Maquiavel, entre a astúcia, a hipocrisia e a crueldade
Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy
Consultor Jurídico, 19 de janeiro de 2020
Nicolau Maquiavel (1469-1527) afastou da teorização política a invenção da realidade. Não expôs nenhuma utopia. Mas também não legou nenhuma premonição de um mundo distópico. O futuro não é sombrio, e nem nirvânico, nem infernal, e também não é um paraíso. É apenas o resultado de nossa ação, pautado por nossos cálculos, e também influenciado por eventos externos, que fogem de nosso controle. A principal preocupação de Maquiavel consistia no esforço em influenciar a condução dos negócios públicos. Era um prático. Não teorizava. Intervinha na realidade.
Nasceu em Florença. Seu pai chamava-se Bernardo; sua mãe, Bartolomea. O pai era advogado. Pouco conhecido, teria exercido a profissão sem nenhum brilho. Acrescentava aos poucos ganhos algum recurso que ganhava na administração de seus escassos bens. Parece também que Bernardo foi um rígido pai. Estudou latim, gramática e cálculo. Em 1497, com 28 anos, Maquiavel esteve em Roma. No fim daquele ano, 1498, foi nomeado secretário na Segunda Chancelaria de sua cidade de nascimento.
Maquiavel defendeu a república florentina e a ordem estabelecida. Inspecionava pessoalmente as fortalezas da cidade. Em 1500 partiu para a França em missão diplomática. Casou-se em 1501 com Marietta di Luigi Corsini. Teve seis filhos. Em 1504 esteve novamente na França. Em 1506 acompanhou os aliados do Papa Júlio II em Perúgia e em Bolonha. Em 1510 teria mediado uma disputa entre o Papado e o Rei da França.
Com a queda da república florentina em 1512 Maquiavel viveu seu inferno. Em 1513 foi preso e torturado. Tinha 44 anos. Retornou aos negócios públicos de Florença somente em 1519. Em 1521 teve de abandonar a vida pública. Dedicou-se a literatura. Morreu em 21 de junho de 1527, aos 58 anos. Estava empobrecido e não exercia nenhuma influência política.
Maquiavel é personagem emblemática do Renascimento, época que se opunha ao misticismo, ao coletivismo, ao antinaturalismo, ao teocentrismo e ao geocentrismo. O Renascimento foi marcado por intensa defesa do racionalismo, do individualismo, do antropocentrismo, do heliocentrismo. O humanismo foi também um dos traços definidores daquele tempo, centrado na retomada dos valores greco-romanos, circunstância muito característica na obra de Maquiavel.
O Príncipe, segundo Jacob Burckhardt, um dos maiores historiadores da Renascença, “representa a objetividade renascentista e a ideia de Estado como obra de arte”. O Príncipe não é um trabalho de ideologia e de proselitismo, é um livro de conselhos práticos. E embora nos pareça que Maquiavel tenha rompido com toda a tradição de pensamento político que o precedia, há também fortes motivos para supor que tenha retomado uma linhagem romana. Maquiavel seria o restaurador de uma tradição esquecida.
Realista, Maquiavel procurou explicar com exemplos suas conjeturas. Continuou uma tradição de historiografia que remontava a Cícero, e que via a história como mestra da vida. A história foi por Maquiavel utilizada como recurso retórico para compreensão do presente; trata-se de uma sabedoria de onisciência quase divina, secularizada em favor de uma causa.
Maquiavel seguia os preceitos literários dos autores clássicos: inculcava lições morais por meio de um estilo recorrentemente exemplificativo. No Príncipe há várias personagens da antiguidade greco-romana e oriental, que buscou em Tito Lívio, Plutarco e nas Escrituras. Há também um desfile de contemporâneos de Maquiavel, ou de personagens muito próximos de seu tempo. Seu método é histórico e comparativo. É inegável a influência de Cícero nos humanistas florentinos; e Maquiavel é da afirmação a prova mais eloquente. Nesse ponto Maquiavel é renascentista até a medula: retomou com reverência a grandeza do passado romano.
A recepção de Maquiavel decorre também da capacidade de apreensão e das necessidades dos leitores que encontrou. E porque o destino dos livros depende da capacidade de seus leitores; não se pode negar que a acusação de que Maquiavel justificaria todas as tiranias depende menos dele mesmo do que dos tiranos que o aplicaram, sem jamais terem estudado sua obra.
Na tradição ocidental Maquiavel é a própria encarnação da astúcia, da hipocrisia, da crueldade; é lugar comum lembrar que o substantivo próprio se transformou em adjetivo cheio de antropologia negativa. O substantivo próprio – Maquiavel - desdobrou-se num substantivo comum, maquiavelismo, e num adjetivo, maquiavélico.
Maquiavel é o ponto de inflexão de uma época, o Renascimento; de uma nação, a Itália; de uma cidade, Florença; de uma missão: o bom funcionário florentino. Há Maquiavel para todos os gostos, projetos e regimes políticos; há quem impute a Maquiavel a culpa de tentar conduzir a humanidade para a perdição; e há quem acuse Maquiavel de tentar conduzir a humanidade para a salvação.
A razão de Estado não é certamente uma invenção sua. A ação política, porém, em seu sentido utilitário, é uma originalidade de seu pensamento. Sua doutrina é relativamente simples: as circunstâncias da vida tornam inaceitável para a vida prática o moralismo político das teorias clássicas. Maquiavel não especulava. Enfrentava as divisões internas que enfraqueciam a Itália, tornando-a presa fácil de potências estrangeiras. A Itália da época de Maquiavel era dividida em mais de uma dúzia de reinados independentes, ducados, feudos, cidades-estado e repúblicas.
Maquiavel deixou de fabulizar a realidade política, como o fizeram Platão e Morus. Preocupou-se com a vida real, a única que nos permite algum espaço de ação prática. Menos do que as prosaicas e úteis instruções deixadas no Príncipe, talvez o maior legado de Maquiavel seja o próprio exemplo, no sentido de que entendamos que a vida nos exige muita ação e muita energia.
“Matai os inimigos, e se necessário, os amigos também”, “Fazei o mal, mas fingi fazer o bem”, “Sede bruto”, “Sede miserável”, “Se apunhalar o inimigo, que o faça pelas costas”, são frases aladas talvez equivocadamente atribuídas a Maquiavel, cujo pensamento foi correta (ou falsamente) resumido na expressão de que os fins justificariam os meios, o que traduziria um projeto político e não necessariamente uma citação literal. Aplica-se a Maquiavel, e à glória que envolve seu nome, passagem de um de nossos maiores críticos literários (Carpeaux): “a glória, já se disse, é um conjunto de mal entendidos que se criam em torno de um nome”.
Revista Consultor Jurídico, 19 de janeiro de 2020, 8h00
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Permito-me remeter aqui a um dos meus livros:
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