoje.
É absolutamente inaceitável, Sr. Presidente, que a Presidente da República de um País democrático, que se orgulha da sua democracia – é a grande democracia do continente sul-americano – e que deveria ter na democracia o apanágio maior da sua presença nas relações internacionais, especialmente na América Latina, faça essa afirmação. É inaceitável essa afirmação da Presidente da República!
Soma-se a isso, meus caros colegas, uma nota da qual o Brasil é signatário, emitida pelo Mercosul, a respeito da mesma situação, a situação da Venezuela. Essa nota o Brasil teria feito muito melhor em não assiná-la. Se fosse compelido a renunciar ao seu papel de liderança, seria melhor que ele não a assinasse, pois o Brasil, desmentindo a tradição, a melhor tradição da diplomacia brasileira, nessa nota, condena a oposição venezuelana. É isso que se lê na nota emitida pelo Mercosul, quando chama os opositores de semeadores da violência, do caos e de ações criminosas. Pois criminoso é o regime chavista de Nicolás Maduro!
Evidentemente, não cabe ao Brasil interferir na vida de qualquer país, embora, na América Latina, recentemente, tenha havido intervenções no sentido de reforçar tiranetes, como o Presidente deposto de Honduras, Zelaya, e também ao patrocinar uma intervenção, uma violência contra o Paraguai, afastando-o do convívio do Mercosul, depois que, seguindo os trâmites da Constituição, o Presidente Lugo foi afastado.
Evidentemente – volto a dizer –, não preconizo nenhum tipo de intervenção, mas é preciso que o Brasil deixe claro, especialmente aos seus parceiros do Mercosul – alguns deles têm uma inclinação perigosamente autoritária, que se esconde sob um rótulo fantasista de bolivariano –, que, nas relações internacionais, o nosso compromisso é com a prevalência da democracia e dos direitos humanos.
Essa declaração da Presidente Dilma emitida ontem em Bruxelas e a vergonhosa nota do Mercosul são absolutamente inaceitáveis diante dos princípios constitucionais que regem a nossa política externa e diante da consciência democrática do povo brasileiro.
Muito obrigado.

sexta-feira, 31 de maio de 2013

Venezuela: politica externa do maniqueismo - Carlos Malamud


 Colombia y la política exterior venezolana
InfoLATAM, 31 MAYO, 2013 

La visita de Henrique Capriles, el líder de la oposición venezolana, a Bogotá provocó una intensa tormenta política y diplomática tanto en su país como en las relaciones bilaterales colombo-venezolanas. El principal factor desencadenante del conflicto fue el encuentro, una visita privada, que mantuvo Capriles con Juan Manuel Santos, el presidente de Colombia en la Casa de Nariño, la sede oficial de la presidencia. También molestó su visita al Congreso colombiano, donde frente a un grupo de diputados y senadores pidió que “no dejen sola a Venezuela”.
En cualquier país normal una situación de este tipo hubiera causado mucho menos ruido o hubiera pasado prácticamente desapercibida, con una mínima cobertura en las páginas interiores de los periódicos. Son incontables los casos en que líderes de la oposición son recibidos por jefes de estado o de gobierno, o visitan parlamentos extranjeros, en los más diversos países del mundo. Baste recordar el recibimiento con honores de jefe de estado que otorgó en su día Fidel Castro a Hugo Chávez cuando éste visitó La Habana en diciembre de 1994, tras pasar dos años en la cárcel por su actividad golpista.
En esta ocasión nos enfrentamos a una reacción desmesurada del gobierno bolivariano, debido a las manifestaciones de altos funcionarios gubernamentales y parlamento. Tanto el ministro de Exteriores, Elías Jaua, como el presidente de la Asamblea Nacional, Diosdado Cabello, hicieron durísimas declaraciones, mientras el presidente Nicolás Maduro llamaba de regreso a Caracas a Roy Chaderton, el comisionado del gobierno venezolano para el proceso de paz colombiano que se está negociando en La Habana.
El conjunto de la respuesta venezolana responde al contexto extraordinario que vive el país. Al mismo tiempo, el gobierno del presidente Maduro sitúa las relaciones internacionales, incluso con los países vecinos y los “hermanos latinoamericanos”, bajo la misma dinámica que rige la política interna. De este modo, en la política exterior bolivariana ha desembarcado la crispación y la polarización, dominada por la lógica amigo/enemigo tan presente en la lucha política nacional.
La extrema dureza de las palabras oficiales del gobierno venezolano se expresa por si misma. El ministro Jaua señaló que el gobierno venezolano “lamenta profundamente que el presidente Santos haya dado un paso que de manera dolorosa nos va a llevar a un descarrilamiento de las buenas relaciones que teníamos”. Al mismo tiempo insistía en que “se confirma que desde Bogotá hay una conspiración abierta contra la paz en Venezuela” que alcanza “los más altos poderes del Estado colombiano”. Y agregó: “es lamentable para ambos pueblos” que mientras su gobierno “está haciendo esfuerzos denodados” para lograr la paz en Colombia, a cambio “reciba como respuesta de las instituciones del estado colombiano en Bogotá el aliento y el estimulo a quienes pretenden desestabilizar la paz en Venezuela”.
Por su parte, Diosdado Cabello calificó como una “agresión” a Venezuela la decisión de Santos de recibir a Capriles y fue todavía más lejos al afirmar: “El presidente Santos le está poniendo una bomba al tren de las buenas relaciones que tanto le pidió el presidente Chávez… Le mete una patada a la mesa recibiendo a alguien que está en contra de la paz de Venezuela”“Desde el Poder Legislativo rechazamos contundentemente esto, porque se trata de una conspiración contra Venezuela que encuentra en territorio colombiano y en el Gobierno colombiano apoyo… entendemos que es un plan de la derecha internacional donde el presidente Santos es parte activa”. Por eso concluyó diciendo que planteará al parlamento que pida al gobierno colombiano que “clarifique si está con el golpismo que representa Capriles o con el pueblo de Venezuela”.
Es evidente que todo esto muestra el nerviosismo en que está instalado el gobierno de Nicolás Maduro y su creciente pérdida de credibilidad frente a la comunidad internacional. El riesgo de persistir en esta tendencia es un cada vez mayor aislamiento internacional. En el caso de Colombia la situación se agrava, ya que el gobierno venezolano había pensado que a raíz de los diálogos de paz de La Habana entre el gobierno de Bogotá y las FARC, el presidente Santos debía funcionar como una especie de rehén en sus manos si no quería que los diálogos descarrilaran.
Los declaraciones de Jaua y Cabello también permiten contextualizar el estado de las relaciones bilaterales hispano – venezolanas. Después de la elección que, según las cifras oficiales, dio lugar a un ajustado triunfo de Nicolás Maduro sobre Enrique Capriles, la tensión entre Caracas y Madrid escaló de forma importante. En dos ocasiones las autoridades chavistas protestaron duramente por las declaraciones del ministro Margallo.
En aquel entonces, algunos analistas hablaron de la imparcialidad o de la ligereza del discurso español, que no contemplaba adecuadamente la compleja realidad venezolana. A la vista de lo ocurrido como consecuencia de la visita de Capriles a Bogotá se desprende que por más cuidado que se ponga, por más que se escojan adecuadamente las palabras (eligiendo las menos controversiales), la reacción violenta de la contraparte es posible en la medida que los dichos y las acciones propias no se adecuen a las expectativas bolivarianas. Y éstas pasan, únicamente, por la subordinación a sus puntos de vista.
La reacción venezolana también evidencia la amenaza que supone para el proyecto hegemónico cubano – venezolano de expansión continental el lanzamiento y potencial desarrollo de la Alianza del Pacífico. La reciente cumbre presidencial de la Alianza, celebrada en Cali, es buena prueba de sus posibilidades de ampliación, a la vista de las reacciones de países tan diversos como Uruguay, Paraguay o incluso Ecuador, que de momento, según su ministro de Exteriores, se limita a recopilar información sobre el proceso. Mientras Juan Manuel Santos asumió en Cali la presidencia pro tempore de la Alianza, en breve Nicolás Maduro asumirá la presidencia pro tempore de Mercosur. Con este tipo de actitudes del gobierno venezolano lo único que se logra es atentar contra el proyecto de unidad continental, retóricamente denominado de “patria grande” o incluso contra la misma supervivencia de Unasur.


quinta-feira, 2 de maio de 2013

Venezuela: batendo, literalmente, na oposicao - Editorial Estadao

Sessão de violência
Editorial O Estado de S.Paulo, 2/05/2013


Nas democracias, quando políticos governistas falam em “bater na oposição”, ou vice-versa, todos sabem que se trata de uma metáfora. Significa encurralar, isolar, desmoralizar os adversários. É bem verdade que, não faz tanto tempo assim, os brasileiros viram o que pode acontecer quando a expressão é empregada em sentido literal. Em junho de 2000, o então presidente do PT, José Dirceu, incitou professores em greve a agredir o governador Mário Covas, já combalido pelo câncer. “Eles (os tucanos) têm que apanhar nas ruas e nas urnas”, ordenou o futuro chefe da quadrilha do mensalão. Embora estarrecedor, foi, no entanto, um episódio excepcional.
Já nos regimes em que as instituições nominalmente democráticas foram capturadas pelo mais crasso autoritarismo, bater fisicamente na oposição acaba sendo apenas uma entre tantas outras modalidades truculentas de enfrentamento político. Foi o que aconteceu na noite de terça-feira no plenário da Assembleia Nacional da Venezuela, quando deputados chavistas, à maneira de uma matilha, acuaram e em seguida espancaram diversos membros da frente oposicionista Mesa de Unidade Democrática (MUD) que ousaram protestar contra a condição de parlamentares mortos-vivos a que os reduziu o presidente da Casa, Diosdado Cabello, expoente da facção ultratroglodita do aparato chavista de poder.
O mais recente ciclo de violência no país começou tão logo saíram os surpreendentes resultados da eleição presidencial de 14 abril. Pelos números oficiais – contestados de imediato pelo candidato oposicionista Henrique Capriles, governador do Estado de Miranda -, o herdeiro político do caudilho Hugo Chávez, falecido havia pouco mais de um mês, Nicolás Maduro levou a melhor por irrisório 1,49 ponto porcentual de vantagem, ou 265 mil votos em um total aproximado de 14 milhões. Apontando numerosas evidências de irregularidades nos postos eleitorais, Capriles exigiu a recontagem total de votos, em vez da auditoria obrigatória de 54% das urnas eletrônicas, que compara os números nas telas com os comprovantes impressos que os eleitores depositam em um recipiente fechado.
A muito custo, a autoridade eleitoral dominada por chavistas concordou em estender a amostragem a 100% dos sufrágios, mas se recusou a examinar as provas de fraude, entre elas a inclusão de milhares de eleitores fantasmas nas listas dos venezuelanos aptos a votar. Diante disso, a oposição decidiu considerar Maduro um presidente ilegítimo enquanto as demandas de seu candidato não fossem atendidas. A retaliação não tardou. Enquanto as milícias chavistas batiam nos opositores nas ruas, Diosdado Cabello, o chefe do Legislativo – em um ato reminiscente do clássico de terror político 1984, de George Orwell –, proibiu os deputados do MUD de falar em plenário e de participar de comissões legislativas. Além disso, suspendeu o pagamento de seus salários.
Segundo a sua lógica orwelliana, já que eles não reconhecem “a vontade soberana do povo”, não podem exercer os seus mandatos, originários do mesmo sistema eleitoral que contestam. De seu lado, com a mesma especiosa argumentação, Maduro ameaçou suspender as transferências de recursos federais para o Estado governado por Capriles.
Na sessão de terça-feira da Assembleia, quando o líder da bancada chavista, Pedro Carreño, exortou Cabello a manter as represálias aos proscritos, alguns deles desenrolaram um cartaz com a inscrição “Golpe no Parlamento”. Foi a senha para a agressão que se transformou em pancadaria, deixando feridos pelo menos 17 oposicionistas e 5 governistas.
“Sem uma palavra, covardemente, eles nos atacaram pelas costas”, contou o deputado do MUD Ismael Garcia. “Não pouparam nem nossas deputadas.” O seu colega Julio Borges apareceu no canal privado Globovisión com diversos hematomas na face. Cabello havia proibido a única emissora autorizada a cobrir as atividades do Congresso de entrevistar parlamentares do minoritário MUD. Ninguém o acusará de incoerente.

domingo, 30 de setembro de 2012

Miseria da oposicao (PRA, 2011): a miseria continua...


Em abril de 2011 publiquei um texto de críticas à nossa medíocre oposição política. Parece que ela continua medíocre, e o texto mais do que atual.
Segue o artigo, tal como publicado na revista Interesse Nacional e disponível neste link: http://interessenacional.uol.com.br/2011/04/a-miseria-da-oposicao-no-brasil-da-falta-de-um-projeto-de-poder-a-irrelevancia-politica/#more-245
 Paulo Roberto de Almeida 


A Miséria da Oposição no Brasil Da Falta de um Projeto de Poder à Irrelevância Política?

Paulo Roberto de Almeida
Revista Interesse Nacional, Abril 2011

O cenário político brasileiro: a deterioração democrática
Um observador medianamente informado sobre a cena política brasileira da última década seria capaz de reconhecer a conjuntura histórica de transformação que ocorre nas forças dominantes no sistema político. Trata-se de uma evolução gradual, que um analista que trabalhe com as categorias “gramscianas” provavelmente consideraria tratar-se da emergência de um novo “bloco dominante”, tendente à hegemonia política e social. Essas novas forças estão identificadas com o PT e os partidos e movimentos a ele associados, que passaram de uma longa trajetória (1980–2002) de oposição ao sistema de poder anteriormente dominante, e que mantém, desde 2003, sua bem-sucedida consolidação majoritária. Os recursos – políticos, financeiros, humanos – para essa ascensão vieram em primeiro lugar dos sindicatos e dos movimentos sociais vinculados ao partido hegemônico nesse bloco e, depois de 2003, do próprio Estado e de uma miríade de entidades dominadas ou influenciadas por ele (empresas estatais, fundos de pensão, empresários “amigos” e os próprios militantes encastelados numa infinidade de cargos públicos).
O mesmo observador tampouco deixaria de reconhecer a oposição atual como uma oposição “miserável”, ou seja, incapaz de assumir as responsabilidades de sua condição. Com efeito, ele não teria dificuldades em constatar a gradual diluição da “oposição”, das mesmas forças que ocuparam o poder entre meados dos anos 1990 e início da década seguinte, mas que foram batidas três vezes desde então (2002, 2006 e 2010) e que arriscam serem vencidas novamente em 2014. O que surpreende no processo político brasileiro não é tanto a capacidade do governo de alinhar em torno de suas posições as forças políticas dos mais variados horizontes, sobretudo no Congresso; a surpresa é constituída, antes, pela debilidade da “oposição”, derrotada, mas ainda não destruída, e sua incapacidade de reorganizar suas tropas, de redefinir suas bandeiras de luta e de exercer sua função institucional de oferecer uma alternativa às políticas do bloco no poder.
O termo “oposição” figura, na maior parte deste ensaio, entre aspas, pois o que se apresenta hoje, fora do arco governamental, não merece, legitimamente, essa designação, seja por deficiências intrínsecas, seja por fatores objetivos vinculados ao quadro político-eleitoral do Brasil. As aspas, justamente, não se devem às derrotas, esperadas ou previsíveis, da “oposição”, mas à sua incapacidade de ser aquilo a que o processo político a relegou temporariamente: uma oposição, na plena acepção da palavra. Se, e quando, ela assumir seu papel, será eximida da presença das aspas.
Se o mesmo observador, especulando por antecipação, fosse convidado a traçar um prognóstico sobre o futuro do sistema político brasileiro e se, no mesmo movimento, ele se dedicasse a divagar sobre a trajetória provável da “oposição” nos anos à frente, talvez não hesitasse muito em prever um destino melancólico, quando não trágico, para as forças que passam por oposição ao governo do PT. Estaria ela, de fato, condenada a desaparecer do cenário político, como força alternativa viável ao atual bloco hegemônico? Teriam os supremos estrategistas petistas – muitos mais por instinto do que por estratégias bem calculadas – conseguido realizar aquilo que Gramsci pregou no cárcere mussoliniano, sem que ele ou o partido que recuperou sua herança intelectual jamais tivesse conseguido materializar na prática? Estaríamos em face de um “bloco histórico” destinado a manter hegemonia sobre o sistema político pelo futuro previsível? Se isso ocorrer, seria o mais próximo que o Brasil já chegou daquilo que muitos representantes desse bloco chamam de “pensamento único”, embora eles mesmos apliquem o termo a uma inexistente ou rarefeita tribo de “neoliberais”.
Este texto não aspira responder a todas as questões relevantes para o futuro da democracia no Brasil. Não é nosso objetivo analisar todos os componentes de um sistema político relativamente complexo em suas diferentes vertentes organizacionais e forças atuantes, mas relativamente simples quanto às linhas principais de seu ordenamento. De um lado, temos o poder econômico incontrastável de quem detém o poder – e pode, assim, “comprar”, literalmente, os apoios de que necessita para se perpetuar no poder; de outro, forças dispersas e desorganizadas que sequer se entendem sobre um diagnóstico da situação, para planejar um contra-ataque que estaria na lógica de todos os sistemas políticos democráticos: a alternância no comando do Estado. Uma constatação de ordem geral não pode, contudo, deixar de ser feita inicialmente: o sistema democrático brasileiro, que já era de baixa qualidade antes de 2003, tornou-se ainda mais deplorável no plano de seu funcionamento e no de sua responsabilidade para com os eleitores, uma vez que o bloco petista se encarregou de deteriorar ainda mais a qualidade da democracia brasileira, realizando um amálgama de todas as forças políticas oportunistas, fisiológicas e rentistas que sempre se aproximaram do centro do poder, qualquer poder.
Mas o presente texto não pretende analisar o cenário político brasileiro como um todo; trata apenas da trajetória recente da atual¬ “oposição” ao governo do PT, supostamente empenhada, desde 2003, em criar as condições para reconquistar seu eleitorado e se configurar como alternativa viável de governo, no seguimento de uma hipotética vitória eleitoral em 2014. Estabelece primeiro um diagnóstico da situação política na presente conjuntura, para examinar em seguida as tarefas da oposição num sistema político democrático. Passa, então, a analisar as principais deficiências da “oposição” brasileira, para depois formular uma série de considerações sobre uma possível estratégia de reconquista do poder pela “oposição”, visando convertê-la em oposição, simplesmente, credível e com chances de chegar ao poder. O texto conclui afirmando que o eventual sucesso de qualquer estratégia de ação da atual “oposição” depende, em grande medida, de lideranças esclarecidas, o que não parece ser o caso, atualmente, com o simulacro de oposição existente.
Outra constatação inicial, que o mesmo observador político referido ao início deste ensaio poderia fazer é que essa “oposição” presumida deixou ao relento, de fato órfão, metade do eleitorado brasileiro, a julgar pelas evidências da mais recente campanha presidencial, ao faltar com suas responsabilidades de verdadeira oposição e ao não oferecer respostas compatíveis com as demandas desses eleitores. Mas essa constatação é um desdobramento lógico da análise que agora passa ser feita.
Continuar a leitura neste link:
ou neste: 

sábado, 30 de junho de 2012

Miseria da oposicao no Brasil - Artigo PRA na revista Interesse Nacional

Nota liminar: mais um dos meus posts atrasados de um ano atrás. Mas creio que o tema permanece atual: ou seja, a mediocridade da oposição no Brasil, ou simplesmente a falta de líderes, o que permite a aventureiros e oportunistas ocupar todo o espaço.
Paulo Roberto de Almeida 



Creio que não havia postado, na íntegra, o artigo abaixo sobre a "oposição" política (de araque), existente atualmente no Brasil.
Eu o havia feito às pressas, para atender a um pedido do editor da revista Interesse Nacional, com vistas a tapar um "buraco" que iria ser deixado nesse número da revista, devido ao fato que o ex-presidente FHC não havia entregue um artigo seu a tempo, como prometido. Daí fiz o artigo muito rapidamente, o que explica o tom negativo, ou pessimista, apenas de criticas a oposição.
Depois, na última hora, FHC apresentou o seu, no qual colocou algumas frases mal pensadas -- como aquela sobre a desistência do "povão", que provocou desentendimentos e até comentários maldosos de certos meios -- mas que pelo menos despertou o debate e chamou a atenção de todos para essa revista relativamente obscura.
Agora tenho de fazer um artigo mais propositivo sobre a oposição. Ele está sendo preparado.
Paulo Roberto de Almeida


A Miséria da “Oposição” no Brasil 
Da Falta de um Projeto de Poder à Irrelevância Política?
Paulo Roberto de Almeida
revista Interesse Nacional (n. 13, abril-junho 2011, p. 28-36; link).

O cenário político brasileiro: A deterioração democrática
Um observador medianamente informado sobre a cena política brasileira da última década seria capaz de reconhecer a conjuntura histórica de transformação que ocorre nas forças dominantes no sistema político. Trata-se de uma evolução gradual, que um analista que trabalhe com as categorias “gramscianas” provavelmente consideraria tratar-se da emergência de um novo “bloco dominante”, tendente à hegemonia política e social. Essas novas forças estão identificadas com o PT e os partidos e movimentos a ele associados, que passaram de uma longa trajetória (1980–2002) de oposição ao sistema de poder anteriormente dominante, e que mantém, desde 2003, sua bem-sucedida consolidação majoritária. Os recursos – políticos, financeiros, humanos – para essa ascensão vieram em primeiro lugar dos sindicatos e dos movimentos sociais vinculados ao partido hegemônico nesse bloco e, depois de 2003, do próprio Estado e de uma miríade de entidades dominadas ou influenciadas por ele (empresas estatais, fundos de pensão, empresários “amigos” e os próprios militantes encastelados numa infinidade de cargos públicos).
O mesmo observador tampouco deixaria de reconhecer a oposição atual como uma oposição “miserável”, ou seja, incapaz de assumir as responsabilidades de sua condição. Com efeito, ele não teria dificuldades em constatar a gradual diluição da “oposição”, das mesmas forças que ocuparam o poder entre meados dos anos 1990 e início da década seguinte, mas que foram batidas três vezes desde então (2002, 2006 e 2010) e que arriscam serem vencidas novamente em 2014. O que surpreende no processo político brasileiro não é tanto a capacidade do governo de alinhar em torno de suas posições as forças políticas dos mais variados horizontes, sobretudo no Congresso; a surpresa é constituída, antes, pela debilidade da “oposição”, derrotada, mas ainda não destruída, e sua incapacidade de reorganizar suas tropas, de redefinir suas bandeiras de luta e de exercer sua função institucional de oferecer uma alternativa às políticas do bloco no poder.
O termo “oposição” figura, na maior parte deste ensaio, entre aspas, pois o que se apresenta hoje, fora do arco governamental, não merece, legitimamente, essa designação, seja por deficiências intrínsecas, seja por fatores objetivos vinculados ao quadro político-eleitoral do Brasil. As aspas, justamente, não se devem às derrotas, esperadas ou previsíveis, da “oposição”, mas à sua incapacidade de ser aquilo a que o processo político a relegou temporariamente: uma oposição, na plena acepção da palavra. Se, e quando, ela assumir seu papel, será eximida da presença das aspas.
Se o mesmo observador, especulando por antecipação, fosse convidado a traçar um prognóstico sobre o futuro do sistema político brasileiro e se, no mesmo movimento, ele se dedicasse a divagar sobre a trajetória provável da “oposição” nos anos à frente, talvez não hesitasse muito em prever um destino melancólico, quando não trágico, para as forças que passam por oposição ao governo do PT. Estaria ela, de fato, condenada a desaparecer do cenário político, como força alternativa viável ao atual bloco hegemônico? Teriam os supremos estrategistas petistas – muitos mais por instinto do que por estratégias bem calculadas – conseguido realizar aquilo que Gramsci pregou no cárcere mussoliniano, sem que ele ou o partido que recuperou sua herança intelectual jamais tivesse conseguido materializar na prática? Estaríamos em face de um “bloco histórico” destinado a manter hegemonia sobre o sistema político pelo futuro previsível? Se isso ocorrer, seria o mais próximo que o Brasil já chegou daquilo que muitos representantes desse bloco chamam de “pensamento único”, embora eles mesmos apliquem o termo a uma inexistente ou rarefeita tribo de “neoliberais”.
Este texto não aspira responder a todas as questões relevantes para o futuro da democracia no Brasil. Não é nosso objetivo analisar todos os componentes de um sistema político relativamente complexo em suas diferentes vertentes organizacionais e forças atuantes, mas relativamente simples quanto às linhas principais de seu ordenamento. De um lado, temos o poder econômico incontrastável de quem detém o poder – e pode, assim, “comprar”, literalmente, os apoios de que necessita para se perpetuar no poder; de outro, forças dispersas e desorganizadas que sequer se entendem sobre um diagnóstico da situação, para planejar um contra-ataque que estaria na lógica de todos os sistemas políticos democráticos: a alternância no comando do Estado. Uma constatação de ordem geral não pode, contudo, deixar de ser feita inicialmente: o sistema democrático brasileiro, que já era de baixa qualidade antes de 2003, tornou-se ainda mais deplorável no plano de seu funcionamento e no de sua responsabilidade para com os eleitores, uma vez que o bloco petista se encarregou de deteriorar ainda mais a qualidade da democracia brasileira, realizando um amálgama de todas as forças políticas oportunistas, fisiológicas e rentistas que sempre se aproximaram do centro do poder, qualquer poder.
Mas o presente texto não pretende analisar o cenário político brasileiro como um todo; trata apenas da trajetória recente da atual¬ “oposição” ao governo do PT, supostamente empenhada, desde 2003, em criar as condições para reconquistar seu eleitorado e se configurar como alternativa viável de governo, no seguimento de uma hipotética vitória eleitoral em 2014. Estabelece primeiro um diagnóstico da situação política na presente conjuntura, para examinar em seguida as tarefas da oposição num sistema político democrático. Passa, então, a analisar as principais deficiências da “oposição” brasileira, para depois formular uma série de considerações sobre uma possível estratégia de reconquista do poder pela “oposição”, visando convertê-la em oposição, simplesmente, credível e com chances de chegar ao poder. O texto conclui afirmando que o eventual sucesso de qualquer estratégia de ação da atual “oposição” depende, em grande medida, de lideranças esclarecidas, o que não parece ser o caso, atualmente, com o simulacro de oposição existente.
Outra constatação inicial, que o mesmo observador político referido ao início deste ensaio poderia fazer é que essa “oposição” presumida deixou ao relento, de fato órfão, metade do eleitorado brasileiro, a julgar pelas evidências da mais recente campanha presidencial, ao faltar com suas responsabilidades de verdadeira oposição e ao não oferecer respostas compatíveis com as demandas desses eleitores. Mas essa constatação é um desdobramento lógico da análise que agora passa ser feita.
O diagnóstico da situação política
É evidente que o atual bloco no poder – dominado majoritariamente pelo PT – conquistou legitimamente sua hegemonia política ao longo dos três últimos embates eleitorais. Ele o fez com base em hábil propaganda política, com extenso recurso à manipulação das comunicações, mas também com o apoio de uma boa organização partidária (e corporativa), ainda que recorrendo diligentemente à propaganda enganosa, eventualmente a fraudes processuais (quando não a crimes eleitorais, apenas parcialmente sancionados pela justiça do mesmo nome). Essencialmente, porém, a razão maior do sucesso foi, de forma muito explícita, o carisma político-eleitoral de sua principal liderança e figura de grande relevo no cenário político. É também evidente que essa mesma personalidade e o seu partido domesticado – mesmo se fracionado internamente – pretendem preservar a atual hegemonia pelo futuro previsível, com base nos mesmos elementos políticos, aplicando de maneira diligente as mesmas receitas que os habilitaram a dirigir o país nos últimos oito anos.
Ainda mais evidente, e visível, nesse período, foi o desaparecimento gradual e a virtual inoperância daquilo que se poderia chamar, com extrema generosidade, de “oposição”; na verdade, um conglomerado de tênues lideranças políticas, fragmentado em projetos pessoais ou regionais, e totalmente incapaz de oferecer alternativas credíveis ao eleitorado que não comunga das mesmas concepções de política, de economia e de sociedade do bloco no poder. Nunca se percebeu, desde 2003, um discurso coerente da “oposição”, alternativo e em oposição ao do bloco no poder. Este tampouco tinha um discurso coerente, mas soube implementar medidas de clara receptividade popular, sobretudo nas áreas sociais, com um enorme reforço de propaganda nas supostas virtudes do governo e apoiado no evidente carisma do seu líder político. Com base em virtudes próprias e nesse grande empenho publicitário, o líder em questão praticamente deixou a condição de carisma para firmar-se como novo mito do cenário político brasileiro, provando, mais uma vez, que mentiras bem articuladas podem, sim, criar fatos políticos dotados de boa impregnação popular.
Caso a evolução dos próximos anos confirme esse mesmo cenário, pode-se ter o afastamento da “oposição” – ou o que passa por ela – do governo durante mais de duas décadas, frustrando possivelmente metade do eleitorado brasileiro – das regiões mais desenvolvidas e majoritariamente de estratos mais esclarecidos – que não se reconhece no, e até recusa o, projeto de poder do bloco petista atualmente hegemônico. A percepção que emerge da atual situação brasileira é a de que a maior parte da população – embora não suas correntes mais esclarecidas – partilha das concepções econômicas, políticas e culturais do atual bloco no poder, que demonstrou ter praticado um “gramscismo” adaptado às condições de educação política do Brasil, configurando um cenário político que apresenta desafios para a consolidação de um sistema democrático no país, na medida em que as práticas políticas mobilizadas por esse bloco representam de fato um atraso relativo do ponto de vista da ética cidadã.
Não é surpreendente que o governo mantenha a capacidade de iniciativa e a ofensiva política – por todos os meios ao seu alcance – ou que até procure dominar – igualmente por todos os meios disponíveis, inclusive alguns pouco recomendáveis – o poder legislativo, colocado como nunca antes – salvo nos períodos ditatoriais – em situação de subordinação e de dependência em relação às verbas e diretivas do Executivo. Não se pode, tampouco, esquecer os movimentos ditos “sociais” (a maioria na folha de pagamentos do Executivo) e suas correias de transmissão nos mais diversos setores, com destaque para o sindical (não só de trabalhadores, mas igualmente patronais), que desempenham um papel importante na estratégia “gramsciana” de ocupação de espaços. A rigor, trata-se de uma “ditadura do Executivo”, no sentido de que este passa a determinar o voto dos parlamentares e as ações do que passa por uma “sociedade civil organizada” – manipulada, seria o termo mais exato – na direção que mais interessa ao primeiro, embora à custa de nacos do orçamento e de farta distribuição de cargos e comissões nas mais diversas prebendas estatais (na verdade, em todos os entes dominados ou influenciados pela vontade daquele poder).
O que é surpreendente é a “oposição” colocar-se totalmente a reboque da agenda governamental, deixar-se pautar pela propaganda oficial e descurar completamente da construção de uma pauta própria de críticas e reivindicações independentes, em nome da sociedade e dos eleitores de oposição que ela deveria supostamente representar. O que surpreende, de fato, é essa renúncia a ser oposição, ou a forma confusa, errática e até patética com que a “oposição” se desempenhou nesses anos de “travessia do deserto”. O parlamento é, evidentemente, o ponto fulcral das articulações políticas. Mas se a oposição revelou-se totalmente ineficiente, e até irrelevante, na suposta “casa das leis”, ela era inexistente, literalmente, na esfera da própria sociedade, cujos espaços de manifestações e de expressão de opiniões – inclusive nos meios acadêmicos e da imprensa – estavam totalmente ocupados por adesistas, por militantes da causa ou por serviçais do bloco no poder.
As tarefas da oposição num sistema político democrático
Em situações democráticas “normais” – isto é, com possibilidades reais de alternância no poder entre duas, ou mais, correntes majoritárias – o grupo que perdeu as eleições em um dado país se recompõe politicamente – eventualmente mudando seus líderes – e se dedica a uma séria preparação para os novos embates eleitorais mais à frente. Nas democracias modernas, o poder costuma ser alternativamente investido por três grandes grupos políticos – geralmente um de tendência social-democrata, ou socialista, outro bloco centrista ou reformista moderado, e, não raro, também, um setor conservador – que vão sendo guindados ao comando do Estado ou dele afastados em função da conjuntura econômica e dos benefícios sociais que eles possam trazer à maioria da população: desemprego, inflação, segurança (imigração, por exemplo), ou até questões morais (corrupção, mentiras e fraudes políticas, etc.).
A primeira tarefa, quando um grupo ou partido é “empurrado” para a oposição, é a de elaborar um diagnóstico – se possível consensual – sobre as razões da derrota: os líderes se dedicam, então, a analisar os fatores principais do insucesso para daí retirar as lições que se impõem, no que pode ser um simples episódio eleitoral momentâneo. Se a derrota é, porém, recorrente, ao longo de dois ou mais embates eleitorais, ou mesmo “estrondosa”, o diagnóstico teria de ser amplo, alcançando inclusive as bases programáticas do partido (sua “carta” aos eleitores). Nos casos menos graves se deveria atuar sobre os fatores de oportunidade, de mensagem política e de apresentação de propostas ao público eleitor. Feito o diagnóstico, retiradas as lições, deve-se preparar o terreno para as novas etapas que se apresentarão inevitavelmente à oposição. Nos regimes presidencialistas, as eleições sempre têm datas marcadas; nos parlamentaristas, elas podem se apresentar a intervalos variados.
Normalmente, uma oposição organizada tem, entre seus membros mais relevantes e também no staff partidário, especialistas nas diversas políticas macroeconômicas e setoriais que devem compor a mensagem do partido para o seu eleitorado, tradicional e flutuante (pois a intenção é sempre a de conquistar maior apoio entre os eleitores). Esses especialistas devem fazer o seguimento das políticas correspondentes do bloco no poder, discutir suas implicações para o país e tentar oferecer suas propostas alternativas de políticas, que contemplem as expectativas de seu eleitorado e de franjas mais amplas da população.
Normalmente, esse trabalho é conduzido no parlamento, mas o partido também pode ter apoios extensivos na sociedade, como são aqueles vinculados a movimentos sindicais e de interesses setoriais. Na tradição inglesa, tem-se a prática do shadow cabinet, ou seja, um “ministério” alternativo que faz o acompanhamento das políticas em curso, elabora a crítica das medidas implementadas e faz um oferecimento público de suas próprias alternativas de política. Não é preciso ser britânico, contudo, para exercer o saudável hábito do gabinete-espelho, ou melhor, de um governo paralelo; basta organizar seus especialistas e colaboradores voluntários para lançar o debate com a sociedade. Mais até do que oferecer soluções prontas e completas, a oposição tem de saber questionar os fundamentos de cada medida governamental, refazendo os cálculos de custo-benefício, alertando para os trade-offs e os side-effects – eles sempre existem – e antecipando consequências indesejadas e o custo-oportunidade da “receita” oficial. Este é, aliás, o principal dever da oposição: ela deve estar sempre pronta a oferecer soluções alternativas, ainda que parciais, ao quinto ou mesmo ao terço da população eleitoral não suficientemente identificada a uma das forças políticas nacionais dominantes (eventualmente no poder). É essa fração do eleitorado inconstante em suas escolhas – e volúvel, portanto – que pode fazer pender a balança para um lado ou para o outro, em função de considerações de curto prazo ou ligadas à conjuntura econômica do momento.
Na prática, as coisas são mais complicadas, pois, mesmo nos partidos mais modernos e institucionalizados, muito depende dos líderes do momento, do carisma e da atração que estes possam exercer sobre o eleitorado, e também das disputas entre as lideranças desse partido; estas últimas sempre podem eventualmente descambar para o regionalismo ou o caciquismo, em ambos os casos com consequências nefastas para a imagem da oposição. Mais grave ainda é quando essa oposição perde o contato com a realidade e com as expectativas de seu próprio eleitorado, para não dizer da maioria da nação. Surgem, nesse caso, dissidências que vão para outros partidos ou constituem os seus próprios. A experiência brasileira é extremamente pródiga nesses tipos de evento, sendo conhecida pela anarquia partidária, pela dança de partidos por parte de políticos profissionais e pela criação de partidos de aluguel ou de fachada.
Em qualquer hipótese, qualquer governo – de esquerda, de direita ou de centro – suporta o inevitável desgaste da governança, já que políticas “antipopulares” sempre precisam ser implementadas em algum momento, seja para corrigir exageros de tipo social-democrático (distributivismo fiscalmente irresponsável, déficits orçamentários, desalinhamentos cambiais, etc.), seja na vertente oposta (percepções de que os centristas ou conservadores se ocupam mais dos ricos do que dos pobres), ou por razões diversas (problemas de segurança, desemprego, etc.). A própria dinâmica econômica e conjunturas ¬adversas impõem limites a quem exerce o poder.
Assim, quando o eleitorado decidir tentar outros caminhos, outras soluções, a oposição, qualquer que seja ela, precisa estar pronta para oferecer suas receitas e propor seus remédios. A oposição precisa ter um programa de governo. Para isso ela precisa ter um projeto de poder, ou seja, ter consciência do que, exatamente, precisa ser feito, dizer como pretende fazer, e demonstrar credibilidade no empreendimento. O eleitorado brasileiro, pelo menos parte dele, tentou encontrar outra via, pelo menos em duas oportunidades: a “oposição” o abandonou miseravelmente. Ela não tinha soluções e sequer um discurso a apresentar. É o que discutiremos agora.
A “oposição” brasileira e suas principais deficiências
Não é preciso ser um analista político de qualquer envergadura para constatar que a “oposição” brasileira – que, apenas para relembrar, vinha de oito anos, ou mais, de exercício do poder – falhou miseravelmente em sua missão oposicionista. Dizer que ela foi inepta, ineficiente, incompetente, patética, seria até ser generoso com as principais forças que foram agrupadas nessa classificação de “oposição”. Basta dizer que, simplesmente, não existiu uma oposição de verdade durante todo o governo Lula: as forças que deveriam, até precisavam, ser oposição, simplesmente se autoanularam para um exercício que é uma das tarefas mais legítimas em todos os regimes democráticos.
Em sua defesa, pode-se dizer que os petistas, seu líder em especial, foram extremamente competentes – descontando-se, claro, as mistificações criadas para tal efeito – na construção de uma versão peculiar do processo político, da própria história recente do Brasil, o que deixou as forças potencialmente oposicionistas num estado psicologicamente defensivo, até de “vergonha assumida”, por supostos erros e injustiças cometidas ao longo do chamado neoliberalismo do “tucanato”. As campanhas eleitorais de 2002, de 2006 e de 2010 foram construídas com base em deformações grosseiras das políticas conduzidas sob os governos anteriores, desde as simplificações enganosas sobre as privatizações, até as patriotadas sobre a soberania retórica e a submissão ao FMI, passando pelo monopólio da “bondade social”, como se tudo tivesse tido início em 2003. Poucas vezes, no cenário político brasileiro, a versão deformada da história, em vários aspectos até mentirosa, conseguiu tal impregnação no imaginário popular, a ponto de anular discursos e ações daquelas mesmas forças que deram início à estabilização econômica e criaram as condições para a fase de crescimento com distribuição e prosperidade.
Muito se deve, obviamente, às qualidades de “ilusionista” político do presidente popular, suas mistificações propagandistas, mas também às boas condições da economia internacional, durante a maior parte de seus dois mandatos, e a uma gestão razoavelmente responsável na frente econômica. Mas deve-se reconhecer, também, que a “oposição” se autoanulou durante todo esse tempo, jamais tendo conseguido articular um discurso coerente, sequer esclarecedor, sobre o cenário de mentiras criado pelo bloco no poder. Quais as razões desse suicídio político?
Todo e qualquer ato político é encarnado por personagens políticos, príncipes e conselheiros do príncipe, que se conjugam na missão de conduzir homens e partidos ao pináculo do poder, ao comando do Estado. Devemos então concluir que à “oposição” brasileira faltaram as virtudes e as qualidades que, segundo Maquiavel, devem estar presentes nas pessoas que pretendem deter esse comando. Não que o presidente do bloco no poder fosse um estadista, mas certamente se tratava de um “animal político” extremamente competente. Pode-se dizer, nesse sentido, que à “oposição” – ou o que passa por ela – faltaram “animais políticos” de verdade, pessoas que tivessem as virtudes ou a fortuna – para permanecer nos termos do florentino – para representar uma pequena chance de alternância na disputa de poder.
Incapacidade de se organizar
Por certo que se trata de uma incapacidade de se organizar, com bases reais na sociedade, para, a partir daí, conceber e exibir um discurso coerente, compatível com as aspirações de largos estratos sociais, sobretudo nas classes médias. Mais grave ainda: pode-se dizer que à “oposição” brasileira faltaram, sobretudo, ideias claras sobre como apresentar e “vender” seu programa, se é presumível que, de fato, ela pudesse ter algo assimilável a um programa para oferecer à metade da população – na verdade estratos cambiantes – que não aceita e nunca aceitou a propaganda política que lhe foi servida sob disfarce de “política nacional” pelo bloco no poder. Sem conseguir ver claro no cenário político, dividida pelo caciquismo de seus líderes regionais, a “oposição” não soube sequer explorar as inconsistências e mazelas do bloco no poder, tão evidentes aos olhos de estratos médios de eleitores basicamente comprometidos com a ética e a moralidade no trato da coisa pública.
Pode-se aventar a hipótese de que a qualidade dos homens públicos que se colocam numa oposição de princípio ao bloco no poder – não por razões puramente instrumentais, de conquista do poder pelo poder, mas quer se acreditar que por razões de filosofia política – precisaria melhorar dramaticamente para que eles possam integrar algo suscetível de ser chamado de oposição. Talvez sejam necessárias, inclusive, novas lideranças políticas, que obviamente tenham “princípios” compatíveis com uma oposição digna desse nome. Tal “reinvenção” depende de vários fatores dentre os quais podem ser citados: a reeducação dos próprios integrantes do que é hoje uma oposição de araque; a reorganização de suas bases partidárias; a revisão do seu modo de “funcionamento” no Congresso; mudanças nos parâmetros mentais que orientam o discurso político e que comandam suas ações no plano prático; transparência aos olhos dos eleitores e, sobretudo, distinção clara com “tudo isso que está aí”, atualmente, e que visivelmente não agrada ao eleitorado instruído. Tudo leva a crer que uma nova oposição precisa ser construída, ou que a atual “oposição” deva ser praticamente reinventada, para, finalmente, começar a existir. Vejamos como.
Da travessia do deserto a... mais deserto?
A oposição a ser construída – a verdadeira, não o simulacro que hoje existe – já parte de uma formidável base real e potencial. Os dados eleitorais estão disponíveis no site do TSE, mas se podem extrair algumas conclusões adicionais a partir deles. A base total do eleitorado brasileiro situava-se, em 2010, em quase 136 milhões de pessoas, provavelmente atingindo 145 milhões em 2014. A abstenção em 2010 foi excepcional, alcançando quase trinta milhões de eleitores, aos quais se juntaram 4,6 milhões que anularam seus votos e 2,5 milhões que se abstiveram de qualquer escolha. Os “excluídos” representaram, portanto, um quarto do eleitorado; pode-se, em toda a legitimidade, imaginar que eles possam ser reduzidos à metade, em condições normais de disputa política, o que, infelizmente, não ocorreu em 2010.
Imaginamos, também, que os votos dados à “oposição”, em torno de 43 milhões, sejam realmente de oposição ao presente estado de coisas, especificamente ao “Estado do PT”. Pode-se razoavelmente conceber que uma oposição – qualquer oposição – no Brasil possa reunir metade do eleitorado, admitindo-se, inclusive, que a educação política, de um lado, e o desgaste do poder petista, do outro, contribuam para uma pequena maioria potencial, numa situação em que o mito carismático ainda estará ativo e trabalhando para consolidar o poder petista.
Num regime parlamentarista, é possível compor um governo com apenas 40% de apoio popular. Regimes presidencialistas do tipo brasileiro, ou americano, contudo, convivem com maiorias diferenciadas para a representação parlamentar e para a chefia do executivo, cargo este que exige a maioria absoluta do eleitorado. Na prática, não existe, a rigor e numa abordagem prosaicamente matemática, nenhuma garantia antecipada de vitória, ou certeza de derrota, para qualquer um dos lados, na medida em que, à diferença dos sistemas parlamentaristas, contendas eleitorais em sistemas fortemente marcados por disputas pessoais apresentam-se quase como uma loteria. Um dos fatores é que os eleitores “flutuantes”, os “indiferentes” e os “desalentados” são em número suficiente para alterar a balança para qualquer um dos lados.
Porém, números são um componente talvez objetivo, mas insuficiente para determinar resultados eleitorais. Mais importante é a predisposição do eleitorado para “acolher” uma definição clara quanto aos problemas mais angustiantes da conjuntura. A situação econômica pode até ser decisiva numa escolha eleitoral; mas as percepções sobre quem conduz a política econômica e sobre como ela é conduzida pelos responsáveis também são relevantes. Questões como emprego, segurança pessoal, disponibilidade de serviços públicos – saneamento, saúde e educação, etc. – e temas pontuais, de interesse setorial ou regional podem fazer pender a balança eleitoral. Em outros termos, não existe uma determinação prévia quanto aos embates eleitorais no modelo brasileiro – como em qualquer outro, aliás – e isso significa que as chances estão abertas às forças políticas que pretendam se apresentar como oposição.
Não importam quais sejam as alternativas de políticas oferecidas ao público eleitor por uma oposição efetiva e confiável. É preciso que esta seja precisamente isso: confiável. Ora, não é surpresa para nenhum eleitor medianamente bem informado que a classe política, de maneira geral, fez tudo o que era possível para se desqualificar moralmente, para se rebaixar no plano da ética, para deteriorar completamente a instituição parlamentar e outro tanto no plano dos executivos locais, estaduais e até o federal. Qualquer que seja a qualidade da nova mensagem política de oposição, se ela um dia existir, sua credibilidade, intrínseca e extrínseca, depende essencialmente da regeneração moral de suas lideranças, que deveriam operar aquilo que os italianos – escaldados por anos e anos de corrupção política – chamam de rientro morale, ou seja, uma profunda recomposição da ética na vida política do país.
A julgar por exemplos recentes – os aumentos para os próprios parlamentares e a questão das aposentadorias escandalosas de ex-governadores são dois casos eloquentes do completo descompasso entre as expectativas da população e a atitude das “oposições” – o Brasil não está sequer próximo de uma recomposição da classe política para fora da atual degradação das instituições de representação; nisso, a suposta “oposição” não se diferencia em nada das perversões morais alimentadas pelo próprio bloco no poder. Aparentemente, a “oposição” atual ainda não está pronta a empreender essa passagem; ela não quer enfrentar sua própria regeneração moral (talvez não possa, ou não tem coragem, provavelmente não quer).
Uma vez aceita e internalizada essa decisão pela “moralização” da oposição – que se situa no centro de toda e qualquer regeneração oposicionista, cabe lembrar – começa, então, a tarefa de organizá-la em função do objetivo da reconquista do poder. Tal tarefa implica, em primeiro lugar, uma definição clara de um programa político de escopo nacional e setorial, ou seja, uma plataforma explícita que toque em todos e em cada um dos principais problemas nacionais, sobretudo na esfera institucional, no terreno econômico e nas diversas áreas de maior impacto no plano das políticas públicas (social, cultural, regional, etc.).
Não é simples montar um programa e uma plataforma de ação com tal amplitude, o que certamente exigirá seminários e grupos de trabalho em cada uma dessas vertentes abertas à ação partidária. Mas um partido, ou uma oposição, que pretenda aspirar a ser uma real alternativa de poder não pode ser econômico nem em definições programáticas, nem em propostas político-econômicas relativamente detalhadas. Basta arregaçar as mangas e colocar o cérebro para pensar.
O que fazer? Tudo depende de lideranças esclarecidas
Vendo o panorama da planície, isto é, do ponto de vista dos cidadãos eleitores, não parece haver dúvidas de que o Brasil não conta com uma classe política à altura de suas novas responsabilidades enquanto potência emergente, desejosa de assumir um papel relevante na cena internacional. O parlamento, em especial, mas também os partidos políticos e as forças que gravitam em torno deles parecem viver num mundo à parte, feito de partilha de despojos estatais, conquista de pedaços do orçamento e disputa por pequenas prebendas em todos os poros do imenso ogro estatal.
A discussão sobre temas internacionais no parlamento, e dentro dos partidos, é rara, superficial e geralmente equivocada. Quando ela ocorre, tende a focar falsos problemas que estariam, supostamente, na origem das dificuldades enfrentadas pelo Brasil: guerra cambial de alguns, concorrência desleal de outros, capitais especulativos de um lado, arrogância imperial do outro, ameaças imaginárias sobre a soberania brasileira, em alguma parte de seu imenso território, e sobre seus fabulosos recursos naturais. Poucos desses representantes políticos, contudo, comparam o Brasil a seus equivalentes em outras partes do mundo; poucos deles se dão conta de como o Brasil avança devagar, de como ele está de fato atrasado em relação às mudanças mais dinâmicas que estão ocorrendo um pouco em todas as partes.
De fato, nenhum dos problemas atuais enfrentados pelo Brasil tem a ver com impactos negativos do ambiente externo: o mundo tem sido muito “generoso” com o Brasil, oferecendo mercados e provendo investimentos de todos os tipos para sustentar seu crescimento do período recente. Todos os problemas brasileiros, sem exceção, são made in Brazil, têm raízes puramente internas e devem receber aqui sua solução; seu equacionamento passa por um conjunto de reformas que deveria estar no centro de qualquer programa credível de proposta política geral de um movimento oposicionista que aspire legitimamente conquistar o poder para implementar, a partir daí, essas reformas.
A oposição não conseguirá chegar a ocupar esse espaço alternativo de candidata ao poder se não trabalhar intensamente no diagnóstico dos problemas brasileiros, no oferecimento de respostas sólidas aos mesmos problemas, e na sua própria organização interna, colocando-se numa posição de governo “virtual”, ou potencial, com base em propostas aceitáveis para uma maioria de brasileiros, sem ceder a populismos ou à demagogia habitual nesses meios. Ou seja, a oposição precisa estar pronta para oferecer outro futuro a todos os brasileiros que não acham que a esperteza política aliada ao oportunismo propagandístico representa o horizonte real de possibilidades para o país. Existe um imenso contingente de brasileiros que não se reconhece no estado de coisas vendido atualmente como a condição normal e possível para o Brasil. Como diriam alguns sonhadores, “outro Brasil é possível”; mas para isso outra oposição é necessária, uma que se apresente como alternativa credível.
Uma das condições essenciais para que essa oposição seja construída parece ser a existência de lideranças dotadas de credibilidade intrínseca e de capacidade política para, em primeiro lugar, reformar profundamente a “oposição” atual; num segundo momento, presidir à elaboração temática e organizacional de um “governo” alternativo ao atual bloco no poder. Não existe nenhum obstáculo “técnico”, nenhuma força externa à própria “oposição”, nenhum impedimento estrutural, ou nacional, de caráter político, para que essas tarefas sejam empreendidas.
Tudo depende da disposição de figuras políticas que pretendam aspirar ao papel de alternativa ao poder atual: a “fortuna” do quadro político pode ser favorável a uma oposição renovada, como observado nas eleições de 2010. Mas o fator mais importante ainda é – ele sempre é – constituído pelas “virtudes” dos condutores de cidadãos.
É diplomata de carreira e professor universitário, com diversos livros sobre a política externa e as relações internacionais do Brasil.
FONTE: Revista Interesse Nacional Nº 13 – Abril a Junho de 2011

sexta-feira, 15 de abril de 2011

As mentiras contadas pelo poder - Demetrio Magnoli

Um artigo do sociólogo -- meu colega de "tribo", portanto, mas eu não me considero muito membro dessa confraria, por não exercício de função, a não ser analítica -- Demétrio Magnoli sobre as mentiras políticas que circulam atualmente no Brasil.
Como sempre, a versão (deformada) da história passa por verdade política. Mas ela precisa ser denunciada.
Destaco este trecho, que tem a ver com política externa:
Num “país de todos”, a política externa subordina-se a valores consagrados na Constituição, como a promoção dos direitos humanos. Sob o lulismo, a palavra constitucional vergou-se diante de ideologias propensas à celebração de ditaduras enroladas nos trapos de um visceral antiamericanismo. Em Cuba, Lula comparou os prisioneiros políticos do castrismo aos presos comuns brasileiros. Na ONU, os representantes do País opuseram-se a investigações e denúncias sobre violações de direitos humanos. Na América Latina, o Brasil deu cobertura ao enrijecimento do autoritarismo chavista, flertou com a reivindicação de concessão às FARC do estatuto de “força combatente” e engajou-se na aventura burlesca promovida por Hugo Chávez em Honduras. Alhures, numa iniciativa desastrosa, o Brasil tricotou o fracassado acordo tripartite com o Irã, escarnecendo da política internacional de não proliferação nuclear.

Fiquem com uma leitura crítica e reflexiva
Paulo Roberto de Almeuda

Partido Único
DEMÉTRIO MAGNOLI
Revista Interesse Nacional (n. 13, abril-junho 2011)

Há quase um ano, Dilma Rousseff deflagrava as atividades públicas de sua campanha presidencial com um périplo em Minas Gerais. O estado parecia, para petistas e tucanos, o terreno onde se travaria uma batalha eleitoral decisiva. Contudo, entre tantos lugares, a candidata de Lula embrenhou- -se pelas veredas de São João del Rei, até o túmulo de Tancredo Neves, no qual depositou flores. O gesto era mais que oportunismo eleitoreiro paroxístico. Havia, nele, uma declaração sobre a história. Meses depois, na primeira semana de horário eleitoral gratuito, José Serra colou um retrato de Lula à sua imagem, sugerindo uma associação política. O gesto, ilustração de manual de um truque oportunista autodestrutivo, continha uma declaração sobre a história. Tanto quanto a declaração de Dilma, era uma narrativa falsa, essencialmente mentirosa.

Em princípio, num plano superficial, as duas mentiras evidenciam a pobreza política de uma campanha presidencial na qual os protagonistas desdenharam a capacidade de discernimento dos eleitores. É um equívoco analítico, porém, tratá-las como falsificações simétricas. O triunfo de Dilma e a derrota de Serra revelam a desigualdade entre as duas mentiras. A produção de uma narrativa falsa sobre a história recente do Brasil serve ao projeto hegemônico do lulismo. Quando o governo Dilma completou cem dias, a oposição praticamente desapareceu da paisagem nacional, não como resultado de algum tipo de restrição das liberdades pelo governo, mas como fruto da falência política do PSDB e do DEM.

No túmulo de Tancredo
Lula e o PT acercaram-se de Delfim Netto, celebraram com Jader Barbalho, aliaram-se a José Sarney, trocaram figurinhas com Paulo Maluf, assopraram as cicatrizes de Fernando Collor, uniram-se a Renan Calheiros. O que é um Tancredo, perto disso? Uma diferença, entre tantas, está na circunstância de que a figura homenageada por Dilma na sua peregrinação a São João del Rei deixou o mundo dos vivos para ingressar no firmamento dos símbolos.

Tancredo é uma representação: o ícone da transição pactuada que deu origem à Nova República. O PT vilipendiou aquela transição e decidiu não fazer parte da ordem que nascia. Primeiro, expulsou seus três deputados que votaram por Tancredo no Colégio Eleitoral. Depois, recusou-se a homologar a Constituição de 1988. O que fazia a candidata de Lula no berço simbólico de tudo o que o PT queimou na maior encruzilhada de nossa história recente?

A coerência absoluta é privilégio das seitas políticas, responsáveis apenas perante seus próprios dogmas. Todos os partidos de verdade, aqui e alhures, experimentam ambivalências ao olhar para trás, na direção de seu passado. Mas o lulopetismo encontra-se numa categoria separada. A narrativa histórica implícita na peregrinação ao túmulo de Tancredo situa-se em algum ponto entre a esquizofrenia e o distúrbio bipolar. E, no entanto, há método na loucura.

O PT surgiu como leito de confluência de muitas águas e diferentes histórias. Na média, identificava-se como um partido de ruptura, socialista mas avesso ao “socialismo real”. Os trabalhadores, numa vertente, e o “povo de Deus”, em outra, formavam a base social imaginada do petismo original. Depois, à medida que se aproximava do poder, o PT converteu-se num partido da ordem. A conversão, contudo, jamais assumiu as formas de uma releitura honesta de seu passado e de uma crítica política das ideias originais.

A antiga corrente interna liderada pelo deputado José Genoíno bem que tentou, mas o PT não seguiu a dura trilha de aggiornamento pela qual, ao longo de meio século, os partidos marxistas da Segunda Internacional se transfiguraram na atual social-democracia europeia. Na hora do triunfo de Lula, a distância incomensurável entre palavras e atos teve de ser vencida pelo recurso a um salto fraudulento: a Carta aos Brasileiros, articulada por Antonio Palocci, escrita por ex-trotskistas e assinada pelo candidato como negação do programa partidário. Não é trivial encarar o passado quando se joga esconde-esconde com o presente.

A esquizofrenia salta aos olhos. Nos seus dois mandatos, Lula pilotou a política econômica com o software elaborado por FHC e foi buscar no ninho tucano o operador dos manetes do Banco Central. Em campanha, Dilma jurou que rezará as três orações do livro da ortodoxia: câmbio flutuante, metas de inflação e superávit primário. Paralelamente, as resoluções do Congresso do PT de 2007 lamentavam a queda do Muro de Berlim e reiteravam tanto as “convicções anticapitalistas” quanto o compromisso com a “luta pelo socialismo”.

No partido, desde as crises da cueca e do caseiro, ninguém mais ousa sugerir um aggiornamento – uma carência que se traduz pelo agravamento dos sintomas de esquizofrenia. A dicotomia desenvolve-se como uma bifurcação de negações complementares: a prática de governo lulopetista não pode encontrar expressão na plataforma partidária e as palavras escritas pelo partido não podem encontrar correspondência nos programas de governo.

O lulopetismo fabricou não uma, mas duas versões da história do Brasil. A original, apoiada na chave da ruptura, diz que a nação alcançou a independência quando Lula subiu a rampa do Planalto, após a longa noite de “500 anos” na qual “a elite governou este país”. Uma segunda, apoiada na chave da continuidade, diz que Lula restaurou uma estrada de emancipação projetada por Getúlio Vargas (“o presidente que tirou toda a nação de um estágio de semiescravidão”), implantada por Juscelino Kubitschek (“quem conscientizou o país de que o desenvolvimento nacional é uma prerrogativa intransferível de um povo”) e pavimentada por Ernesto Geisel (“o presidente que comandou o último grande período desenvolvimentista do país”). As duas versões, contraditórias entre si, convivem numa harmonia perfeita regulada pelas necessidades e circunstâncias políticas.

As versões contraditórias contêm, ambas, um elemento invariante, que é o conto de uma queda. De acordo com ele, a presidência de FHC representou uma catástrofe nacional: a venda do templo e a conspurcação dos lugares santos. Nessa linha, diante do túmulo de Tancredo, Dilma crismou o ex-presidente tucano como chefe dos “exterminadores do futuro”. A peregrinação da candidata lulista a São João del Rei cumpria uma função de produção de sentido. Ela estava lá para escrever algumas novas linhas na versão continuísta da narrativa histórica do lulopetismo. O Brasil, informa-nos a versão revisada, moveu-se continuamente na direção do futuro, numa jornada inaugurada por Getúlio Vargas, que prosseguiu com Juscelino Kubitschek, Ernesto Geisel e a Nova República, até desviar-se tragicamente de seu rumo, na hora da ascensão de FHC. À luz dessa versão, Lula surgiu para, providencialmente, resgatar a nação do abismo, mostrando-lhe a senda de volta à estrada principal.

Da Carta aos Brasileiros à homenagem prestada por Dilma ao fundador da Nova República, o lulopetismo percorreu um longo caminho e eliminou bagagens pesadas, que representavam fardos políticos. O socialismo, embalsamado nas resoluções partidárias, foi expurgado da cena pública. Os radicais do “povo de Deus” deixaram o partido, rumo ao PSOL, ou foram acomodados na periferia buliçosa, mas inefetiva, do MST. O novo partido da ordem ocupou o centro do palco político, tecendo a coalizão com o PMDB e forjando um bloco de poder extraparlamentar que, sob o influxo das empresas estatais e dos fundos de pensão, abrange uma fatia significativa do grande empresariado, as centrais sindicais e os chamados movimentos sociais. Em São João del Rei, Dilma depredava a história – mas a mentira fazia sentido.

O retrato de Lula
Depois da peregrinação de Dilma, Serra tinha a oportunidade de fazer uma declaração esclarecedora sobre a história, na abertura de sua campanha na televisão. O principal candidato oposicionista poderia colar no muro, ao lado do seu, os retratos de Tancredo Neves, Itamar Franco e FHC. Legitimamente, poderia ir adiante, enfileirando no lado oposto os retratos de José Sarney, Fernando Collor, Lula e Dilma Rousseff. Entretanto, escolheu colar no seu muro o retrato de Lula. A decisão – adotada pelo próprio candidato ou por seu marqueteiro genial, tanto faz – condensa a falência política da oposição.

O gesto farsesco teve um impacto avassalador, palpável o suficiente para ser registrado tanto nas pesquisas quanto nas conversas de rua: nos dias seguintes, milhões de eleitores de Serra desertaram indignados, declarando-se fartos do baile de máscaras promovido pelo candidato. Os eleitores tinham razão: aquele não era um equívoco episódico, mas o prolongamento e a conclusão lógica de uma estratégia de campanha alicerçada sobre a abdicação do direito de fazer oposição.

Bem antes do gesto catastrófico, a campanha já se equilibrava precariamente sobre uma corda frouxa, trançada com os fios complementares da arrogância e da covardia. A arrogância transparecia na crença quase mística nos efeitos da comparação entre as biografias de Serra e da candidata oficial. A covardia, na decisão inabalável de não confrontar o lulismo com uma visão alternativa sobre o governo, o Estado e a nação. Sob o manto de uma estratégia supostamente eficaz, derivada dos altos níveis de aprovação do governo e da figura de Lula, Serra apresentava-se como o gerente mais confiável do continuísmo. No fim, a derrota não representou um fracasso eleitoral, mas o sintoma epidérmico de uma doença grave que corrói o organismo dos partidos de oposição. O mal de que padecem o PSDB e o DEM é a incapacidade de oferecer à nação uma plataforma alternativa à do lulopetismo.

Algo de curioso aconteceu quando, na contagem de votos do segundo turno, desenhou-se inequivocamente o resultado final. Então, rompendo um protocolo da democracia, Serra retardou o discurso de reconhecimento da derrota, escolhendo pronunciar-se depois de Dilma. No seu pronunciamento, o candidato oposicionista não se referiu à presidente eleita como presidente de todos os brasileiros, preferindo conclamar seus seguidores a ocuparem a “trincheira” da “luta pela democracia”. Desse modo, encerrou num diapasão sectário, inadequado à vigência indiscutível das liberdades políticas, uma campanha marcada pela hesitação em fazer oposição.

Naquele discurso final, Serra jactou-se dos 44% de votos válidos obtidos no segundo turno e os dirigentes do PSDB enfatizaram o valor dos triunfos em São Paulo e no Sul. Há algo aí, sem dúvida, mas o quadro inteiro é bastante diferente daquilo que sugeria o partido derrotado. Dilma venceu esmagadoramente no Nordeste, mas triunfou também no Sudeste, graças aos resultados de Minas Gerais e do Rio de Janeiro, e obteve um empate técnico no Rio Grande do Sul. As bancadas oposicionistas no Senado e na Câmara sofreram severa redução, produzindo esmagadoras maiorias governistas.

Os números frios não contam a história eleitoral inteira. A passagem de Serra ao segundo turno, graças ao crescimento de última hora da candidatura de Marina Silva, decorreu de fatores largamente estranhos às campanhas dos candidatos. Segundo todos os indícios disponíveis, Dilma resolveria a eleição no primeiro turno não fossem os efeitos de uma tripla conjunção: o escândalo do tráfico de influência de Erenice Guerra na Casa Civil, os ataques verbais destemperados de Lula contra a imprensa e uma polêmica sobre o tema do aborto que emergiu nas igrejas e na internet.

Derrotas eleitorais são eventos normais nas democracias. A derrota eleitoral de Serra é maior do que sugerem as estatísticas e os mapas publicados no final das apurações. Contudo, ainda mais expressivo é o fracasso político da oposição. Da campanha de 2010 não emanou um discurso coerente de ação política oposicionista. A conclamação patética à “trincheira” da “democracia” evidenciou o vazio. Hoje, diante dos olhos de todos, ele é preenchido pelas guerrilhas personalistas intestinas que, destituídas de algum conteúdo de interesse público, desmoralizam os partidos de oposição.

A candidata de Lula tinha o favoritismo desde o início da disputa eleitoral. Contava com o apoio do presidente, que a classificou como seu “pseudônimo”, e também da maior parte das elites política e empresarial. Além disso, crucialmente, beneficiava-se das altas taxas de crescimento econômico dos últimos anos, nos quais o Brasil surfou a “etapa chinesa” da globalização. Para ter uma chance de mudar o cenário previsível, Serra precisaria agir como estadista – isto é, como a figura que se ergue acima das circunstâncias, desafia o senso comum, afronta setores de sua própria base partidária e oferece aos eleitores uma narrativa política transparente, equilibrada e franca. Em campanha, o candidato tucano não se furtou a dirigir críticas fragmentárias ao governo e à sua candidata. Porém, como estilhaços de uma granada perdida, elas nunca formaram um conjunto coerente, capaz de sintetizar uma aspiração de mudança.

Serra não tem, contudo, a responsabilidade integral pelo fracasso político de sua campanha. A abdicação de agir como oposicionista tem um precedente tão próximo quanto ainda vívido. Nas eleições presidenciais de 2006, a campanha de Geraldo Alckmin entrou em colapso logo após o primeiro turno, quando o candidato cobriu-se com os logotipos das empresas estatais para sublimar o debate sobre as privatizações de FHC. Alckmin e Serra, cada um na sua hora, destruíram suas campanhas por meio de gestos paralelos de rendição política. Há, nisso, bem mais que uma coincidência.

De olho no retrovisor
No primeiro debate televisivo da campanha, Serra afirmou que não disputa eleições “de olho no retrovisor”. A frase de efeito não apenas denota desconforto com o passado como também veicula uma canhestra tentativa de passar uma borracha sobre a história. De mais a mais, evidencia uma surpreendente incompreensão da democracia: eleição é o momento no qual a nação revisita suas opções pretéritas e reflete sobre as diferentes estradas que conduzem ao futuro.

Atrás da frase, estava a esperança de circundar a discussão sobre o governo FHC – a mesma esperança que conduziu Alckmin a fantasiar-se como campeão das empresas estatais. O governo FHC representou o ápice da aventura política do PSDB. Nas duas eleições sucessivas, o repúdio tácito à própria herança, com seus acertos e erros, impediu que os tucanos analisassem criticamente o governo Lula e o PT, inscrevendo-os numa narrativa inteligível da trajetória recente do Brasil. A candidatura de Dilma Rousseff, tal como arquitetada por Lula, convertia a eleição num plebiscito sobre o lulismo. Não era viável, a não ser pela renúncia a fazer oposição, driblar a natureza plebiscitária do pleito. A alternativa era aceitá-la – mas mudando seus termos, por meio de um debate político esclarecedor.

O governo FHC inscreve-se, como o governo Lula, na trajetória brasileira pós-redemocratização. Nessa trajetória, firmaram-se consensos nacionais: o império da lei, das liberdades públicas e da democracia; a estabilidade econômica, a inserção do País na corrente da globalização; o resgate da “dívida social” gerada pelo modelo de crescimento implantado na ditadura militar. Tais consensos se consolidaram na “era FHC”. A política econômica seguida por Lula foi, no essencial, uma continuidade do programa delineado com o Plano Real. As políticas sociais de Lula foram, basicamente, desdobramentos das de FHC, com ampliações relevantes derivadas da conjuntura internacional favorável.

A oposição tinha a oportunidade de narrar essa história, apontando passo a passo a resistência do PT aos avanços obtidos no passado recente. O PT expulsou seus deputados que foram ao Colégio Eleitoral votar em Tancredo. O PT rejeitou o Plano Real. O PT denunciou, pela voz de Lula, o Bolsa-Escola como “bolsa esmola”. As conversões tardias do lulopetismo, queimando o que adorava e adorando o que queimava, deveriam ser expostas aos eleitores, a fim de traduzir em outros termos o debate sobre o passado proposto pelo próprio PT. A oposição não fez nada disso, em duas eleições, porque perdeu o rumo desde o segundo mandato de FHC.

Na moldura propiciada pela política de equilíbrio macroeconômico, o governo FHC redefiniu o lugar do Estado na economia, por meio do programa de privatização e da implantação das agências reguladoras. Além disso, avançou na profissionalização da burocracia e da gestão públicas, iniciando a desmontagem do Estado patrimonial herdado da “era Vargas”. No plano político, cautelosa e lentamente, começou a libertar a máquina administrativa da vasta rede de interesses clientelistas tecida por elites regionais e grupos partidários.

Contudo, o impulso das reformas arrefeceu na hora da aprovação da emenda da reeleição, que demandou compromissos em arco, abrangendo justamente as elites ameaçadas pelo programa de modernização do Estado. No segundo mandato, o sistema político enrijeceu-se e as forças inerciais fizeram sentir seu peso. As reformas política, eleitoral, sindical e trabalhista, tão necessárias, foram sacrificadas em nome da governabilidade. Sob o impacto das crises financeiras internacionais e de graves erros de gestão da política energética, o governo sofreu desgastes sucessivos, que prepararam o triunfo de Lula em 2002.

Uma derrota eleitoral não significa, necessariamente, uma derrota política. Mas, já na campanha eleitoral de 2002, o PSDB e o DEM relutavam em fazer uma defesa clara, contundente defesa da obra do governo FHC. O PT, pelo contrário, engajava-se na construção de uma narrativa oportunista, presa à dupla âncora do nacionalismo e do corporativismo, que atribuía às privatizações os problemas sociais do País. Ali, os principais partidos da atual oposição decidiam ignorar “o retrovisor”, cedendo o terreno doutrinário e ideológico ao petismo.

A renúncia à defesa do legado ajudou o lulopetismo a pintar em cores farsescas toda a política brasileira dos últimos oito anos. Lula governou com software macroeconômico de seu antecessor, mas seu partido jamais reconheceu essa dívida, que propiciou o crescimento com estabilidade. Lula não reverteu as privatizações de FHC, mas seu partido continuou a exibi-las como uma abominação. Lula ampliou vastamente as transferências sociais de renda que condenara, mas passou a acusar a oposição de classificá-las como “bolsa esmola”. A destruição sistemática da inteligibilidade da linguagem política serviu à construção da atual hegemonia do lulopetismo – mas apenas porque o PSDB e o DEM fugiram do campo de batalha das ideias.

A crítica à campanha de Serra em 2010 não é apenas inevitável, mas também necessária. Contudo, ela se transfigurará em novo subterfúgio escapista dos partidos de oposição se não se olhar para “o retrovisor”. No fim das contas, o candidato do PSDB foi fiel a seu partido, reproduzindo os hábitos e costumes inaugurados antes ainda da passagem da faixa presidencial de FHC para Lula.

A oposição que não temos
O lulismo, que prossegue com Dilma Rousseff,¬ não é a política macroeconômica do governo, tomada de empréstimo de FHC, mas uma concepção sobre o Estado e a nação. A sua vinheta de propaganda diz que o Brasil é “um país de todos”. Eis a mentira a ser exposta. O Estado remodelado ao longo dos dois mandatos de Lula é um conglomerado de interesses privados. Nele se acomodam a elite patrimonialista tradicional, a nova elite política petista, grandes empresas associadas aos fundos de pensão, centrais sindicais chapa-branca e movimentos sociais financiados pelo governo.

Num “país de todos”, a administração pública é conduzida por uma burocracia profissional. Sob Lula, a tradição de colonização privada da máquina pública amplificou-se e assumiu formas singulares, que resultam da emergência das novas elites oriundas do PT, dos sindicatos e dos movimentos sociais. Mais do que nunca, o Brasil precisa de uma reforma do Estado. O lulismo, que conferiu a José Sarney o estatuto de “homem incomum”, não a fará. A oposição, entretanto, não levanta essa bandeira, que se choca com o patrimonialismo entranhado em todos os partidos políticos.

Num “país de todos”, o movimento sindical expressa a vontade dos trabalhadores organizados. O lulismo repaginou o imposto sindical de origem varguista para estender o financiamento compulsório às centrais sindicais. A nova burocracia sindical, como a antiga, está subordinada ao Estado – com a diferença muito importante de que a sua corrente central também se conecta ao aparelho político do PT. Os partidos de oposição não reagiram à montagem da versão lulista da CLT, preferindo buscar pontos de apoio nas correntes periféricas do neopeleguismo. Nada indica que ousarão propor a adoção da Convenção 87 da OIT, retomando a palavra de ordem da liberdade sindical que um dia pertenceu ao PT e à CUT.

Num “país de todos”, a cidadania é um contrato apoiado no princípio da igualdade perante a lei. No Brasil do lulismo, os indivíduos ganharam rótulos raciais oficiais, que já começam a regular o exercício de direitos e ameaçam produzir fronteiras sociais intransponíveis. A única pesquisa científica de opinião pública sobre o tema das cotas raciais, realizada poucos anos atrás no Rio de Janeiro por uma ONG racialista, revelou que uma maioria de dois terços, formada por pessoas de todas as cores de pele, rejeita a introdução da raça na lei. Mesmo assim, a aprovação parlamentar das primeiras leis raciais da história do País não foi confrontada pelo PSDB ou pelo DEM, só encontrando resistência em algumas figuras da oposição, como notadamente o senador Demóstenes Torres (DEM – GO).

Num “país de todos”, a política externa subordina-se a valores consagrados na Constituição, como a promoção dos direitos humanos. Sob o lulismo, a palavra constitucional vergou-se diante de ideologias propensas à celebração de ditaduras enroladas nos trapos de um visceral antiamericanismo. Em Cuba, Lula comparou os prisioneiros políticos do castrismo aos presos comuns brasileiros. Na ONU, os representantes do País opuseram-se a investigações e denúncias sobre violações de direitos humanos. Na América Latina, o Brasil deu cobertura ao enrijecimento do autoritarismo chavista, flertou com a reivindicação de concessão às FARC do estatuto de “força combatente” e engajou-se na aventura burlesca promovida por Hugo Chávez em Honduras. Alhures, numa iniciativa desastrosa, o Brasil tricotou o fracassado acordo tripartite com o Irã, escarnecendo da política internacional de não proliferação nuclear.

Vozes da oposição exercitaram a crítica, mas apenas no episódio da aprovação parlamentar do ingresso da Venezuela no Mercosul os partidos oposicionistas marcaram claramente seu inconformismo com a política oficial. Na campanha eleitoral, sob o curioso argumento de que não se trata de assunto capaz de ganhar as atenções da maioria, Serra emudeceu quase por completo sobre os problemas estratégicos e de princípio da política externa lulista. Os partidos de oposição parecem desconhecer o impacto dos temas dos direitos humanos, das liberdades públicas e da democracia na sociedade brasileira. A persistente relutância em expor as relações entre a natureza autoritária do PT e as orientações de política internacional do lulismo constitui uma aula completa sobre o estado falimentar do PSDB e do DEM.

O governo Lula conservou os fundamentos da política macroeconômica herdada mas, aos poucos, começou a plantar as sementes de um modelo econômico baseado no protagonismo estatal. As agências reguladoras sofreram vertiginoso esvaziamento. À tríade constituída por Eletrobras, Telebras e Petrobras atribuíram-se novas funções, de reorganização anticompetitiva dos mercados nos quais operam. A alteração da Lei Geral de Telecomunicações para favorecer a Oi, os ensaios do Projeto Nacional de Banda Larga, a engenharia financeira da hidrelétrica de Belo Monte e o marco regulatório do pré-sal representam indícios clamorosos da reconstituição de um modelo de capitalismo de Estado abandonado nos anos 1990.

O BNDES, banco público de fomento, e os fundos de pensão, patrimônios privados controlados efetivamente pelo governo, desempenham papéis cruciais na estratégia econômica geral do lulopetismo. O poder financeiro discricionário desses atores propicia vultosas transferências de recursos para o grande empresariado que orbita ao redor do Estado. As sucessivas capitalizações do BNDES, com recursos do Tesouro, funcionam de fato como um vasto subsídio público a empresários privados, escolhidos a dedo pelo poder político de turno.

O novo modelo econômico, ainda esboçado, adquirirá amplitude com uma anunciada coleção de obras faraônicas, que se estende de Belo Monte ao Trem-Bala e alcança os projetos de infraestrutura e esportivos ligados à Copa do Mundo e às Olimpíadas. Entretanto, ao que parece, os partidos oposicionistas nada têm a dizer sobre o modelo em gestação, que subordina o interesse público aos interesses privados. Assim, depois de renunciarem à defesa programática das agências reguladoras e das privatizações, o PSDB e o DEM curvam-se a uma estratégia de desenvolvimento baseada na emissão de dívida pública e no desperdício em larga escala dos recursos nacionais.

O Plano Real e a política de estabilidade econômica configuraram um programa de governo com profundo apelo popular. FHC foi eleito e reeleito em primeiro turno, derrotando Lula por duas vezes, pois esse programa abriu a estrada para o crescimento com distribuição de renda. O chão estabelecido na “era FHC” solicitava um novo programa de apelo popular, voltado para a universalização efetiva dos direitos sociais. Contudo, o PSDB e o DEM jamais formularam tal programa – e, como resultado, perderam a audiência da maior parte da população de baixa renda. Nas eleições de 2010, mais que um corte regional, verificou-se um recorte social no eleitorado: Serra foi batido na população de baixa renda até mesmo em São Paulo.

O lulopetismo alicerça-se sobre uma doutrina conservadora, que veste fantasias de esquerda. Lula também não formulou um programa de universalização dos direitos sociais, preferindo concentrar-se numa audaciosa expansão dos programas de transferência direta de renda, que geram imediatos dividendos eleitorais. Na “era Lula”, pouco se fez nas esferas da educação, da saúde e da segurança pública. No “país de todos”, os pobres continuam sem escolas públicas e hospitais de qualidade e seguem à mercê do crime organizado. Serra desperdiçou a oportunidade de apresentar ao País um ambicioso plano de metas destinado a universalizar os direitos sociais num horizonte temporal previsível, ordenado por um cronograma verificável. Mas, afinal, por que ele daria esse passo, se os partidos oposicionistas desistiram há tempo de falar ao povo?

Um eleitorado sem representação
Lula abordou a sua sucessão como uma campanha de reeleição. No Brasil, como na América Latina em geral, o instituto da reeleição tende a converter o Estado numa máquina partidária. A presidência, os ministérios, as empresas estatais e as centrais sindicais neopelegas foram mobilizadas para assegurar o triunfo da candidata oficial. A economia, no ano eleitoral de 2010, avançou em desabalada carreira, num ritmo alucinante propiciado pelo crédito farto e pelos fluxos especulativos de investimentos estrangeiros. Eduardo Campos em Pernambuco, Jaques Wagner na Bahia, Sérgio Cabral no Rio de Janeiro, Antonio Anastasia em Minas Gerais, Geraldo Alckmin em São Paulo, todos candidatos da continuidade, obtiveram a vitória nos pleitos estaduais sem a necessidade de segundo turno. Por que, então, a “mulher de Lula”, o pseudônimo do mito vivo, disputando em condições excepcionalmente favoráveis, não triunfou no primeiro turno?

Os institutos de pesquisa registravam, na época da campanha eleitoral, uma taxa de aprovação do governo Lula em torno de 80%. Cerca de dois terços da aprovação recordista originavam-se de indivíduos que conferem ao presidente a avaliação “bom”, não “ótimo”. Nesse grupo, uma maioria não votou na “mulher de Lula” no primeiro turno. Dilma precisou de segundo turno, disputando contra um Serra carente de discurso político, assim como o próprio Lula precisou do turno final quando concorreu com um Alckmin que se negava a defender a herança de FHC.

Os resultados eleitorais de 2010, tanto quanto os de 2006, permanecem abertos a análises e polêmicas. Há, porém, uma evidência indiscutível: uma parte expressiva do eleitorado brasileiro, superior a 40%, rejeita nitidamente o lulopetismo. A sociedade brasileira – moderna, urbana, complexa – não se ajusta à sedimentação de seu sistema político sob o peso de um hegemon. A rejeição ao petismo expressa- -se na sociedade sob as mais diversas formas. Essa oposição, entretanto, não se traduz adequadamente nos atuais partidos oposicionistas – e, portanto, também não encontra expressão parlamentar. É um sinal preocupante sobre o estado de saúde de nossa democracia.

DEMÉTRIO MAGNOLI, sociólogo e doutor em Geografia Humana, integra o GACINT-USP e assina colunas de opinião nos jornais O Estado de S. Paulo e O Globo.