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sexta-feira, 19 de março de 2021

Velhos bárbaros, novo Império: resenha de Jean-Christophe Rufin: L’Empire et les Nouveaux Barbares (1991) - Paulo Roberto de Almeida

 Velhos bárbaros, novo Império

 

Paulo Roberto de Almeida

Revista Brasileira de Política Internacional

(Rio de Janeiro, ano XXXV, n. 137-138, 1992/1, pp. 97-103)

 

Jean-Christophe RUFIN: 

L’Empire et les Nouveaux Barbares

Paris, Éditions Jean-Claude Lattès, 1991, 249 pp.

 

O tema está, sem dúvida alguma, na ordem do dia: a emergência de uma nova ordem mundial após a derrocada do sistema soviético. As teses e argumentos do autor não deixam tampouco de ser provocantes: a solidão das democracias ocidentais em face, não mais do inimigo ideológico tradicional, mas, da preocupante nebulosa dos povos divididos do Terceiro Mundo. Ambos se contemplam de um lado e outro do limes, a fronteira imprecisa entre dois mundos: o Norte, recentemente reunificado e supostamente depositário dos valores do direito — o Império — e o Sul, caótico e incontrolável na diversidade de seus povos — os novos bárbaros.

 

Vinho Novo, Velhos Odres

Como todas as teses dicotômicas, o ensaio de Jean-Christophe Rufin incita não só ao debate, mas também à contestação. E, como todos os argumentos razoavelmente “catastrofistas”, o sucesso de mídia parece igualmente assegurado. Esses parecem aliás ter sido os objetivos do autor: provocar a indignação, quando não a rejeição das teses “defendidas” e, por isso mesmo, suscitar um movimento de reação ao curso aparentemente irreprimível tomado na atualidade pela chamada “nova ordem mundial”: a conformação de um novo tipo de “apartheid”, mais insidioso e generalizado que o velho sistema em vias de desaparecimento no país que o criou.

Como demonstrado pela experiência de denso best-seller do historiador Paul Kennedy sobre a ascensão e queda das grandes potências, (1) [Nota ao final] discursos sobre a decadência ou o sucesso relativos das nações sempre despertam sentimentos ambíguos em cada um de nós. Desta vez não se trata de uma pergunta dirigida apenas aos dinossauros da política mundial, mas ao conjunto dos países em desenvolvimento, isto é, à maioria dos membros da já imensa comunidade mundial. Todos devemos, assim, perguntar-nos: a sociedade onde vivo caminha para a frente, para níveis mais elevados de progresso econômico e de bem-estar social, ou seja, no sentido da História, ou, ao contrário, estaria ela condenada ao declínio, à estagnação, ao caos social ? Numa palavra: como meu país se situa em relação à modernidade encarnada pelos países já avançados ? 

Nesse particular, o diagnóstico de Rufin é aparentemente inapelável: o Norte, agora liberado da confrontação Leste-Oeste, prossegue pacientemente seu rumo em direção do futuro, acumulando riquezas e dispensando bem-estar a seus habitantes. O Sul, ao contrário, pareceria condenado ao marasmo econômico, aos conflitos militares e raciais, enfim, à anarquia social e política.

O que é mais preocupante é que não se trata de um simples “atraso histórico” em relação às realizações materiais, econômicas, científicas e culturais do Norte desenvolvido: o que os países do Sul apresentam, na verdade, é uma realidade substancialmente diferente daquela observada no hemisfério setentrional. Os valores greco-latinos são, segundo Rufin, rejeitados ao sul do Equador, a anarquia incontrolável de determinadas porções do planeta estaria transformando territórios mais ou menos vastos em novas terrae incognitae onde nenhum ocidental ousa mais se aventurar, catástrofes e guerras se disseminam no mais completo descaso em diversas regiões.

Para garantir sua própria segurança, o Norte se fecha aos influxos humanos do Sul e passa a reforçar barreiras materiais à penetração dos novos bárbaros. Essas paliçadas modernas são constituídas por Estados tampões, cuja função é a de frear as correntes migratórias, diminuir os pontos de conflito e, em última instância, garantir as fronteiras do Império.

Este é o quadro geopolítico global — amargo, talvez, e mesmo cínico, mas realista — que, segundo Rufin, caracterizaria a nova ordem mundial em construção. O cenário traçado não poderia ser mais claro em sua crueza dicotômica, sob risco de parecer simplista. Mas, antes de rejeitarmos a tese principal de Rufin como irremediavelmente contaminada por um novo tipo de maniqueísmo — ao substituir a hoje defunta oposição Leste-Oeste pelo conflito Norte-Sul, em versão revista, corrigida e ampliada — cabe reconhecer a seriedade e pertinência dos argumentos desenvolvidos em seu ensaio, quando não a fundamentação empírica da maior parte de suas afirmações.

Seu ensaio é, porém, deficiente em razão de duas ordens de problemas: por um lado, um reagrupamento arbitrário, algumas vezes incoerente, de uma série de dados objetivos — demografia, mores social, comportamento político, conflitos militares — sobre diferentes países do Terceiro Mundo; por outro lado, um pecado metodológico comum a todos os comparatistas transtemporais: o desejo de encaixar novas realidades em velhos moldes históricos. Vamos tratar sucessivamente dessas duas questões, ao mesmo tempo em que repassamos os argumentos de Rufin.

 

Existe um Terceiro Mundo ?

Todo o livro de Rufin é construído sobre a oposição entre o Norte, que adere aos valores democráticos e humanos mais ou menos identificados com a ideologia americana, e o resto do mundo, isto é, os novos bárbaros. Nem o Sul, nem o Norte são entidades homogêneas, como o reconhece o autor, mas um conjunto de elementos os diferenciam entre si, ou melhor, diversos traços negativos afastam de maneira inquestionável o destino sombrio dos países do Sul do itinerário relativamente satisfatório seguido pelos países do Norte. 

Já sabíamos, desde Max Weber, que toda ciência social é permeada de subjetividade e que todo comparatismo está irremediavelmente comprometido pela nossa própria visão do que seria o “padrão normal” de desenvolvimento histórico e social. O mesmo Weber, que fazia seus exercícios de comparação sociológica com base nos famosos “tipos ideais”, seria extremamente cauto em fazer a análise dessa imensa variedade de problemas ao abrigo da noção de “terceiro mundo”, um conceito tão carregado de contradições quanto a própria realidade que ele pretende descrever.

Na verdade, os elementos selecionados por Rufin para descrever o quadro político, econômico, social, demográfico e cultural dos países do Sul são todos relevantes quando tomados individualmente ou de maneira tópica para cada um dos países mencionados. A dificuldade está, precisamente, em subsumir elementos de origem diversa num mesmo cenário “unificador”: o assim chamado “terceiro mundo”.

Dito isto, não há como recusar a realidade atual dos países do Sul, tal como evidenciada de maneira dramática no livro de Rufin. Senão vejamos: aparecimento e ampliação de zonas de insegurança relativa em diversas regiões, seja na América Latina (onde o caso mais evidente é o do Peru), na África (Etiópia, Somália, Libéria, etc.), no Oriente Médio (Líbano) ou na Asia (Índia, Sri Lanka, Indochina), conformando as já mencionadas terrae incognitae do novo mapa planetário; colusão do crime organizado com as zonas de pobreza urbana, em diversas megalópoles do Terceiro Mundo; diferenciação gritante das taxas de natalidade ao sul e ao norte do Equador, desmentindo as teses antimalthusianas sobre a “transição demográfica”; acumulação de “arquipélagos de miséria”, nas zonas de refugiados políticos ou econômicos em vários pontos do mundo ou nas próprias cidades do Sul, como resultado do êxodo rural; desenvolvimento de novas ideologias insurrecionais, em ruptura com o marxismo tradicional, sustentando movimentos guerrilheiros virulentamente antiocidentais e anti-humanistas (Sendero Luminoso, Kmer Vermelho, fundamentalistas islâmicos, etc.); disponibilidade de armas e equipamentos sofisticados nas mãos de grupos radicais ou simplesmente criminosos; ineficiência relativa ou absoluta dos programas de desenvolvimento, seja pela ausência de mínimas condições favoráveis à implementação dos projetos, seja pela dilapidação dos recursos da cooperação internacional nas mãos de agentes corruptos. Enfim, um pouco em todas as partes do Sul o que se observa é uma situação geral que não é de simples “atraso histórico” em relação aos países do Norte — atraso que poderia, teoricamente, ser coberto em prazos mais ou menos curtos, segundo os níveis de desenvolvimento já alcançados — mas, uma condição fundamentalmente diversa da dos países avançados, uma diferença estrutural quanto ao modo mesmo em que se processa o “desenvolvimento”.

Rufin tem, sem dúvida alguma, razão no que se refere à maior parte de suas constatações “objetivas” sobre a situação dos países do Sul. De uma forma geral, o quadro é desalentador: avanço da miséria, da instabilidade política e militar, deterioração das condições de vida na maioria das megalópoles do Sul, progressão do crime organizado e da corrupção, falência geral das instituições públicas, numa palavra, recuo geral da sociabilidade e avanço da anomia. Tudo isso é bem real no Terceiro Mundo, mas não necessariamente verdadeiro para os países individualmente.

O cenário assustador do território de “bárbaros” é construído com base nos exemplos mais deploráveis que se oferecem aos olhos dos observadores do Império, elementos de natureza diversa pinçados aqui e ali na atualidade sempre trágica dos chamados “pontos quentes” do terceiro mundo. Esse terceiro mundo do livro de Rufin é o mesmo que comparece regularmente nos telejornais do Norte: guerrilhas, catástrofes naturais e sociais, ditadores sanguinários e líderes corruptos, criminalidade generalizada nas grandes cidades, violência gratuita contra mulheres, abusos dos direitos humanos, camponeses famintos, crianças abandonadas, menores assassinados, em suma, um novo pátio dos milagres com nome e endereço. O Terceiro Mundo não deixou de existir apenas pelo desaparecimento do Segundo: ele prospera, e sua face é horrenda, merecendo mesmo o epíteto de território de bárbaros.

Não se pode, evidentemente, negar a manutenção de altas taxas de fecundidade em muitos países do Sul, bem como a preservação e ampliação de focos de miséria, de desigualdade e de injustiça social na maior parte deles. O que é, entretanto, contestável, do ponto de vista da “boa” ciência social, é o agrupamento de todos esses exemplos “objetivos” numa mesma construção ideal — o chamado “terceiro mundo” — que corresponde, cela va de soi, às expectativas mentais dos habitantes do Império.

Em outros termos, os “novos bárbaros” do terceiro mundo constituem um aglomerado de “primitivos” irremediavelmente divorciados dos valores e práticas conhecidas no Norte. Como trabalho jornalístico, o livro de Rufin é o que se poderia chamar de bom exemplo de “reportagem catástrofe”; como análise objetiva da situação real dos países do Sul, contudo, é um mero emaranhado de horrores, tentando apresentar-se sob forma de edifício coerente.

Essa construção, porém, em que pese toda sua força de atração dramática, simplesmente não consegue manter-se de pé, pelo menos vista pelo ângulo da ciência social. Em primeiro lugar, porque não há esse terceiro mundo descrito por Rufin, mas tão simplesmente lugares e países diversos, apresentando problemas de distinta natureza, derivados de múltiplas causas estruturais ou conjunturais que existem episódica ou permanentemente nos diferentes continentes que compõem esse amálgama maior conhecido por Terceiro Mundo. Em segundo lugar, porque a coleção de tragédias que ele vislumbra nos territórios dos novos bárbaros é por demais incoerente, do ponto de vista analítico, para justificar esse agrupamento parcial e simplificador de elementos heterogêneos numa única construção ideal — o Sul — que se oporia ao Norte em todas as frentes possíveis do desenvolvimento histórico e social.

Pode-se tentar compreender as razões do pessimismo extremo de Rufin: coopérant francês em diversas regiões miseráveis do terceiro mundo (redundância?), coordenador de ajuda humanitária (Médecins Sans Frontières) em regiões de conflito, responsável por diversos programas de socorro urgente em zonas de guerra civil e de refugiados, ele já passou por diversos “infernos” terrestres, feitos pela própria mão do homem (com armas do primeiro mundo, é verdade). Rufin conhece, por assim dizer, as “entranhas” do mundo bárbaro: Líbano, Sudão, Somália, etc.

O que não se pode admitir, no entanto, é uma generalização duvidosa e um amálgama indevido dessas diversas situações de crise extrema e sua extensão abusiva ao conjunto dos países em desenvolvimento, como se, d’un coup, os “bárbaros” dominassem de maneira uniforme os territórios ao sul do novo Império.

 

A Miséria dos Modelos

O problema fundamental do discurso de Rufin, entretanto, não se resume à incoerência dessa agregação de dados dispersos para dar uma imagem caótica de um terceiro mundo unido em seu barbarismo. Ele é, mais exatamente, resultante do desejo secreto de todo aprendiz de comparatista de encontrar um precedente histórico e um paradigma analítico para uma oposição pré-fabricada e aprioristicamente definida entre o Norte e o Sul. A comparação ou, melhor, o modelo adotado no ensaio de Rufin recua longe na História, quando o Império romano, após derrotar Cartago — uma espécie de União Soviética da antiguidade — encontrou-se só em face da maré de bárbaros que batia às portas do mundo civilizado. Uma vez vencido o “império do mal” cartaginês, tratava-se de consolidar as fronteiras do “império do bem”, instalando, nos postos avançados da conquista romana, uma fronteira bem demarcada que tomará o nome de limes.

Hoje em dia o limes, na versão apresentada por Rufin, iria do Rio Grande, na fronteira México-EUA, passaria pelo Mediterrâneo, penetraria nas montanhas do Cáucaso e nas estepes mongóis para terminar nos rios Amur e Ossuri, entre a Sibéria oriental e a China. Esses limites correspondem, grosso modo, ao que, no vocabulário onusiano, foi identificado como o conjunto dos países em desenvolvimento, em oposição aos demais grupos da comunidade internacional. Em outros termos, não há, à primeira vista, novidades geopolíticas no novo mapa traçado por Rufin. Tampouco é surpreendente vê-lo caracterizar o México ou o Marrocos como Estados tampões, isto é, zonas de segurança e de estabilidade na fronteira imediata entre o Norte e o Sul.

Mais interessante, por sua vez, é sua caracterização do Irã e da China como sendo igualmente Estados tampões. Independentemente, portanto, da ideologia política ou do regime econômico e social adotados por cada um desses países, eles desempenhariam o mesmo papel no limes: imobilismo, estabilidade, garantia de paz para o Norte. Vale a pena retomar a descrição de Rufin para o papel da China, que também valeria, mutatis mutandis, para o caso do Irã:

“Perfeitamente à vontade no seu papel de Estado tampão, ela não é uma escória, um vestígio do mundo soviético em vias de extinção. Ela é, ao contrário, enquanto tecnologia da estabilidade, um modelo: o dos futuros Estados tampões que se instalam ao longo do limes. A característica desse modelo é uma mistura bastante surpreendente de eficiência política — no controle e na opressão — e de marasmo econômico” (p. 197).

“Estabilidade, dependência, eis o que o Norte pede aos Estados tampões. No demais, suas vociferações contam muito pouco. No caso dos totalitarismos marxistas de tipo chinês, a retórica anticapitalista pode se desenvolver sem inconvenientes. Ela serve, ao contrário, para reunir o que resta dos movimentos revolucionários internacionalistas no mundo e a evitar sua dispersão anárquica. Mas, a ineficiência econômica é a garantia de que o tigre tem os dentes e as garras limadas. Pode-se deixá-lo morder, pode-se deixá-lo rugir. Ele se mantem solidamente em suas patas, eis tudo que lhe é pedido” (p. 198).

Assim, a despeito de uma discordância fundamental com Rufin a propósito mesmo do modelo Império/novos bárbaros adotado em seu ensaio, cabe reconhecer a agudeza de sua análise política a propósito do papel da China (e do Irã) na nova ordem mundial em construção. Ao Norte interessa muito mais um Estado opressor, mas estável em sua função de fronteira, do que uma democracia insegura e problemática.

Sobre as condições de funcionamento e de manutenção do novo “apartheid”, as posições de Rufin são igualmente pertinentes. “O Império deve, em primeiro lugar, estabelecer um equilíbrio militar ao longo do limes. Depois, ele deve poder se precaver contra perigos longínquos, aqueles que intervêm nas profundezas do mundo bárbaro. Enfim, ele deve aprender a conduzir, ao longo do limes, uma diplomacia da desigualdade” (p. 212). 

A utilização do conceito de “apartheid” pode parecer chocante, ademais de extremamente forte para caracterizar as possíveis relações futuras entre os países do Norte e as nações em desenvolvimento. Ela não é, contudo, em nada exagerada. Aliás, a aplicação desse princípio já foi explicitamente recomendada, embora ao abrigo de um pseudônimo, por um alto funcionário do Governo francês especialista em questões de defesa, devendo o novo regime ser observado antes de mais nada nas transferências ditas “dualistas” de tecnologia (hoje em dia quase todas o são). (2) Apesar de vinculado ao problema das tecnologias de emprego militar, o argumento, exposto brutalmente, é o de que se deve reforçar e adaptar os regimes atualmente em vigor (TNP, Cocom, regime de controle de tecnologia de mísseis), abandonando-se a distinção entre tecnologias civis e militares e estabelecendo-se um “secretariado internacional permanente” para coordenar as exportações de tecnologias “sensíveis”. Considerando-se que mesmo a concepção e manufatura de circuitos integrados já foi declarada pelo Pentágono como do interesse da segurança nacional norte-americana, pode-se deduzir facilmente até onde poderia chegar um tal regime de controle.

Jean-Christophe Rufin deseja, evidentemente, o fim do “apartheid”, de preferência através de uma decidida ação de caráter universalista e humanista que, ao mesmo tempo em que busca perseverar nos projetos de cooperação para o desenvolvimento, faça a denúncia constante de todos os tipos de despotismos: o do dinheiro, o do fanatismo religioso, o da injustiça social. O único problema é que a iniciativa, mais uma vez, deve vir do Norte: assim, os que no Sul se batem pela transformação — são expressamente citados Vargas Llosa e Fernando Collor — deveriam receber mais “ajuda” do Norte. Sua denúncia das hipocrisias mantidas tanto ao Norte quanto ao Sul é, entretanto, muito bem vinda, em que pese o anacronismo da comparação da situação atual com a Roma antiga.

Resta uma última observação, não só em relação ao título da obra, como no que se refere à adequação do adjetivo “novo” aplicado aos “bárbaros”. Estes, como a miséria e a opressão, sempre existiram e continuam a carregar uma existência dramática através dos séculos. O Norte, por sua vez, encontra-se numa situação historicamente inédita: já não se vive a “bipolaridade” dos últimos quarenta anos, nem tampouco retornou-se ao “equilíbrio de potências” do século passado. Dessa forma, o império, sim, é que é novo, pois os “bárbaros” são nossos velhos conhecidos.

 

 

Notas:

1 Cf. Paul M. KENNEDY, The Rise and Fall of Great Powers: Economic Change and Military Conflict from 1500 to 2000, Nova York, Random House, 1987. Edição brasileira: Ascenção e Queda das Grandes Potências, Rio de Janeiro, Editora Campus, 1989, tradução de Waltensir Dutra.

2 Vide Jean VILLARS, “Pour l’Apartheid Technologique”, L’Express (14 setembro 1990, pp. 30-31).

 

[Brasília, 28/02/1992]

[Relação de Trabalhos nº 225]

segunda-feira, 2 de março de 2020

Jean-Christophe Rufin: entrevista a Marcelo Lins



IDEIAS DO MILÊNIO

"Infelizmente a ajuda humanitária é usada como vitrine por políticos"

Entrevista concedida pelo médico e escritor francês Jean-Christophe Rufin, autor de Vermelho Brasil, ao jornalista Marcelo Lins para o Milênio — programa de entrevistas que vai ao ar pelo canal de televisão por assinatura GloboNews às 23h30 de segunda-feira, com reprises às terças (4h05).
Revista Consultor Jurídico, 16 de junho de 2019

É comum hoje ressaltar a importância de qualquer profissional multiplicar suas habilidades, desempenhar várias tarefas, e esta é a marca, faz tempo, da carreira do escritor francês Jean-Christophe Rufin. Médico, trabalhou em hospitais e depois foi um dos pioneiros da ONG Médicos Sem Fronteiras. Também foi diplomata, servindo na África e no Brasil. Mas fez fama, chegou à Academia Francesa, virou sócio correspondente da Academia Brasileira de Letras e ganha a vida com a paixão de sempre: a literatura. São quase 20 livros, entre eles vários romances históricos, e um desses, Vermelho Brasil, lhe valeu o maior prêmio da literatura da França. Narra a partir da aventura de dois garotos, uma empreitada colonial no século 16, que deveria estabelecer no Rio de Janeiro a chamada França Antártica. De passagem pelo Rio, Jean-Christophe Rufin falou ao Milênio.
Marcelo Lins — Qual é a melhor definição para Jean-Christophe Rufin?
Jean-Christophe Rufin — Eu diria que sou um médico que escreve, é isso. Ou seja, sou muito apegado à identidade médica, porque aos 20 anos aprendemos apenas uma coisa que nos dá a visão do mundo. Depois, podemos exercer várias atividades, mas o que aprendi naquela idade foi a medicina. Eu sigo sendo médico e escrevo também porque gosto de compartilhar minha experiência. Gosto de contar histórias, é isso.
Marcelo Lins — Você começou cedo a trabalhar com ajuda humanitária. Estava lá no começo do Médicos Sem Fronteiras. Como foi esse momento e essa passagem de estudante de medicina a jovem médico que vai trabalhar com ajuda humanitária?
Jean-Christophe Rufin — Foi também o efeito de uma época. Quer dizer, houve naquele momento, final dos anos de 1970, uma espécie de explosão, na França e na Europa em geral – esse continente que por décadas tinha recebido ajuda internacional. Afinal, nós é que tínhamos passado por guerras, fome, epidemias... De repente, ficamos ricos o bastante e suficientemente em paz e prósperos para ajudar os outros. E, para isso, criamos novas instituições – que, aliás, nem eram instituições, e sim grupos de amigos. Eu estava voltando de uma experiência na Tunísia, onde tinha trabalhado como colaborador, tinha descoberto uma medicina bem mais próxima daquela do meu avô. Ou seja, uma medicina simples, direta, próxima da população, e não dentro dos grandes hospitais parisienses. E adorei participar dessa aventura.
Marcelo Lins — É fácil, quando falamos de ajuda humanitária, ter uma visão meio romântica do tema. Na sua experiência você viu muita coisa, na África, nas Filipinas... Você esteve em Ruanda, nos países bálticos... Você chegou a escrever um livro, com o título "A Armadilha da Ajuda Humanitária". Que armadilha é essa e o que você viu nesse trabalho de ajuda que o desagradou?
Jean-Christophe Rufin — Não é que tenha me desagradado, mas é que sempre tentei ser lúcido em relação ao que fazíamos. E a visão romântica não ajuda. Imaginar que fazemos o bem assim, porque chegamos com remédios e alimentos. Isso é falso, não é assim que acontece. A ajuda humanitária faz parte da política, das situações políticas. De alguma forma, para chegar às vítimas, às pessoas que realmente estão precisando, é preciso ter os olhos abertos, estar consciente do que está sendo feito. E a armadilha é que a ajuda humanitária pode, de certa forma, ser uma espécie de vitrine usada pelos políticos. Infelizmente, é o que acontece cada vez mais.
Marcelo Lins — Algumas vezes até mesmo a Cruz Vermelha, para citar uma instituição que tem uma grande presença histórica, e já foi acusada de fazer política, quando deveria ser independente...
Jean-Christophe Rufin — Ou de ficar cega. Por exemplo, durante a Segunda Guerra Mundial, a Cruz Vermelha Internacional não compreendeu o que estava acontecendo. Ela fez visitas a campos de concentração nazistas, sem se dar conta de que não eram campos de prisioneiros, mas, sim, de campos de extermínio. E esse erro, essa falta de lucidez, não coloca em xeque a ajuda humanitária. Mas, ao contrário, impõe que se tenha um espírito crítico e uma grande lucidez. 
Marcelo Lins — Para citar dois exemplos atuais, pois neste mundo bastante tumultuado, sempre existe a necessidade de ajuda humanitária. Há duas situações que, hoje, atraem a atenção do mundo. Uma aqui ao lado, na Venezuela. Quando se fala de crise humanitária no Brasil, por exemplo, pensamos logo na Venezuela de Maduro, essa Venezuela em crise total, sem saída à vista no momento. A outra crise humanitária, bem diferente, é a guerra do Iêmen. A ONU afirma que é o maior drama humanitário da atualidade. Como você vê essas duas crises?
Jean-Christophe Rufin — São muito diferentes, claro, mas existe um ponto em comum nos dois casos: a diminuição do espaço para ajuda humanitária. Quer dizer, o espaço – principalmente para as organizações independentes, para as ONGs, esse tipo de organização – é quase inexistente nessas duas crises, porque os governos assumiram o controle total sobre essas ações. Dá para ver isso, por exemplo, na Venezuela. A questão humanitária é, em grande medida, política. Quer dizer, para a oposição é um meio de conseguir ajuda internacional e, para alguns, de permitir a entrada do apoio estrangeiro no país. Já para o governo, a ajuda humanitária só é aceitável se tiver o controle sobre ela. No final das contas, não há mais espaço.
No Iêmen, é uma situação diferente, mas ao mesmo tempo há uma forte implicação política e militar dos países vizinhos, que torna quase impossível a presença de organizações independentes ou de voluntários independentes. E essa é uma das novidades atuais. Diferentemente das guerras que vi de perto, naqueles anos finais da Guerra Fria, onde, apesar de tudo, havia um certo vácuo, e conseguíamos entrar meio clandestinamente e, no fim das contas, chegar a uma ação humanitária direta. Hoje, o espaço está muito mais restrito e a ajuda humanitária torna-se, de certa forma, refém dos políticos.
Marcelo Lins — Você acredita que o trabalho humanitário, sendo necessário, precisa se adaptar às circunstâncias atuais?
Jean-Christophe Rufin — Não dá para, numa sociedade democrática, dizer: "Esse aí a gente vai deixar morrer." Existe necessariamente algo que tem a ver com compaixão, com sofrer junto. Se as nossas sociedades ficarem, abertamente, absolutamente indiferentes à desgraça dos outros, o que vai mudar é a natureza dessas sociedades. Ou seja, somos, de certa forma, condenados a alimentar essa abordagem humanitária. Mas garantir os meios e conseguir ser eficaz, levando ajuda às vítimas, é cada vez mais difícil.
Marcelo Lins — Voltando um pouco à sua carreira, à sua vida: em um segundo momento, você se tornou diplomata, passou a representar a França. Notadamente representante da França na África – uma ex-colônia francesa – o Senegal. O que você guarda dessa experiência na África?
Jean-Christophe Rufin — Muitas frustrações, porque ser livre, principalmente para quem é escritor, que é hoje a minha atividade principal, é fundamental. Então, dá para ser livre numa série de situações, mas quando você vira diplomata, não. Fica-se submetido... A palavra de um diplomata é controlada pelo contexto político, pelas instruções recebidas. Isso foi bastante difícil para mim, porque é preciso deixar de lado as opiniões e ideias. Ao mesmo tempo é fascinante, porque é também um jeito de mergulhar numa realidade diferente e de aprender muita coisa, de conhecer muita coisa. Raymond Aron dizia que é preciso pensar do lado do poder. Isso é sempre interessante. Não quer dizer tomar o poder, mas compreender como pensa o poder, e isso é, sem dúvida, muito útil quando a gente escreve. E a diplomacia nos dá acesso a essa compreensão.
Marcelo Lins — Como vê a diplomacia hoje?
Jean-Christophe Rufin — Se você fala das redes diplomáticas, é difícil fazer um julgamento. Acho que isso sempre existiu e que está aí para manter certos laços. Se falamos da diplomacia como uma dimensão da ação política de um Estado, é claro que é crucial. O futuro do nosso continente, o futuro mesmo do nosso país, depende da forma pela qual conseguiremos, ou não, manter essa construção europeia. Há consequências reais aí. A diplomacia não é uma questão de bolinhos, colheres e gente tomando chá, mesmo que haja muito disso, mas a questão é a responsabilidade dessas pessoas e desse conjunto. No fim das contas diz respeito aos indivíduos. Diz respeito a cada um de nós, de certa forma o resultado dessas ações e dessas políticas.
Marcelo Lins — E qual é, na sua opinião, a prioridade máxima da diplomacia francesa neste momento?
Jean-Christophe Rufin — Então, eu volto à Europa, porque de certa forma é aí que as coisas acontecem. Estamos num período decisivo, porque até agora vivemos uma espécie de fortalecimento permanente, seja pelo crescimento, seja pela consolidação institucional, ou ambos, do processo de construção europeia. Agora, pela primeira vez, isso foi colocado em questão. Não faço parte dos alarmistas, não digo que está tudo indo pelos ares, mas há forças centrífugas, com a Inglaterra, claro, sua saída, mas também com as posições de um grupo de países, principalmente no leste, que colocam em questão os princípios da União Europeia. Não quer dizer que tudo vai explodir, porque fiz uma viagem recentemente ao longo do Danúbio, para explorar um pouquinho mais a posição desses países, e eles permanecem em grande medida fortemente europeus, no fundo. Mas no discurso eles sobem o tom para fazer aumentar a consideração dos outros. Mas suas economias permanecem muito europeias, suas populações também permanecem bem europeias. Ou seja, nada de pânico, mas ao mesmo tempo, acredito que entramos numa nova fase da história da Europa e o que estamos vivendo é algo totalmente novo, e será necessário proteger as conquistas desses 50 anos, que nos deram a paz, não podemos esquecer.
Marcelo Lins — Você ficou surpreso com os resultados para o Parlamento Europeu? Onde essa subida, essa chegada da extrema-direita não se confirmou totalmente, onde outros atores apareceram, ocupando espaço?
Jean-Christophe Rufin — A extrema-direita, que aliás é muito fragmentada, muito dividida, representa um grupo relativamente modesto. O Parlamento Europeu não está dividido em dois grupos nos extremos, não é verdade. O extremismo existe, cresceu, mas, felizmente até, isso não resume a paisagem política. Essa paisagem política da Europa de hoje segue composta por gente com quem dá para trabalhar, gente que quer que a Europa funcione.
Marcelo Lins — Você trabalhou no Brasil como adido cultural no final dos anos de 1980, virada para 1990, viveu aqui por alguns anos. O Brasil foi tema de alguns de seus livros, Vermelho Brasil lhe rendeu um Prêmio Goncourt, e gostaria de saber qual a sua relação com o Brasil e como começou.
Jean-Christophe Rufin — Bom, começou por acaso, já que fui nomeado adido cultural em Recife, no Nordeste, ou seja não era só Recife, mas o Nordeste todo. Não conhecia o país, não falava ainda a língua, aprendi na marra, e foi uma descoberta muito rica. Não rendeu um livro de cara, porque foram necessários vários anos. Só depois da minha volta à França, para que afinal essas lembranças brasileiras tomassem corpo, e eu sentisse a necessidade de transformá-las em livro.
Marcelo Lins — Falando um pouco do livro Vermelho Brasil, que também foi lançado aqui, saiu aqui, nos anos 2000, como foi o processo de pesquisa? Foi difícil encontrar documentos, coisas históricas sobre o período retratado e qual a sua visão do Brasil daquela época e, digamos, da aventura francesa na chamada França Antártica?
Jean-Christophe Rufin — Descobri, ao me interessar, um pouco por acaso também, essa relação entre a França e o Brasil, me dei conta da existência desse episódio. Que, aliás, não é único, teve também São Luís do Maranhão e outros lugares onde essa relação se construiu, mas aqui no Rio foi um momento muito importante, não exatamente da história política do país, porque a França não permaneceu no Brasil, não colonizou o Brasil, mas sim na história das ideias. Os franceses chegaram aqui com as ideias da época, de que os índios eram selvagens, canibais, que era preciso trazer a civilização para eles. E finalmente, nessa baía do Rio, os franceses é que se portaram que depois foi desenvolvida por Montaigne e depois por todos os filósofos iluministas, que no fundo resultou nessa ideia do bom selvagem. Que surgiu aqui, nasceu aqui, da observação dos índios, que depois vai ser idealizada. Não apenas eles não serão mais vistos como pessoas que precisavam da civilização, como também Montaigne dirá que talvez essas pessoas, esses índios, fossem mais civilizados do que nós. E houve essa mudança completa, que está na origem das ideias iluministas, de toda essa ideia do paraíso perdido, do bom selvagem. Isso nasceu no episódio que conto em Vermelho Brasil.
Marcelo Lins — Como é que você vê as relações Brasília-Paris hoje e como vê esse Brasil de hoje? Duas perguntas em uma.
Jean-Christophe Rufin — As relações com a França, neste momento, estão um pouco marcadas por uma certa desconfiança, porque creio que há uma incompreensão, do lado francês, do que está acontecendo no Brasil. Não sabemos exatamente o que está acontecendo e não entendemos. Há uma tendência hoje de lermos a situação brasileira como se estivesse no mesmo saco, digamos, do que pode acontecer em países autoritários como a Hungria, como na Itália. Ver o Brasil como um dos países que vivem uma evolução conservadora, muito nacionalista e radical. Ou seja, em vez de compreender o Brasil como algo único, ele vira apenas mais um entre outros. Acho que isso não é bom, acredito que a situação brasileira tem suas especificadas, mas os franceses as conhecem mal.
Marcelo Lins — Talvez também pelo fato de que o Brasil faz também algumas sinalizações de aproximação com a Hungria, a Polônia, a Itália de Salvini, e isso dê essa impressão.
Jean-Christophe Rufin — Sem dúvida. Jogaram essa carta, mas ao mesmo tempo, a situação, da Hungria, onde estive recentemente, não tem nada a ver, e o poder da Hungria é algo totalmente diferente. Mas isso não importa, o que quero dizer é que o que preocupa os franceses hoje e é compreensível, é o que acontece por perto, o que acontece na Europa, e a situação do Brasil é vista com os óculos da Europa, é isso. Mas há também outras coisas, que sinalizam uma incompreensão. Como a maneira francesa de encarar a ecologia – o que fez com que a recepção ao cacique Raoni, se transformasse em uma manifestação. Mais uma vez, a partir de uma preocupação com uma política bem mais global, uma preocupação nossa, que foi expressa também nas eleições, em relação ao aquecimento global, ao desaparecimento da biodiversidade, todas essas prioridades ecológicas. Colocamos o Brasil como um exemplo negativo, sem, no entanto, entender a situação específica. Acredito que haja muita incompreensão, talvez de parte a parte.
Marcelo Lins — E já que estamos nos aproximando do final dessa entrevista, gostaria de voltar um pouco à literatura, gostaria de saber qual é a sua paixão hoje, se você está escrevendo um novo livro ou sobre o que gostaria de escrever?
Jean-Christophe Rufin — Bom, hoje o essencial da minha atividade, para não dizer a totalidade, é escrever livros, sobretudo romances. É quase como uma droga. Depois que a gente experimenta – pelo menos foi assim comigo – tem grande dificuldade de voltar aos ensaios e aos livros mais técnicos. O romance tem uma grande força, na medida em que permite falar de tudo e atrair leitores que não conhecem um tema para uma problemática na qual se identifiquem com algum personagem. Isso é algo que gosto de fazer. Publico com certa regularidade, e agora acabo de terminar um livro que vai ser publicado no ano que vem e tem a ver com a montanha. Sou bastante ligado à montanha. Fisicamente, sinto necessidade...
Marcelo Lins — Você mora na montanha boa parte do ano...
Jean-Christophe Rufin — Sim, moro na montanha uma grande parte do ano, preciso do alpinismo, preciso da montanha. Sinto não ter podido escalar o Pão de Açúcar desta vez. Enfim, gosto disso. E eu tinha vontade, há anos, de escrever um livro que se passasse na montanha e com a montanha. Onde montanha fosse personagem, de verdade. Foi que acabei de fazer e será lançado no ano que vem.
Marcelo Lins — Você tem 66 anos, se não me engano. Dito isto, a ideia do tempo que passa, da nossa finitude, da morte, é algo que o preocupa? É um tema sobre o qual gostaria de escrever, ou prefere deixar de lado, ou não é algo que preocupe o escritor Jean-Christophe Rufin?
Jean-Christophe Rufin — Não, mas como médico... Comecei minha carreira como médico. Muito jovem, tive que me deparar com a morte, o sofrimento, a doença. Era o meu trabalho quando era bem jovem. Eu tinha 23 anos quando assumi minhas primeiras responsabilidades na medicina, em hospitais de Paris. Quando escolhi escrever, foi para encontrar um outro mundo, um mundo de felicidade, de luz, energia, de força. Então, é claro que eu sei, melhor do que qualquer um talvez, que a morte e o sofrimento existem, mas tento levar uma outra vida e, pelo menos nos romances, criar uma vida que seja feita de outras coisas. Mesmo sabendo, claro, como todo mundo, para onde estamos indo todos, etc... Mas o que compartilho com os outros é uma forma de otimismo e de alegria de viver.
Marcelo Lins — Então, só para acabar, por esta resposta, vemos que você não é um pessimista, e mesmo viajando muito, acumulando uma grande experiência no mundo, você viu muita coisa. O que alimenta as suas esperanças num mundo melhor do que esse no qual estamos hoje?
Jean-Christophe Rufin — Acredito que há uma única coisa que eu me proíbo de pensar, é que era melhor antes, é isso. Quer dizer, é fácil, sobretudo quando envelhecemos, de dizer que era melhor no passado, que tudo era mais fácil, mais brilhante, mais claro. Não é verdade. Não é verdade. Acabo de escrever um romance que ainda não foi traduzido para o português, mas que retoma, a partir de dois personagens, a história de cinquenta anos, dos últimos cinquenta anos. E quando a gente retoma essa história, que eu vivi, se dá conta de como a gente veio de uma sociedade que era também muito difícil. Eu nasci sete anos depois de uma guerra que matou dezenas de milhões de pessoas. Então eu rejeito essa ideia de uma volta ao passado. Acredito que temos uma espécie de condenação à nossa frente, que é uma boa condenação aliás, de enfrentar o futuro, seja ele qual for. Ele nunca é fácil e, sobretudo, nunca é conhecido. E isso é bom.