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quarta-feira, 6 de agosto de 2014

Joao Ubaldo Ribeiro: Aula de Portugues o verbo FOR (saudades das cronicas domingueiras)

Insuperável na ironia final, na cenarização da brasileirice, esse escritor universal e profundamente brasileiro, grande mestre João Ubaldo. Sempre lia, com extremo prazer suas crônicas saborosas no Estadão.
Paulo Roberto de Almeida

O Verbo For

João Ubaldo Ribeiro

Vestibular de verdade era no meu tempo. Já estou chegando, ou já cheguei, à altura da vida em que tudo de bom era no meu tempo; meu e dos outros coroas. O vestibular, é claro, jamais voltará ao que era outrora e talvez até desapareça, mas julgo necessário falar do antigo às novas gerações e lembrá-lo às minhas coevas (ao dicionário outra vez; domingo, dia de exercício).

O vestibular de Direito a que me submeti, na velha Faculdade de Direito da Bahia, tinha só quatro matérias: português, latim, francês ou inglês e sociologia, sendo que esta não constava dos currículos do curso secundário e a gente tinha que se virar por fora. Nada de cruzinhas, múltipla escolha ou matérias que não interessassem diretamente à carreira. Tudo escrito tão ruybarbosianamente quanto possível, com citações decoradas, preferivelmente. Os textos em latim eram As Catilinárias ou a Eneida, dos quais até hoje sei o comecinho.

Havia provas escritas e orais. A escrita já dava nervosismo, da oral muitos nunca se recuperaram inteiramente, pela vida afora. Tirava-se o ponto (sorteava-se o assunto) e partia-se para o martírio, insuperável por qualquer esporte radical desta juventude de hoje. A oral de latim era particularmente espetacular, porque se juntava uma multidão, para assistir à performance do saudoso mestre de Direito Romano Evandro Baltazar de Silveira. Franzino, sempre de colete e olhar vulpino (dicionário, dicionário), o mestre não perdoava.

— Traduza aí quousque tandem, Catilina, patientia nostra — dizia ele ao entanguido vestibulando.

— "Catilina, quanta paciência tens?" — retrucava o infeliz.

Era o bastante para o mestre se levantar, pôr as mãos sobre o estômago, olhar para a platéia como quem pede solidariedade e dar uma carreirinha em direção à porta da sala.

— Ai, minha barriga! — exclamava ele. — Deus, oh Deus, que fiz eu para ouvir tamanha asnice? Que pecados cometi, que ofensas Vos dirigi? Salvai essa alma de alimária. Senhor meu Pai!

Pode-se imaginar o resto do exame. Um amigo meu, que por sinal passou, chegou a enfiar, sem sentir, as unhas nas palmas das mãos, quando o mestre sentiu duas dores de barriga seguidas, na sua prova oral. Comigo, a coisa foi um pouco melhor, eu falava um latinzinho e ele me deu seis, nota do mais alto coturno em seu elenco.

O maior público das provas orais era o que já tinha ouvido falar alguma coisa do candidato e vinha vê-lo "dar um show". Eu dei show de português e inglês. O de português até que foi moleza, em certo sentido. O professor José Lima, de pé e tomando um cafezinho, me dirigiu as seguintes palavras aladas:

— Dou-lhe dez, se o senhor me disser qual é o sujeito da primeira oração do Hino Nacional!

— As margens plácidas — respondi instantaneamente e o mestre quase deixa cair a xícara.

— Por que não é indeterminado, "ouviram, etc."?

— Porque o "as" de "as margens plácidas" não é craseado. Quem ouviu foram as margens plácidas. É uma anástrofe, entre as muitas que existem no hino. "Nem teme quem te adora a própria morte": sujeito: "quem te adora." Se pusermos na ordem direta...

— Chega! — berrou ele. — Dez! Vá para a glória! A Bahia será sempre a Bahia!

Quis o irônico destino, uns anos mais tarde, que eu fosse professor da Escola de Administração da Universidade Federal da Bahia e me designassem para a banca de português, com prova oral e tudo. Eu tinha fama de professor carrasco, que até hoje considero injustíssima, e ficava muito incomodado com aqueles rapazes e moças pálidos e trêmulos diante de mim. Uma bela vez, chegou um sem o menor sinal de nervosismo, muito elegante, paletó, gravata e abotoaduras vistosas. A prova oral era bestíssima. Mandava-se o candidato ler umas dez linhas em voz alta (sim, porque alguns não sabiam ler) e depois se perguntava o que queria dizer uma palavra trivial ou outra, qual era o plural de outra e assim por diante. Esse mal sabia ler, mas não perdia a pose. Não acertou a responder nada. Então, eu, carrasco fictício, peguei no texto uma frase em que a palavra "for" tanto podia ser do verbo "ser" quanto do verbo "ir". Pronto, pensei. Se ele distinguir qual é o verbo, considero-o um gênio, dou quatro, ele passa e seja o que Deus quiser.

— Esse "for" aí, que verbo é esse?

Ele considerou a frase longamente, como se eu estivesse pedindo que resolvesse a quadratura do círculo, depois ajeitou as abotoaduras e me encarou sorridente.

— Verbo for.

— Verbo o quê?

— Verbo for.

— Conjugue aí o presente do indicativo desse verbo.

— Eu fonho, tu fões, ele fõe - recitou ele, impávido. — Nós fomos, vós fondes, eles fõem.

Não, dessa vez ele não passou. Mas, se perseverou, deve ter acabado passando e hoje há de estar num posto qualquer do Ministério da Administração ou na equipe econômica, ou ainda aposentado como marajá, ou as três coisas. Vestibular, no meu tempo, era muito mais divertido do que hoje e, nos dias que correm, devidamente diplomado, ele deve estar fondo para quebrar. Fões tu? Com quase toda a certeza, não. Eu tampouco fonho. Mas ele fõe!

sábado, 19 de julho de 2014

Joao Ubaldo Ribeiro: um escritor brasileiro universal

João Ubaldo era, sem dúvida alguma, o mais brasileiro dos "imortais", os acadêmicos da ABL. Mas ele era também um escritor universal, pois todos os seus textos, extremamente brasileiros, eram universais já que tinham a ver com a condição humana, simplesmente.
Minha homenagem a ele por meio desta postagem de meu amigo Orlando Tambosi, a quem agradeço pelos numerosos empréstimos que tenho feito de seu blog. 
Paulo Roberto de Almeida 
João Ubaldo Ribeiro no país dos corruptos
Em março de 2006, o blog fez uma chamada para a entrevista do escritor João Ubaldo Ribeiro à revista Veja. João Ubaldo disse, entre outras coisas, que o governo Lula era incompetente, que ricos e pobres são igualmente desonestos e que a ideia de implantar cotas - como fez o lulopetismo - é um esforço para dividir o Brasil em "raças". Reproduzo a entrevista na íntegra, em homenagem a essa figura rara de intelectual honesto num país em que abundam estúpidos intelectuais ideológicos:


O escritor João Ubaldo Ribeiro fustiga o presidente Lula com a mesma intensidade com que Luis Fernando Verissimo atormentava Fernando Henrique Cardoso. Nestes dois anos e meio de administração petista, Ubaldo se tornou um dos críticos mais ácidos do  (governo. "Não gosto dessa posição, não gosto de aparecer, mas fazer o quê? É inevitável se indignar com certas coisas", diz o autor. Seu motivo mais recente de irritação foi a cartilha com termos politicamente corretos elaborada pela Secretaria dos Direitos Humanos. Ubaldo escreveu um e-mail a dezenas de amigos, e isso desencadeou toda a polêmica a respeito do tema. Aos 64 anos, o escritor baiano é um dos maiores best-sellers brasileiros, com 3 milhões de exemplares vendidos ao longo da carreira. Em casa, quando não está escrevendo, Ubaldo se dedica a uma nova paixão: o computador. Ele é capaz de ficar um dia inteiro baixando programas e viajando na internet. Compartilha o hobby com o amigo e também autor Rubem Fonseca: "Ele é um expert e dizia que eu nunca seria como ele. Hoje me chama de mestre". Em seu apartamento no bairro do Leblon, no Rio de Janeiro, João Ubaldo Ribeiro recebeu VEJA para a seguinte entrevista. 

Veja – O senhor é um dos maiores críticos do governo. O que há de errado com a administração petista?

Ubaldo – O governo é de uma extraordinária incompetência. Não conseguiu formular nenhum projeto, nenhuma visão nacional. O presidente, na minha opinião, tem de ser respeitado, pela sua condição de incorporar e encarnar o cargo supremo do Executivo brasileiro. E eu jamais faltei com esse respeito. No entanto, o brasileiro é tão subserviente que, quando alguém critica Lula chamando-o, por exemplo, de ignorante – o que não é uma difamação, é uma verdade –, diz-se que o presidente está sendo desrespeitado.

V – A ignorância a que o senhor se refere não seria compensada por outras qualidades?

U – Lula é autor de uma obra monumental, o Partido dos Trabalhadores. É algo sem precedentes na história brasileira, e talvez na história latino-americana. Governar um país, no entanto, não é a dele. Lula não sabe administrar. Ele não senta para ler, para despachar, para trabalhar. Ele tem um ministério que dificilmente conseguirá reunir num mesmo dia porque é impossível, num time de quarenta integrantes, que pelo menos um não esteja gripado ou com algum impedimento.

V – O senhor votou em Lula?

U – Sim, na última eleição. Em 1994 e 1998, votei em Fernando Henrique. Eu não considerava Lula preparado. Hoje vejo que tinha razão. Na época da eleição de 2002, deixei-me convencer de que os quadros do PT seriam suficientes para manter a coisa sob controle e que o presidente não se deixaria seduzir de forma tão flagrante pelos atrativos do poder. Observando o comportamento de Lula, nota-se que o prazer dele não é administrar. São os discursos, são as aparições que eu classifiquei, e não me arrependo do adjetivo, de circenses. Vem sendo assim desde o primeiro dia. Ele foi a uma das cidades mais pobres, se não a mais pobre e faminta do Brasil, lá no Piauí. Muitas daquelas pessoas não sabiam exatamente o que significava um presidente da República, que para elas seria algo assim como um dono do mundo. Lá, ele disse ao povo que todos iriam comer no dia seguinte. E eu duvido que estejam comendo hoje. 

V – Por causa desse tom crítico ao governo, o senhor é acusado de estar a serviço do PSDB. Como reage a isso?

U – Eu sou uma pessoa totalmente destituída de rabo preso. Nunca roubei ninguém, não tenho antecedentes criminais, nunca fui dedo-duro, é difícil desencavar em meu passado algo mais grave do que ter enganado uma namorada, e assim mesmo muito eventualmente. Quando eu falo mal do governo, recebo cartas iradas dizendo: "Mas o que o PSDB faria neste caso?". Como se tudo o que eu escrevi contra o PSDB não valesse nada. No Brasil, sempre se acredita que a imprensa vive no bolso de alguém. Eu convivi com Roberto Marinho episodicamente por causa de nossa condição de integrantes da Academia Brasileira de Letras. Por ter comparecido a três ou quatro jantares na casa do dono da Globo, fui acusado de conspirar com ele. Você imagina que Roberto Marinho iria chamar um colunista de jornal para que ambos, juntos, manobrassem os cordões que gerem esta República? As pessoas têm essa convicção porque estão acostumadas ao ambiente de corrupção que reina no Brasil. 

V – Não é um exagero dizer que a corrupção reina no Brasil?

U – Nós vivemos num ambiente de lassitude moral que se estende a todas as camadas da sociedade. Esse negócio de dizer que as elites são corruptas mas o povo é honesto é conversa fiada. Nós somos um povo de comportamento desonesto de maneira geral, ou pelo menos um comportamento pouco recomendável. Se você me acompanhar à rua, a gente pode até fazer uma experiência. A população da Zona Sul do Rio de Janeiro é formada em grande parte de gente da terceira idade. Quando um idoso atravessa a rua, os motoristas de ônibus costumam acelerar em ponto morto, fazendo um barulhão. Eles querem dar um susto no velho, eles querem matar o velho. Já vi fazerem isso com crianças, que acabam saindo correndo. Eu mesmo, que tenho 64 anos, já tomei um susto assim. Os brasileiros estão convictos de que, se um pedestre atravessar fora da faixa, o motorista tem o direito de atropelá-lo e matá-lo. Outro exemplo. Eu ouço de várias empregadas domésticas que é comuníssimo aqui no Rio de Janeiro que responsáveis pela merenda escolar retirem substancial quantidade de víveres e alimentos das crianças para levar para casa, distribuir entre parentes e até montar quitandas. Isso é um evidente absurdo. 

V – O senhor falou em lassitude moral. Isso não ocorreria porque o país não tem instituições fortes, ao contrário de nações européias e dos Estados Unidos?

U – Nós somos de um país cuja colonização se deu em moldes muito diferentes dos da colonização dos Estados Unidos, nação à qual somos freqüentemente comparados. Os colonizadores ingleses, ao vir para a América, estavam dando as costas para a Europa. Eles vieram para nunca mais voltar. Sua intenção, ao chegar ao Novo Mundo, era conceber uma nação ou várias pequenas nações nas treze colônias. No Brasil isso não ocorreu. Não porque os portugueses sejam ordinários pela própria natureza, como freqüentemente se diz. A questão é que Portugal nos pegou num momento em que sua prosperidade dependia do fato de o país ser um grande entreposto da Europa, um grande fornecedor de mercadorias. Fizeram, assim, uma colonização predatória. Portugal enriqueceu à custa do açúcar brasileiro, e Lisboa foi reconstruída pelo marquês de Pombal com dinheiro brasileiro. Convinha manter aqui um controle rígido, diferentemente dos americanos, que de costas para a Europa criaram suas próprias leis. Os portugueses, no entanto, não tinham estrutura para isso. Com essa presença forte do governo necessariamente despoliciado pela metrópole, o domínio dos portugueses ocorreu de uma maneira desordenada, desregulada, importando caoticamente a burocracia lusitana, com a corrupção que essa burocracia gera. Construiu-se toda uma visão de mundo centrada na ação estatal. A origem de muitos dos nossos problemas pode ser essa. 

V – De acordo com Gilberto Freyre, no entanto, os portugueses contribuíram positivamente ao criar uma nação miscigenada.

U – É verdade, eles deram algumas contribuições positivas, e essa é uma delas. Com a qual, por falar nisso, o governo quer acabar, implantando o sistema de cotas nas universidades. Eu vejo essa idéia com profunda desconfiança e muito desagrado. Em minha opinião, ela representa um esforço para dividir este país, pela primeira vez, em linhas raciais. Tenho amigos diretores e donos de colégios que estão sendo obrigados a classificar os alunos por raça. Que retrocesso é esse? Já me chamaram e me chamam de vez em quando de negro. Eu me recuso a ser chamado de negro. Não porque tenha vergonha. Eu sou filho de uma família portuguesa pelo lado da mãe, neto de um português pelo lado do pai. A mulher do meu avô paterno era uma mulata acaboclada. O que significa que eu tenho sangue negro. Mas eu me recuso a usar o critério americano que diz que é negro todo mundo que tem uma gota de sangue negro. Ou seja, se o sujeito é filho de um zulu com uma sueca, por que a metade zulu tem de prevalecer? E aí vem o governo com essa bobagem de que não se pode usar a palavra "mulato" porque vem de mula. Vou dizer algo politicamente incorreto: Lula é mulato. Se bem me lembro, o cabelo dele era crespo, encarapinhado, no tempo em que era líder metalúrgico. Já hoje, presidente da República, ele tem cabelos sedosos. 

V – O senhor acha que o sistema de cotas é de difícil implantação?

U – Eu acho muito complicado classificar as pessoas por raças no Brasil. Eu não vejo TV, posso estar dizendo alguma bobagem, mas eu me lembro de que a Xuxa só aceitava loirinhas para paquitas. Suponhamos que baixassem no Brasil um decreto específico, dizendo: "Xuxa Meneghel é obrigada a reservar 50% das vagas de paquitas para afro-descendentes". Apareceriam no dia seguinte 20.000 loiras de olhos azuis mostrando o retrato de um vovô negão. Carla Perez, minha conterrânea, é uma loira artificial. Ela é mulata, filha de mulato, sem deixar de ser loira. Essa idéia das cotas embute, no fundo, uma visão equivocada: aquela que enxerga a questão da escravidão como um problema de origem racial. 

V – E não é?

U – Não existe nada mais falso do que isso. Ao longo da história, os escravos sempre foram os vencidos, e não necessariamente os negros. Na maior parte das civilizações, os escravos eram brancos. Os hebreus foram escravos dos egípcios, por exemplo. Não foram os portugueses que escravizaram os africanos. Eles trouxeram nos navios negreiros pessoas que já haviam sido escravizadas em sua nação de origem. Eram negros escravizando negros. As nações da África do início do ciclo das grandes navegações nunca tinham ouvido falar na existência dos brancos. Acreditavam que a humanidade era negra. Achavam-se, assim, tão diferentes dos vizinhos que falavam outra língua, cultuavam outros deuses e comiam outra comida quanto um inglês se acha diferente de um francês, de um alemão ou de um napolitano. A suposta irmandade entre os negros passou a existir quando eles foram unificados na categoria de escravos. 

V – O senhor sempre se autodefiniu como um autor que escreve por dinheiro. Alguém com essa postura sofre algum tipo de discriminação no Brasil?

U – Sem dúvida. Em parte por causa da inveja dos que não conseguem vender livros. Durante a maior parte da história a regra foi a encomenda. Quase toda a arte renascentista foi produzida assim, da Capela Sistina às fontes de Roma. Esse negócio de se sentar e se comunicar magicamente com as musas é conversa de rico que fica falando em arte. O artista de verdade quer ser pago. 

V – Por que se lê tão pouco no Brasil?

U – É um lugar-comum dizer que isso ocorre porque o livro é caro. Sem dúvida essa é uma das razões. Há, no entanto, uma cultura de que o livro é uma coisa chata, difícil. Eu sou adotado em escolas, e devo ser odiado por um número imenso de estudantes brasileiros. Os jovens lêem os livros preocupados em responder a perguntas incompreensíveis em provas. Um grande número de professores transmite aos alunos o ódio que eles mesmos têm dos clássicos. O próprio presidente vende a imagem da leitura como uma coisa difícil, comparável a andar em esteira. Uma das coisas graves que eu acho que Lula faz é se gabar, se vangloriar da própria ignorância, da própria falta de formação.

V – O senhor recentemente teve graves problemas de saúde por causa do alcoolismo. Poderia contar o que aconteceu?

U – Foi uma luta de oito anos, complicadíssima. Tudo começou com uma depressão, em 1994, quando voltei da Copa do Mundo dos Estados Unidos. Uma depressão sem motivo, mas eu caí de cama, só não quis me suicidar. Tomei todos os remédios possíveis. Eu, que já bebia bastante, tentei curar a depressão com álcool, que é a pior burrice que alguém pode fazer. Porque a depressão vai embora durante três horas, quatro horas, depois volta pior. Você entra numa espiral descendente da qual é difícil sair. Fiquei oito anos nesse inferno, inchado, tremendo. O auge, há quatro ou cinco anos, foi quando tive uma pancreatite que quase me levou à morte. Passei quinze dias na unidade semi-intensiva do hospital. Tive a sorte de ser um dos poucos casos de pancreatite que não deram dor nenhuma. Dizem que as dores associadas a essa doença estão entre as piores que se podem suportar. Hoje, felizmente, estou há três anos sem beber. 

V – Como o senhor superou o problema?

U – Pela via da religião. Eu não me submeto ao ministério de nenhuma crença, embora acredite em Deus, reze todas as noites e me considere cristão. Há algum tempo, por uma série incrível de coincidências que não vou relatar aqui, tornei-me devoto de Nossa Senhora do Perpétuo Socorro. Eu dizia que quase morri de pancreatite. Depois que saí do hospital, voltei a meus velhos hábitos de beber. Acordava cedíssimo, por volta das 5 da manhã, ia comprar jornal e passava pelos bares que fecham tarde para comprar uísque. Às 10 da manhã já estava bêbado, e assim passava o dia inteiro. Logo tive o anúncio de que a pancreatite estava voltando: engulhos em seco. Eu acordava e ia direto para o vaso sanitário, para uma sessão de náuseas. Isso piorava a cada dia, e uma segunda pancreatite para mim seria a morte. Até que uma noite, na hora de dormir, eu rezei a Nossa Senhora: "Se amanhã eu amanhecer sem náuseas, eu paro de beber". Acordei e, pela primeira vez em muito tempo, não tive engulhos. Desde então, e isso foi há três anos, não bebi mais nada. Todos os fins de semana vou com meus amigos ao boteco e só tomo guaraná diet. O mais incrível é que não sinto a mínima vontade de beber. Eu poderia dizer que tenho uma imensa força de vontade, mas não seria verdade. Eu não faço esforço nenhum.

domingo, 1 de junho de 2014

Abaixo Machado! Viva a grande pensadora contemporanea! -Joao UbaldoRibeiro

Joao Ubaldo Ribeiro
O Globo, 31/05/2014

Não sei se vocês lembram, ou que fim levou, aquela história de censurarem, expurgarem ou proibirem um livro infantil de Monteiro Lobato, por aspectos considerados racistas. De vez em quando, fico um pouco impaciente e pergunto por que não proíbem logo “Os Sertões”, com tanto racismo contido na parte que todo mundo diz que leu, mas não leu, a referente ao homem. Deve ser porque de fato não leram, senão a grita ia poder começar até mesmo por Itaparica, onde somos todos, de acordo com a visão dele, mestiços neurastênicos do litoral. A antropologia da época tinha convicções que podem hoje ser qualificadas de racistas, mas era a ciência de então e no mesmo barco estão outros cuja obra haverá de merecer ser reescrita ou banida, como Oliveira Vianna ou Sílvio Romero. Imagino que devemos até nos surpreender por ainda não terem começado uma reavaliação da figura de Machado de Assis, sob a acusação de ele ter sido um mulato alienado metido a branco, ou uma condenação da crítica, por não o haver qualificado de maior escritor negro do Brasil.
Mas, no caso de Machado, dizem as novidades, não se trata de racismo, trata-se da elaboração, com a chancela e o apoio do Estado, de versões populares, ou acessíveis à maioria, de obras dele. Segundo o que saiu nos jornais, concluíram que os jovens e pessoas menos cultas não leem Machado porque não entendem as palavras e não percebem o que querem dizer certos arranjos sintáticos. Ou seja, o problema é com Machado, cujos textos obsoletos são preservados supersticiosamente e já não têm serventia para as gerações presentes. Urge, portanto, que nos livremos dessa tralha inútil e elitista, corrigindo o muito que clama por atualização.
A observação inicial que se pode fazer sobre tal premissa é que ela se fundamenta na crença, comum entre pessoas semiletradas e analfabetos funcionais, de que, na obra literária, existe uma diferença, ou separação, entre forma e conteúdo. O conteúdo seria a “história”, o “enredo”. A forma seriam as palavras usadas pelo escritor e seu jeito de narrar. O que interessa aos que reescrevem Machado é esse “conteúdo”, que pode ser contado de diversas maneiras. Assim, “Dom Casmurro” seria basicamente o mesmo, quer tendo sido escrito por Machado, quer por Dostoiévski, Balzac ou Jorge Amado. Isto, realmente, é de uma estupidez inexcedível e contribui para que ganhe corpo a noção primária de que é possível conhecer a literatura de um país, simplesmente ouvindo, da boca dos que já as leram, as histórias contadas pelos grandes escritores, não vindo ao caso suas palavras, seu estilo, suas sutilezas, suas referências.
É curioso como iniciativas desse tipo se veem como antielitistas. As elites, o que lá seja isso por aqui, querem preservar para si mesmas a fruição da grande arte. Só quem tem vocabulário e fez esforços para ser um bom leitor é que pode desfrutar de Machado de Assis? Não, senhor, agora qualquer um, mesmo com vocabulário restrito e praticamente inculto em todas as áreas, vai poder ter esse privilégio. Para isso, vamos rebaixar, vamos reduzir os textos a uma voz tatibitate, modernosa e linguisticamente irresponsável, vamos limitar o vocabulário e tomar outras medidas simplificadoras. Não se nota como essa posição — ela, sim — é presunçosa, arrogante e elitista. Não se pensa em estender a todos o que hoje é visto como das elites, pensa-se em baixar o nível e assim ser democrático, quando o que ocorre é o contrário.
Os laços lógicos desse paternalismo condescendente desafiam a imaginação e, num contexto em que cada vez mais o Estado (ou seja, no nosso caso, o governo) mete o bedelho na vida individual de seus súditos, podemos temer qualquer coisa. Quanto a Machado de Assis, não se pode fazer mais nada, além de reescrever seus textos. Mas, quanto aos autores vivos, pode-se incentivá-los (ou obrigá-los, conforme o momento) a ater seus escritos ao Vocabulário Popular Brasileiro, que um dia destes pipoca por aí, tem muita gente no governo sem ter o que fazer. Constará ele das 1.200 palavras compreensíveis pela melhor parte da juventude e do povo brasileiros e, para não ser elitista, quem publicar livro ou matéria de jornal não deve passar delas e quem usar uma palavra considerada difícil não apenas será sempre vaiado quando em público, como pagará uma multa por vocábulo metido a sebo.
Novos empregos serão abertos, para enfrentar a tarefa hercúlea de atualizar nossa literatura. Para que os poetas precisam de tantas palavras, quando as do Vocabulário seriam suficientes para exprimir qualquer sentimento ou percepção? Ou o elitista diria o contrário, menosprezando preconceituosamente a sensibilidade e a criatividade do povão? E rima, meu Deus do céu, para que se usou tanto rima, uma coisa hoje em dia completamente superada? E ordens inversas, palavras postas fora do lugar, que só podem confundir o leitor comum? Por essas e outras é que os jovens também não leem poesia.
E a lição se estende da literatura às outras artes. O povo não gosta de música erudita porque são aquelas peças vagarosas e demoradas demais. De novo, a solução virá ao adaptarmos Bach a ritmos funk, fazermos arranjos de sinfonias de Beethoven em compasso de pagode e trechos de no máximo cinco minutos cada e organizarmos uma coleção axé das obras de Villa-Lobos. Tudo para distribuição gratuita, como acontecerá com os livros de Machado reescritos, pois continuamos a ser um dos poucos povos do mundo que acreditam na existência de alguma coisa gratuita. E talvez o único em que o governo chancela, com dinheiro do cidadão, o aviltamento de marcos essenciais ao autorrespeito cultural e à identidade da nação, ao tempo em que incentiva o empobrecimento da língua e a manutenção do atraso e do privilégio.

João Ubaldo Ribeiro é escritor

domingo, 4 de maio de 2014

A estupidez fundamental das politicas racialistas - Joao Ubaldo Ribeiro

João Ubaldo Ribeiro
O Globo, 4/05/2014

Defender a existência de uma única cultura africana ou negra é insultuoso, ignorante e racista

Uma das mais clamorosas — e para mim enervantes — manifestações do atraso da espécie humana é esse negócio de raça. A importância que damos à raça, a ponto de odiar-se, matar-se e morrer-se por causa dela, leva inevitavelmente ao lugar-comum: seria ridícula, se não fosse trágica. É difícil encontrar um assunto sobre o qual se digam tantas besteiras quanto este, sempre ignorando não só evidências antropológicas como dados da própria realidade cotidiana. E é também bastante difícil falar sobre ele ou debatê-lo. Muita gente perde o controle, espuma de raiva e afoga o debate em gritos e denúncias.
Começa pela ligação, que aqui sempre se faz, entre escravidão e raça. Falou em escravos, falou em negros. Mas a maior parte dos escravos na história da humanidade não era de negros, o que lá seja isto. A escravidão, para generalizar razoavelmente, era o destino dos vencidos de qualquer raça, que não fossem exterminados. Inclusive, é claro, pois do contrário é que não seriam humanos, os da raça negra vencidos por outros da mesma raça, caso dos escravos vendidos ao Brasil. É comum a noção de que “negro é negro”, como se as incontáveis etnias negras se considerassem iguais. Isso equivale a entender que um alemão é igual a um polonês, um sueco igual a um italiano ou um espanhol igual a um russo. Não pode haver disparate maior — e, se bem olhado, racista — do que achar que, num continente gigantesco e diversificado como a África, todos os negros são iguais e, mais bobamente ainda, irmãos. Irmãos em Cristo e, assim mesmo, se não forem muçulmanos. Vão perguntar se as minorias negras massacradas por nações também negras se consideram irmãs de seus algozes, ou estes daquelas. Ou aos escravos negros de outros negros, situação até hoje existente na África. Há até quem se escandalize com guerras e genocídios entre nações negras. Ué, e guerra de branco contra branco?
Desculpem se atropelo argumentos, mas é que o assunto me deixa nervoso também e me dá uma certa exasperação. Agora me ocorre interromper o que vinha dizendo para lembrar outra prática enervante: falar em cultura africana. Não existe, nem pode existir, uma cultura africana, em nenhum sentido. Aplica um reducionismo grotesco aquele que — e lembro outra vez o tamanho e a complexidade da África — acha que só existe uma cultura negra ou africana. De novo, é um argumento que, se bem olhado, pode ser considerado racista. Existe a cultura africana dos povos a que pertenciam os que foram trazidos para o Brasil como escravos, o que é muito diferente de dizer que ela é “a cultura africana”. Experimentem convidar um zulu para jantar e servir a ele comida ioruba, como na Bahia. Defender a existência de uma única cultura africana ou negra é insultuoso, ignorante e racista.
Aplicar padrões sociológicos americanos para o problema, no Brasil, é outra prática difícil de aturar. E faço a ressalva sempre exigida de que claro que no Brasil há racismo, patati-patatá. Mas a Bahia não é o Alabama. Já na década de 60, um casal, numa das Virgínias do Sul dos Estados Unidos, foi condenado a dois anos de prisão porque era inter-racial, ou seja, um dos dois era negro. As Forças Armadas só foram integradas na Guerra da Coreia e qualquer um que tenha vivido nos Estados Unidos sabe que lá é diferente e ou criamos nossas próprias categorias para examinar nossa realidade, ou prosseguiremos macaqueando até mesmo o racismo alheio.
Escrevi “macaqueando” aí em cima, sem de início lembrar a alusão a macacos em recentes incidentes de racismo no futebol. Mas ela vem a calhar, nesta salada que estou servindo hoje. É curioso como não paramos para pensar e notar que, quesito por quesito, algum racista negro teria razões para alegar que macaco é o branco e não o negro, o qual pode ser visto como muito mais distante do macaco que o branco. Se é verdade, não sei, nem isto tem importância alguma, mas pensem aqui num par de coisas. Imaginem, por exemplo, um ser inteligente de outro planeta, portanto não sujeito aos nossos condicionamentos, a quem incumbíssemos de esclarecer qual das duas raças é mais próxima do macaco. Para tanto, poríamos diante dele um branco nu, um negro nu e um chimpanzé, nosso primo próximo.
O primeiro impacto talvez fosse a cor e, de fato, o pelo do chimpanzé, assim como a pele do negro, é preto. Mas o bom observador não ia deixar-se levar por essa aparência. Façamos um exame cuidadoso e uma listazinha, junto com ele. O macaco é todo coberto de pelos, o corpo do negro é glabro, o branco pode ser o Tony Ramos; os pelos do macaco são lisos, os cabelos do branco também, os cabelos dos negros são crespos; raspado o pelo, a pele do macaco por baixo se revela branca e não preta; os lábios do macaco são finos, os do branco também, os dos negros são grossos; o macaco não tem bunda, o branco tem bunda chata, o negro tem bunda almofadada; até — perdão, senhoras — os renomados atributos masculinos dos negros são mais distantes do macaco, que é tipo piu-piu. Como se vê, basta escolher o que se quer levar em conta e, pelo menos neste exemplo perfeitamente plausível, o extraterrestre poderia concluir que o branco está bem mais perto do macaco que o negro.
Tudo bobagem, discussão que não leva a nada, somente ao ódio e à intolerância. Vamos parar de procurar modelos, ao menos nisto não sejamos tão colonizados, não permitamos que mais lixo contamine nosso pensamento. Os americanos é que têm obsessão por raça (lá nós, brasileiros, somos “hispânicos”), nós temos é a glória e o privilégio de ser o único país em que homens e mulheres de todas as raças se misturaram e misturam e onde a raça, Deus há de ser servido, ainda terá o lugar que merece, ou seja, nenhum.



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Defender a existência de uma única cultura africana ou negra é insultuoso, ignorante e racista

Uma das mais clamorosas — e para mim enervantes — manifestações do atraso da espécie humana é esse negócio de raça. A importância que damos à raça, a ponto de odiar-se, matar-se e morrer-se por causa dela, leva inevitavelmente ao lugar-comum: seria ridícula, se não fosse trágica. É difícil encontrar um assunto sobre o qual se digam tantas besteiras quanto este, sempre ignorando não só evidências antropológicas como dados da própria realidade cotidiana. E é também bastante difícil falar sobre ele ou debatê-lo. Muita gente perde o controle, espuma de raiva e afoga o debate em gritos e denúncias.
Começa pela ligação, que aqui sempre se faz, entre escravidão e raça. Falou em escravos, falou em negros. Mas a maior parte dos escravos na história da humanidade não era de negros, o que lá seja isto. A escravidão, para generalizar razoavelmente, era o destino dos vencidos de qualquer raça, que não fossem exterminados. Inclusive, é claro, pois do contrário é que não seriam humanos, os da raça negra vencidos por outros da mesma raça, caso dos escravos vendidos ao Brasil. É comum a noção de que “negro é negro”, como se as incontáveis etnias negras se considerassem iguais. Isso equivale a entender que um alemão é igual a um polonês, um sueco igual a um italiano ou um espanhol igual a um russo. Não pode haver disparate maior — e, se bem olhado, racista — do que achar que, num continente gigantesco e diversificado como a África, todos os negros são iguais e, mais bobamente ainda, irmãos. Irmãos em Cristo e, assim mesmo, se não forem muçulmanos. Vão perguntar se as minorias negras massacradas por nações também negras se consideram irmãs de seus algozes, ou estes daquelas. Ou aos escravos negros de outros negros, situação até hoje existente na África. Há até quem se escandalize com guerras e genocídios entre nações negras. Ué, e guerra de branco contra branco?
Desculpem se atropelo argumentos, mas é que o assunto me deixa nervoso também e me dá uma certa exasperação. Agora me ocorre interromper o que vinha dizendo para lembrar outra prática enervante: falar em cultura africana. Não existe, nem pode existir, uma cultura africana, em nenhum sentido. Aplica um reducionismo grotesco aquele que — e lembro outra vez o tamanho e a complexidade da África — acha que só existe uma cultura negra ou africana. De novo, é um argumento que, se bem olhado, pode ser considerado racista. Existe a cultura africana dos povos a que pertenciam os que foram trazidos para o Brasil como escravos, o que é muito diferente de dizer que ela é “a cultura africana”. Experimentem convidar um zulu para jantar e servir a ele comida ioruba, como na Bahia. Defender a existência de uma única cultura africana ou negra é insultuoso, ignorante e racista.
Aplicar padrões sociológicos americanos para o problema, no Brasil, é outra prática difícil de aturar. E faço a ressalva sempre exigida de que claro que no Brasil há racismo, patati-patatá. Mas a Bahia não é o Alabama. Já na década de 60, um casal, numa das Virgínias do Sul dos Estados Unidos, foi condenado a dois anos de prisão porque era inter-racial, ou seja, um dos dois era negro. As Forças Armadas só foram integradas na Guerra da Coreia e qualquer um que tenha vivido nos Estados Unidos sabe que lá é diferente e ou criamos nossas próprias categorias para examinar nossa realidade, ou prosseguiremos macaqueando até mesmo o racismo alheio.
Escrevi “macaqueando” aí em cima, sem de início lembrar a alusão a macacos em recentes incidentes de racismo no futebol. Mas ela vem a calhar, nesta salada que estou servindo hoje. É curioso como não paramos para pensar e notar que, quesito por quesito, algum racista negro teria razões para alegar que macaco é o branco e não o negro, o qual pode ser visto como muito mais distante do macaco que o branco. Se é verdade, não sei, nem isto tem importância alguma, mas pensem aqui num par de coisas. Imaginem, por exemplo, um ser inteligente de outro planeta, portanto não sujeito aos nossos condicionamentos, a quem incumbíssemos de esclarecer qual das duas raças é mais próxima do macaco. Para tanto, poríamos diante dele um branco nu, um negro nu e um chimpanzé, nosso primo próximo.
O primeiro impacto talvez fosse a cor e, de fato, o pelo do chimpanzé, assim como a pele do negro, é preto. Mas o bom observador não ia deixar-se levar por essa aparência. Façamos um exame cuidadoso e uma listazinha, junto com ele. O macaco é todo coberto de pelos, o corpo do negro é glabro, o branco pode ser o Tony Ramos; os pelos do macaco são lisos, os cabelos do branco também, os cabelos dos negros são crespos; raspado o pelo, a pele do macaco por baixo se revela branca e não preta; os lábios do macaco são finos, os do branco também, os dos negros são grossos; o macaco não tem bunda, o branco tem bunda chata, o negro tem bunda almofadada; até — perdão, senhoras — os renomados atributos masculinos dos negros são mais distantes do macaco, que é tipo piu-piu. Como se vê, basta escolher o que se quer levar em conta e, pelo menos neste exemplo perfeitamente plausível, o extraterrestre poderia concluir que o branco está bem mais perto do macaco que o negro.
Tudo bobagem, discussão que não leva a nada, somente ao ódio e à intolerância. Vamos parar de procurar modelos, ao menos nisto não sejamos tão colonizados, não permitamos que mais lixo contamine nosso pensamento. Os americanos é que têm obsessão por raça (lá nós, brasileiros, somos “hispânicos”), nós temos é a glória e o privilégio de ser o único país em que homens e mulheres de todas as raças se misturaram e misturam e onde a raça, Deus há de ser servido, ainda terá o lugar que merece, ou seja, nenhum.

domingo, 14 de abril de 2013

Pausa para... humor negro (Disneylandia do Joao Ubaldo)

Parece mentira, mas é tudo verdade...
Exclusiva com o comandante Borges
 João Ubaldo Ribeiro
O Estado de S.Paulo, 14/04/2013

-Comandante, ainda bem que você veio. Ontem me disseram que você não queria mais dar a entrevista.

- É, mas pensei melhor. Se eu prometi, está prometido. Alguém tem que manter a palavra neste país. Mas isso não impede, sem querer ofender ninguém, que eu ache esta entrevista uma palhaçada.

- Não entendi.

- Não vai sair nada do que eu disser, a imprensa está toda no bolso do governo, devendo à Previdência e à Receita e mamando as verbas de publicidade. A imprensa está aí para ajudar no fingimento de que há liberdade, vontade popular, opinião pública e essas besteiras feitas para declamação. Isto mesmo que eu acabo de dizer quero ver sair, não sai. Está gravando?

- Estou.

- Você está perdendo seu tempo, não vai sair nada. Grave aí que eu acho que essa democracia é para as negas deles, o que eles fazem é entrolhar todo mundo e fazer tudo da veneta deles. Você viu a do ensino? Agora é obrigatório botar o filho na escola aos 4 anos! A quem que eles perguntaram? Eles não conseguem dar conta nem de metade dos que já têm direito e inventam mais? Estamos cheios de grandes escolas públicas para todos, todo mundo na escola de barriga cheia desde os 4 anos, que beleza! Eu não sou otário, eu não sou otário! Eu queria que eles compreendessem que eu não sou otário!

- Eu pretendia chegar a assuntos como esse, sei que você tem opiniões muito firmes. Mas minha primeira pergunta ia ser outra, mais pessoal.

- Ah, desculpe, eu às vezes me exalto um pouco. Pode perguntar o que você quiser. Se eu contar coisas pessoais, também não sai, eu não sou pervertido, a imprensa só se interessa quando é a vida pessoal dos pervertidos. Não vai sair nada, mas eu respondo a qualquer pergunta.

- Bem, a pergunta é uma curiosidade minha. Frequentamos este mesmo boteco há não sei quantos anos e nunca vi você chegar dando risada sozinho, como vi hoje, na hora em que você estava descendo da sua famosa bicicleta elétrica. Dá para dizer qual foi a razão?

- Dá, eu não escondo nada. Não era riso de satisfação, nem de felicidade. Era uma risada mórbida que deu para me atacar de uns tempos para cá, uma espécie de humor negro. Eu estava me lembrando de um comercial. Não sei do que era, só me lembro da cena. Era um casal fazendo um piquenique romântico na Lagoa à noite, sentadinho com um pano de mesa estendido, luz de velas, cestinha de comida, parecia uma aquarela campestre. Aí eu fiquei pensando e me deu uma crise desse riso mórbido. E, na hora de minha chegada, não sei por que, me lembrei de novo. Sempre que eu lembro, rio novamente, é incoercível. Piquenique na Lagoa é demais, não é, não?

- Demais como?

- Você não entendeu? Piquenique na Lagoa, piquenique na Lagoa! Só pode ser Walt Disney, e dos anos 50! Quando o casal tivesse acabado de estender a toalha, já não ia ter mais cestinha, nem garrafinha, nem vela, nem piquenique nenhum! Seja sincero e realista e me responda quantos segundos você daria para um casal começar um piquenique à noite na Lagoa e o piquenique ser todo comido e possivelmente o casal também. Dou 90 segundos, mas ganha quem der um minuto. Aí eu fico pensando no que poderia acontecer a esse casal e o piquenique deles e tenho essas crises de riso, é tudo humor negro mesmo. Uns dois dimenores liquidavam tudo numa boa.

- Você tem uma birra com os menores, não tem?

- Eu não, eu só sou contra o que eu vou lhe figurar. Eu sou João Narigolé, traficante que de vez em quando precisa de outros serviços, notadamente os que envolvem dar cabo de alguém. Aí, quem é que eu chamo para fazer o serviço? Vou ao banco de dados de menores pistoleiros… Deve haver vários bancos de dados desse tipo, é capaz até de já ter no Facebook. Vou lá, escolho um, ofereço uma graninha e ele faz a execução. Se for preso, não pega nada e recebe a grana pelo serviço. Se me dedurar, sabe que eu posso mandar outro dimenor para rechear de azeitonas a cabeça dele e assim por diante, é um esquema perfeito. O dimenor é um grande patrimônio da criminalidade nacional.

- Então você é a favor da diminuição da maioridade penal.

- Eu não! Não distorça minhas palavras! A favor da diminuição geral, não, cada caso é um caso! Eu só tenho propostas sérias e eficazes, esse negócio de fixar idades com base em invencionices psicológicas não resolve nada. Eu sou a favor de uma coisa muito simples: teve idade para apontar a arma e dar o tiro, tem idade para ir em cana. Não é simples? É a coisa mais óbvia para qualquer um e somente os intelectuais é que não concordam, porque as soluções simples dão desemprego para eles, tudo aqui é em função do emprego.

- Você não acha que a responsabilidade penal do menor…

- Ninguém mais é responsável por nada! Isso era antigamente, agora todo mundo é vítima e qualquer sacanagem que apronte recebe um nome artístico, dado pelos psiquiatras! Um nome artístico e uma bolinha e está tudo resolvido, a culpa não é de ninguém, é da síndrome! A culpa não é dele, é das condições socioeconômicas! A culpa não é dela, é dos traumas de infância! Ninguém tem mais culpa de nada, ninguém fica preso, ninguém paga do próprio bolso as multas às empresas, ninguém é responsável por nenhum desastre, todo mundo rouba e mata, há muito tempo que isto é uma esculhambação! O que nós precisamos é de Robespierre! Nada de faxina! Para quem propina, rapina e assassina, o correto é guilhotina! Quero ver isso sair no jornal!