O BRASIL FICOU SEM GRAÇA. NEM RIGOR
Paulo Timm
29/03/2012
Quem leu o livro “O nome da Rosa”, de Umberto Eco, ou viu o filme, deve se lembrar de uma passagem interessante: Um diálogo ríspido, no ano de 1327, na Biblioteca do Mosteiro, palco de sucessivos assassinatos, entre o monge, cego, bibliotecário, e o Padre William de Baskerville (Sean Connery) que ali estava para investigar os crimes. O velho monge irrita-se quando percebe que o visitante ri e o adverte severamente. O investigador indaga: Por que não rir? E seu admoestador responde que isto não se coadunava à doutrina da vida monástica. O sorriso era expressão de alegria e esta, tal como o prazer, eram pecados.
Assim era... O homem medieval encastelara-se de tal forma na busca da salvação de sua alma cristã, que já não sorria, não cantava, não dançava, não extravasava seu prazer em palavras e gestos. Tudo o que lembrasse a mais leve menção ao naturalismo, inclusive Aristóteles, era envenenado para que aqueles que o vissem ou tocassem não sobrevivessem para contar uma estória permeada de prazeres proibidos. Só na virada no Século XIII, quando as condições sociais e culturais na Europa se alteram, isto começa a mudar e se traduz por uma nova voz da Igreja sobre o humor. Santo Tomaz de Aquino (1225 —1274) lhe dá uma nova interpretação, considerando-o um “bem útil”: O humor estaria para a alma como o sono para o repouso corporal, podendo, seu exercício pecar por excesso, levando ao vício, ou por falta, levando à incapacidade de seus portadores à perda de sensibilidade. Neste caso tornar-se-iam frios e calculistas. Esta visão do humor, como alívio do espírito, talvez tenha influenciado, também, Sigmund Freud (1856-1939), criador da Psicanálise. Ele o vê como um fator de distensão do homem “civilizado” diante das inevitáveis repressões do controle social da cultura.
Esta aguda percepção freudiana sobre o papel do humor e do humorista, como resistência cultural à todas as formas de cerceamento da liberdade cai como uma luva no Brasil. À época da ditadura militar, o humor de alto nível, cultivado pela inteligência aguda de Millor Fernandes, fez época no PASQUIM (1969), transformando-o num “movimento” decisivo da formação da consciência crítica contra o regime militar. Conseguiu ludibriar a censura com sua linguagem inovadora, cínica e debochada. E se transformou na pedra de toque na luta contra o autoritarismo. A ditadura não cairia numa batalha campal, como quis a luta armada. Desmoralizar-se-ia paulatinamente até tirar o time...
Na mesma época despontava na televisão, outro gênio do humor, com a mesma capacidade de ridicularizar os costumes da época: Chico Anysio. Ele tinha uma incrível capacidade de se multiplicar em inúmeros personagens, todos inspirados no povo brasileiro.
Numa semana, Millor e Chico Anysio nos deixam. Ambos insubstituíveis. Senhores de um talento ímpar que, associado à extraodinária capacidade de trabalho, potenciaram sua respectiva inspiração, levando-a a limites insuperáveis. Com isso, o Brasil perde muito de seu encanto e graça.
Chico Anysio e Millor eram tipos diferentes na sua arte. Millor era mais grafológico, senhor de traços e palavra fina, registrados na imprensa escrita, enquanto Chico Anysio era mais gestual, criador de estampas múltiplas que falavam por si. Millor era o homem de bastidores, Chico do palco. Millor era o homem da classe média letrada dos grandes centros metropolitanos, Chico foi um dos artífices da televisão brasileira, vindo a se confundir com as grandes multidões por todos os recantos do país, numa era em que a maioria dos lares já dispunha deste aparelho. Millor era cáustico e instigante. Irônico. Dono da "docta ignorantia", ou , "ignorância fingida”, deixando no ar a compreensão do dito. Detestava ser célebre, preferindo a notoriedade. Chico, explícito, propositivo, visual. Satírico. Um simulador sutil, dizendo uma coisa para dizer outra, fazendo-se entender com facilidade. Não pode fugir à celebridade, mas viveu-a com simplicidade. Os dois, de uma generosidade que lembrava aquele sentimento de fraterna irmandade humana que alimentou a esquerda moderna, nos primórdios dos falanstérios, antes que ela perdesse o humor e a graça sob a tutela de doutrinas. Ambos, a propósito, daquela esquerda...
A ida de Millor nos priva do filósofo, autor de mais de 15 mil aforismos, escritor de vários livros , um dos introdutores de Shakespeare entre nós. Um analista implacável da alma tupiniquim: “ Negociata é aquele negócio do qual nós não participamos”. A de Chico Anysio, nos priva das múltiplas personificações desta alma, como Justo Veríssimo: “Eu quero que pobre se exploda...!” Carregam consigo não só nossos melhores momentos de humor como reflexão crítica, mas o rigor com que eram, graciosamente, tratados. Deixam na bagagem, para nós, os FUNDAMENTOS DE UMA FILOSOFIA TUPINIQUIM, para escárnio aos notáveis doutores que se revezam em Simpósios Acadêmicos tentando encontrá-los na obra de estranhos e datados clássicos.
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