Dez obras fundamentais para um diplomata
Por Paulo Roberto de Almeida
Fui consultado, no final de setembro de 2006, por um candidato à carreira diplomática, sobre as dez obras que eu julgava fundamentais para um diplomata. Interpreto esse tipo de consulta como uma demanda típica de quem pretende ler, ou pelo menos conhecer, as dez obras mais importantes que poderiam integrar a cultura geral de todo diplomata ou que permitiriam a um “paisano” preparar-se para a carreira.
Não tenho certeza de conseguir satisfazer tal curiosidade, uma vez que toda lista restritiva é sempre um pouco subjetiva, denotando mais as preferências pessoais do seu autor do que, necessariamente, as obras “funcionalmente” mais importantes ou aquelas “culturalmente” relevantes, que deveriam integrar a bagagem cultural de todo ser humano medianamente bem informado ou razoavelmente bem formado. Como, entretanto, não se trata de “cultura de salão”, vou tentar traçar uma lista indicativa dos livros que considero importantes para uma boa cultura clássica ou para uma formação adequada no quadro da cultura brasileira.
Como, adicionalmente, se trata de selecionar obras “operacionalmente” relevantes do ponto de vista do diplomata, permito-me indicar aqui aquelas que apresentam uma inclinação especial para os temas de relações internacionais do Brasil. Esta lista, segundo minhas preferências pessoais, seria composta das seguintes obras:
1) Heródoto: História (440 a.C.)
Trata-se, obviamente, do nascimento da história, tal como vista por um grego refinado que interpreta os acontecimentos contemporâneos – as chamadas guerras pérsicas – do ponto de vista de uma pequena comunidade de homens livres que consegue derrotar as tropas de um poderoso império, aliás o mais poderoso então existente; Heródoto faz descrições dos povos habitantes do Mediterrâneo. Existem muitas traduções desta obra clássica, inclusive em português, mas uma boa tradução em inglês pode ser vista neste link: http://classics.mit.edu/Herodotus/history.html; para uma introdução rápida ao conjunto da obra e um útil sumário dos nove livros, consultar este outro link: http://mcgoodwin.net/pages/otherbooks/herodotus.html.
2) Maquiavel: O Príncipe (1513; divulgado pela primeira vez em 1532)
A mais famosa obra de “política prática” conhecida na tradição ocidental – existe um Maquiavel indiano, chamado Kautilya, que escreveu um guia de “administração” do Estado, conhecido como Arthashastra – e que tem servido de referência a incontáveis oportunistas da dominação política, interessados em justificar suas ações nem sempre fundamentadas na moralidade ou na ética. Existem inúmeras traduções em português, com prefácios de cientistas políticos ou de filósofos – uma das mais famosos é o de Isaiah Berlin – assim como arquivos eletrônicos livremente disponíveis, em diversas línguas. O mais famoso estudioso da vida e da obra de Maquiavel é o italiano Pasquale Villari, em seus três volumes de Niccolò Machiavelli e i suoi tempi (consultei a 3ª edição, “riveduta e corretta dall’autore”: Milano: Ulrico Hoepli, 1912; a primeira edição foi publicada em Florença, em 1877). Ver um arquivo eletrônico da obra, entre muitos outros, no original italiano (mas modernizado, obviamente) no seguinte link: http://metalibri.incubadora.fapesp.br/portal/authors/
m/machiavelli-niccolo-di-bernardo-dei/il-principe/.
3) Tocqueville: A Democracia na América (1835)
Uma “enquête” sobre o sistema carcerário americano, feito a pedido do governo francês, redundou no mais famoso livro sobre a formação política da maior nação do hemisfério ocidental. Depois de entregar seu relatório sobre o sistema prisional dos EUA, Tocqueville aprofundou a análise do sistema representativo republicano, até então inédito no plano mundial, bem como se estendeu sobre outros aspectos – políticos, sociais e econômicos – da ex-colônia inglesa, na qual ele viu a semente do gigante americano. Um site da universidade do Québec, no Canadá, é o mais acessível para a versão completa, em francês, desta obra legitimamente clássica: http://classiques.uqac.ca/classiques/De_tocqueville_alexis/
democratie_1/democratie_tome1.html.
4) Pierre Renouvin (org.): Histoire des relations internationales (1953-58)
O grande historiador francês dirigiu a edição original, em oito volumes, com quatro autores. Apesar de démodée, em vários aspectos, historicamente datada, ainda é uma obra de referência, sobretudo por conter uma história abrangente, inserida no contexto da civilização ocidental. Existe um nova edição, em três volumes encadernados, publicados em 1993 pela mesma editora da primeira edição: a Hachette, de Paris. Fiz uma resenha desta obra, destacando as (poucas) partes que se referem ao Brasil, neste trabalho: “Contribuições à História Diplomática: Pierre Renouvin, ou a aspiração do total”, Paris, 8 agosto 1994, 15 p. Resenha crítica de Pierre Renouvin (ed): Histoire des Relations Internationales (Paris: Hachette, 1994, 3 vols: I: Du Moyen Âge à 1789 (876 pp.); II: De 1789 à 1871 (706 pp.); III: De 1871 à 1945 (998 pp.); publicada na seção Livros da revista Política Externa (São Paulo: vol 3, nº 3, dezembro-janeiro-fevereiro 1994/1995, pp. 183-194); disponível em, sua versão integral, no site Parlata: http://www.parlata.com.br/parlata_indica_interna.asp?seq=21.
5) Henry Kissinger: Diplomacy (1994; várias edições posteriores)
Três séculos de história diplomática, desde Westfália até o final do século XX, por um dos mais conhecidos adeptos da teoria realista (mas com enorme conhecimento da história). Sua tese de doutoramento, sobre o Congresso de Viena, ainda hoje é uma referência em história diplomática. O autor é, evidentemente, kissingeriano, e não se cansa de dar seus conselhos sobre como os EUA devem tratar com os demais gigantes da política mundial, sendo meramente condescendente com “lesser actors”. Ainda assim, uma grande e indispensável leitura a todos aqueles que desejam conhecer o “inner functionning” da política externa da grandes potências. O autor se estende nos movimentos da própria diplomacia americana, dividida entre o idealismo wilsoniano e o pragmatismo realista que ele mesmo sempre buscou imprimir à condução dos assuntos externos quando foi conselheiro de segurança nacional do presidente Nixon e depois Secretário de Estado de Nixon e de Gerald Ford. Tem quem deteste Kissinger, por sua ação “imperial”, mas nem por isto este livro deixa de ser indispensável.
6) Manuel de Oliveira Lima: Formação histórica da nacionalidade brasileira (1912; nova edição: Rio de Janeiro: Topbooks, 1997)
Oriundo de conferências que o historiador-diplomata realizou na Sorbonne, em 1911, quando era ministro em Bruxelas, a obra foi concebida em francês, depois traduzida e publicada no Brasil. Trata-se de um vasto panorama da formação histórica, inclusive comparativa, do Brasil, por um dos nossos maiores historiadores sociológicos. Não conheço análises de uma das obras menos referidas de Oliveira Lima, a não ser os prefácios de José Veríssimo e de Gilberto Freyre para a edição brasileira de 1944. A nova edição deste clássico sobre a formação do Brasil foi enriquecida, na edição da Topbooks, pelo acréscimo de conferência do autor sobre o Brasil e os estrangeiros.
7) Pandiá Calógeras: A política exterior do Império (três volumes, 1927-1933; reedição fac-similar, 1989; Brasília: Câmara dos Deputados)
Alguns dizem que esta obra é excessiva e, de fato, para tratar da diplomacia brasileira da época imperial, ela recua um pouco demais: começa na formação da nacionalidade portuguesa e se estende até a queda de Rosas (1852), apenas. Efetuei uma análise dessa obra no seguinte trabalho: “Contribuições à História Diplomática do Brasil: Pandiá Calógeras, ou o Clausewitz da política externa”, Brasília: 21 março 1993, 13 pp., revisto em 22 maio 1993. Artigo-resenha dos livros de João Pandiá Calógeras, A Política Exterior do Império (volume I: As Origens; volume II: O Primeiro Reinado; volume III: Da Regência à Queda de Rosas; edição fac-similar: Brasília: Fundação Alexandre de Gusmão, Câmara dos Deputados, Companhia Editora Nacional, coleção “Brasiliana, 1989, xl + 490, 568 e 620 pp). Publicado na revista Estudos Ibero-Americanos (Porto Alegre, PUCRS, v. XVIII, n. 2, dezembro 1992, pp. 93-103). Relação de Publicados n° 117. Disponível neste link do site Parlata: http://www.parlata.com.br/parlata_indica_interna.asp?seq=22.
8) Carlos Delgado de Carvalho: História Diplomática do Brasil (1959; reedição fac-similar, 1998; Brasília: Senado Federal)
Apesar de antiquada em sua metodologia e historicamente defasada, tendo deixado de servir de livro-texto depois da publicação da obra conjunta de Amado Luiz Cervo e Clodoaldo Bueno – História da Política Exterior do Brasil (3ª ed.; Brasília: UnB, 2006) – essa obra permanece ainda uma referência parcialmente válida para o estudo dos períodos colonial, imperial e republicano, até o final dos anos 1950. Efetuei uma análise neste trabalho (que serviu, ao mesmo tempo, de introdução à sua reedição facsimilar): “Em busca da simplicidade e da clareza perdidas: Delgado de Carvalho e a historiografia diplomática brasileira”, Brasília, 12 dezembro 1997, 25 pp.; revisão em 05.01.98. Texto introdutório à reedição de Carlos Delgado de Carvalho (1884-1980), História Diplomática do Brasil (1ª ed.: São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1959; edição facsimilar: Brasília: Senado Federal, 1998; Coleção Memória brasileira n. 13, lxx, 420 p.), pp. xv-l, incorporando ainda apresentação do Emb. Rubens Ricupero (pp. iii-xiv), elaborada originalmente em 1989, em Genebra). Elaborei uma versão revista dessa introdução, com prefácio, para uma segunda edição, em 2004, mas ela foi publicada sem minhas correções e acréscimos; para a edição de 1998, ver: http://www.pralmeida.org/01Livros/2FramesBooks/
24DelgadoHistoDiplom.html; meu texto: http://www.pralmeida.org/01Livros/
1NewBoooks/PrepNewEdDelg2004.pdf.
9) Marcelo de Paiva Abreu (org.). A Ordem do Progresso: cem anos de política econômica republicana, 1889-1989 (Rio de Janeiro: Campus, 1989; várias reedições)
Uma coletânea indispensável de estudos especializados, por onze diferentes autores, para conhecer a trajetória econômica e política do século republicano. O organizador assina o capítulo relativo à modernização autoritária, entre 1930 e 1945. O volume se abre por um estudo de Gustavo Franco sobre a primeira década republicana, seguido de Winston Fritsh, que se ocupa do apogeu e crise da primeira República, de 1900 a 1930. Sérgio Besserman Vianna assina dois excelentes ensaios sobre o imediato pós-guerra, de 1945 a 1954. Marcelo de Paiva Abreu volta para tratar dos conturbados anos 1961-1964, sobre a inflação, estagnação e ruptura. A estabilização e a reforma, entre 1964 e 1867, são tratadas por André Lara Rezende e as distorções do “milagre” econômico , de 1967 a 1973, por Luiz Aranha Corrêa do Lago. Dionísio Dias Carneiro vem na seqüência (1974-1980) e divide com Eduardo Modiano um capítulo sobre a primeira metade dos anos 1980. Esse último autor encerra a obra com a “ópera dos três cruzados”, uma análise das tentativas de estabilização no final da década. Um anexo estatístico cobre o longo século republicano, contendo os principais indicadores da atividade econômica e das relações externas. Este livro pode ser completado pela leitura desta outra coletânea: Fabio Giambiagi, André Villela, Lavínia Barros de Castro e Jennifer Hermann (orgs.), Economia Brasileira Contemporânea (1945-2004) (Rio de Janeiro: Elsevier, 2005, 432 p.), do qual efetuei uma resenha, neste link de Parlata: http://www.parlata.com.br/
parlata_indica_interna.asp?seq=39.
10) Paulo Roberto de Almeida: Formação da Diplomacia Econômica no Brasil: as relações econômicas internacionais no Império (publicado em primeira edição em 2001; reedição em 2005 pela Senac-SP; ver em www.pralmeida.org).
Com a permissão dos leitores para esta demonstração de auto-indulgência, termino esta lista, narcisisticamente, por um dos meus livros. Eu poderia indicar outros livros de história diplomática do Brasil, mas disponho, aparentemente, de crédito suficiente – em matéria de pesquisa e de estudos acumulados na área da história e das relações econômicas internacionais do Brasil – para destacar minha própria investigação histórica sobre os fundamentos da nossa moderna diplomacia econômica, com a promessa de que vou continuar esse trabalho de pesquisa em dois volumes subseqüentes cobrindo o longo século republicano. Uma apresentação geral da obra foi feita neste artigo: “A formação da diplomacia econômica do Brasil”, Lua Nova, revista de cultura e política, São Paulo: CEDEC, n. 46, 1999, p. 169-195; link: www.pralmeida.org/04Temas/11academia/
05materiais/673FDERevLuaNova2.pdf.
Voilà: creio que os candidatos à carreira diplomática já dispõem de leituras para os próximos meses...
Brasília, 29 de setembro de 2006.
Revisão: 14 de outubro 2006.
711. “Dez obras fundamentais para um diplomata”, Via Política (15 out. 2006; http://www.viapolitica.com.br/diplomatizando_view.php?id_diplomatizando=13). Relação de Trabalhos n. 1671.