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Este blog trata basicamente de ideias, se possível inteligentes, para pessoas inteligentes. Ele também se ocupa de ideias aplicadas à política, em especial à política econômica. Ele constitui uma tentativa de manter um pensamento crítico e independente sobre livros, sobre questões culturais em geral, focando numa discussão bem informada sobre temas de relações internacionais e de política externa do Brasil. Para meus livros e ensaios ver o website: www.pralmeida.org. Para a maior parte de meus textos, ver minha página na plataforma Academia.edu, link: https://itamaraty.academia.edu/PauloRobertodeAlmeida.

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segunda-feira, 9 de abril de 2012

Os livros perdidos - Paulo Timm

Uma linda crônica de meu amigo Paulo Timm, sobre os livros perdidos na história da humanidade. Permito-me agregar que uma fonte interessante -- não de livros totalmente perdidos ou irrecuperáveis -- de livros recuperáveis, resgatáveis, seriam os manuscritos de escritores dissidentes arrestados por ditaduras, a começar pela soviética, mas estendendo-se também à chinesa, à cubana, norte-coreana e outras menos lembradas, como aliás a própria Stasi, da DDR, cujos arquivos foram, ao que parece, quase integralmente preservados.
Um historiador desses com acesso a determinados arquivos poderia fazer um livro sobre os livros nunca publicados em função de situações orwellianas.
Fica a sugestão.
Paulo Roberto de Almeida 


Os livros perdidos

Paulo Timm

A perda não é uma anomalia, um desvio ou uma exceção. É uma norma. É uma regra. É inescapável.
(Stuart Kelly)

Diz a letra de um velho samba que “Quem acha vive se perdendo…” (Feitio de Oração, Noel Rosa, numa evocação de profunda filosofia tupiniquim que, no Brasil, só a música popular parece alcançar. Há anos, procuro, sem êxito, uma crônica de Lara Rezende ou Paulo Mendes Campos, não lembro bem – (perdi…!), tratando exatamente desta relação – Música Popular / Filosofia-, que li, há décadas, e que guardei apenas como vaga lembrança. Pensei reencontrá-la no clássico de Roberto Gomes, intitulado “A Filosofia Tupiniquim”, mas ele foi pelo outro lado da cultura popular: o humor. Outro autor contemporâneo, Hugo Allan Matos, porém, acredita nisso. E o próprio Noel Rosa acabou escrevendo uma de suas músicas com teste título – “Filosofia”, – abrindo caminho para esta tese. Com efeito, a vida é um imenso labirinto cuja graça consiste, precisamente, em transitar , sem que saiba ao certo, sequer, se há saídas…
Mas se é verdade que os que acham acabam se perdendo, o quê dizer do que já está perdido…?? O que lhes acontece…? Haverá saídas para as perdas? Aparentemente, não. A perda é sempre algo irreversível, principalmente quando se perde o tempo, as idéias, ou o próprio juízo sobre elas. Mas a perda é sempre inevitável e, curiosamente humana. O homem vive e sobrevive através das perdas. Perde o útero materno, perde o seio da mãe, perde a própria memória que vai se transformando numa névoa do passado. Afinal, perde a juventude, perde a saúde, vai-se a própria vida. Perde-se o homem de si mesmo e gasta grande parte de sua vida tentando se reencontrar…A perda, enfim, é um tema tão comovente que já foi objeto de um interessante livro – “Perdas Necessárias”, de autoria deJudith Viorst, da Editora Melhoramentos. Ele pode ter influenciado o título de uma canção bem popular do Pe. Fábio de Melo: “Perdas Necessárias”.
Inúmeras fábulas já trataram, também, do dilema da perda. Mas não vou falar aqui, nem da perda como processo, nem de fábulas. Quero falar sobre fatos: A perda de livros, ao longo da História Humana, mais das vezes devorados pelas chamas do ódio e da intolerância, senão mera, crassa ignorância e até a inteligência em suas manifestações de vanguarda tecnológica. Um autor, por exemplo, Robert Darnton – “A questão dos livros”, Cia das Letras -, fez, recentemente, uma denúncia contra a destruição de coleções de jornais promovidos por bibliotecas dos Estados Unidos, em nome da preservação.

"Darnton reafirma a durabilidade dos códices, falando criticamente do livro de Baker e de como ele apresentou essa caça ao papel nas bibliotecas. Ocorrida com mais freqüência nos anos 80, bibliotecários americanos começaram a implantar a preservação de periódicos antigos em microfilmagem, danificando e, literalmente, jogando no lixo jornais e revistas antigas que são o material básico para um estudo histórico – mas não o mais importante, ressalta o autor.

Diante disso, fico me imaginando quantos livros, teses acadêmicas, bibliotecas inteiras não se perderão diante da febre digitalizadora que nos assola? Ontem, foram as micro-filmadoras as algozes destruidoras de toneladas de jornais; hoje, os scanners e e-books, apesar de que Darnton os tenha defendido arduamente em seu Projeto Gutenberg-e, desenvolvido entre 2000 e 2006.
“O projeto consistia na publicação de monografias no formato e-book como forma de facilitar a entrada de jovens pesquisadores de História na carreira acadêmica. Darnton faz todo um histórico sobre a crise da publicação de monografias, fruto de uma reação em cadeia que começou com o aumento do preço de periódicos que obrigou as bibliotecas a fazerem cortes em suas verbas. (…) Um outro objetivo do Gutenberg-e, segundo Darnton, era afirmar a seriedade dos e-books, tratá-los com o mesmo respeito de um livro publicado fisicamente.”

Poucos sabem, entretanto, que este meio eletrônico é extremamente frágil e suscetível de apagões sob certas descargas eletromagnética . Grandes acervos de imagens, por exemplo, têm sido melhor conservados em fitas de vídeo e não em CDs, como, por exemplo, o da Rede Globo. Uma tempestade solar mais forte, um raio inconveniente, uma cápsula perdida de Césio 137, tal como ocorreu em Goiânia, anos atrás, e puffff…Lá se vão nossos belos arquivos digitais…Acho, aliás, que foi Einstein quem disse certa vez:
“Não sei como será a III Grande Guerra, mas estou seguro de que a IV será com pedras…”
A verdade é que não há garantias contra as perdas…Pois assim foi com a própria Bíblia, a qual teria, ao longo dos séculos e milênios, perdido grande parte de suas narrativas e profecias. Segundo consta, há centenas de seus livros que se perderam e que dificilmente serão reencontrados. Alguns foram consumidos pelo tempo, outros foram suprimidos por conterem, à luz das autoridades da Igreja, em cada tempo, revelações que não se coadunavam com seus ensinamentos. Eis, segundo um estudioso – um roteiro dessas perdas, para os interessados:
Mas não foram só os livros sagrados, apenas, que desapareceram. Uma inusitada crônica de Sérgio Faraco – Livros Perdidos in Gregos e Gringos, Ed.Mercado Aberto, Porto Alegre, 1998 – , notável contista gaúcho, nos dá conta de outras perdas irreparáveis. Dou-lhe a palavra, por sábia e insubstituível:
“Livros Perdidos (…)
A história da humanidade está repleta de notícias de aniquilações do conhecimento compendiado,, e os soldados, sobretudo os romanos, tiveram um papel de proa nessa cruzada bárbara. Na tomada de Cartago, incendiaram a cidade e se acharam no dever de fazer o mesmo , com sua biblioteca, que ardeu 17 dias para que se consumissem seus 500.000 volumes. Os mesmos romanos, na campanha de Julio Cesar no Egito, puseram fogo a Biblioteca de Alexandria, varrendo da história 700.000 textos e as velhas paredes que tinham visto Euclides escrever seus Elementos de Geometria, Erastótenes calcular a circunferência da Terra e o médico Herófilo produzir uma obra pioneira no campo de anatomia.
Bastam essas perdas para que exista em nossa trajetória cultural uma intermitência que mil anos não hão de recompor. E no entanto são apenas dois entre muitos outros casos de destruição selvagem, como o da coleção de Pisístrato em Atenas (da qual se salvaram as rapsódias de Homero), dos papiros do Templo de Ptah em Mênfis, dos milhares de pergaminhos do Colégio de Druídas em Bribactis (hoje Autun, França) , dos 300.000 livros queimados por Léo Isauro em Constantinopla e dos códices maias no México por Diego de Landa.
E não se diga que os tempos eram outros e eram ásperos. O homem que destrói livros pertence, geralmente, à mesma ordem de cultura daquele que os constrói.
Nada do que se perdeu será recobrado e para maior desgraça nossa, dos nossos filhos, dos homens do milênio vindouro, houve momentos em que, como no romance de Umberto Eco (O nome da Rosa) , como na luta de Guilherme e Jorge, por um triz deixamos de recuperar valiosas obras que já eram dadas por perdidas.
Conta o inglês Andrew Thomas – e isto não é ficção – que certa vez houve um grande indêndio no harém de um sultão do Império Otomano. Um jovem secretário da Missão Francesa viu saqueadores invadirem o palácio para roubar objetos de valor , e uma dramática coincidência o levou a esbarrar num homem que fugia sobraçando um monumental cartapácio. Era a História de Roma, de Tito Livio , até então desaparecida. O funcionário interceptou o ladrão e ofereceu-lhe considerável soma em troca da preciosidade. O turco aceitou, mas o francês – que fatalidade! – só dispunha de escassas moedas na algibeira. Aflito sugeriu que o pagamento fosse feito em sua residência e ainda discutiam quando vieram abaixo as traves do palácio em chamas. A multidão recuou em pânico e separou os dois homens, que não mais puderam reencontrar-se.
O volume abarcava sete séculos e meio da história romana, e de seus 142 livros chegaram até nós, por outros caminhos, apenas 35.”
Outro autor, cuja própria vida também parece envolta em perdas, Stuart Kelly Kelly dedicou-se, ao tema dos livros perdidos e escreveu um verdadeiro clássico: “O Livro dos livros perdidos” – Ed. Record. Nele descobrimos coisas incríveis: Como se perderam as obras completas de Ésquilo, na destruição da Biblioteca de Alexandria. Isso porque havia um único exemplar do livro, vendido por atenienses a Ptolomeu do Egito, como condição do estranho negócio. Ou sobre o descuidado amigo que extraviou um caderno de anotações de Rimbaud. Ou ainda o mistério envolvendo “Cardenio” , de Shakespeare. Um livro, enfim, divertido, escrito com bom humor, capaz de suscitar a curiosidade sobre o tempo, a literatura, as perdas irreversíveis, e as pessoas que estiveram por trás de tudo isto.
O livro mereceu várias e interessantes resenhas e comentários no Brasil. Eis uma delas:
“Em O livro dos livros perdidos, Stuart Kelly revela trabalhos desaparecidos de autores famosos e conta fascinantes histórias reais por trás de livros que não foram publicados por terem sido destruídos, extraviados, interrompidos pela morte do autor ou simplesmente nunca começados. O que realmente aconteceu com o segundo romance de Sylvia Plath? E qual seria o monstruoso segredo contido nas memórias de Lord Byron que levou seu editor a queimar o manuscrito? Essas são algumas das perguntas respondidas por Kelly nesta pesquisa fascinante.”
Fica aqui, pois, meu registro em homenagem a estas páginas perdidas de letras imemoriais e seus descobridores. Poetas, escritores, cronistas são bibliófilos incansáveis. Amam livros. Têm com eles uma relação muito especial, afetiva mesmo. Encontram um prazer indizível em contemplar suas prateleiras repletas de exemplares com formas, capas e cores tão diferentes. Exaltam-se ao escolher dentre elas um título cativante, dentro do qual assinalaram uma passagem cativante, que voltam a ler de tempos em tempos com o mesmo sentimento da primeira vez. Sublimam-se citações, versos, parágrafos de beleza ímpar de Shakespeare (“O resto é silêncio”) de Tolstoi (“Cada família infeliz tem seu jeito próprio de ser infeliz”), de Guimarães Rosa (“Viver é muito perigoso”), de Paulo Leminski (“Por um lindésimo de segundo”). Eternas fontes de inspiração vital . Porventura reencontrados por escavadores de livros perdidos como capítulos re-velados da geologia humana.

Paulo Timm é economista formado pela UFRGS. Pós Graduado na ESCOLATINA, da Universidade do Chile e CEPAL/BNDES. Foi professor da Universidade de Brasilia- UnB – e Técnico do IPEA, órgão do Ministério do Planejamento, em Brasília, onde residiu por 35 anos e onde fez sua vida profissional e pública.

quinta-feira, 29 de março de 2012

Millor Fernandes - uma homenagem de Paulo Timm


O BRASIL FICOU SEM GRAÇA. NEM RIGOR 
Paulo Timm
29/03/2012

Quem leu o livro “O nome da Rosa”, de Umberto Eco, ou viu o filme, deve se lembrar de uma passagem interessante: Um diálogo ríspido, no ano de 1327, na Biblioteca do Mosteiro, palco de sucessivos assassinatos, entre o monge, cego, bibliotecário, e o Padre  William de Baskerville  (Sean Connery) que ali estava para investigar os crimes. O velho monge irrita-se quando  percebe que o visitante  ri e o adverte severamente. O investigador indaga: Por que não rir? E seu admoestador responde  que isto não se coadunava à doutrina da vida monástica. O sorriso era expressão de alegria e esta, tal como o prazer, eram pecados.
 Assim era... O homem medieval encastelara-se de tal forma na busca da salvação de sua alma cristã,  que já não sorria, não cantava, não dançava, não extravasava seu prazer em palavras e gestos. Tudo o que lembrasse a mais leve menção ao naturalismo, inclusive Aristóteles, era envenenado para que aqueles que o vissem ou tocassem não sobrevivessem para contar uma estória permeada de prazeres proibidos.   Só na virada no Século XIII, quando as condições sociais e culturais na Europa  se alteram, isto começa a mudar e se traduz por uma nova voz da Igreja sobre o humor. Santo Tomaz de Aquino (12251274) lhe dá uma nova interpretação, considerando-o um “bem útil”: O humor estaria para a alma como o sono para o repouso corporal, podendo,  seu exercício pecar por excesso, levando ao vício, ou por falta, levando à incapacidade de seus portadores à perda de sensibilidade. Neste caso tornar-se-iam frios e calculistas. Esta visão do humor, como alívio do espírito, talvez tenha influenciado, também, Sigmund Freud (1856-1939), criador da Psicanálise. Ele o vê como um fator de distensão do homem “civilizado” diante das inevitáveis repressões do controle social da cultura.
Esta aguda percepção freudiana sobre o papel do humor e do humorista, como resistência cultural à todas as formas de cerceamento da liberdade cai como uma luva no Brasil.  À época da ditadura militar, o humor de alto nível, cultivado pela inteligência aguda de Millor Fernandes, fez época no PASQUIM (1969), transformando-o num “movimento” decisivo da formação da consciência crítica contra o regime militar.  Conseguiu ludibriar a censura com sua linguagem inovadora, cínica e debochada. E se transformou na pedra de toque na luta contra o autoritarismo. A ditadura não cairia numa batalha campal, como quis a luta armada. Desmoralizar-se-ia paulatinamente até tirar o time...
Na mesma época despontava na televisão, outro gênio do humor, com a mesma capacidade de ridicularizar os costumes da época: Chico Anysio. Ele tinha uma incrível capacidade   de se multiplicar em inúmeros personagens, todos inspirados no povo brasileiro.
Numa semana, Millor e Chico Anysio nos deixam. Ambos insubstituíveis. Senhores de um talento ímpar que, associado à extraodinária capacidade de trabalho, potenciaram sua respectiva inspiração, levando-a a limites insuperáveis. Com isso, o Brasil perde muito de seu encanto e graça.
Chico Anysio e Millor eram tipos diferentes na sua arte. Millor era mais grafológico, senhor de traços e palavra  fina, registrados na imprensa escrita, enquanto Chico Anysio era mais gestual, criador de estampas múltiplas que falavam por si. Millor era o homem de bastidores, Chico do palco. Millor era o homem  da classe média letrada dos grandes centros metropolitanos, Chico foi um dos artífices da televisão brasileira, vindo a se confundir com as grandes multidões por todos os recantos do país, numa era em que a maioria dos lares já dispunha deste aparelho.  Millor era cáustico e  instigante. Irônico. Dono da  "docta ignorantia", ou , "ignorância fingida”, deixando no ar a compreensão do dito. Detestava ser célebre, preferindo a notoriedade. Chico, explícito, propositivo, visual. Satírico. Um simulador sutil, dizendo uma coisa para dizer outra,  fazendo-se entender com facilidade. Não pode fugir à celebridade, mas viveu-a com simplicidade.  Os dois, de uma generosidade que lembrava aquele sentimento de fraterna irmandade humana que alimentou a esquerda moderna, nos primórdios dos falanstérios, antes que ela perdesse o humor e a graça sob a tutela de doutrinas. Ambos, a propósito, daquela esquerda...
A ida de Millor nos priva do filósofo, autor de mais de 15 mil aforismos, escritor de vários livros , um dos introdutores de Shakespeare entre nós. Um analista implacável da alma tupiniquim: “ Negociata é aquele negócio do qual nós não participamos”. A de Chico Anysio, nos priva das múltiplas personificações desta alma, como Justo Veríssimo: “Eu quero que pobre se exploda...!” Carregam consigo  não só nossos melhores momentos de humor como reflexão crítica, mas o rigor com que eram, graciosamente, tratados. Deixam na bagagem, para nós, os FUNDAMENTOS DE UMA FILOSOFIA TUPINIQUIM, para escárnio aos notáveis doutores que se revezam em Simpósios Acadêmicos tentando encontrá-los na obra de estranhos e datados  clássicos.