Sobre a irracionalidade das
políticas governamentais
Paulo Roberto de Almeida
Quem se expõe muito tecendo
comentários sobre nossa irrealidade cotidiana – aproveitando o título de um
livro do Umberto Eco, de crônicas sobre as coisas bizarras que ele encontra
pelo mundo, em suas viagens – sempre se arrisca a receber comentários
“corretivos”, como acontece frequentemente com este humilde blogueiro, que não
possui nenhum poder externo, nenhuma capacidade de mudar o mundo, e suas idiossincrasias
bem mais perigosas do que os exemplos de kitsch em que tropeçava o escritor
italiano. O único poder deste blog, na verdade, está nas poucas virtudes
socráticas que ele possa ter, o poder – muito vago, é verdade – de convencer
outros, de forma didática, por demonstrações que possuem certa lógica
intrínseca, certo embasamento na realidade e certa coerência entre os meios e
as finalidades, o que nem sempre é fácil de encontrar nas medidas do governo,
vou logo adiantando.
Por que digo isto? Bem,
digamos que, como cidadão consciente, sou tremendamente exigente quanto ao uso
que se faz do meu dinheiro, sim, todo aquele terço – senão mais – da minha
renda que é apropriado pelo governo para fazer, supostamente, obra benemérita.
O mais das vezes, o que vejo, são políticas erradas, que deixam os ricos ainda
mais ricos, e distorcem cada vez mais as regras do jogo no Brasil. Por isso
escrevo, sem muita audiência, mas com a certeza de que pelo menos cumpro ou
dever cívico, ou no mínimo didático, ao alertar os mais jovens – e alguns mais
velhos também – sobre o real sentido, e as consequências efetivas de todas
essas políticas governamentais, que eu encontro particularmente malucas. Sim,
sou um anarquista conceitual, e sempre serei crítico dos governos: afinal de contas
somos nós que os colocamos lá, e eles são pagos com o nosso dinheiro. Temos,
portanto, todo o direito de criticá-los à vontade.
Nessa tarefa, encontro
muita gente que escreve raivosamente para este blog, me acusando disso ou
daquilo, o que pode fazer parte do jogo; desde que seja pertinente ao post, não
tenho problema em publicar. Não é o caso do comentário abaixo, que transcrevo
em sua integralidade, antes de oferecer uma pequena aula de economia política,
ao jovem acadêmico que o escreveu. Sim, primeiro pensei que se tratava de um
economista governamental, de um Adesista Anônimo como muitos que se encontram
por aí, e que se comprazem em defender a sua boa causa, mesmo com todos os
equívocos acumulados ao longo do tempo. Depois concluí que se trata apenas de um
estudante de graduação querendo aprender economia. Sendo assim, vou parar com
outras tarefas mais importantes, para oferecer-lhe uma pequena aula de economia
brasileira e internacional.
Mas primeiro a transcrição
do comentário. Ele deu-se a propósito deste post:
SEXTA-FEIRA,
30 DE MARÇO DE 2012
Eis aqui o
comentário recebido, em itálico:
O sistema internacional esta mal regulado e cheio de
distorções, como mostra sabiamente o documentário "Inside Job".Com o
câmbio sobrevalorizado de 20% a 30%, a indústria brasileira tem sido massacrada
desde 2008, com a invasão de produtos do sudeste asiático. A China utiliza um
câmbio desvalorizado em 40%, como é de amplo conhecimento no cenário
internacional. Além disso, conta com uma infraestrutura eficiente, energia
elétrica barata e uma mão de obra semiescrava. O Brasil tem feito um esforço
grande para voltar a investir, mas tem muitos problemas estruturais. A baixa
taxa de poupança, a maneira como a CF/88 estabeleceu um amplo sistema de
seguridade social (que é caríssimo, algo que a China não tem que arcar), isso
tudo leva a uma baixa taxa de poupança, o que dificulta um crescimento dos
investimento. A reforma tributária é um exemplo, o Delfim Neto diz que desde a
época em que ele era ministro se fala de reforma tributária. Ele diz que a
reforma não sai, porque os governadores e as bancadas estaduais sempre travam a
discussão, ficam com medo de saírem prejudicados, preferindo deixar a coisa no
0x0. Pequenas reformas foram feitas ultimamente, dentro das possibilidades
politicas (simples nacional, por exemplo). Eu teria de escrever um livro aqui
para falar como é dificílimo atacar os problemas estruturais do Brasil. Acho
que no curto prazo o Brasil esta correto ao aplicar essas medidas, não existe
outra opção. É necessário criar empregos de qualidade para 200 milhões de
pessoas, só o agronegócio e o setor de serviços não conseguem atingir essa
marca. É muito fácil falar que o protecionismo é um erro, quando você esta
assistindo tudo de fora, sentado na sua poltrona. Difícil é abrir uma fábrica e
concorrer com os chineses. O governo sabe que o protecionismo leva à
ineficiência, ninguém lá é idiota. No momento, o Brasil tem a industrialização
que ele consegue ter. Ponto final. Agora é apagar o incêndio, deixar a
indústria respirar um pouco, para depois tentarmos mudar as questões mais
complexas.
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Agora meus
comentários a cada uma das afirmações do meu anônimo comentarista. Como sempre
faço, procederei por transcrever, topicamente, cada uma das afirmações ou argumentos
que me parecem suscitar reparos, e agregarei meus próprios comentários em
seguida.
O autor dos
comentários está convidado a me rebater, e me prontifico a publicar sua
réplica, ou tréplica, neste caso.
Vamos lá:
1) “O sistema internacional esta mal regulado e
cheio de distorções, como mostra sabiamente o documentário "Inside
Job".”
PRA: Concordo,
parcialmente, com a primeira parte da frase, mas nunca recomendaria, para
qualquer aluno, esse filme, que me parece um Michael Moore um pouco mais
especializado. Recomendo ao meu comentarista o filme “Too Big To Fail”, bem
mais realista e confiável do que essa lamúria contra os “especuladores” que
constitui o “Inside Job”. Francamente, se trata de um filme piegas,
maniqueísta.
Agora, discordo
dele em que exista algo próximo a um sistema internacional. Que sistema é esse?
Quais são suas regras? Onde está o Board que dirige o sistema, seu processo
decisório e outras coisas que definem um sistema? O que existe são fluxos, dos
mais diversos – comerciais, financeiros, tecnológicos, humanos, etc. – sendo
intercambiados em economias de mercado mais ou menos reguladas de modo muito
imperfeito nos planos nacional e multilateral, com uma descoordenação total
entre as diversas unidades que participam desses mercados: empresas, governos,
entidades intergovernamentais, blocos, ONGs, etc., com poderes muito diversos
entre eles. Não é exatamente uma anarquia, mas é algo muito próximo disso, com
a vantagem de que na nossa atual anarquia, poucos são os malucos que acham que governos
devem substituir totalmente os mercados – embora sempre tenhamos neobolchevique
por aí, que acreditam nisso – e são bem mais os numerosos os que concordam em
que a economia capitalista é assim mesmo, dada a sobressaltos e crises
eventuais (sempre recorrentes, mas de formas novas e inesperadas).
2) “Com o câmbio sobrevalorizado de 20% a 30%, a
indústria brasileira tem sido massacrada desde 2008, com a invasão de produtos
do sudeste asiático.”
PRA: Coitadinha
da indústria, tão massacrada... Mas será que a razão principal é o câmbio? Pode
ser em parte, mas não totalmente. Outros países passaram por processos de
valorização tão, ou mais, intensos que o brasileiro, e sobreviveram e se
beneficiaram, como Alemanha e Japão, por exemplo, grandes importadores, e
exportadores. Sempre quando se fica mais rico, a moeda tende a se valorizar.
Isso por acaso é ruim.
Se o meu
comentarista for examinar as outras fontes da valorização da moeda, ele
certamente vai achar algo que não é da responsabilidade dos chineses: eles são
por acaso culpados por nossa taxa de juros tão elevada, que atrai tantos
capitais?
E a carga
tributária brasileira? Será que ela não começa a ser massacrada aqui mesmo no
próprio Brasil? Sugiro ao comentarista que examine os dados de tributação e constate
para mim quais são os países malucos que impõem um custo de 40% aproximadamente
sobre os produtos de uso corrente, proteção tarifária idem, e outras coisas
mais. Não vale dizer “escandinavos”, a menos que ele compare os níveis de renda
e de produtividade, também. Pode buscar...
3) “A China utiliza um câmbio desvalorizado em
40%, como é de amplo conhecimento no cenário internacional. Além disso, conta
com uma infraestrutura eficiente, energia elétrica barata e uma mão de obra
semiescrava.”
PRA: Não é
verdade, ou é apenas parcialmente verdade. A China ancora sua moeda no dólar,
pois grande parte de suas exportações é feita nessa moeda, e ela quer preservar
certo equilíbrio de valores. Pode-se dizer que o dólar se desvaloriza... mas
isso também reduz o poder de compra da China no exterior. Ela mantém sua
população mais pobre do que poderia ser, e isso é ruim.
Outra coisa: o
Brasil praticou manipulação cambial durante 40 anos, e não tivemos reclamação
de ninguém contra isso, pois a medida nos deixava mais pobres, justamente, e
éramos totalmente desimportantes no comércio internacional. A China não é, mas
não adianta reclamar: depois de 1973, cada país pode fazer o que quiser com sua
própria moeda, e não foram poucas as vezes nas quais os EUA, coitadinhos,
tiveram de operar uma desvalorização administrada do dólar...
4) “O Brasil tem feito um esforço grande para
voltar a investir, mas tem muitos problemas estruturais. A baixa taxa de
poupança, a maneira como a CF/88 estabeleceu um amplo sistema de seguridade
social (que é caríssimo, algo que a China não tem que arcar), isso tudo leva a
uma baixa taxa de poupança, o que dificulta um crescimento dos investimento.”
PRA: Não estou
vendo nenhum esforço, repito, nenhum: fazem pelo menos 20 anos (e mais de dois
governos, portanto), que a taxa de investimento está abaixo de 20% do PIB. Qual
é o esforço aí? Não vejo nenhum.
Coitadinho do
Brasil: tem problemas estruturais? E não consegue resolver? Mas onde está o
governo do “nunca antes”? Nunca antes, na história do Brasil, tantos se
beneficiaram da ação tão esplendorosa de tão poucos... Foram mais de 40 milhões
arrancados da miséria, ao que parece, embora possa haver certo exagero, claro.
A poupança potencial do Brasil, na verdade, não é baixa, pois se considerarmos determinados
recolhimentos compulsórios que NÃO SÃO consumidos pelo setor privado, ou pelas
empresas, e sim absorvido na esfera governamental, essa taxa poderia ser bem
mais alta.
Ah, mas o meu
comentarista vai me dizer que a tal de “Constituição cidadã” determinou um
padrão de gastos – aliás sempre crescentes – incompatível com uma taxa maior de
poupança e de investimentos. É verdade!
Mas que
estúpidos brasileiros: já se passaram mais de 20 anos e ainda não se decidiram
por reformar a CF e corrigir essas estupidezes! Vão esperar alguma crise, por
acaso?
As pessoas não
são inteligentes o bastante para perceber que estão num impasse, ou num caminho
que leva ao abismo?
Discordo do meu
comentarista quando diz que a seguridade social é caríssima. Comparada com o
quê? Claro, comparado com os recolhimentos feitos e os benefícios pagos. E
somos estúpidos o suficiente para deixar essa situação se prolongar até quando?
Os chineses tem
algo a ver com isso? Absolutamente nada. Eles estabeleceram um outro arranjo:
as pessoas fazem poupança, e investem, justamente, para terem dinheiro
suficiente na velhice. Com isso a poupança e o investimento são altos. Não é
inteligente, isso? O que impede os brasileiros de fazer o mesmo? Preguiça?
Atraso mental?
O que o meu
comentarista me apresenta não é uma explicação; é apenas um lamento. Bem, então
invente um mais palatável...
5) “A reforma tributária é um exemplo, o Delfim
Neto diz que desde a época em que ele era ministro se fala de reforma
tributária. Ele diz que a reforma não sai, porque os governadores e as bancadas
estaduais sempre travam a discussão, ficam com medo de saírem prejudicados,
preferindo deixar a coisa no 0x0.”
PRA: O motivo
não é bem esse. Nos 20 anos decorridos desde a CF, quem aumentou sua parte das
receitas totais foi o governo federal, com base em contribuições que não são
divididas com os estados e municípios, e é razoável que os governadores e
prefeitos se sintam logrados pelo governo federal e queiram uma maior parte da
benesse. A questão foi que a CF, estupidamente, deu mais encargos ao governo
federal, ao mesmo tempo em que lhe retirava receitas, para distribuir aos
estados e municípios. Aí o governo foi buscar o dinheiro onde ele está: no
bolso dos cidadãos e no caixa das empresas.
Mas a solução
não está em fazer uma reforma tributária que aumente a carga para todos e dê
mais dinheiro para o Estado, e sim uma que reduza a carga e isso tem de começar
pela redução das despesas públicas. Este é o verdadeiro debate que os governos,
em geral, e os economistas também, não fazem. Reduzir despesas, reduzir
impostos, dar mais espaço para as iniciativas privadas.
Os economistas
do governo, sobretudo deste governo, dizem que estão fazendo distribuição de
renda, inclusão social, justiça fiscal, etc. Mentira: os mandarins de sempre
estão se apropriando de fatias cada vez maiores da riqueza coletiva: basta
comparar salários e benefícios do setor privado com os do setor público. Esta é
a vergonha.
6) “Pequenas reformas foram feitas ultimamente,
dentro das possibilidades politicas (simples nacional, por exemplo). Eu teria
de escrever um livro aqui para falar como é dificílimo atacar os problemas
estruturais do Brasil.”
PRA: Pois bem,
sinta-se à vontade, escreva seu livro; se ele tiver contribuições relevantes,
terei prazer em ajudar a divulgá-lo. Mas, faça, e não se esconda no anonimato,
pois debate público é importante, com pessoas inteligentes como parece ser este
meu comentarista.
Agora, dizer que
o Simples é uma reforma é um exagero. Ele é um paliativo, para não manter na
informalidade milhões de micro e pequenas empresas. Mas é estúpido, também,
pois limita a capacidade de uma micro ou pequena converter-se em média ou
grande empresa, pela engenhosidade e trabalho de seus proprietários, que ao
fazê-lo cairiam no inferno tributário que é o Brasil hoje, um verdadeiro
manicômio.
O Brasil está
sempre inventando expedientes para não fazer as reformas verdadeiras.
7) “Acho que no curto prazo o Brasil esta
correto ao aplicar essas medidas [protecionistas], não existe outra opção. É necessário criar empregos de qualidade para
200 milhões de pessoas, só o agronegócio e o setor de serviços não conseguem
atingir essa marca.”
PRA: Pois é,
nosso comentarista deveria se teletransportar para 1929-1931: ele estaria
perfeito lá. Todos os líderes políticos e econômicos fizeram exatamente isso
que ele recomenda, e o mundo entrou na maior depressão já conhecida na história.
Protecionismo nunca foi solução para nada, apenas para dar dinheiro a
industriais espertos, e tornar o país ainda mais pobre.
Claro que
existem outras opções: reformar a economia, diminuir custos, aumentar a
produtividade, modernizar a infraestrutura, etc. Difícil fazer isso, mas isso
cria emprego também, e protecionismo NUNCA foi aumento de qualidade para NADA.
O nosso comentarista não conhece história econômica ou se ilude com o discurso
do governo.
8) “É muito fácil falar que o protecionismo é um
erro, quando você esta assistindo tudo de fora, sentado na sua poltrona.
Difícil é abrir uma fábrica e concorrer com os chineses.”
PRA: Sentado na
poltrona? Bobagem. Ninguém está falando em concorrer com os chineses naquilo
que os chineses fazem melhor e mais barato. Existem milhares de outros produtos
que podemos fazer melhor e mais barato que os chineses, pois temos vantagens
comparativas que eles não têm e NÃO PODEM ter, só nós temos. Por que não
fazemos isso? Queremos continuar brigando com a realidade?
Havia um tempo
em que éramos imbatíveis no fornecimento de café, tanto que vendíamos tudo o
que produzíamos, mas naquela base do “enfiar no saco” e mandar para o porto. Os
colombianos, que JAMAIS poderiam concorrer conosco na quantidade, começaram a
concorrer na qualidade, e conseguiram. Por que não fazemos o mesmo?
Burrice? Talvez,
mas nada que não possa ser remediado com pessoas inteligentes no governo. A
menos que...
9) “O governo sabe que o protecionismo leva à
ineficiência, ninguém lá é idiota.”
PRA: Bem, peço
licença para não concordar...
10) “No momento, o Brasil tem a industrialização
que ele consegue ter. Ponto final. Agora é apagar o incêndio, deixar a
indústria respirar um pouco, para depois tentarmos mudar as questões mais
complexas.”
PRA: Mas que
afirmação mais fatalista. Como “ponto final”? Nenhuma industrialização é
estática, jamais. Os EUA começaram na linha de montagem fordista, e teriam sido
engolidos pelos japoneses nos anos 1970, por ineficiência, justamente porque
ficou na industrialização que “poderiam ter”. Idiotas. Deveriam ter sido
comidos pelos japoneses, pois pelo menos não teriam dado despesas nos anos 1970
e agora, justamente, ao terem sido salvos uma segunda vez. Indústria é assim:
ou você avança, ou é superado.
O argumento do meu
comentarista é a coisa mais fatalista, determinista, que eu poderia encontrar
em qualquer pessoa que observa o mundo.
O Brasil já não
PODE mais ter a indústria que ele construiu dos anos 1950 aos 1970: isso
acabou, e devemos ir mais à frente, agregar valor, passar para outras linhas de
produção, inovar.
Difícil?
Certamente, mas ninguém disse que o mundo é feito para preguiçosos e
acomodados.
Como diz a canção:
“I never promised you a rose garden...”
(Se não for isso,
alguém me corrija...).
De nada.
Paulo Roberto de Almeida
Paris, 1ro de abril de 2012.
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