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segunda-feira, 3 de agosto de 2020

Em nome de quem? João de "deus" e Bolsonaro: dois fenômenos extremamente graves - Rita Almeida

O texto é longo, mas recomendo MUITO a leitura. Nos ajuda a entender o que está acontecendo e até como reagir.
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EM NOME DE QUEM?
 
Depois de ter que digerir muita angústia, raiva, nojo e tristeza, consegui terminar de assistir ao documentário “Em nome de Deus”, produzido pela Globoplay. Trata-se de uma série, em 6 capítulos, que revela a história de João Teixeira de Faria, desde o seu surgimento como líder espírita, até sua transformação em João de Deus, seguida de sua condenação e prisão por abuso sexual em 2018. O líder espírita fundou, em 1976, a “Casa de Dom Inácio de Loyola” e, desde então, se destacou fazendo curas e cirurgias espirituais de toda espécie, se consolidando assim como o maior médium brasileiro da atualidade. Localizada em Abadiânia, Goiás, “a Casa” recebia semanalmente milhares de pessoas de várias partes do Brasil avese do mundo, muitas delas desenganadas pela medicina tradicional, em busca de curas e milagres. Nos seus mais de 40 anos de trabalho religioso, João de Deus conquistou respeito, admiração e fama, inclusive, internacional. Um “homem santo”, à prova de qualquer suspeita. 
 
Mas em 2018, no programa Conversa com Bial, da Rede Globo, a holandesa Zahira Lieneke Mous deu uma entrevista denunciando João de Deus por abuso sexual durante uma “consulta espiritual”. Depois da repercussão da entrevista, centenas de mulheres também decidiram se pronunciar, acusando o médium de abuso e estupro. Algumas delas, inclusive, já haviam denunciado o médium anteriormente, pelos mesmos crimes, inclusive por tentativa de assassinato, mas foram desacreditadas na época. Dentre as vítimas está a própria filha de João Teixeira, abusada desde os 10 anos de idade. As investigações de abuso acabaram por abrir caminhos para desmontar diversas facetas criminosas que sustentavam João de Deus e “a Casa”, envolvendo armas, muito dinheiro e uma espécie de rede miliciana de poder. 
 
O documentário é indigesto por motivos óbvios, em especial pelos depoimentos fortes, carregados de sofrimento, vergonha e revolta, das mulheres que toparam falar sobre as violências sofridas, regadas com medo e silêncio. A série se ocupa de traçar o perfil de abusador serial do médium, um predador compulsivo de mulheres, que se aproveitava da fragilidade e da confiança das mesmas, de seu suposto poder divino e de seu poder político na região de Abadiânia, para impor suas vontades sexuais. Deste modo, a obra jornalística cumpre, principalmente, a função de dar lugar à palavra das mulheres silenciadas e fazer cair um mito.  
 
Entretanto, o documentário nos leva a outras questões importantes, especialmente nesses tempos de hoje. Como e por que milhares e milhares de pessoas se deixaram enganar por mais de 40 anos, pela “santidade” de João de Deus? O que faz as pessoas depositarem sua fé e se entregarem de modo tão subserviente, abnegado e sem crítica a essas espécies de líderes charlatões e cretinos? Sim, porque João de Deus não está sozinho e nem é raro. Tanto na religião quanto no campo da política, invariavelmente, despontam esses líderes de massa que tiram proveito perverso de sua posição, parasitando e violentando seu rebanho, para exercício de poder e gozo próprios. 
 
Mas, é importante compreender que alguém só alcança esse nível de poder porque conta com a conivência, a participação e a autorização de muitas pessoas. O tamanho da capacidade de sugestão e de domínio de um líder é diretamente proporcional à quantidade de pessoas, de instâncias e instituições que o autorizam. Pensando deste modo, dizer que João de Deus é um criminoso-canalha-perverso que se aproveitou de sua condição para parasitar suas vítimas não é suficiente para explicar o fenômeno. É preciso também considerar que aquela massa de fiéis desejava um João de Deus para servir; desejava um homem poderoso e santo, para o qual poderiam entregar seu desamparo e seu sofrimento. João de Deus chegou aonde chegou porque contou com o apoio, a conivência e o silêncio de muita gente e por muito tempo.
 
No século XVI Étienne de La Boétie escreveu o Discurso da Servidão Voluntária; uma ode à liberdade. As questões levantadas pelo jovem pensador eram: Como pode apenas um homem subjugar milhões? O que faz com que as massas se curvem a um único tirano? Para La Boétie, elas não o fazem por serem forçadas ou constrangidas, já que são muito mais fortes que seu líder; elas o fazem voluntariamente. Elas desejam sacrificar sua liberdade alienando-a ao tirano, e escolhem essa opção por serem educadas para tal, já que o ser humano seria naturalmente livre. 
 
Freud trabalhou o mesmo tema, mas de uma forma um pouco diferente. Para Freud, os sujeitos se submetem voluntariamente a líderes, mesmo os mais perversos e tirânicos, mas por ser esse o recurso humano mais primário para lidar com o desamparo. Para a psicanálise, a fragilidade e imaturidade biológica do ser humano o obrigam a ingressar no mundo numa condição de total alienação a um outro ser, aquele que cumpre as funções de maternagem. A função-mãe seria nosso primeiro “tirano”, tirania sem a qual não sobreviveríamos. Portanto, a alienação e a submissão são nossa passagem de entrada na cultura, é ao longo da vida e do processo educativo que vamos nos separando desse Outro primordial, e criando condições de liberdade. Todavia, em situações de desamparo e fragilidade, ficamos suscetíveis a uma espécie de regressão que busca encontrar na submissão a certas lideranças (políticas ou religiosas) aquela condição originária de alienação, um lugar psiquicamente mais confortável para lidar com afetos, como angústia e medo.
 
Mas é muito importante que se entenda que essa escolha de alienação, submissão e subserviência é uma escolha voluntária, como dirá La Boétie. Entretanto, na compreensão freudiana não se trata de um voluntarismo racional e consciente. Na medida em que existe o inconsciente, e o eu de um sujeito não é “senhor em sua própria casa”, esse voluntarismo ocorre à revelia do comando da razão. São esses mecanismos inconscientes a matéria-prima e o alvo de líderes messiânicos e tirânicos. O fato é que figuras como João de Deus não se explicam apenas pelo seu carisma e falta de caráter; elas só existem porque há centenas de milhares de pessoas dispostas a autorizá-las e desejosas em acreditar nelas e suas soluções milagrosas. 
 
A psicologia fascista
 
Cheguei até aqui para dizer que o documentário “Em Nome de Deus” é uma obra importante também para compreendermos o Bolsonarismo e sua estrutura psicológica fascista. Diferente de outros presidentes que tivemos, Bolsonaro não é um fenômeno da política democrática republicana, apesar de ter chegado ao poder pelo voto. Dois anos depois de sua posse, fica cada vez claro que o que ainda sustenta Bolsonaro no poder tem a ver com o que chamamos “psicologia das massas”. Bolsonaro já quebrou todas as pontes políticas possíveis, com partidos, com aliados políticos, com as instituições democráticas, com instâncias internacionais e com a imprensa. Tal como João de Deus, Bolsonaro só se mantém na presidência porque foi capaz de encarnar um tirano messiânico milagreiro, que tanto agrada as massas desalentadas e amedrontadas. Graças ao mecanismo psíquico regressivo próprio de relações do tipo fascista, Bolsonaro pode até mesmo violentar, vilipendiar e subjugar seu povo, e ainda assim, mantê-lo fiel e obediente, aguardando o milagre. Uma foto recente de Bolsonaro diante de seus seguidores mais fervorosos, levantando com as duas mãos uma caixa de cloroquina, é emblemática para ilustrar esse fato. É o Messias oferecendo a salvação para seu povo assolado por uma pandemia de escala mundial, que já matou 87 mil brasileiros. Tal como acontecia com os frequentadores da Casa Santo Inácio de Loyola, os adeptos do Bolsonarismo já abandonaram a ciência, deixaram de escutar as orientações da medicina tradicional — talvez porque elas não são capazes mesmo de oferecer o milagre que tanto desejam. O Bolsonarismo é capaz de fazer com que essa Nação siga suportando o absurdo de estar, há cerca de 3 meses, sem Ministro da Saúde, ou seja, sem nenhuma estratégia política racional a nível nacional. Mas Bolsonaro oferece o milagre da cloroquina, e isso basta para manter o transe coletivo da massa.
 
Hipnose coletiva
 
Freud considerava a hipnose como um fenômeno que ocorre entre duas pessoas. Entretanto, em se tratando de psicologia de massas, ele afirma que o líder é capaz de coletivizar esse encantamento hipnótico. Foi isso que permitiu que Hitler garantisse o consentimento da sociedade alemã para assassinar de forma intencional, premeditada e racional, 40 milhões de judeus. 
 
“Em Nome de Deus” mostra os frequentadores “da Casa” embalados numa espécie de transe hipnótico coletivo, se submetendo a todo tipo de intervenção. Sob a vista de todos, e sem nenhum cuidado especializado, os fiéis são cortados, perfurados e costurados. Já em ambientes restritos aconteciam os abusos e estupros denunciados pelas mulheres. No relato delas também fica evidente um tipo de submissão hipnótica. Demoravam a se dar conta do abuso, e quando isso acontecia, usavam a negação como mecanismo de defesa. Talvez uma recusa em enxergar a verdade insuportável, de que foram abusadas, de que o mito que tanto endeusavam não existia, e de que o milagre que esperavam não viria. 
 
Parte do Brasil está sob a onda hipnótica fascista do Bolsonarismo, e outra parte está refém dessa massa irracional, tentando descobrir o que fazer para acordá-la. Já faz tempo que entendemos que não existe argumento racional capaz de tirá-la desse transe. Também já está evidente que o comando hipnótico está sendo feito, preponderantemente, pelas redes sociais, em especial pelo Whatsapp, com a ajuda dos robôs. A pesquisadora e antropóloga Rosana Pinheiro Machado escreveu no dia 21 de julho, para o The Intercept Brasil, sobre o último monitoramento realizado por sua equipe. Eles analisaram 2.513 grupos de WhatsApp bolsonaristas, 93.886 usuários e mais de 5 milhões de mensagens conspiracionistas sobre o coronavírus compartilhadas desde fevereiro. A constatação é de que eles continuam a todo vapor, fabricando as verdades que interessam à manutenção do governo. Ela afirma ainda que acabar com o “gabinete do ódio” não é suficiente para quebrar essa rede, já que ela é muito mais autônoma, horizontal, autofinanciada do que se imagina.
 
Theodor Adorno escreve, em 1951, sobre a propaganda fascista de Hitler. Ele afirma que os alemães não acreditavam realmente que os judeus eram o demônio, mas toparam participar dessa encenação, pois assim eles puderam, autorizados uns pelos outros, extravasar seus ímpetos pulsionais primitivos, sem terem que assumir que estavam revogando o pacto civilizatório. É exatamente esse caráter fictício da psicologia de grupo que torna as multidões fascistas tão impiedosas e inalcançáveis. “Se elas parassem para refletir por um segundo, toda a encenação se despedaçaria e elas entrariam em pânico”, diria Adorno.
 
A verdade difícil de escutar é que nem João de Deus e nem Bolsonaro subjugam e abusam do seu povo Em Nome de Deus; eles o fazem em nome do seu próprio povo. Eles são o que são porque há muitos que querem que seja assim, e sabemos que não há argumento suficientemente forte para mostrar a verdade a quem não deseja enxergá-la, mesmo que isso signifique arriscar-se à morte. Essas pessoas preferem a morte real à morte subjetiva, o que aconteceria caso tivessem que admitir que estavam vivendo uma mentira. 
 
Há uma cena no documentário que ilustra muito bem o parágrafo acima. Nela Bial entrevista o ator Marcos Frota, um dos seguidores, amigos e assistentes de João de Deus. Frota está nitidamente desconfortável, tentando elaborar as informações que levaram João de Deus para a prisão, e em dado momento, repete em sequência, por cerca de 10 vezes, a seguinte frase: “Não sou eu quem cura, quem cura é Deus” (frase que era dita pelo médium). Ao terminar a repetição, com o olhar absorto, como se recitasse uma profissão de fé, o ator diz: “Não pode haver hipocrisia numa frase como essa... E Deus é um mistério tão grande!” Frota diz isso como quem prefere acreditar que Deus poderia ter autorizado todas aquelas atrocidades, do que admitir que, por 20 anos, se deixou enganar por uma mentira. 
 
Como quebrar o encanto das massas?
 
Na Alemanha nazista a massa só despertou com a derrocada na guerra e a morte de Hitler. Houve os que preferiram se matar ou se deixar matar, a enxergar o que haviam feito com os judeus, tudo em nome de Deus e da Pátria. 
 
O documentário talvez nos dê algumas pistas importantes de como quebrar esse encanto. Primeiramente, é fundamental que o líder seja retirado de cena. Sem ele, a estrutura se desmonta. E para derrubar o líder, não há outro caminho que não seja denunciá-lo. Nesse ponto a imprensa é peça chave. Mas a melhor denúncia, a mais efetiva, é aquela feita por quem já esteve do lado de lá, por quem já experimentou daquele torpor hipnótico. Por isso, temos que sim, dar voz aos decepcionados, acolher seus discursos, não para perdoá-los ou coisa parecida (não é disso que se trata aqui), mas para possibilitar que muitos outros se identifiquem a esse novo discurso, e participem dessa nova coletividade: a dos “Bolsonaristas reabilitados”. 

João de Deus agiu por 40 anos sem ter sua imagem arranhada, e a entrevista de uma só mulher despertou mais de 500 outras, em alguns meses, desmontando seu império. É preciso entender que ninguém vai abandonar a massa Bolsonarista para ficar sozinho; essas pessoas vão precisar de acolhida em uma nova coletividade. Elas vão precisar fazer parte de uma outra coisa. Também vai ser necessário ganhar a guerra, que no nosso caso, é virtual, e segundo a antropóloga Rosana Pinheiro Machado, eles estão nos vencendo por W.O.
 
Adorno dizia que o grito de guerra nazista "desperte, Alemanha!" escondia precisamente o seu contrário. Não consigo deixar de pensar no nosso lema de 2013, “O gigante acordou!” que, ao que parece, serviu também a esse propósito de nos botar pra dormir. 
 
Só espero que ainda haja tempo de acordarmos.

Rita Almeida

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