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terça-feira, 25 de junho de 2024

Assassinato no Comitê Central? Pois é! Manuel Vasquez Montalbán o perpetrou, e Leonardo Padura conta seu fascínio por ele

 Que foi também o meu, justamente desde esse assassinato em plena reunião do Comitê Central do PCE, à época dirigido pelo stalinista Santiago Carrillo (sobreviveu).

Introdução de Mauricio David:

Como se deu meu encontro (ficcional, é claro) com o escritor catalão Manuel Vázquez Montalbán

 

Foi na editora Paz e Terra, do saudoso Fernando Gasparian, que, fuxicando na prateleira de livros recebidos pela editora no escritório aqui do Rio, me deparei, pela primeira vez, com um livro do criador do célebre detetive Pepe Carvalho. Lá pelos anos de 86 ou 87, não me lembro bem (afinal, já se passaram quase 4 décadas do episódio).  O livro intitulava-se “Asesinato en el Comité Central” e me chamou a atenção pelo inusitado título. Foi uma paixão a primeira vista. Fui seguindo depois pelo mundo afora, aqui e acolá, os exemplares que conseguia da vasta produção de Vázquez Montalbán, de quem me tornei fã e admirador. Livro maravilhoso, divertido e encantador, o “Assassinato no Comité Central”. Encontrei hoje na internet este texto do célebre escritor cubano Leonardo Padura que fala sobre o mestre espanhol do romance noir. É uma boa introdução à obra do criador do detetive Pepe Carvalho, em especial para os que gostam de um bom romance policial. Leiam o texto de Padura (escrito em 2018, há seis anos atrás, portanto) e encontrarão os motivos para passar a admirar também a escrita do autor catalão/espanhol.

Bom proveito !

MD

LITERATURA

O falcão barcelonês

Autor cubano rememora seus primeiros contatos com a obra e a vida de Manuel Vázquez Montalbán, mestre espanhol do romance noir

Leonardo Padura

Revista 451, 01 NOV 2018 - 02H51 | EDIÇÃO #18 NOV.2018

https://quatrocincoum.com.br/autor/leonardo-padura/  


Caro leitor, se este é seu primeiro contato com a obra narrativa de Manuel Vázquez Montalbán, você terá um privilégio considerável: entrar na literatura deste mestre do noir pela melhor porta possível. Digo isso com pleno conhecimento de causa, avalizado pela experiência do meu primeiro encontrão com a literatura de Montalbán, um choque traumático e equivocado.

Corria o ano de 1987 e eu havia acabado de voltar a Cuba depois de uma infindável temporada em Angola, para onde havia sido enviado como redator de uma revista voltada a colaboradores civis cubanos que lá moravam. Durante aquele ano, vivido fora do país e quase que fora do tempo, via-me obrigado a ler, sem método nem finalidade, o que encontrasse pela frente, tomado pelo lamentável estado de ânimo que me acompanhou durante essa experiência internacionalista em um país em guerra. Ao voltar para Cuba e me reencontrar comigo mesmo, recebi a agradável notícia de que a então jovem Fundação Alejo Carpentier, dedicada à obra do autor e à promoção da literatura cubana, havia aberto uma atraente biblioteca circulante, composta só por livros editados fora do país. A nova biblioteca fora financiada com recursos (diziam) doados por Gabriel García Márquez, que por sua vez os teria obtido com editoras espanholas com as quais mantinha relações de trabalho ou amizade. 

Se alguma vez eu escrevesse um policial, teria que escrever como escrevia aquele espanhol, e o protagonista ser tão vital como Pepe Carvalho

Como o único lugar para o qual eu tinha viajado até então era Angola, e em Cuba só se publicavam, naquela época ­— e menos agora —, novidades de autores contemporâneos, e não se importavam livros impressos na Espanha ou no México — e sim os editados na União Soviética, por uma editora horrível chamada Progresso, mas que deveria ter sido batizada de Retrocesso —, foi graças àquela biblioteca singular que pude entrar em contato com autores como Gore Vidal, Kurt Vonnegut, o Mailer pós-Os nus e os mortos, o Vargas Llosa mais recente, entre muitos outros aos quais me atirava com voracidade. Entre eles, um romancista policial espanhol, chamado Manuel Vázquez Montalbán.

Quando soube da existência desse romancista, policial, espanhol, senti curiosidade e receio. Um romancista policial e espanhol? A experiência que eu acumulava à época como leitor implacável e crítico mordaz da literatura do gênero tinha como base o que era acessível aos cubanos comuns: clássicos anglo-saxões e franceses, as quase sempre decepcionantes obras dos autores do chamado “romance policial revolucionário cubano” (escola na qual, em geral, faltava o “romance”) e as histórias de espionagem chegadas da irmã União Soviética (Yulián Semionov, Vladimir Bogomolov). Havia também um ou outro livro infiltrado, quase nunca recente, de escritores como os italianos Leonardo Sciascia e Mario Puzo (com O poderoso chefão) e o argentino Rodolfo Walsh, de Operação massacre (antecessor digno e direto de A sangue frio, de Truman Capote, também publicado em Cuba). E pouco mais.

Encontrão 

Movido por um interesse mais antropológico do que literário, peguei emprestado da biblioteca o único romance do suposto romancista policial espanhol disponível no catálogo. Chamava-se As termas e havia sido publicado em 1986, pela Planeta. E assim se deu o encontrão traumático. 

As termas é o oitavo romance de Montalbán protagonizado pelo detetive Pepe Carvalho, catalão filho de galegos, ex-militante comunista e ex-agente da CIA. A trama se passa em um balneário em Marbella, no sul da Espanha, para onde Carvalho vai com o intuito de se desintoxicar, seguindo a recomendação de um tal Isidro Planas, empresário catalão. Durante duas semanas, fica internado numa clínica gerenciada por médicos alemães, que o submetem a uma dieta rigorosa e a uma série interminável de lavagens estomacais, com as quais castiga e purifica seu organismo, habituado a todos os excessos etílicos e gastronômicos que se possa conceber. E, nesse balneário, tão distante de Barcelona, onde vive e trabalha como detetive, Carvalho se vê compelido a investigar uma trama que conecta o presente com os tempos do Terceiro Reich alemão e os conhecidos fascistas de sempre. E elucida um mistério. 

Não posso dizer que a leitura tenha sido uma experiência decepcionante. É um romance bem escrito, narrado com mão firme, com peripécias bem concebidas e um nível de linguagem acima da média das melhores obras do gênero. Mas nada mais do que isso. Nele, Pepe Carvalho não come nem bebe vinho branco, não briga com a namorada prostituta, não fala com os amigos de Barcelona nem percorre a cidade, não se mistura com as tramas de uma sociedade marcada pelo passado franquista e pelos primeiros passos de sua transição democrática, nem sequer queima os livros de sua biblioteca particular para acender a lareira. 

A escolha obrigatória daquele romance específico (na verdade não uma escolha, já que não havia outro livro do autor) me apresentou traços totalmente incompreensíveis da identidade do personagem e de seu criador; mais ainda, equivocados ou, melhor dizendo, mutilados, tendo em conta a minha condição de neófito no universo do escritor. E, sem mais, condenei ao esquecimento aquele romancista, policial e espanhol, mais do que correto em sua escrita, mas de nenhuma forma extraordinário, segundo meu desinformado juízo.

Por sorte, pouco mais de um ano depois pude fazer a minha primeira viagem à Espanha, convidado a participar (como jornalista) do que seria a 1ª Semana Negra de Gijón, nas Astúrias. E foi nos dias que precederam o encontro, quando estávamos em Madri, que o escritor mexicano Paco Ignacio Taibo me presenteou um romance que recomendou com todos os elogios, comprado por cem pesetas numa banca de rua: Os mares do sul, escrito, é claro, por aquele mesmo Manuel Vázquez Montalbán, considerado (eu descobria naquela instante) o guru da literatura noir espanhola e, mais do que isso, um dos intelectuais mais corrosivos e ativos do momento. 

Durante a Semana Negra, sempre na função de jornalista, tive o atrevimento e a sorte de poder entrevistar muito rapidamente Manuel Vázquez Montalbán, que esteve naquele encontro maravilhoso por alguns poucos dias. A conversa, que obviamente não poderia ser sobre a obra dele, teve como objetivo informar a mim e aos desinformados leitores cubanos sobre a origem e as características do romance policial na Espanha. Além de uma análise saborosa em primeira mão, saí da entrevista com um ganho importante: a certeza de que aquele romancista policial e espanhol era um homem de uma coerência intelectual assombrosa e de um mau humor proverbial.

Vital

Quando voltei a Cuba, em pleno verão de 1988, li Os mares do sul, vencedor do prestigiado Prêmio Planeta nove anos antes. A comoção que me tomou ao ler o romance de Montalbán que eu devia ter lido antes de As termas, para me armar das chaves de um universo literário aberto e em desenvolvimento, foi tão profunda que saí dele com a respiração entrecortada, a boca seca e uma convicção alarmante: se eu fosse escrever um romance policial, teria que escrevê-lo como aquele espanhol escreveu Os mares do sul, e se fosse escrever esse romance e criasse um investigador, o meu teria que ser tão vital como aquele Carvalho, cético e cínico, que andava à vontade pelas páginas de Os mares do sul, e então retraçava as ruas da sua Barcelona e as rotas do seu próprio tempo histórico e humano.

Encontrar aquele romance foi uma cura radical para o meu trauma inicial e, então, foi o ponto de partida de uma dependência crônica pela literatura de Montalbán, cujos romances, policiais ou não, persegui desde então, comprando-os durante minhas viagens à Espanha numa época em que não podia me dar esse luxo. Também foi o caminho por onde comecei a buscar uma proximidade inclusive física com aquele escritor, um contato que chegaria a se converter numa amizade peculiar — pois com Manolo, como pude chamá-lo mais tarde, tudo era peculiar. Até a forma como morreu, em 2003, num lugar tão inapropriado: o aeroporto de Bangcoc, cidade onde desenvolveu o enredo de um de seus romances. 

De bairros operários degradados a ilustres salões burgueses, Barcelona torna-se o mapa de um universo alterado pelas possibilidades surgidas após a morte de Franco

Assim, durante anos, tivemos vários encontros em Barcelona e Havana, a ponto de me atrever a pedir-lhe que escrevesse a apresentação do meu primeiro romance publicado na Espanha — Máscaras (1997) —, e de ele se atrever a me pedir que o ciceroneasse pelos caminhos mais intrincados de Havana, na investigação que fez do mundo cubano antes da visita do papa João Paulo 2º à ilha, materializada na extensa reportagem Y Diós entró em La Habana, de 1999.

Enigma Espanha

Depois de dizer tudo isso, acho que é hora de eu começar a me explicar… Talvez já esteja claro que, para mim, Os mares do sul é, com toda a propriedade, um excelente romance policial, com uma trama bem armada e resolvida, como se requer nas boas obras do gênero. Porém, também deveria ser evidente que Os mares do sul é, antes de tudo, um excelente romance, e que o fato de ser um policial só serve para duplicar sua transcendência e influência.

Até a chegada de Manuel Vázquez Montalbán com Tatuaje, de 1974 — a segunda obra protagonizada por Pepe Carvalho —, o romance policial espanhol buscava obter seu documento de identidade, próprio e intransferível. Vários autores, desde a década de 1920 e, depois, a partir da década de 1950 (passada a Guerra Civil e os anos mais duros do pós-Guerra), haviam escrito obras do gênero com êxito parcial, mas sem capacidade suficiente para criar uma escola ou, ao menos, sem a certeza de que era possível traçar e seguir caminho próprio. 

A chegada desse novo romancista, todavia, conseguia unir duas premissas: uma identidade nacional para o gênero e um plano estético pelo qual ele continuaria se movendo, logo em companhia de outros autores notáveis: Andreu Martín, Juan Madrid e Francisco González Ledesma, entre outros. 

Se as qualidades literárias desse escritor já eram patentes em Tatuaje e em La soledad del mánager (1977), elas são forjadas no seu máximo nível estético e conceitual em Os mares do sul. O pretexto do enredo, a busca pelo lugar onde estivera durante um ano o riquíssimo empresário catalão encontrado morto nas primeiras páginas do romance, serve a Montalbán para dissecar cruamente a sociedade espanhola dos anos imediatamente posteriores à morte do ditador Francisco Franco e o estabelecimento de uma nova democracia, ainda titubeante, ameaçada e receosa de si mesma.

A galeria de personagens através dos quais Carvalho descobre as diferentes facetas do empresário Stuart Pedrell serve ao escritor para traçar, por sua vez, as diferentes facetas de uma sociedade pulsante, em que os debates ideológicos, os oportunismos, as frustrações políticas e econômicas, o presente democrático e o passado franquista tratam de expressar a dinâmica de um momento histórico que até hoje está em definição. A cidade, enquanto isso, percorrida desde os bairros operários mais degradados até os salões burgueses mais ilustres, passando pela Barcelona histórica e íntima das Ramblas, do porto e do Bairro Chinês, torna-se, muito mais do que um cenário oportuno, um mapa de todo um universo alterado pelas novas possibilidades e marcado pelos enormes obstáculos de um passado de capitalismo ditatorial. Carvalho, por sua vez, um desiludido e irremediável ideológico, abre com a sua personalidade, as suas fobias e os seus amores as portas para a compreensão de uma frustração política e para o desfrute de uma festa dos sentidos através de seus jogos gastronômicos e etílicos.

Por esses caminhos e muitos outros atributos — incluindo uma linguagem vibrante —, Os mares do sul supera com segurança os seus desafios estéticos e a sua condição de romance noir, propondo-se a ser, sobretudo, um inflamado romance social, do qual surgem perguntas e algumas respostas — algo inevitável à lucidez ideológica de seu autor. 

Bússola

Não foi por acaso que, mal tendo concluído Os mares do sul, engatei as leituras de Tatuaje, La soledad del mánager, Assassinato no Comitê Central (1981), Los pájaros de Bangkok (1983) e A rosa de Alexandria (1984) —  revisitei, inclusive, As termas. Tampouco foi fortuito que, meses depois da comovente descoberta daquelas qualidades do gênero policial, um dos nortes que me guiou no romance ao qual eu enfim tinha tempo para me dedicar, após seis anos de trabalho intenso num jornal diário, foi o que me haviam mostrado Manuel Vázquez Montalbán e seu irreverente detetive Pepe Carvalho. 

O outro caminho, é claro, levava a marca de Raymond Chandler e Philip Marlowe. Porque, em ambos os casos, o romance policial exibia as potencialidades que eu buscava no meu projeto: eram esforços altamente literários de, por meio da revelação de ambientes, personalidades, traumas sociais e conflitos individuais e de época, proporcionar buscas capazes de se impor ao simples e inteligente jogo da criação de enigmas.

‘Os mares do sul’ supera a condição de romance noir para ser, sobretudo, um inflamado romance social

Como você terá se dado conta, caro leitor, Os mares do sul é muito mais do que um romance. É, para a língua espanhola, o que foi para o inglês A chave de vidro (1931), de Dashiell Hammett. Só que, ao contrário do vaso de porcelana chinesa que Hammett atirou no meio da rua — nas palavras de Chandler, seu discípulo —, o mestre Manuel Vázquez Montalbán projetou a bússola que conduz à Literatura (com maiúscula), por meio da qual nós, escritores, temos nos orientado em romances mais ou menos policiais, nas nossas tentativas de praticar o difícil exercício de matar com as palavras. A arte de escrever um romance policial. E de fazê-lo em língua espanhola.

Espero que Manolo, inconformista e lúcido como sempre, esteja de acordo comigo, esteja onde estiver. Seja no céu de Bangcoc, seja, como sem dúvida teria preferido, no Bairro Chinês de Barcelona, num céu materialista e vivo, aonde talvez chegue o inconfundível cheiro da cozinha da Casa Leopoldo, seu restaurante favorito. [Tradução de Antonio Mammi

QUEM ESCREVEU ESSE TEXTO

Leonardo Padura

Escritor cubano, escreveu A transparência do tempo (Boitempo).

Matéria publicada na edição impressa #18 nov.2018 em novembro de 2018.

 

segunda-feira, 24 de agosto de 2020

El hombre que amaba a los perros, por Leonardo Padura - Helga Hoffmann

O MUNDO NA FICÇÃO 


 El hombre que amaba a los perros
Leonardo Padura (romance) 
Helga Hoffmann
[Política Externa, vol. 21 n. 3, jan-fev-mar 2013, pp. 237-240] 

É romance, de paixão, terror, e, mais que nada, desengano. É construído como romance policial, e mantém suspense, pela minuciosa investigação do financiamento, da logística, e das motivações do mais longamente preparado e inútil dos assassinatos. Mas só em parte é ficção: pelas vozes paralelas do romance – Trotsky, o jovem espanhol que o matou, e um narrador cubano em primeira pessoa – temos ali uma história do comunismo desde os anos trinta até o início do século XXI e um balanço de fracassadas utopias do século XX.
Trotsky, ferido de morte, ainda conseguiu gritar a ordem para que os guarda-costas que o acudiram não matassem o homem que havia enterrado um piolet em sua nuca: ”... ele tem uma história para contar!” E a história está sendo contada por muitos autores. 
Padura leva-nos aos cenários do que foi alguma vez chamado de “revolução mundial”: a Rambla em Barcelona, Catalunha e Madrid da Guerra Civil Espanhola, Moscou dos processos e execuções estalinistas, México de Lázaro Cárdenas, Praga de 1968, Cuba dos anos setenta até o fim da ajuda soviética. Pelo caminho, aparece a Sibéria dos degredados e uma bucólica ilha da Turquia que aceitou o judeu russo e sua mulher no início do desterro, além das várias cidades francesas por que passa sempre em fuga, e da Noruega que o asilou, e depois também o despacha num cargueiro para o México. Até por Nova York e Coney Island passam os agentes secretos da NKVD neste romance.
Alguns dos personagens não são figuras históricas. Além do narrador Ivan Cárdenas - escritor cubano tão frustrado com o ambiente de opressão em Cuba nos anos setenta que desiste de escrever e vai trabalhar de veterinário -, são também de ficção as mulheres dele, familiares, colegas, seu amigo e confidente Daniel Fonseca. 
Esses cubanos da imaginação literária são situados por Leonardo Padura em contextos conhecidos: Ivan corta cana como voluntário na safra de 1970; Ivan e Daniel sofrem com falta de comida e combustível quando não há mais subvenção russa e, da praia em Cojimar, no verão de 1994, observam “... centenas, milhares de homens, mulheres e crianças que aproveitavam a abertura de fronteiras decretada pelo governo para lançar-se ao mar em qualquer objeto flutuante, levando seu desespero, seu cansaço e sua fome, em busca de outros horizontes” (p.539). São personagens que permitem um olhar sobre o cotidiano da ilha, como o detetive Mario Conde, protagonista dos romances policiais que tornaram Padura conhecido em Cuba e mundo afora. 
Ivan um dia encontra caminhando na areia a beira-mar um homem misterioso e triste, com dois borzoi. Aproxima-se através dos cães, conversam, e a curiosidade faz com que volte à praia muitas vezes, percorrendo longa distância em bicicleta, à procura do homem, que está sempre com seus borzoi e com um negro alto, que fica de longe, com jeito de guarda-costas. Consegue reencontrá-lo várias vezes, ouve dele relatos que suspeita serem confidências, até que um dia ele some. Ivan faz anotações do que o homem lhe contou, mas não pensa em publicá-las.
Depois de muitos anos, já na década de noventa, quando a preocupação maior de Ivan ainda é a sobrevivência, ele recebe um envelope enviado por German Sánchez, com falso endereço de remetente. É um livro de Luis Mercader sobre seu irmão Ramon e tem muitas fotos. Ivan tem a certeza, pelas fotos, que o homem que encontrara na praia como Jaime Lopez era de fato Ramon Mercader. Percebe que deve escrever a história que este lhe contou e que ainda não o fez por medo. 
Há diálogos e emoções dos personagens reais para os quais obviamente não há documentação histórica. Assim, o sentimento de culpa de Trotsky durante seu affair com Frida Kahlo é “criação” de Padura, mas o tal caso acabou sendo notório. E é fato que Diego Rivera hospedou Trotsky e sua mulher Natalia quando chegaram ao México. O fracassado atentado ao asilado por um grupo de mexicanos armados que arrebentou muros da casa de Coyoacán em maio de 1940, e que teve a participação de Alfaro Siqueiros, teria sido instigado por Rivera ciumento? 
De todos os modos, a campanha dos comunistas locais contra Trotsky, “o traidor”, compunha o ambiente para o atentado. As idéias políticas expressas nas conversas de Trotsky e dos outros personagens estão embasadas em seus livros, artigos e correspondência, mas é claro que nunca saberemos como foi cada diálogo real.
Trotsky aparece como o personagem perseguido, fugindo sempre, de um país para outro, cada vez que se esgotam as condições políticas para a permanência do asilado. Claro que nesse relato da gestação de um crime ele é mais vítima que algoz, dá pena. Mas não é louvado como “herói da classe operária” (que é o que seu assassino almejava ser). É um personagem obsessivo, para o qual o que mais interessa é o grande jogo político, pois crê nas “leis da história” e as pessoas ao seu redor são instrumentais (com exceção talvez de Natalia e dos borzoi). Até porque nos seus últimos anos precisa do dinheiro que lhe rendem seus artigos para jornais e revistas.
Cada vez que há uma purga em Moscou, com condenações e fuzilamentos de conhecidos e amigos dos primeiros tempos da revolução dos sovietes, Trotzky nota como o terror pode estar se aproximando dele. E volta à sua memória sua própria culpa no massacre dos marinheiros de Kronstadt. Mas ele justifica para si mesmo que em 1921 o governo revolucionário estava começando e não podia tolerar levantes que o punham em perigo. 
A biografia de Ramon Mercader que ali se revela é ainda mais sombria. Depois de lutar nas trincheiras da guerra civil espanhola, é convencido por sua mãe, Caridad Mercader, a se tornar agente da NKVD. Caridad, cubana de nascimento, aparece em muitas das ocasiões nesse romance, e é talvez o personagem mais sinistro, uma mulher em um mundo de homens, mais dura e fanática que todos eles. Sua militância começa por queimar a fábrica do marido.
O romance é de terror quando do treinamento de Ramon na URSS, para assumir vários personagens, convencer-se de que o fim justifica os meios e, sobretudo, para aprender a matar e a obedecer, o que chega a ser bastante doloroso para o catalão. É romance de espionagem quando mostra Ramon – então como Jacques Mornard - pouco a pouco ganhando a intimidade dos Trotsky e sua entourage. Depois de capturado em flagrante, em 1940, ficou preso 20 anos no México, sem jamais trair seus companheiros, reafirmando todo o tempo a identidade que aparecia em seu passaporte falso de belga. Sua verdadeira identidade foi sendo confirmada aos poucos. Depois de libertado, viveu incógnito em Moscou, e em Cuba entre 1974 e 1978. (E é assim que o Ivan, o veterinário que também gostava de cães, pôde encontrar Lopez com seus dois borzoi.) Morreu em Moscou em circunstâncias obscuras.
O livro não poderia ter sido escrito antes da queda do muro de Berlim, antes da glasnost, antes da abertura dos arquivos de Moscou nos anos noventa e a subsequente publicação de material sobre a realidade dos 70 anos de existência da União Soviética. Padura passou vários anos fazendo pesquisa de campo e de documentos, com a ajuda de pessoas em lugares diversos, sobretudo México, Espanha, Moscou, França, e Dinamarca. 
Haverá quem não goste de ver a documentação colossal “organizada de acordo com as liberdades e exigências da ficção” e, ainda por cima, com uma enormidade de detalhes. Ou então, que não confie que a ficção pode transmitir bem uma verdade histórica e prefira os relatos de historiadores, biógrafos, jornalistas. Leitura fácil esse romance não é. Mas tudo o que vivenciei até hoje no meu fiapo de linha do emaranhado que Padura quer desenredar – como e por que se perverteu a utopia do século XX? -, sustenta minha convicção de que o que está nesse livro é mais verdade que ficção. Ou é ficção que mostra a verdade.

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PRA: Em sua nota final de agradecimento, Leonardo Padura informa que começou a escrever a seu relato histórico "no mês de outubro de 1989, enquanto, sem que muita gente ainda o suspeitasse, o Muro de Berlim se inclinava perigosamente, até que começou a se precipitar e se desfez, apenas umas semanas depois". (p. 763 de minha edição do livro, a 15a edição da editora MaxiTusquets)
Ele indica que foi a visita que fez à residência de Trotsky no México, naquela época, que o fez decidir escrever a respeito. Mas demorou muito para a obra emergir. Escreve então: 

"Al enfrentarme a su concepción, más de quince años después, ya en el siglo XXI, muerta y enterrada la URSS, quise utilizar la historia del asesinato de Trotski para reflexionar sobre la perversión de la gran utopía del siglo XX, ese proceso en el que muchos invirtieron sus esperanzas y tantos hemos perdido sueños, años y hasta sangre y vida."

quinta-feira, 2 de abril de 2015

Resenha de livro: O Homem que Amava os Cachorros, de Leonardo Padura - Olavo de Carvalho

Mensagem do passado
Olavo de Carvalho
Diário do Comércio, 31/03/2015

         A Editora Boitempo publicou em tradução o romance de Leonardo Padura, “El Hombre que Amaba a los Perros”, com o título de “O Homem que Amava os Cachorros”. Eu teria preferido “Cães”, porque, ao lidar com uma língua irmã da sua própria, o tradutor deve ter o bom gosto e bom senso de escolher, seja palavras de igual raiz com significado idêntico nas duas línguas, seja palavras que inexistem no idioma original, jamais palavras idênticas com significado diverso. “Cachorro”, em espanhol, é “filhote”. Talvez o tradutor achasse que “cão” é termo do vocabulário “burguês”.

         Mas o problema maior não é esse. Dedicada eminentemente à promoção de idéias e autores comunistas, a equipe da Boitempo mostrou que é capaz de traduzir e divulgar um dos grandes romances do século, ganhando algum dinheiro com ele, sem se deixar afetar pelo seu conteúdo no mais mínimo que seja. É um caso de insensibilidade literária que raia a psicastenia. Pois raramente, no mundo, o comunismo, não nos detalhes do imensurável horror físico que produziu, mas nas profundezas da deformidade psicopática que o inspira, foi descrito em termos tão cruamente realistas como nesse livro: é uma imagem do inferno ou, para usar as palavras do autor, algo que se parece “antes a um castigo divino do que a uma obra de homens”.

         Com base em farta documentação, só complementando-a com a especulação imaginativa nos pontos onde isso é indispensável, o livro conta a história dos últimos anos de vida de Leon Trotski e do seu assassino, Ramon Mercader, paralelamente à do narrador, um escritor cubano reduzido à impotência criadora pelas imposições da burocracia castrista empenhada em tudo rebaixar e mediocrizar. Os três são homens que apostaram tudo no socialismo e aos quais só resta, no fim da história, a consciência amarga da “vida inteira que poderia ter sido e que não foi”.

         Embora a maior parte do enredo se passe no tempo de Stalin, o romancista não apela ao expediente costumeiro de trocar “comunismo” por “stalinismo”, usado para branquear a imagem do regime nas épocas subseqüentes, mas mostra com muita clareza que, de um modo ou de outro, a mistura de violência assassina e mendacidade alucinante que caracterizou o stalinismo se conservou em ação em todos os países comunistas muitas décadas depois da morte do ditador. Padura, que nasceu e ainda mora em Cuba, publicando seus livros no México, viveu tudo isso de perto e colocou no personagem do narrador de “El Hombre que Amaba a los Perros” muito da sua experiência pessoal.

         Hoje os brasileiros se espantam ante um governo que lhes rouba bilhões de reais enquanto, com a maior cara dura, continua posando de paladino da moralidade, e, rejeitado por noventa por cento da população, ainda se faz de porta-voz do “povo” contra a “elite”.  Se conhecessem algo da história do comunismo, como a trama urdida por Stalin para dar cabo de Trotski, entenderiam que a mendacidade psicopática, em proporções tão vastas que raiam o diabolismo puro e simples, não é uma invenção do PT: é inerente à mentalidade comunista em todas as épocas e lugares.

         Os capítulos finais deste livro mostram o próprio assassino de Trotski, Ramon Mercader, consciente de haver jogado sua vida fora numa farsa demoníaca, concebida para fazer de Trotski, então um exilado sem dinheiro e quase sem seguidores, chutado de cá para lá por todos os governos do mundo, o todo-poderoso líder de uma conspiração global para derrubar o governo soviético com a ajuda simultânea – porca miséria! -- dos nazistas e dos americanos. Durante décadas, Mercader foi adestrado para odiar Trotski com todas as suas forças, só para descobrir, depois, que na realidade nada sabia contra ele além de balelas e invencionices absurdas e antinaturais, injetadas em sua cabeça com violência comparável à do golpe de picareta no crânio com que ele deu fim à existência da sua vítima.

         Após ter ido parar na cadeia num dos muitos expurgos que eram rotina na política soviética, o próprio agente secreto que treinou e disciplinou a mão assassina de Mercader tem, na velhice, a mesma consciência de ter servido apenas aos caprichos insensatos de um ditador enlouquecido pelo medo, que não se acalmaria antes de haver eliminado da face da Terra todos os seus inimigos reais, hipotéticos, virtuais ou totalmente imaginários.

         Especialmente significativa é uma personagem secundária, a mãe de Mercader, Caridad. Mulher frígida que o marido burguês corrompe para ver se desperta nela o desejo sexual, ela se entrega então a uma vida devassa e ao consumo de drogas, chegando a uma tentativa de suicídio. Só emerge da depressão quando encontra uma saída existencial no comunismo e reestrutura sua personalidade com base nos valores da militância, tornando-se uma combatente fanática, odiando o marido e o capitalismo como se fossem uma só entidade e contribuindo decisivamente para fazer do filho um assassino a soldo de Stalin. Eu não poderia ter encontrado melhor ilustração para o conceito do outsider como militante, que descrevi em artigo recente neste mesmo jornal (http://www.dcomercio.com.br/categoria/opiniao/os_desajustados).

          No fim, o desencanto de Caridad é o mesmo de Ramón e de seu instrutor, com a diferença de que ela não tem nem mesmo a força deles para meditar sobre a insensatez do seu passado.

         O vazio, a secura, a tristeza vã e desesperançada que são tudo o que resta a esses homens quando compreendem a pantomima tola e sangrenta da qual se fizeram servidores e agentes, são a mensagem derradeira legada pelo século XX à presente geração, aí incluídos os editores brasileiros incapazes de ouvi-la.

         Não é preciso dizer que perseguições em massa, cruéis e insensatas, no mais puro modelo stalinista, aconteceram também na China comunista, em Cuba, no Vietnã, no Camboja, em todos os países-satélites da URSS e por toda parte onde a opinião comunista tenha saído do subsolo psicopático que lhe é natural e conquistado um lugar de respeito na sociedade. O modelo universalizou-se. A única coisa que varia é a dosagem respectiva da violência e da mendacidade que a fórmula da loucura comunista assume em distintos lugares do mundo. Nos países onde não tem força bastante para tomar o poder pelas armas, o comunismo apela à estratégia gramsciana do engodo geral e, por isso mesmo, como aconteceu no Brasil, rouba mais do que mata, pelo menos até que o produto do roubo, crescendo até dimensões oceânicas, lhe assegure a posse dos meios de matar.

terça-feira, 17 de dezembro de 2013

Trotsky: seu assassinato continua a ser um grande tema para historiadores e romancistas

Folha de S.Paulo, 17/12/2013 - 14h15

Escritor cubano reabre o debate sobre o assassinato de Trótski

da Livraria da Folha
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Divulgação
Autor trata de uma história coberta por inúmeras mistificações
Autor trata de uma história coberta por inúmeras mistificações
Em "O Homem que Amava os Cachorros", o escritor cubano Leonardo Padura apresenta um romance investigativo sobre o assassinato Leon Trótski e do assassino, Ramón Mercader.
No dia 21 de agosto de 1940, no México, Trótski foi assassinado a golpe de picareta. Josef Stálin (1879-1953) foi visto como o principal suspeito de encomendar o crime.
Eles tinham desavenças notórias e Stálin o considerava um rival, motivo que levou Trótski a deixar União Soviética.
A história de "O Homem que Amava os Cachorros" começa em 2004 e é narrada por Iván, que trabalha em uma clínica veterinária em Havana e pretende se tornar escritor.
O narrador encontra um homem que passa a contar detalhes sobre Mercader, como a adesão ao Partido Comunista espanhol, o treinamento em Moscou, a mudança de identidade e os artifícios para ser aceito na intimidade do líder soviético. Padura procura manter o texto fundamentado em documentação e pesquisas para não cair na mera especulação.
"A verdade histórica é um limite que não se deve violar, pois um livro também tem o poder da letra impressa, que tende a ter um sentido de credibilidade", disse Padura aJoca Reiners Terron. "Por isso eu sou muito respeitoso com minhas investigações históricas".
Lev Davidovich Bronstein nasceu em família judaica no dia 7 de novembro de 1879, na Ucrânia. Adotou o nome Leon Trótsky apenas aos 18 anos, quando foi preso por conspirar contra o czar. Amigo de Lênin (1870- 1924), foi exilado da Rússia diversas vezes. No final de 1917, ambos lideraram os bolcheviques e derrubaram o governo. Era o início da República Soviética da Rússia.
Mercader, que nunca afirmou ter sido enviado pelo ditador soviético, cumpriu pena por homicídio até maio de 1960. Ele viveu em Cuba e na União Soviética até morrer em Havana, em 1978. Seu corpo foi enterrado sob o nome de Ramon Ivanovitch López, em Moscou, e tem um lugar de honra no museu da KGB.
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"O Homem que Amava os Cachorros"
Autor: Leonardo Padura
Tradução: Helena Pitta
Editora: Boitempo
Páginas: 600
Quanto: R$ 59,90 (preço promocional*)
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Texto baseado em informações fornecidas pela editora/distribuidora da obra.