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quarta-feira, 5 de fevereiro de 2020

Senado deveria corrigir os rumos da diplomacia brasileira - Hussein Kalout

A perigosa inércia do Senado nos rumos da política externa brasileira

Cabe aos senadores a tarefa de coibir excessos ou distorções no exercício da atividade pública internacional pelo Poder Executivo

O que esperar da “política externa” em 2020? Como projetar os interesses reais e estratégicos do Brasil na frente externa? Como defender o país de riscos que podem obliterar a sua capacidade de atuar em múltiplos tabuleiros no futuro? Como corrigir os rumos da atuação do Brasil na contramão do direito internacional?
Nos debates sobre a atual “política externa”, o Senado Federal tem sido até o momento o grande ausente. Os Senadores da República se tornaram, ao que parece, apenas observadores da realidade em vez de importantes baluartes na redefinição das linhas da política exterior do país. Tomados provavelmente pela perplexidade que a atual diplomacia provoca, nossos Senadores não conseguiram articular propostas, demandar explicações ou exigir cobranças ao Executivo.
A diplomacia regressiva hoje vigente não encontrou no Senado seu contraponto e uma fonte de moderação. Diferentemente do que se poderia imaginar em certos círculos, o papel dos Senadores não deveria ser, a priori, a de meros carimbadores de sabatinas para as representações diplomáticas do Brasil no exterior. Não foi para este fim que a Comissão de Relações Exteriores e Defesa Nacional (CRE) foi criada.
Na verdade, a função primordial da Comissão consiste em zelar pelo legítimo exercício do controle constitucional sobre as atividades da política externa, identificando riscos à segurança nacional do Estado brasileiro e atuando para corrigir as distorções nos rumos das relações do Brasil com o mundo.
Vale lembrar que, em matéria de política externa, o Senado da República é a única instituição capaz de impor legalmente o respeito ao regime de freios e contrapesos, quando houver excessos ou distorções no exercício da atividade pública internacional pelo poder executivo.
Nos círculos diplomático, empresarial, político, acadêmico e militar é praticamente uníssona a convicção de que a política externa brasileira não vai bem. A tese de que o Brasil está depauperando o capital reputacional de sua diplomacia está mais do que cristalizada. E o que os Senadores da República irão fazer? A inércia pode ser interpretada como sinal de condescendência ou de desinteresse. Para evitar isso, é mister que a CRE assuma plenamente suas prerrogativas, inclusive para evitar novos danos aos interesses do país.
Logo na reinstalação do ano legislativo, o Senado poderia demandar do Ministério das Relações Exteriores um relatório pormenorizado sobre as propostas para o ano de 2020; os custos econômicos que serão destinados em cada ação; os responsáveis envolvidos em cada iniciativa; os resultados esperados para o país; e uma análise de risco quanto aos projetos propostos. Isso se chama, em linguagem técnica, um planejamento estratégico, algo que tenha começo, meio e fim, que traduza objetivos e metas em resultados, com indicadores claros para que o Senado e o público em geral possam monitorar o bom uso dos recursos públicos.
A CRE, poderia solicitar a apresentação de dados mais concretos sobre os logros recentemente anunciados pelo chefe do Itamaraty. Um relatório técnico acerca de tais resultados deveria conter informações estratificada por projeto, área, tema e região. Isso ajudaria o Senado a compreender e a prestar contas aos seus constituintes – o povo brasileiro – para que pudessem compreender os benefícios de cada ação para a sociedade.
Na mesma toada, seria importante o Senado ter acesso a cópia do acordo assinado entre o Mercosul e a União Europeia e, se possível, destrinchando as concessões feitas pelo Brasil aos membros da Comissão. Assim, o Congresso Nacional tomará conhecimento sobre o que de fato consta no documento – já que cedo ou tarde terá de ratificá-lo.
Igualmente, seria oportuno se os Senadores pudessem conhecer em detalhe o escopo do acordo comercial Mercosul-EFTA. Isso poderia ajudar a elucidar qual é o grau de importância desse tratado para o Brasil. A soma das exportações brasileiras aos países que compõem o EFTA – Liechtenstein, Islândia, Noruega e Suíça – gira em torno de 0,01% da pauta comercial brasileira.
Outro importante feito anunciado pelo Chanceler, diz respeito ao volumoso grau de novos investimentos estrangeiros aplicado no país. Seria muito útil ao Senado saber quem investiu, quanto se investiu e onde se investiu – e quanto será investido, nos próximos anos, em cada setor. É importante que o Senado cobre a distinção entre anúncios e o efetivo desembolso de investimentos.
Assumindo a premissa de que a proposta de combater o globalismo, o marxismo cultural, a agenda 2030 da ONU, negar o aquecimento global, refutar o desmatamento na Amazônia é, de fato, assertiva e atende aos interesses gerais na nação, a chancelaria poderia fornecer ao Senado informações sobre: quais foram efetivamente os avanços na execução dessas propostas; em que estágio está cada vetor; como as representações brasileiras no exterior se mobilizaram para cumprir instruções; em que estágio se encontra essa estratégia; e quantos recursos públicos foram investidos em sua implementação.
O Senado deveria ter acesso, também, ao “projeto reformador” do chanceler para a implementação de sua estratégia regional. Seria vital saber como a chancelaria pretende promover a democracia, as liberdades e combater o socialismo na Venezuela, Argentina, Bolívia, Suriname, Nicarágua, Cuba e México. Afinal, isso daria maior legitimidade às ações propostas pelo Itamaraty e, possivelmente, até com o endosso institucional do Senado. É fundamental, ainda, que sejam esclarecidas a CRE a real orientação da política exterior para o Oriente Médio. Nessa matéria, o nível de contradição é substancial. Igualmente, o envio de um relatório pormenorizado sobre a missão do chanceler a África seria útil para o Senado avaliar a concretude dos resultados.  
Nesse sentido, também, é importante esclarecer para o Senado por que 187 países votaram na ONU contra o embargo unilateral a Cuba e apenas 3 países a favor. Assim, as dúvidas que pairam sobre o posicionamento brasileiro podem vir a ser dissipadas. Afinal, o voto não teve contornos ideológicos, não é certo?
Como guardiões da ordem constitucional na frente externa, o Senado precisa estar antenado e informado até para não ser injustamente responsabilizado. Pois, até o momento, a presidência da Câmara é quem tem feito esse contraste e clamado por maior racionalidade e responsabilidade na execução dos temas de política externa. E isso sem mencionar que meses atrás o próprio STF teve de atuar para mitigar problemas nessa área. Os Senadores fariam bem em demandar um plano estratégico com objetivos, metas e indicadores. Assim, em 2021, veremos se os resultados serão concretos, reais, tangíveis ou cascatas para ludibriar o povo brasileiro.
Enfim, parece que está na hora do Senado assumir a sua missão como o poder contra majoritário para tornar a política externa respeitosa com a constituição e com os interesses vitais do Estado brasileiro – se vivos estivessem, seria essa a mensagem de homens como Barão de Rio Branco, Joaquim Nabuco, Rui Barbosa, San Tiago Dantas, entre tantos outros, aos nobres Senadores da República!

sexta-feira, 31 de janeiro de 2020

O Brasil virou uma republiqueta? Cosi è, si vi pare - Hussein Kalout

O Brasil contra o Direito Internacional

O ramo, princípio basilar de nossa atuação, passou a ser um mero detalhe, quando não um estorvo a ser ignorado ou até mesmo tripudiado

Revista Época, 31/01/2020

Quem se dedica ao estudo das relações internacionais provavelmente se formou com uma certeza: a defesa do direito internacional tornou-se, ao longo do século XX, parte inextrincável da identidade internacional brasileira.
Do Barão do Rio Branco e da atuação de Rui Barbosa na Conferência da Haia, passando pela fundação da ONU e das instituições de Bretton Woods e outros arranjos regionais à OEA e ao MERCOSUL, o Brasil consolidou a reputação de um grande defensor do direito como método para regular as relações entre países.
Essa defesa do direito internacional – e das instituições multilaterais, que são supostas dar-lhe consequência prática – ganhou estatura de princípio constitucional em 1988, refletindo um amplo consenso na sociedade, nos partidos políticos e na academia. Um consenso que, perseguido na prática por meio da política externa, tornou-se fonte de credibilidade e influência.
Não adotamos, é certo, esse princípio apenas por idealismo, mas por considerar que essa postura atende melhor ao interesse nacional, contribuindo para criar previsibilidade nas relações internacionais, ao mesmo tempo em que protege os relativamente mais fracos da imposição de interesses pelos mais fortes.
Nos últimos 75 anos, o Brasil investiu capital político e diplomático para reforçar as instituições multilaterais. O país se engajou na construção de arcabouços jurídicos com vistas a enfrentar desafios comuns em variados campos: paz e segurança, direito humanitário, direitos humanos, comércio internacional, meio ambiente, entre outros.
Em matéria de direito internacional, a antiga certeza converteu-se, por força da atual “política externa”, em dúvida. O consenso passou a ser ativamente combatido em nome de uma ruptura conservadora, cujos objetivos conjunturais de política interna são priorizados em detrimento do compromisso histórico com o direito e as regras multilaterais. 
Dessa forma, o direito internacional, de princípio basilar de nossa atuação passou a ser um mero detalhe, quando não um estorvo a ser ignorado ou até mesmo tripudiado.
Isso tem sido a nova norma, como demonstram o voto contrário à resolução que condenava o embargo unilateral contra Cuba, a inédita posição sobre o conflito Israelo-Palestino e o endosso irrestrito à eliminação do general iraniano Qassem Suleimani pelos Estados Unidos.
Em cada um desses temas, o Brasil se afastou do seu compromisso com o direito internacional. O governo preferiu agarrar-se cegamente a alinhamentos puramente ideológicos, patrocinou narrativas alheias ao interesse nacional e marginalizou a análise racional dos interesses de longo prazo. 
Análises lúcidas e preocupações justificáveis de nossos militares e de assessores econômicos foram descartadas, levando de roldão o princípio de respeito ao direito internacional que no passado sempre nos blindaram contra guinadas que teriam colocado em risco interesses concretos do país.
No caso do embargo contra Cuba, a ideia teria sido punir o regime que exporta revolução socialista desde 1959. Mas se é assim, por que será que aliados dos EUA e críticos do governo cubano, como o Canadá e todos os europeus, inclusive o Reino Unido, integraram a maioria de 187 países que votaram a favor da resolução que condenava o embargo unilateral?
Não foi certamente por amor ao socialismo que até a Hungria de Orbán votou a favor da resolução. O propósito era não legitimar o instrumento do embargo, que é contrário ao direito internacional. Apoiar o embargo, como fizemos, é aceitar que o mais forte pode decidir sozinho medidas coercitivas. Se no futuro formos alvos de medidas de força, será difícil esgrimir o direito internacional para nos defender.
A nota do Itamaraty saudando o “acordo do século” do presidente Trump para a “paz e a prosperidade” entre Israel e os palestinos é um dos mais grotescos passos da história da diplomacia brasileira. O suposto acordo de paz não é um acordo e nem é de paz. Trata-se de uma tentativa de impor solução unilateral arquitetada para salvar a reeleição de Netanyahu em Israel e fortalecer a posição eleitoral de Trump. 
O pioneirismo fica por conta de como o Brasil decidiu entrar nessa farsa, diminuindo-se ao patamar de uma republiqueta de quinta categoria. Joga-se por terra um posicionamento de 73 anos de uma diplomacia profissional que sempre buscou se pautar pelo equilíbrio na busca de uma solução negociada de dois Estados.
Para endossar esse teatro, a diplomacia bolsonarista topou agredir o direito internacional, ferir a constituição federal e implodir o voto brasileiro em todas as resoluções do âmbito das Nações Unidas – inclusive aquelas aprovadas com apoio dos EUA ou sem o veto dos EUA no Conselho de Segurança da ONU. 
E isso sem contar, ainda, que o Brasil já mudou uma série de votos em organismos internacionais para favorecer Israel, inclusive no tema do Golã sírio ocupado e da agência de apoio aos refugiados palestinos (UNRWA).
Na mesma toada, no episódio da eliminação do General Suleimani o Itamaraty só faltou aplaudir o assassinato - uma grave violação ao direito internacional. O afã de agradar foi tão grande que o Brasil, país sem interesse estratégico na região, deu um endosso que nem aliados mais próximos e membros da coalizão anti-Estado Islâmico se dignaram a estender aos EUA.
Quando se minimiza o direito internacional em nome de alianças políticas, visão ideológica ou alucinações teocráticas, o que se tem como resultado não é apenas o definhamento de um abstrato poder de influência e persuasão. 
Nos casos mencionados, além de fazer minguar nosso já escasso “soft power” e contribuir para um mundo mais caótico e desordenado na esteira da política temerária de Trump, nossa diplomacia está arando um terreno minado, alimentando os monstros que diz atacar e aumentando a probabilidade de perdas econômicas e elevando o risco de segurança.
Espero que, antes de adotar essa postura, nossos luminares da política externa tenham executado medidas de reforço da segurança dos bens e ativos do Brasil no exterior, inclusive de nosso pessoal diplomático e nossas comunidades de expatriados. Afinal, não seriam tão amadores a ponto de não calcular pelo menos esse risco que afeta a segurança e a integridade dos nossos compatriotas.

terça-feira, 5 de novembro de 2019

Diplomacia bolsonarista: o Brasil completamente isolado, no mundo e na região - Hussein Kalout

Coluna | O retrato da indigência diplomática do Brasil na América do Sul

A política externa bolsonarista, que é radical no atacado mundial, consegue ser ainda mais extremada no varejo regional

Se a intenção da nossa atual diplomacia era quebrar paradigmas e destruir um legado secular da nossa presença diplomática na região, então é preciso reconhecer que o trabalho está surtindo efeito. Devemos exclamar: “chapeau”! De fato estamos inovando, mas não no bom sentido, longe disso. A política externa bolsonarista, que é radical no atacado mundial, consegue ser ainda mais extremada no varejo regional.
Basta ver a quantidade de vexames que a diplomacia brasileira vem colhendo em série na América do Sul. O resultado? Um isolamento auto-imposto que ameaça deixar o Brasil falando sozinho. Estamos virando aquele elefante destrambelhado numa loja de cristais. Só que o que estamos deixando em cacos não são copos, taças ou jarras, mas um patrimônio diplomático que chegou a ser invejável e amplamente respeitado. Estamos destroçando nossa influência e relevância, espezinhando nossos próprios interesses e gerando uma fatura salgada que será paga pela população.
A lista de embaraços é quase interminável. As referências pouco lisonjeiras ao pai da ex-Presidente Bachelet, do Chile, que foi morto sob torturas, obrigou o presidente Piñera a dissociar-se do “amigo” Bolsonaro. Como se não bastasse, as hostes bolsonaristas das redes sociais têm criticado o presidente chileno por fazer concessões às pressões da esquerda, que estaria por trás dos protestos massivos que vive aquele país. Querem, aparentemente, que o presidente chileno não ceda. Só que quem manda no Chile são os chilenos. E Piñera é um líder de direita com compromisso com a democracia.
O princípio da não-interferência em assuntos internos dos outros Estados, ao contrário do que talvez pensem os responsáveis pela nossa política externa, não é mais um conceito marxista imposto pelo fantasma do globalismo. Ele deriva do direito internacional e de uma tradição diplomática que sempre cultuamos, em benefício de nossos interesses e da preservação da paz na região. Esse princípio encerra uma sabedoria que sempre foi a nossa: podemos ter amigos e desafetos, mas o mais importante é manter as boas relações entre os Estados, em nome do interesse nacional, com o objetivo de avançar na integração econômica e da busca de soluções conjuntas para desafios comuns.
Ao que tudo indica, essa lição não foi aprendida pelo nosso chanceler nos bancos do Instituto Rio Branco. Ou por alguma razão desconhecida foi desaprendida, talvez como forma de agradar os fiéis de sua desequilibrada balança diplomática no âmbito do olavismo. De fato, ao dobrar a aposta do presidente na reação à eleição de Alberto Fernández como presidente da Argentina, o chanceler disse que “as forças do mal” celebravam o resultado – na contramão, hilariantemente, o Departamento de Estado americano mandou mensagem celebrando a festa da democracia argentina e saudando o novo presidente. A postura brasileira contribui para fechar canal importante que poderia ser utilizado para auscultar as intenções do novo governo e preservar nossos interesses bilaterais. Vale sempre lembrar que a Argentina é nosso terceiro parceiro comercial, segundo comprador de nossos manufaturados e destino de importantes investimentos brasileiros. Só lembrando...
A besteira está feita. Os títeres da diplomacia nacional não pisarão tão cedo por Buenos Aires – e isso se é que já não foram declarados personas non gratas por ali. A carta dirigida pelo chanceler argentino, Jorge Faurie, à embaixada brasileira foi um gesto categórico de protesto e de condenação. Resta saber quem será o herói que irá à Argentina para tentar minimizar o estrago feito pelos bufões dessa diplomacia indigente.
No Uruguai, o vexame não foi menor, com o candidato preferido do governo Bolsonaro afirmando que não cabia a líderes estrangeiros se meter na eleição uruguaia. Como bem lembrou Lacalle Pou, de maneira elegante, cabe exclusivamente aos uruguaios escolher suas lideranças. O passa fora é apenas uma manifestação de bom senso, o chamado óbvio ululante. Que o candidato uruguaio tenha sido obrigado a dizer isso publicamente diz muito do amadorismo de nossa política externa ideológica. E o nosso embaixador em Montevidéu, não é para menos, foi convocado para tomar um pito de dar inveja em países de quinta categoria. Qualquer político sul-americano minimamente experiente sabe que precisa lidar com o vizinho, independentemente de quem seja o presidente, sua coloração partidária ou sua fé religiosa. O respeito aos processos políticos democráticos nos vizinhos era uma regra de ouro que infelizmente acabamos de quebrar na Argentina e no Uruguai.
Esses exemplos mais recentes se somam à propensão do atual governo de abrir mão de nossa capacidade de influenciar também na Venezuela. O Brasil se tornou o mais radical dos membros do Grupo de Lima, tendo de ser contido por elementos mais moderados. Com isso, virou uma espécie de menino de recados de outros países, flertando com medidas de força que talvez não tenham prosperado porque há setores racionais no governo (nesse caso, sobretudo, os militares) e membros do Grupo que não querem apostar em via que comporta altíssimo risco.
É pena que lições básicas de diplomacia estejam sendo deixadas de lado em nome de uma fé cega na ideologia extrema. O chanceler, em vez de moderar os ímpetos de seu chefe, parece adicionar mais gasolina à fogueira. Dessa forma, a lógica amigo-inimigo, que serve para pautar a estratégia do governo na política doméstica, foi transplantada para as relações exteriores, com consequências danosas para o país.
A América do Sul é esfera inseparável da segurança nacional do Estado brasileiro. Ações desmedidas, gestos descalibrados e diplomacia da tijolada minam gravemente a nossa liderança e credibilidade. Esse isolamento auto-infligido poderá levar décadas para ser superado. Afinal, quem confiaria em abrir sua loja de cristais novamente a um paquiderme desastrado?

Hussein Kalout é cientista político, professor de relações internacionais, pesquisador da Universidade Harvard e integra o Advisory Board da Harvard International Review. Foi Senior Fellow do Center for Strategic and International Studies (CSIS) em Washington DC e Consultor da ONU e do Banco Mundial. Serviu como secretário especial de Assuntos Estratégicos da Presidência da República (2017-2018). Cofundador do Movimento Agora!, foi membro do Conselho de Ministros da Câmara de Comércio Exterior (Camex) e presidente da Comissão Nacional de Populações e Desenvolvimento (CNPD).

terça-feira, 17 de setembro de 2019

Itamaraty tem responsabilidade na degradação de imagem do Brasil? - Hussein Kalout (Epoca)

Coluna | Itamaraty tem responsabilidade na degradação de imagem do Brasil?

Responsabilizar representações diplomáticas por falta de empenho em defesa do país é um equívoco

Revista Época, 17/09/2019 - 11:26 / Atualizado em 17/09/2019 - 16:34
Protesto contra governo brasileiro em frente à embaixada do Brasil na Itália Foto: Stefano Montesi / Getty Images
Protesto contra governo brasileiro em frente à embaixada do Brasil na Itália Foto: Stefano Montesi / Getty Images
Integrantes da alta cúpula do governo federal insistem na tese de que as representações diplomáticas brasileiras não têm feito “quase nada” para defender a imagem do Brasil lá fora.
Numa democracia minimamente madura, afirmações dessa natureza precisam ser amparadas pela apresentação de provas irrefutáveis. Do contrário, corre-se o sério risco de incorrer em crime de responsabilidade.
Se real, seria fácil detectar a existência do problema. Bastaria averiguar quantas instruções partiram do Itamaraty para as representações diplomáticas no exterior e quais não foram cumpridas.
Tudo indica que falta uma noção precisa de como funciona o trabalho de uma representação de Estado no exterior ou até quais são os limites operacionais de um embaixador e de seu staff.
Diplomacia é a arte da temperança. É um ofício que se exerce nos bastidores e não nos palanques das redes sociais. É um trabalho de fina costura e de sofisticada gramática política.
Quantos anúncios recentes relacionados à política internacional do país foram realizados em alinhamento com os postos no exterior? Poucos, se é que algum. Quantas vezes embaixadas, consulados e delegações descobriram “novas orientações” via mídia social? Corriqueiramente!
Casos não faltam. Cito aqui alguns exemplos: a inflexão da questão amazônica e o vácuo de poder deixado pela ausência de uma estratégia bem delineada; a agressão ao presidenciável argentino Alberto Fernández, possível futuro líder do país que é nosso principal parceiro estratégico na América do Sul; o dispensável embate com o presidente francês, que descambou para grosserias.
Ah! E a França segue sendo um dos principais investidores econômicos diretos no Brasil; a apoplexia verbal contra a China, o maior sócio comercial brasileiro; mais recentemente, a desnecessária diatribe contra a Alta Comissária de Direitos Humanos da ONU, a ex-presidente chilena Michelle Bachelet, responsável pelo mais incisivo relatório contra a situação dos direitos humanos na Venezuela de Nicolás Maduro.
Todos esses percalços são reveladores de quão difícil é para as representações brasileiras no exterior operar nesta conjuntura de alta pressão.
O que fica patente é a ausência de equilíbrio mínimo e de padrão linear de trabalho. O eventual baixo desempenho de alguns postos diplomáticos não pode ser atribuído à falta de lealdade ou de patriotismo.
Ainda que um ou outro caso possam ser colocados na conta pessoal de seus titulares, predominam a ausência de clareza sobre qual é a bússola conceitual da atual política externa e a falta de compromisso com os princípios históricos de condução da diplomacia brasileira, acompanhados de explosão de declarações mal calibradas que, em vez de angariar espaços para o Brasil no mundo, terminam por isolar o país nas relações internacionais.
Trata-se de uma antidiplomacia presidencial cujo rumo os embaixadores do Itamaraty não têm força para alterar. E um chanceler que prefere enveredar pelo terreno do abstrato, como o fez numa palestra no think tank conservador Heritage de Washington, a utilizar o palco para uma defesa racional de interesses concretos brasileiros.
Ao examinar cuidadosamente o mapa estratégico do que pode ser chamado de “política externa”, as conclusões são frustrantes. A África é palavra praticamente inexistente no dicionário da diplomacia de turno.
É como se o continente tivesse sido deletado do mapa-múndi da geografia diplomática brasileira. E falar de política externa asiática é hoje quase uma pilhéria.
De Tel-Aviv ao Magreb, passando pelo Golfo Pérsico, não há nada que desabone até o momento a conduta dos representantes do país no Oriente Médio. Aliás, a tarefa de amainar e mitigar graves percalços tem-se revelado hercúlea.
Apenas para constar, uma delegação de elevado porte do Ministério da Agricultura e em conjunto com o setor empresarial visita, no momento, as quatro economias mais relevantes do mundo árabe (Arábia Saudita, Egito, Emirados Árabes Unidos e Kuwait). A preparação da missão por parte das embaixadas caminha a contento.
Já na América do Sul, não existe qualquer projeto estratégico coerente e que possa ser chamado de “política externa”. Mas, isso não é culpa das embaixadas. Antes de tudo, é responsabilidade de quem formula e de quem gerencia a execução da política exterior do país.
Do extremo-norte da Bacia amazônica até o último pináculo de Ushuaia, ninguém sabe o que queremos em matéria de liderança, projeção de poder ou desenvolvimento regional. Na Argentina, em particular, a vida da representação brasileira, em Buenos Aires, passou a ser a de contenção de danos. Um trabalho de refinado equilibrismo diplomático.
Quando o governo comemorou a conclusão do acordo comercial Mercosul-União Europeia, será que a delegação brasileira, em Bruxelas, faltou com lealdade, dedicação e profissionalismo para a conquista desse objetivo? 
Ainda que alguns diplomatas possam estar pessoalmente em desacordo com a nova orientação da “política de gênero”, será que as delegações brasileiras na ONU e na OEA não seguiram à risca a determinação do governo? Apesar das discordâncias, nenhuma instrução deixou de ser cumprida (alguns embaixadores já vestiram a carapuça e vendem um Brasil inexistente). 
A imagem de um país no mundo depende, antes de tudo, da percepção que se tem de seus governantes. A crescente desaprovação ao governo já é, no fundo, o reflexo da degradação de sua própria imagem.
Frases tóxicas, desmedidas e descalibradas acabam apagando alguns dos resultados expressivos alcançados pela atual gestão.
Cabe ao chefe da diplomacia — quem quer seja — o mínimo de altivez na defesa de seus comandados. Parece contraditório culpar os quadros de uma instituição por agir contra o interesse nacional — e, neste caso, uma instituição com reputação bicentenária na defesa dos interesses nacionais brasileiros.
Sem que as acusações estejam sustentadas em fatos concretos, incorre-se em uma irresponsável leviandade que tende a minar a respeitabilidade do serviço exterior brasileiro e, logo, a própria reputação do governo.
Embaixadas, delegações e consulados não têm capacidade de impedir protestos e pichações em seus muros, por mais que defendam a imagem do País em seu trabalho cotidiano.
O anacronismo no trato da coisa pública, a intervenção nas forças de segurança pública por motivos pouco republicanos, a carta branca concedida ao desmatamento de nossas florestas ou o corte de bolsas de estudo para cientistas e pesquisadores falam mais alto do que qualquer artigo que venha assinar um embaixador brasileiro em jornal estrangeiro.
Aliás, nunca foi preocupação para a diplomacia brasileira monitorar quais países boicotariam o discurso do Presidente do Brasil que tradicionalmente inaugura os trabalhos da Assembleia Geral da ONU, em Nova York — que ocorrerá na próxima semana.
O mundo espera um Brasil lúcido e comprometido com seus compromissos internacionais. Não dá para admoestar a plateia com elucubrações de fundo ideológico e paranoias de que o país está sob interdição do marxismo cultural, sob domínio colonial do globalismo e sequestrado por ambientalistas.
Política externa é expressão de uma nação; de um povo, e não de um governo. A política do confronto e da negação nada agregam aos interesses estratégicos do país. Para melhorar a imagem do governo é preciso rever o discurso e recalibrar a conduta. Do contrário, o Brasil seguirá em queda livre. 

Hussein Kalout é cientista político, professor de Relações Internacionais, pesquisador da Universidade Harvard e Integra o Advisory Board da Harvard International Review. Foi Senior Fellow do Center for Strategic and International Studies (CSIS) em Washington DC e Consultor da ONU e do Banco Mundial. Serviu como Secretário Especial de Assuntos Estratégicos da Presidência da República (2017-2018). Cofundador do Movimento Agora!, foi membro do Conselho de Ministros da Câmara de Comércio Exterior (Camex) e presidente da Comissão Nacional de Populações e Desenvolvimento (CNPD).

domingo, 11 de agosto de 2019

O alinhamento voluntário com os EUA: Hussein Kalout (OESP)

'Relação com EUA Não requer alinhamento'

Paulo Beraldo
O Estado de São Paulo, 11/08/2019

As relações entre Brasil e Estados Unidos devem ser estratégicas e complementares, com benefícios para as áreas de comércio, tecnologia, segurança e defesa, sem alinhamentos ou subordinação, afirmou ao Estado o cientista político Hussein Kalout, pesquisador de Harvard e ex-secretário de assuntos estratégicos da Presidência da República . "O Brasil não deve se permitir ser uma mera peça na engrenagem da política exterior de outros países", disse. 
Nesta entrevista, Kalout também fala sobre a possibilidade de Eduardo Bolsonaro, filho do presidente Jair Bolsonaro, assumir o posto de embaixador em Washington e da política externa do governo brasileiro. A seguir os principais trechos:
INDICAÇÃO DE EDUARDO COMO EMBAIXADOR
Os questionamentos postos à baila nos meios político e diplomático consistem em dois aspectos: dúvidas quanto à capacidade do indicado de exercer uma complexa função de Estado e o aspecto legal e moral da indicação. Não há decisão judicial que limite a prerrogativa do presidente nesse sentido. Portanto, é legal. Pode, talvez, ser vista como amoral. A diplomacia tem uma gramática própria e não se aprende o seu ofício de um dia para outro. Mas, se o futuro embaixador tiver disciplina para aprender, temperança para operar o complexo mundo de Washington e disposição para ouvir os seus auxiliares, acredito que os riscos se minimizam.
AS RELAÇÕES COMERCIAIS ENTRE BRASIL E EUA
É fundamental alçar as relações bilaterais Brasil e Estados Unidos ao patamar de uma parceria estratégica e elevar a complementaridade entre os dois países em matéria comercial, tecnológica, securitária e de defesa. Uma relação produtiva com os Estados Unidos não requer alinhamentos de lado a lado e tampouco subordinação de interesses. O que um país da latitude do Brasil não deve se permitir é ser uma mera peça na engrenagem da política exterior de outros países. 
ACORDO DE LIVRE-COMÉRCIO COM OS EUA
Isso dependerá de algumas variáveis. Donald Trump precisa de um mandato negociador do Senado americano para iniciar quaisquer tratativas. Não sei se há tempo suficiente antes da eleição. Do lado do Brasil, não podemos negociar acordos comerciais à margem do Mercosul e de forma unilateral. Precisamos convencer os demais parceiros. Se um acordo impulsionar a nossa produtividade, competitividade e promover um salto tecnológico, então é importante. 
ELEIÇÃO PRESIDENCIAL NOS EUA EM NOVEMBRO
É importante não escolher lado na eleição dos Estados Unidos. Vai ser preciso dialogar com os dois espectros da política americana e construir pontes com os mais variados setores. No longo prazo, temos interesses a defender e eles são diversificados. 
POLÍTICA EXTERNA BRASILEIRA
Sem o predomínio de um firme projeto nacional e de uma calibrada estratégia de Estado na modulação da política externa, o Brasil continuará sem avançar em variados tabuleiros e seguirá desperdiçando seu imenso potencial de se tornar mais próspero e desenvolvido.
PAPEL DO BRASIL NO MUNDO
Nossa estratégia precisa se organizar sobre o conjunto de elementos objetivos que delimitam a latitude e a influência de uma nação no mundo, como o seu poder econômico-comercial, político, militar, de inteligência e científico-tecnológico. Sem esses elementos bem alinhados entre si, será difícil elevar ao máximo os interesses do Estado brasileiro no mundo. No caso brasileiro, esses elementos de poder encontram-se assimétricos entre si. O nosso poder nas esferas militar, científico-tecnológico ou de inteligência não é correspondente ao de um país que está entre as dez maiores potências econômicas do mundo.
AMÉRICA DO SUL
Nossa política exterior deve se concentrar na consecução de um projeto estratégico para a América do Sul e focar na materialização dos interesses econômico-comerciais do País nos principais mercados e cadeias de valor. Além disso, deve desenvolver uma política específica para lidar com as grandes potências - nisso se incluem EUA e China - e impulsionar a capacidade de nosso desenvolvimento científico e tecnológico. É importante ter clareza que liderança tem custo e gera obrigações. Antes de se lançar em qualquer arena, se não projetarmos o nosso poder no nosso entorno regional, não iremos liderar nada em lugar algum. 
EQUILÍBRIO ENTRE MEIO AMBIENTE E AGRONEGÓCIO
O Brasil é uma potência ambiental e agrícola. Temos sido bem sucedidos em conjugar esses instrumentos, ganhando mercados e liderando discussões da agenda internacional sobre o desenvolvimento sustentável. O Brasil se tornou um ator incontornável em ambos os temas. A quebra desse equilíbrio só tende a prejudicar os nossos interesses. 

As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.