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quinta-feira, 14 de novembro de 2013

Choque de capitalismo, 25 anos depois - Mário Mesquita

Choque de capitalismo, 25 anos depois
Por Mário Mesquita
Valor Econômico, 14/11/2013

O ano de 2014 marcará 25 anos da queda do muro de Berlim, que foi o prelúdio do colapso do que então se chamava de socialismo real (em contraposição ao ideal, que nunca teria sido implementado). 1989 também foi um ano importante na história brasileira, pois marcou o retorno das eleições presidenciais diretas, consolidando a redemocratização do país.

Uma eleição sem favoritos, bastante competitiva, reuniu número elevado de candidatos. Havia propostas de extrema esquerda à direita, embora, felizmente, sem tendência a uma recaída autoritária. Ao final, como sabemos, a disputa foi a um segundo turno entre Fernando Collor e Lula, vencida pelo primeiro.

Um candidato que não esteve no segundo turno, mas cujos discursos se mostraram prescientes, foi Mário Covas, que teve 11% dos votos. De fato, a agenda delineada por Covas na campanha de 1989, no discurso que veio a ser conhecido como "choque de capitalismo", não só adiantou vários dos aspectos principais da política econômica brasileira nas décadas que se seguiram, mas, tendo em vista desenvolvimentos dos últimos anos, voltou, com uma exceção, a ser atual.

Capitalismo requer competição e um campo de jogo nivelado, sem que o Estado arbitre entre empresas

A exceção refere-se ao problema da dívida externa. Os anos oitenta do século passado, chamados, com certa razão, de década perdida, foram marcados pelas crônicas dificuldades do balanço de pagamentos, a questão da dívida externa, que condicionou a política econômica brasileira até o início da década seguinte. Hoje, graças a ter sabido acumular reservas durante o boom de commodities, desalavancando a economia (em forte contraste com períodos anteriores de melhora dos termos de troca), o país tornou-se credor líquido, mesmo que, dada a parca poupança doméstica, ainda precise importar capital para investir.

Os outros problemas listados no discurso de Covas, da inflação à inserção internacional da economia, bem como as relações entre o Estado e o setor privado, continuam atuais.

Obviamente, a inflação de que tratava Covas era hiper, a atual é apenas elevada (para o padrão internacional) e persistente. Não se trata de um patamar de inflação que desorganize a vida econômica ou promova grande concentração de renda, mas já suscita alguma reindexação, leva ao encurtamento de horizontes de planejamento e impede que as taxas de juros domésticas se alinhem aos padrões internacionais. Pior, a tentativa de controlar a inflação por mecanismos heterodoxos, como controles seletivos de preços e tabelamento de tarifas, gerou diversas distorções e um sério problema de repressão inflacionária, que dificulta em muito o trabalho do Banco Central de coordenar expectativas.

O receituário para lidar com esse problema passa por ações de política, como o aperto monetário, a redução da meta para a inflação, de 4,5% para 3%, que é o padrão nas economias emergentes com melhor desempenho (com concomitante redução do intervalo de tolerância), bem como melhorias institucionais. Nesse caso, o mais importante é, como vem sendo discutido no Senado, a autonomia formal do Banco Central - nesse debate, diga-se de passagem, certos representantes do Legislativo têm se mostrado bem mais atualizados e esclarecidos do que as visões atribuídas ao poder Executivo.

Outro ponto destacado por Covas era a necessidade de importar mais, para ter acesso às melhores tecnologias. O discurso rechaçava a busca por políticas autárquicas e notava que o Brasil era o 3º maior superávit comercial do planeta (perdendo apenas para Alemanha e Japão), mas apenas o 25º maior exportador - quem se lembra do inferno econômico vivido pelo país em 1989 não pode deixar de reagir com espanto aos lobbies que, até hoje, associam superávits comerciais a sinal de pujança econômica. Nesse campo temos muito a caminhar, as importações eram apenas 4% do PIB em 1989, cresceram para 10%, mas são bem inferiores aos patamares observados no México (30%), no Chile (28%) e mesmo na China (22%). Note-se adicionalmente, que o protecionismo tem aumentado nos últimos anos, haja vista o crescente número de iniciativas contra o Brasil no âmbito da OMC, bem como nossa total inércia no que se refere a acordos comerciais.

O discurso defendia um reposicionamento do Estado, afirmando o objetivo de privatizar "com seriedade e não apenas na retórica". Desde então, muito foi privatizado (telecomunicações, siderurgia, bancos estaduais, a Vale, a Embraer etc). Dado o desempenho da grande maioria das empresas privatizadas e os claros benefícios para os consumidores, fica difícil negar o sucesso de tal agenda. No entanto, talvez por anacronismo ideológico, boa parte da opinião pública (ou publicada) parece ter visão negativa da privatização, a tal ponto que as autoridades são constrangidas a lançar mão de eufemismos quando, acertadamente, oferecem parte dos ativos do Estado a investidores privados.

Capitalismo requer competição e um campo de jogo nivelado, sem que o Estado arbitre, como vem fazendo nos últimos anos, entre um seleto grupo de eleitos, e o resto das empresas. Nesse contexto, as palavras de Covas soam bastante atuais, merecendo citação direta "Basta de tanto subsídio, de tantos incentivos, de tantos privilégios sem justificativas ou utilidade comprovadas... Basta de cartórios. Basta de tanta proteção a atividades econômicas já amadurecidas". Vale lembrar que alguns setores hiperprotegidos em 1989 desfrutam de tratamento especial até hoje.

Não se trata de defender o Estado mínimo ou o regresso social, mas de constatar que, se há preocupação em despertar os "espíritos animais" dos empresários, então palavras como capitalismo, privatização e importação deveriam perder sua conotação negativa.


Mário Mesquita é economista e sócio do banco Brasil Plural. Anteriormente foi diretor de Estudos Especiais e depois diretor de Política Econômica do Banco Central, 2006-2010. Escreve mensalmente às quintas-feiras.