Política externa brasileira: só ventos do norte não movem moinhos
Janina Onuki
Nexo Jornal, 14 de Janeiro de 2020
No Brasil, o início de novas gestões governamentais coincide com o ano novo, momento em que é comum que as esperanças sejam renovadas. Essa época geralmente vinha sendo marcada por expectativas positivas, por mais competitivo que fosse o processo eleitoral. O começo de 2019, no entanto, gerou expectativas incomuns e apreensão, derivadas do período de campanha, onde já se destacavam discursos que usavam a polarização como recurso e nos faziam desconfiar que parte das instituições não seria capaz de absorver mudanças possivelmente disruptivas.
Ao longo do primeiro ano do governo Bolsonaro, no que se refere à política externa, vivenciamos um conjunto de episódios desorganizados, decorrente da falta de planejamento estratégico que levou a idas e vindas nessa agenda. Dois aspectos marcam um processo que pode ser considerado como uma ruptura da política externa: a centralização do processo decisório e a mudança de perfil do país no cenário internacional.
Uma frase, conhecida na literatura especializada de análise de política externa, justificaria o baixo comprometimento dos gestores em apresentar um planejamento para essa área, justificada pelo desinteresse da população: “política externa não dá votos”. Diferentemente de outras políticas públicas, a política externa foi tradicionalmente considerada distante dos cidadãos por várias razões: (i) temas externos não interessariam aos cidadãos comuns, mais preocupados com políticas domésticas, como saúde, educação e segurança pública; (ii) os efeitos distributivos das decisões em política externa seriam diluídos e difíceis de serem identificados por diferentes grupos de interesse; (iii) o Itamaraty exerceria papel central para garantir a estabilidade do processo decisório e da própria política externa.
Mudanças significativas na conjuntura internacional e doméstica no início dos anos 1990 impactaram a política externa brasileira e, consequentemente, a percepção da opinião pública sobre as ações externas. A combinação da despolarização do sistema internacional, a volta do regime democrático e a abertura comercial levaram o Brasil a ampliar suas relações com outros países e a participar mais ativamente de regimes e instituições internacionais em diferentes áreas.
Passando por governos de distintos matizes ideológicos, a política externa brasileira foi marcada pelo multilateralismo e pela liderança em diversas organizações internacionais, mas demorou para que o processo de democratização chegasse a ela.
À medida em que o país passou a participar de mais processos de negociações internacionais, a percepção dos efeitos distributivos aumentou, assim como o interesse por influenciar as decisões, demandando uma política externa mais democrática. O que preocupa é que a centralização do processo decisório no último ano fez evidenciar uma agenda mais personalista e menos preocupada em consolidar uma posição mais autônoma do Brasil no mundo.
Ao longo das décadas de 1990-2000 também o Mercosul (Mercado Comum do Sul) levou a avanços na cooperação no âmbito regional. Isso fez consolidar a liderança do Brasil em vários processos internacionais, tanto no âmbito de organismos internacionais, quanto sua atuação em coalizões como Brics e Ibas.
Em todos esses espaços, havia uma estratégia coordenada que combinava consolidação da liderança como país emergente, ampliação dos níveis de accountability (responsabilidade e transparência) das decisões externas para os cidadãos e maior inclusão de atores não-governamentais na política externa, sobretudo em temas relacionados aos direitos humanos e meio ambiente, nos quais a sensibilidade da cidadania é mais apurada.
Observando o discurso que predominou nesse primeiro ano, e com o processo decisório em bases menos institucionalizadas, o risco do Brasil será sacramentar o perfil de “potência submergente” e perder espaço no plano global
Pesquisas de opinião recentes, como o survey Las Américas y el Mundo, coordenado pelo Cebrap (Centro Brasileiro de Análise e Planejamento) e IRI/USP (Instituto de Relações Internacionais da Universidade de São Paulo), mostram o aumento do interesse e da compreensão da população por temas de política externa. Resultados do questionário, aplicado em três momentos desde 2010, mostram que tem aumentado o interesse por temas de política internacional e esse interesse tem se aproximado do percentual que se verifica em outras áreas. Isso mostra também o avanço do entendimento da política externa como uma política pública.
Do ponto de vista da posição relativa do Brasil no sistema internacional, esses surveys vinham registrando a consolidação da percepção do país como uma potência emergente e com influência crescente no campo global.
Ainda que menos abruptas do que anunciadas no plano do discurso, as mudanças substantivas da política externa do governo Bolsonaro em seu primeiro ano de mandato foram significativas. A começar pela desarticulação de dois pilares fundamentais, o multilateralismo e o regionalismo, concebidos precisamente como instrumentos de contrapeso à preponderância das grandes potências. A afinidade com os Estados Unidos introduziu o unilateralismo como eixo articulador da política externa brasileira.
Embora o redirecionamento tenha sido claro, o alinhamento aos EUA não foi nem tão automático nem tão pleno. Reservas de autonomia expressaram-se na relação ambivalente adotada pelo governo com relação à China — certamente em função do choque de realidade ao se tomar conhecimento da importância comercial e dos investimentos desse parceiro — e na contenção a uma intervenção militar na Venezuela, fomentada por alas mais radicais de núcleos próximos ao presidente.
As mudanças no campo regional seguiram a tônica das conduzidas no campo global. Não foram tão intensas quanto as anunciadas, mas vale registrar a derrocada da Unasul (União de Nações Sul-Americanas), a criação do Prosul (Foro para o Progresso e Integração da América do Sul), e a mudança de postura com os regimes de esquerda, em especial a Venezuela.
A relação do Brasil com o Mercosul é, no outro extremo, um exemplo de mudança anunciada, mas não implementada, no primeiro ano de governo. A saída do Brasil do bloco chegou a ser cogitada, mas nenhuma medida concreta foi tomada nessa direção. A assinatura do acordo comercial entre Mercosul e União Europeia, ainda pendente de ratificação nos âmbitos dos legislativos nacionais dos dois blocos, também relativiza o alinhamento pleno do Brasil aos Estados Unidos.
O desprestígio da arena multilateral não ficou restrito à retórica crítica ao dito “globalismo marxista”. A posição brasileira na última conferência sobre mudanças climáticas reforçou a ênfase na abordagem unilateral — essa, sim, em clara convergência com o governo norte-americano.
A percepção externa sobre o país tem dado sinais claros de mudança. O Brasil perdeu status de potência emergente, conquistado depois de longos anos de investimento para consolidar posição de liderança em regimes internacionais de destaque. Na área ambiental, em que o país vinha sendo reconhecido como uma potência, o rebaixamento foi ainda mais acentuado.
O principal ativo futuro da política externa parece estar na área econômica. Embora nem só de economia se faça a política, um melhor desempenho nessa área poderia ajudar a reativar, em outras bases, a marca de “potência emergente”. Entretanto, observando o discurso que predominou nesse primeiro ano, e com o processo decisório em bases menos institucionalizadas, o risco será sacramentar o perfil de “potência submergente” e perder espaço no plano global, tão caro aos países em desenvolvimento
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Janina Onuki é professora titular e diretora do Instituto de Relações Internacionais da USP, coordenadora adjunta da Área Temática Política Internacional da ABCP (Associação Brasileira de Ciência Política), coordenadora do Grupo de Pesquisa de Relações Internacionais da Alacip (Associação Latino-Americana de Ciência Política) e pesquisadora do Caeni-USP (Centro de Estudos das Negociações Internacionais).