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segunda-feira, 24 de agosto de 2020

El hombre que amaba a los perros, por Leonardo Padura - Helga Hoffmann

O MUNDO NA FICÇÃO 


 El hombre que amaba a los perros
Leonardo Padura (romance) 
Helga Hoffmann
[Política Externa, vol. 21 n. 3, jan-fev-mar 2013, pp. 237-240] 

É romance, de paixão, terror, e, mais que nada, desengano. É construído como romance policial, e mantém suspense, pela minuciosa investigação do financiamento, da logística, e das motivações do mais longamente preparado e inútil dos assassinatos. Mas só em parte é ficção: pelas vozes paralelas do romance – Trotsky, o jovem espanhol que o matou, e um narrador cubano em primeira pessoa – temos ali uma história do comunismo desde os anos trinta até o início do século XXI e um balanço de fracassadas utopias do século XX.
Trotsky, ferido de morte, ainda conseguiu gritar a ordem para que os guarda-costas que o acudiram não matassem o homem que havia enterrado um piolet em sua nuca: ”... ele tem uma história para contar!” E a história está sendo contada por muitos autores. 
Padura leva-nos aos cenários do que foi alguma vez chamado de “revolução mundial”: a Rambla em Barcelona, Catalunha e Madrid da Guerra Civil Espanhola, Moscou dos processos e execuções estalinistas, México de Lázaro Cárdenas, Praga de 1968, Cuba dos anos setenta até o fim da ajuda soviética. Pelo caminho, aparece a Sibéria dos degredados e uma bucólica ilha da Turquia que aceitou o judeu russo e sua mulher no início do desterro, além das várias cidades francesas por que passa sempre em fuga, e da Noruega que o asilou, e depois também o despacha num cargueiro para o México. Até por Nova York e Coney Island passam os agentes secretos da NKVD neste romance.
Alguns dos personagens não são figuras históricas. Além do narrador Ivan Cárdenas - escritor cubano tão frustrado com o ambiente de opressão em Cuba nos anos setenta que desiste de escrever e vai trabalhar de veterinário -, são também de ficção as mulheres dele, familiares, colegas, seu amigo e confidente Daniel Fonseca. 
Esses cubanos da imaginação literária são situados por Leonardo Padura em contextos conhecidos: Ivan corta cana como voluntário na safra de 1970; Ivan e Daniel sofrem com falta de comida e combustível quando não há mais subvenção russa e, da praia em Cojimar, no verão de 1994, observam “... centenas, milhares de homens, mulheres e crianças que aproveitavam a abertura de fronteiras decretada pelo governo para lançar-se ao mar em qualquer objeto flutuante, levando seu desespero, seu cansaço e sua fome, em busca de outros horizontes” (p.539). São personagens que permitem um olhar sobre o cotidiano da ilha, como o detetive Mario Conde, protagonista dos romances policiais que tornaram Padura conhecido em Cuba e mundo afora. 
Ivan um dia encontra caminhando na areia a beira-mar um homem misterioso e triste, com dois borzoi. Aproxima-se através dos cães, conversam, e a curiosidade faz com que volte à praia muitas vezes, percorrendo longa distância em bicicleta, à procura do homem, que está sempre com seus borzoi e com um negro alto, que fica de longe, com jeito de guarda-costas. Consegue reencontrá-lo várias vezes, ouve dele relatos que suspeita serem confidências, até que um dia ele some. Ivan faz anotações do que o homem lhe contou, mas não pensa em publicá-las.
Depois de muitos anos, já na década de noventa, quando a preocupação maior de Ivan ainda é a sobrevivência, ele recebe um envelope enviado por German Sánchez, com falso endereço de remetente. É um livro de Luis Mercader sobre seu irmão Ramon e tem muitas fotos. Ivan tem a certeza, pelas fotos, que o homem que encontrara na praia como Jaime Lopez era de fato Ramon Mercader. Percebe que deve escrever a história que este lhe contou e que ainda não o fez por medo. 
Há diálogos e emoções dos personagens reais para os quais obviamente não há documentação histórica. Assim, o sentimento de culpa de Trotsky durante seu affair com Frida Kahlo é “criação” de Padura, mas o tal caso acabou sendo notório. E é fato que Diego Rivera hospedou Trotsky e sua mulher Natalia quando chegaram ao México. O fracassado atentado ao asilado por um grupo de mexicanos armados que arrebentou muros da casa de Coyoacán em maio de 1940, e que teve a participação de Alfaro Siqueiros, teria sido instigado por Rivera ciumento? 
De todos os modos, a campanha dos comunistas locais contra Trotsky, “o traidor”, compunha o ambiente para o atentado. As idéias políticas expressas nas conversas de Trotsky e dos outros personagens estão embasadas em seus livros, artigos e correspondência, mas é claro que nunca saberemos como foi cada diálogo real.
Trotsky aparece como o personagem perseguido, fugindo sempre, de um país para outro, cada vez que se esgotam as condições políticas para a permanência do asilado. Claro que nesse relato da gestação de um crime ele é mais vítima que algoz, dá pena. Mas não é louvado como “herói da classe operária” (que é o que seu assassino almejava ser). É um personagem obsessivo, para o qual o que mais interessa é o grande jogo político, pois crê nas “leis da história” e as pessoas ao seu redor são instrumentais (com exceção talvez de Natalia e dos borzoi). Até porque nos seus últimos anos precisa do dinheiro que lhe rendem seus artigos para jornais e revistas.
Cada vez que há uma purga em Moscou, com condenações e fuzilamentos de conhecidos e amigos dos primeiros tempos da revolução dos sovietes, Trotzky nota como o terror pode estar se aproximando dele. E volta à sua memória sua própria culpa no massacre dos marinheiros de Kronstadt. Mas ele justifica para si mesmo que em 1921 o governo revolucionário estava começando e não podia tolerar levantes que o punham em perigo. 
A biografia de Ramon Mercader que ali se revela é ainda mais sombria. Depois de lutar nas trincheiras da guerra civil espanhola, é convencido por sua mãe, Caridad Mercader, a se tornar agente da NKVD. Caridad, cubana de nascimento, aparece em muitas das ocasiões nesse romance, e é talvez o personagem mais sinistro, uma mulher em um mundo de homens, mais dura e fanática que todos eles. Sua militância começa por queimar a fábrica do marido.
O romance é de terror quando do treinamento de Ramon na URSS, para assumir vários personagens, convencer-se de que o fim justifica os meios e, sobretudo, para aprender a matar e a obedecer, o que chega a ser bastante doloroso para o catalão. É romance de espionagem quando mostra Ramon – então como Jacques Mornard - pouco a pouco ganhando a intimidade dos Trotsky e sua entourage. Depois de capturado em flagrante, em 1940, ficou preso 20 anos no México, sem jamais trair seus companheiros, reafirmando todo o tempo a identidade que aparecia em seu passaporte falso de belga. Sua verdadeira identidade foi sendo confirmada aos poucos. Depois de libertado, viveu incógnito em Moscou, e em Cuba entre 1974 e 1978. (E é assim que o Ivan, o veterinário que também gostava de cães, pôde encontrar Lopez com seus dois borzoi.) Morreu em Moscou em circunstâncias obscuras.
O livro não poderia ter sido escrito antes da queda do muro de Berlim, antes da glasnost, antes da abertura dos arquivos de Moscou nos anos noventa e a subsequente publicação de material sobre a realidade dos 70 anos de existência da União Soviética. Padura passou vários anos fazendo pesquisa de campo e de documentos, com a ajuda de pessoas em lugares diversos, sobretudo México, Espanha, Moscou, França, e Dinamarca. 
Haverá quem não goste de ver a documentação colossal “organizada de acordo com as liberdades e exigências da ficção” e, ainda por cima, com uma enormidade de detalhes. Ou então, que não confie que a ficção pode transmitir bem uma verdade histórica e prefira os relatos de historiadores, biógrafos, jornalistas. Leitura fácil esse romance não é. Mas tudo o que vivenciei até hoje no meu fiapo de linha do emaranhado que Padura quer desenredar – como e por que se perverteu a utopia do século XX? -, sustenta minha convicção de que o que está nesse livro é mais verdade que ficção. Ou é ficção que mostra a verdade.

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PRA: Em sua nota final de agradecimento, Leonardo Padura informa que começou a escrever a seu relato histórico "no mês de outubro de 1989, enquanto, sem que muita gente ainda o suspeitasse, o Muro de Berlim se inclinava perigosamente, até que começou a se precipitar e se desfez, apenas umas semanas depois". (p. 763 de minha edição do livro, a 15a edição da editora MaxiTusquets)
Ele indica que foi a visita que fez à residência de Trotsky no México, naquela época, que o fez decidir escrever a respeito. Mas demorou muito para a obra emergir. Escreve então: 

"Al enfrentarme a su concepción, más de quince años después, ya en el siglo XXI, muerta y enterrada la URSS, quise utilizar la historia del asesinato de Trotski para reflexionar sobre la perversión de la gran utopía del siglo XX, ese proceso en el que muchos invirtieron sus esperanzas y tantos hemos perdido sueños, años y hasta sangre y vida."

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