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segunda-feira, 10 de agosto de 2020

“Não existe bolsonarismo; só bolsonaristas” - João Cezar de Castro Rocha (FSP)

Bolsonarismo é a mais perversa máquina de destruição de nossa história republicana

Professor comenta os elementos que compõem a visão de mundo bélica, expressa numa retórica de ódio, do presidente

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JOÃO CEZAR DE CASTRO ROCHA
Professor de literatura comparada na Uerj (Universidade do Estado do Rio de Janeiro) e ensaísta. Lança o livro ‘Guerra Cultural e Retórica do Ódio (Crônicas de um Brasil Pós-político)’, pela editora Caminhos, até o fim de agosto
[resumo] Professor argumenta que o bolsonarismo, ao contrário do que dizem seus críticos, é um poderoso sistema de crenças resultante do encontro de três fatores: a Doutrina de Segurança Nacional, um livro secreto da ditadura e a pregação de Olavo de Carvalho. A combinação, diz, articula uma visão de mundo bélica, expressa numa retórica de ódio alimentada por teorias conspiratórias, que precisa ser decifrada para ser superada.
Se não está conseguindo falar a língua do povo, vai perder mesmo. [...] Tem uma multidão, que não está aqui, que precisa ser conquistada. Ou a gente vai cair num precipício.
Mano Brow
O dilema
A esfinge bolsonarista tem devorado boa parte da melhor intelectualidade brasileira, produzindo o curioso fenômeno do desentendimento inteligente. A última vítima dessa incompreensão elegante foi o cineasta e ensaísta João Moreira Salles.
Em seu artigo “A morte e a morte” (publicado em julho na revista piauí), ele encontrou a fórmula mágica da paz em uma equação cujos ecos tanto surpreendem quanto inquietam: “Não existe bolsonarismo, apenas bolsonaristas”.
Pronto! Tudo resolvido: corpos sem cabeça, pura agitação fisiológica, sem traços ideológicos que não sejam a cópia apressada de conteúdos mal-assimilados. Tranquiliza-nos o ensaísta: “Bolsonarismo implicaria um conjunto coerente de ideias e uma visão de mundo articulada, elementos que faltam à pregação política de Bolsonaro”.
O presidente Jair Bolsonaro de máscara no Palácio do Planalto, em Brasília, no período em que esteve infectado pelo coronavírus
O presidente Jair Bolsonaro de máscara no Palácio do Planalto, em Brasília, no período em que esteve infectado pelo coronavírus - Ueslei Marcelino - 9.jul.2020/Reuters
Portanto, na ausência de um cérebro organizador de ideias que primam pela ausência, os corpos bolsonaristas sofrerão muito em breve o colapso provocado pelo movimento incessante que os comanda, pois não dispõem de rumo claro e muito menos de orientação definida. Se for assim mesmo, “um dia a menos ou um dia a mais, sei lá, tanto faz”, o bolsonarismo que não existe terminará por desfazer no ar os muitos bolsonaristas que insistem em se mobilizar.
E se não for tão simples assim? E se o bolsonarismo, ao contrário do que gostaríamos de acreditar, não somente existir, como também tiver articulado uma visão de mundo bélica, expressa em uma linguagem específica, a retórica do ódio, e codificada em uma estrutura de pensamento coesa, composta por labirínticas teorias conspiratórias?
Esses elementos forjaram um poderoso sistema de crenças, responsável pelos míticos 30% que parecem resistir ao mais elementar princípio de realidade. Não importa se o político se esmera em oferecer um remédio mágico a uma atônita ema. Foi um sinal bem triste, mas, apesar da nova sandice cometida pelo Messias Bolsonaro, o apoio ao Jair segue inabalável.
Por quanto tempo? Provavelmente o tempo que levarmos para decifrar a esfinge e inventar uma nova linguagem que ilumine para a sociedade o obscurantismo do projeto bolsonarista.
O projeto
Sem arrumar todas as peças do tabuleiro de xadrez, sem considerar as complexidades do meio-jogo e, sobretudo, sem calcular cuidadosamente as inúmeras variantes dos finais de partida, como sequer imaginar o xeque-mate no adversário inesperadamente forte?
De igual modo, suprimir o tabuleiro não parece uma boa estratégia. Pelo menos, se pensarmos em vitória; caso contrário, “não dá, não deu, não daria de jeito nenhum”.
Vamos, pois, armar o quebra-cabeças bolsonarista? Em lugar de propor paralelos com a ascensão da direita e da extrema direita em todo o mundo, concentro meu estudo do fenômeno em traços prioritariamente brasileiros. Hora de passar da caricatura para a caracterização da lógica interna do movimento.
Em boa medida, o bolsonarismo é o resultado do encontro de três fatores, cuja inter-relação assegura a coerência e a orientação que decidimos ignorar. É bem verdade que a coerência é tão absoluta que se torna paranoica, assim como a orientação privilegia quase exclusivamente a destruição das instituições criadas pela Constituição de 1988. Porém, “cada lugar, uma lei; cada lei, uma razão”. Negar ao bolsonarismo racionalidade imobiliza nossa capacidade de reagir ao irracionalismo metódico de seus propósitos.
O primeiro elemento que define o bolsonarismo é uma insensata tradução de certo aspecto da Doutrina de Segurança Nacional (DSN) para tempos democráticos; trata-se de aberração jurídica que, por exemplo, confere inteligibilidade à vergonhosa reunião ministerial de 22 de abril.
A DSN foi desenvolvida no ambiente da Guerra Fria e sua função era proteger o espaço nacional por meio da obsessiva identificação do inimigo externo. Uma vez descoberto, seguia-se a aplicação criteriosa de seu corolário de ferro: eliminação do inimigo.
A Escola Superior de Guerra adaptou a DSN às circunstâncias da ditadura militar (1964-1985), que promulgou quatro leis de segurança nacional (em 1967, 1969, 1978 e 1983); esta última, aliás, segue vigente e infelizmente tem sido utilizada com entusiasmo nos últimos meses —não esqueçamos sua origem espúria.
Na mentalidade bolsonarista, decisivo é o decreto-lei de 29 de setembro de 1969, cujo espírito draconiano equivalia às arbitrariedades impostas pelo infame AI-5, de 13 de dezembro de 1968. Em 107 artigos, a palavra morte aparece 32 vezes e nada menos que 14 artigos prescrevem a pena de morte.
Voltarei à centralidade da DSN na mentalidade bolsonarista; de imediato, destaco sua razão de ser: identificação e eliminação do inimigo. Eis o cerne da mentalidade bolsonarista.
O segundo elemento é o texto sagrado da família Bolsonaro: trata-se do Santo Graal da extrema direita nos trópicos, que, além de tristes, tornaram-se ressentidos e revisionistas. Refiro-me ao “Orvil”, projeto secreto liderado pelo ministro do Exército de José Sarney, Leônidas Pires Gonçalves.
O livro reúne relatos de vítimas da ditadura, tal como foram registrados nos processos instruídos pela Justiça Militar brasileira. As denúncias encontram-se nos documentos oficiais das Forças Armadas. O golpe foi profundo.
Olho por olho, livro por livro: por três anos, de 1986 a 1989, oficiais vasculharam os arquivos do Centro de Informações do Exército (CIE), temido pela capacidade de infiltrar agentes nos grupos da esquerda armada e, sobretudo, pela brutalidade de seus métodos repressivos. O resultado foi um documento de 953 páginas, cuja leitura exige dedicação beneditina para sobreviver à prosa mais insípida de que se tem notícia.
Se “Brasil: Nunca Mais” elencou as arbitrariedades da ditadura, o “Orvil” enumerou os crimes atribuídos à guerrilha. O livro-vingança nunca foi levado a sério, a não ser por um punhado de oficiais de alta patente e por militantes de extrema direita.
Mesmo após o notável trabalho de Mário Magalhães e de Lucas Figueiredo, jornalistas investigativos que revelaram a existência do Orvil, o documento não chamou a atenção dos historiadores. Contudo, ele é a Bíblia da família Bolsonaro, a verdadeira fonte de sua visão de mundo bélica.
Consulte-se o subtítulo da obra para avaliar sua relevância: "Tentativas de Tomada do Poder". Muito mais que uma lista caótica dos pecados do inimigo, o documento inventou uma matriz narrativa conspiratória que constitui a essência do bolsonarismo, esclarecendo a origem da arquitetura da destruição que define o movimento.
Assim reza a lenda: desde 1922, ano de fundação do Partido Comunista do Brasil, não se passou um dia sequer sem que o movimento comunista internacional, por meio de seus representantes locais, não tenha tentado estabelecer no Brasil a ditadura do proletariado —e que rufem os tambores e soem os clarins!
As três primeiras tentativas recorreram às armas e foram derrotadas militarmente. Entretanto, nos termos do “Orvil”, a iniciativa “mais perigosa” iniciou-se em 1974, quando a esquerda realizou uma autocrítica severa e mudou de estratégia, abandonando os coturnos e abraçando os livros, a fim de conquistar corações e mentes por meio da infiltração lenta, porém segura, nas instituições do Estado e da sociedade civil. Abandona-se a ditadura do proletariado, e entra em cena o jardim da infância da contracultura.
Poderosa matriz conspiratória que não somente antecipou com exatidão os termos e os pressupostos do delírio teórico forjado por Michael Minnicino e William S. Lind, o gelatinoso “marxismo cultural”, como também identificou o inimigo permanente, “nossa bandeira jamais será vermelha”, e outros tantos clichês kitsch que remontam ao anticomunismo pau-para-toda-obra do “Orvil”.
A mentalidade bolsonarista projeta para o presente a eterna ameaça comunista, fantasia que formou a geração do capitão reformado-para-não-ser-expulso Bolsonaro e dos generais Augusto Heleno e Hamilton Mourão. Aliás, o ídolo do presidente e do vice-presidente, o coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra, declarado torturador pela Justiça de São Paulo em 2008, escreveu a “apresentação” da versão impressa do “Orvil”, publicada em 2012.
Ora, para compreender a visão de mundo bélica e a estrutura de pensamento conspiratória do bolsonarismo basta associar os dois elementos. A DSN exige uma concepção agônica, que busca identificar e eliminar o inimigo. O “Orvil” oferece a cereja do bolo: o movimento comunista internacional está sempre à espreita, levando à identificação imediata e sempre certeira do adversário infatigável, o “perigo vermelho”, metamorfoseado na era digital em malévolo “globalismo”.
Contudo, como traduzir a DSN em tempos democráticos? Como eliminar adversários, travestidos de inimigos externos?
O “Orvil” explica: se a quarta tentativa de tomada do poder, iniciada em 1974 (e ainda atuante, como prometem os comentários involuntariamente surrealistas do vereador Carlos Bolsonaro), consistiu na infiltração das instituições da cultura, da educação, do entretenimento e da imprensa, então, a tarefa de governar é secundária; a missão prioritária consiste em destruir instituições “aparelhadas” e corroer por dentro as estruturas do Estado democrático.
Em apenas 20 meses, o bolsonarismo tornou-se a mais eficiente e perversa máquina de destruição de toda a história republicana, representando à democracia uma ameaça mais assustadora que os excessos da própria ditadura militar. Os bolsonaristas sabem exatamente o que estão fazendo e sem dúvida se congratulam ao escutar que o bolsonarismo não existe: é mais fácil destruir se não se reconhece sua existência. Por fim, esse ânimo forjou sua linguagem, a retórica do ódio.
Rumo à Estação Brasília
Definida a visão de mundo bélica, reforçada por uma estrutura de pensamento conspiratória, faltava ao bolsonarismo uma linguagem, a fim de propagar os princípios da arquitetura da destruição para além dos círculos militares e do número então ínfimo de militantes de extrema direita.
Chegamos ao terceiro elemento que assegura coesão ao bolsonarismo: o sistema de crenças Olavo de Carvalho. Nos anos 1990, Olavo teve uma atuação decisiva para a ascensão da direita, que perdeu a vergonha de dizer seu nome. A publicação de uma trilogia deu inédita universalidade à matriz narrativa do “Orvil”, mesclada com uma divertida pretensão filosofante e uma excêntrica análise panorâmica da civilização ocidental.
Muitos encontraram nos livros “A Nova Era e a Revolução Cultural” (1994), “O Jardim das Aflições” (1995) e “O Imbecil Coletivo” (1996) idêntico impulso de eliminação do inimigo e o mesmo apego adolescente a teorias conspiratórias, agora multiplicadas na imaginação tão sem freios quanto o uso desinibido do vernáculo por parte de Olavo.
O ingresso nas redes sociais propiciou ao autor de “Apoteose da Vigarice” (2013) o aprimoramento de estratégias discursivas cristalizadas na retórica do ódio, o principal fruto dos cursos ministrados por Olavo; aliás, ele é igualmente responsável pela disseminação do embaraçoso analfabetismo ideológico, muito mais prejudicial que o analfabetismo funcional e produtor das polarizações acéfalas que inviabilizam a discussão de ideias no espaço público brasileiro.
A retórica do ódio é a mais completa tradução das consequências plúmbeas da DSN, limitando o outro ao papel de antagonista, inimigo a ser destruído. É o reino desencantado do vale-tudo travestido de filosofices: xingamentos, desqualificações, corruptelas ginasianas de nomes próprios, redução obscena da língua portuguesa a dois verbos, ir e tomar.
O analfabetismo ideológico consiste em somente ler no texto alheio as projeções de suas convicções políticas: o “Orvil” tornado uma biblioteca de Babel de estantes vazias. Fenômeno ainda mais deletério que a propagação de notícias falsas, ele ocorre sem que a pessoa obrigatoriamente tenha consciência: trata-se de processo similar ao da lavagem cerebral.
O bolsolavismo é um poderoso sistema de crenças, dotado de coerência interna paranoica, tornando-o praticamente imune ao princípio de realidade. Eis a definição da guerra cultural bolsonarista, o verdadeiro centro de gravidade que permitiu a vitória eleitoral de Bolsonaro.
O paradoxo 
A reunião de 22 de abril é o autorretrato involuntário do governo enquanto arquitetura da destruição. Penso no documentário de Peter Cohen, realizado em 1989 e surpreendentemente atual no Brasil bolsonarista.
Naquele dia, chegávamos ao terrível número de 2.906 mortes. Manifestou-se solidariedade aos familiares das vítimas da Covid-19? Planejaram-se ações para conter a peste? Você se recorda, não é mesmo? Paulo Guedes sonhou em esconder “a granada no bolso do inimigo”, isto é, DSN atualizada, o funcionalismo público; Damares Alves entrou em êxtase para prender governadores e prefeitos; Ricardo Salles, sem corar, sugeriu “ir passando a boiada e mudando todo o regramento”.
Chega: só há náusea, flor alguma “furou o asfalto, o tédio, o nojo e o ódio”; aqui, nesse vulgar oportunismo de tragédia, é pura utopia o verso de “A Flor e a Náusea”, de Carlos Drummond de Andrade. Nesta circunstância dramática, é mais oportuno recordar Friedrich Hölderlin e seu poema “Patmos”: “Mas onde há perigo, cresce / Também o que salva”.
A guerra cultural bolsonarista se alimenta de um paradoxo que prenuncia sua ruína. Eis: o êxito do bolsonarismo significa o fracasso do governo Bolsonaro. Sem guerra cultural, não se mantém as massas digitais mobilizadas em constante excitação; contudo, a guerra cultural, pela negação de dados objetivos e pela necessidade intrínseca de inventar inimigos em série, não permite que se administre a coisa pública.
A guerra cultural é a origem e a forma da arquitetura da destruição, marca d’água do bolsonarismo, mas, por isso mesmo, será (ou já é?) a razão do fracasso rotundo do governo Bolsonaro; aliás, como infelizmente ficou demonstrado pela omissão e pelo negacionismo diante da peste da Covid-19.
No entanto, precisamos assimilar a advertência de Mano Brown,  ou a gente vai cair no precipício ”.

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