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sexta-feira, 31 de janeiro de 2020

O Brasil virou uma republiqueta? Cosi è, si vi pare - Hussein Kalout

O Brasil contra o Direito Internacional

O ramo, princípio basilar de nossa atuação, passou a ser um mero detalhe, quando não um estorvo a ser ignorado ou até mesmo tripudiado

Revista Época, 31/01/2020

Quem se dedica ao estudo das relações internacionais provavelmente se formou com uma certeza: a defesa do direito internacional tornou-se, ao longo do século XX, parte inextrincável da identidade internacional brasileira.
Do Barão do Rio Branco e da atuação de Rui Barbosa na Conferência da Haia, passando pela fundação da ONU e das instituições de Bretton Woods e outros arranjos regionais à OEA e ao MERCOSUL, o Brasil consolidou a reputação de um grande defensor do direito como método para regular as relações entre países.
Essa defesa do direito internacional – e das instituições multilaterais, que são supostas dar-lhe consequência prática – ganhou estatura de princípio constitucional em 1988, refletindo um amplo consenso na sociedade, nos partidos políticos e na academia. Um consenso que, perseguido na prática por meio da política externa, tornou-se fonte de credibilidade e influência.
Não adotamos, é certo, esse princípio apenas por idealismo, mas por considerar que essa postura atende melhor ao interesse nacional, contribuindo para criar previsibilidade nas relações internacionais, ao mesmo tempo em que protege os relativamente mais fracos da imposição de interesses pelos mais fortes.
Nos últimos 75 anos, o Brasil investiu capital político e diplomático para reforçar as instituições multilaterais. O país se engajou na construção de arcabouços jurídicos com vistas a enfrentar desafios comuns em variados campos: paz e segurança, direito humanitário, direitos humanos, comércio internacional, meio ambiente, entre outros.
Em matéria de direito internacional, a antiga certeza converteu-se, por força da atual “política externa”, em dúvida. O consenso passou a ser ativamente combatido em nome de uma ruptura conservadora, cujos objetivos conjunturais de política interna são priorizados em detrimento do compromisso histórico com o direito e as regras multilaterais. 
Dessa forma, o direito internacional, de princípio basilar de nossa atuação passou a ser um mero detalhe, quando não um estorvo a ser ignorado ou até mesmo tripudiado.
Isso tem sido a nova norma, como demonstram o voto contrário à resolução que condenava o embargo unilateral contra Cuba, a inédita posição sobre o conflito Israelo-Palestino e o endosso irrestrito à eliminação do general iraniano Qassem Suleimani pelos Estados Unidos.
Em cada um desses temas, o Brasil se afastou do seu compromisso com o direito internacional. O governo preferiu agarrar-se cegamente a alinhamentos puramente ideológicos, patrocinou narrativas alheias ao interesse nacional e marginalizou a análise racional dos interesses de longo prazo. 
Análises lúcidas e preocupações justificáveis de nossos militares e de assessores econômicos foram descartadas, levando de roldão o princípio de respeito ao direito internacional que no passado sempre nos blindaram contra guinadas que teriam colocado em risco interesses concretos do país.
No caso do embargo contra Cuba, a ideia teria sido punir o regime que exporta revolução socialista desde 1959. Mas se é assim, por que será que aliados dos EUA e críticos do governo cubano, como o Canadá e todos os europeus, inclusive o Reino Unido, integraram a maioria de 187 países que votaram a favor da resolução que condenava o embargo unilateral?
Não foi certamente por amor ao socialismo que até a Hungria de Orbán votou a favor da resolução. O propósito era não legitimar o instrumento do embargo, que é contrário ao direito internacional. Apoiar o embargo, como fizemos, é aceitar que o mais forte pode decidir sozinho medidas coercitivas. Se no futuro formos alvos de medidas de força, será difícil esgrimir o direito internacional para nos defender.
A nota do Itamaraty saudando o “acordo do século” do presidente Trump para a “paz e a prosperidade” entre Israel e os palestinos é um dos mais grotescos passos da história da diplomacia brasileira. O suposto acordo de paz não é um acordo e nem é de paz. Trata-se de uma tentativa de impor solução unilateral arquitetada para salvar a reeleição de Netanyahu em Israel e fortalecer a posição eleitoral de Trump. 
O pioneirismo fica por conta de como o Brasil decidiu entrar nessa farsa, diminuindo-se ao patamar de uma republiqueta de quinta categoria. Joga-se por terra um posicionamento de 73 anos de uma diplomacia profissional que sempre buscou se pautar pelo equilíbrio na busca de uma solução negociada de dois Estados.
Para endossar esse teatro, a diplomacia bolsonarista topou agredir o direito internacional, ferir a constituição federal e implodir o voto brasileiro em todas as resoluções do âmbito das Nações Unidas – inclusive aquelas aprovadas com apoio dos EUA ou sem o veto dos EUA no Conselho de Segurança da ONU. 
E isso sem contar, ainda, que o Brasil já mudou uma série de votos em organismos internacionais para favorecer Israel, inclusive no tema do Golã sírio ocupado e da agência de apoio aos refugiados palestinos (UNRWA).
Na mesma toada, no episódio da eliminação do General Suleimani o Itamaraty só faltou aplaudir o assassinato - uma grave violação ao direito internacional. O afã de agradar foi tão grande que o Brasil, país sem interesse estratégico na região, deu um endosso que nem aliados mais próximos e membros da coalizão anti-Estado Islâmico se dignaram a estender aos EUA.
Quando se minimiza o direito internacional em nome de alianças políticas, visão ideológica ou alucinações teocráticas, o que se tem como resultado não é apenas o definhamento de um abstrato poder de influência e persuasão. 
Nos casos mencionados, além de fazer minguar nosso já escasso “soft power” e contribuir para um mundo mais caótico e desordenado na esteira da política temerária de Trump, nossa diplomacia está arando um terreno minado, alimentando os monstros que diz atacar e aumentando a probabilidade de perdas econômicas e elevando o risco de segurança.
Espero que, antes de adotar essa postura, nossos luminares da política externa tenham executado medidas de reforço da segurança dos bens e ativos do Brasil no exterior, inclusive de nosso pessoal diplomático e nossas comunidades de expatriados. Afinal, não seriam tão amadores a ponto de não calcular pelo menos esse risco que afeta a segurança e a integridade dos nossos compatriotas.

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