Transcrevo, para depois comentar...
Paulo Roberto de Almeida
Entrevista da revista Veja com a presidente Dilma Rousseff
(publicada em 24/03/2012)
Revista Veja, edição de 28/03/2012
Duas horas com
Dilma
"E
uma boa coisa que o presidente da República fale à imprensa - ponto",
dizia a Carta ao Leitor de VEJA de 1° de agosto de 1979 ao anunciar que, pela
primeira vez desde 1964, um presidente da República dava uma entrevista formal
e exclusiva à imprensa, tendo escolhido os profissionais da revista para
conversar. O presidente era João Baptista Figueiredo, o general que encerrou o
regime militar. Figueiredo falou apenas meia hora, mas abriu o coração sobre os
problemas que enfrentava no cargo, deu detalhes inéditos sobre a Lei da
Anistia aos que cometeram crimes durante o ciclo dos generais e adiantou que o
Brasil dificilmente escaparia do racionamento de gasolina. Desde então, VEJA
entrevistou todos os presidentes que se seguiram a Figueiredo com a
redemocratização - José Sarney, Fernando Collor, Itamar Franco, Fernando
Henrique Cardoso e Lula.
No mesmo mês e ano em que Figueiredo falava a VEJA,
assinava sua ficha de inscrição no PDT uma ex-militante que cumprira pena
acusada de integrar um grupo que executara ações armadas durante o regime
militar. Seu nome, Dilma Rousseff. Pouco mais de trinta anos depois, ela se
elegeria presidente da República pelo PT. Na semana passada, durante duas
horas, Dilma conversou com Eurípedes Alcântara, diretor de redação de
VEJA, e com os redatores-chefes Lauro Jardim, Policarpo Junior e Thaís Oyama.
Foi sua primeira entrevista formal e exclusiva a VEJA como presidente. Como
dizia a Carta ao Leitor de 1° de agosto de 1979, foi "uma boa coisa -
ponto". Em uma das semanas mais conturbadas para ela no tenso cabo de
guerra com a base de sustentação no Congresso – problema, aliás, que foi tema
das conversas de VEJA com todos os presidentes que a antecederam –, Dilma
estava surpreendentemente tranquila e confiante. Ela não deixou pergunta sem
resposta, como mostra a reportagem.
ENTREVISTA
O Brasil aos
olhos de Dilma
Em uma entrevista de duas horas
a VEJA em Brasília, a presidente Dilma Rousseff diz que o poder não é
desfrutável, mas que também não perde o sono com os problemas com os quais se
defronta.
Aos olhos de muita
gente, a presidente Dilma Rousseff deveria estar uma pilha de nervos na semana
passada. Ela vinha de uma viagem à Alemanha, onde pareceu, inadequadamente, dar
lições de governança à chanceler Angela Merkel. Na reunião que teria com os
maiores empresários brasileiros, ela lhes daria “um puxão de orelha”, e, para
completar o quadro recente de tensão, a base aliada do seu governo no Congresso
estava em franca rebelião, contrariando seguidas iniciativas do Palácio do
Planalto nas votações. Como pano de fundo da semana caótica, havia o fato de
Dilma ainda não ter convencido a opinião pública de ser a grande gestora que o
eleitorado escolheu para governar o Brasil em 2010. Como escreve nesta edição
J.R. Guzzo, colunista de VEJA, capturando uma sensação mais ampla, “a maior
parte das atividades do governo brasileiro hoje em dia poderia ser descrita
como ficção”. Mas Dilma não estava nem um pouco tensa quando recebeu a equipe
de VEJA (Eurípedes Alcântara, diretor de redação, e os redatores-chefes Lauro
Jardim, Policarpo Junior e Thaís Oyama) na tarde de quinta-feira passada para
uma conversa de duas horas em uma sala contígua a seu gabinete de trabalho no
Palácio do Planalto, em Brasília.
Dilma
vinha de encerrar a reunião com os empresários, em que, disciplinadamente, cada
um dos 28 presentes teve cinco minutos para falar, e não pareceu ter dado – ou
levado – metafóricos puxões de orelha. “Tivemos uma conversa séria. Coisa de
país que sabe onde está no mundo e aonde quer chegar”, disse ela. “Ficamos
todos de acordo que os impostos têm de cair, os investimentos privados e
estatais têm de aumentar e o que precisar ser feito para elevar a produtividade
da economia brasileira e sua competitividade externa será feito”. Para quem
vinha tendo os ouvidos atacados pelo buzinaço estéril da “guerra cambial”
contra o Brasil – expressão que, como se verá na entrevista a seguir, ela não
acha própria –, a frase de Dilma, mesmo sem a sonoridade do português castiço,
soa como música.
É
saudável quando o governante não põe em inimigos externos toda a culpa por
coisas que não funcionam. Melhor ainda quando reconhece que seu próprio campo,
além de não ter soluções para tudo, é também parte do problema. “Não dá para
consertar a máquina administrativa federal de uma vez, sem correr o risco de um
colapso. Nem na iniciativa privada isso é possível. No tempo que terei na
Presidência vou fazer a minha parte, que é dotar o estado de processos
transparentes em que as melhores práticas sejam identificadas, premiadas e
adoradas mais amplamente. Esse será meu legado. Nosso compromisso é com a eficiência,
a meritocracia e o profissionalismo”.
“Eu
disse aos empresários que seremos aliados nas iniciativas para aumentar a taxa
de investimento da economia – e não mais apenas o crédito para o consumo”,
contou ela. Suas propostas lembram o gato do chinês Deng Xiaoping. Não importa
a cor. O que interessa é que ele cace ratos. Dilma Rousseff, porém, continua
sendo a Dilma da lenda da mulher durona, de cotação nacionalista. Confrontada
com as críticas de que a Petrobras não pode ser um braço de política industrial
do governo, ela reagiu: “A Petrobras tem de saber que o petróleo é do Brasil e
não dela”. Felizmente, Dilma admite que a extração do petróleo do pré-sal tem
prioridade até sobre a sacrossanta exigência de 65% na taxa de nacionalização
dos equipamentos – o que inviabiliza ou encarece muitas operações. Ela não
verbaliza que a taxa pode ser reduzida, mas diz que, entre a manutenção do
patamar de nacionalização e a garantia de produção dos campos do pré-sal, fica
com a produção.
Pôr
a culpa das reais distorções do Brasil em pressões produzidas no exterior não é
uma maneira de fugir dos problemas?
Primeiro,
não é verdade que estejamos agindo dessa maneira. É uma simplificação grosseira
supor que o governo brasileiro considere as pressões externas a única causa de
nossos problemas. Segundo, ignorar que existem fortes externalidades agindo
sobre a economia brasileira é um erro que não podemos cometer, sob pena de
arriscar a prosperidade nacional, a saúde de nossa base industrial e os
empregos de milhões de brasileiros. Terceiro, os fatores exógenos são reais e
não podem ser subestimados.
A
senhora se refere ao que chegou a ser chamado de “guerra cambial”?
Não
acho adequado ver o fenômeno do tsunami de liquidez que foi criado pelos países
ricos em crise como uma agressão proposital às demais nações. Mas a saída que
eles encontraram para enfrentar seus problemas é uma maneira clássica,
conhecida, de exportar a crise. Quando o companheiro Mario Draghi (economista
italiano presidente do Banco Central Europeu) diz “vamos botar a maquininha que
faz dinheiro para rodar”, ele está inundando os mercados com dinheiro. E o que
fazem os investidores? Ora, eles tomam empréstimos a juros baixíssimos, em
alguns casos até negativos, nos países europeus e correm para o Brasil para
aproveitar o que os especialistas chamam de arbitragem, que, grosso modo, é a
diferença entre as taxas de juros praticadas lá e aqui. Eles ganham à nossa
custa. Então, o Brasil não pode ficar paralisado diante disso. Temos de agir.
Temos de agir nos defendendo – o que é algo bastante diferente de
protecionismo.
Quais
as diferenças entre se defender e recorrer ao protecionismo?
O
protecionismo é uma maneira permanente de ver o mundo exterior como hostil, o
que leva ao fechamento da economia. Isso não faremos. Já foi tentado no passado
no Brasil com consequências desastrosas para o nosso desenvolvimento. Cito aqui
o caso da reserva de mercado para computadores, que, nos anos 80, arrasou a
modernização do parque industrial brasileiro e nos privou de tecnologias
essenciais. Não vamos repetir esse erro. Não vamos fechar o país. Ao contrário,
queremos investimentos estrangeiros produtivos. Mas vamos, sim, defender as
nossas empresas, os nossos empregos. O que estamos fazendo, e vamos continuar
fazendo, é contrabalançar com medidas defensivas as pressões desestabilizadoras
externas que estão carreando para o Brasil quantidades excessivas de capital
especulativo. Quando o panorama externo mudar para melhor, nós saberemos que
chegou a hora de revogar as barreiras momentâneas que foram criadas.
Mas
atrair dinheiro de fora não é bom em qualquer circunstância?
Não.
O Brasil está em uma situação agora em que podemos dizer aos países ricos que
não queremos o dinheiro deles. Não queremos pagar os juros de 13% por
empréstimos que eles nos oferecem. Obrigada, mas não queremos pagar as
exorbitantes taxas de permanência desses empréstimos, quantia que eles cobram
mesmo quando não usamos o dinheiro, apenas para que os recursos estejam
disponíveis a qualquer momento. Eu disse isso com toda a clareza à chanceler
Angela Merkel durante minha visita à Alemanha. Aqui se noticiou que eu estava
querendo dar lições à Alemanha. Não foi nada disso. Eu quis deixar claro que o
Brasil não quer mais ser visto como destinação de capital especulativo ou
apenas como mercado consumidor dos produtos que eles exportam. Também deixei
bem claro que, quando o Banco Central Europeu joga de repente 1 trilhão de
euros no mercado, ele não pode esperar que os países fiquem de braços cruzados
enquanto parte desses recursos vem somente passear no Brasil e voltar mais
gorda para a Europa sem ter deixado aqui nenhum benefício.
Como
Angela Merkel reagiu?
Ela
disse que entendia meu ponto de vista perfeitamente, mas que os países
emergentes não podiam esquecer que nós temos responsabilidades globais como
consumidores ávidos e, portanto, como parte da solução das economias estagnadas
da Europa. Eu, então, respondi que nós devemos ser parceiros no ataque aos
problemas globais, mas que nossa colaboração não podia ser mais apenas como
mercados consumidores e foco de atração de capitais especulativos. Disse a ela
que o Brasil quer muito atrair empresas alemãs de tecnologia de ponta. Disse
que essas empresas são bem-vindas ao Brasil e, uma vez instaladas aqui, com
transferência de tecnologia e criação de empregos, serão tratadas como empresas
nacionais, com acesso ao crédito e outras facilidades concedidas às empresas
nacionais. As pessoas precisam entender que o Brasil não está recorrendo ao
protecionismo, nem arreganhando os dentes para quem quer que seja. Não é disso
que se trata.
Ainda
assim, tem muita coisa errada no Brasil que precisa ser consertada e independe
do que vem de fora...
Sem
dúvida. Hoje mesmo (quinta-feira passada, 22) eu me reuni com alguns dos
maiores empresários brasileiros e tivemos uma troca franca de ideias sobre como
atacar nossas distorções mais paralisantes. Eu disse a eles que nossa maior
defesa é aumentar a taxa de investimento privado. Eles reclamaram que os
impostos cobrados no Brasil inviabilizam as melhores iniciativas e impedem que
eles possam competir em igualdade de condições no mundo. Eu concordo. Temos de
baixar nossa carga de impostos. E vamos baixá-la. Vamos nos defender atacando –
ou seja, exportando e ganhando mercados. Para isso, temos de aumentar nossa
taxa de investimento real para pelo menos 24%. O governo vai investir e gerar o
ambiente de negócios para que isso ocorra. Os empresários terão de fazer a
parte deles, aproveitar as oportunidades, assumir riscos e deixar aflorar
aquilo que o Keynes chama de “instinto animal” da livre-iniciativa.
Como
diria o Garrincha, é preciso combinar com os russos – e os indianos, e os
chineses. Eles já estão atacando os mercados bem antes do que o Brasil, a
senhora concorda?
Sim.
Mas a China está dando sinais evidentes de fadiga do modelo-focado fortemente
na exportação. Tenho acompanhado os debates sobre a China, e seus lideres não
escondem que não podem mais negligenciar o mercado consumidor interno. Eles
estão mudando seu foco aceleradamente para atender às demandas do mercado
interno chinês. Isso significa que a China em breve vai importar mais do que
commodities. Os chineses vão importar bens de consumo – geladeiras, fogões,
forno de micro-ondas –, e a parte da indústria brasileira que via a China como
ameaça poderá passar a vê-la como oportunidade de mercado também para nossas
exportações de manufaturados.
A
senhora consumiu boa parte do primeiro ano de seu governo resolvendo crises
provocadas por denúncias de corrupção. Agiu com presteza e demitiu quem estava
comprometido. É difícil encontrar auxiliares honestos?
A
questão não deve ser colocada dessa forma. Os processos no governo é que
precisam ser de tal forma claros e os resultados de avaliação tão lógicos que
não sobre espaço para as fraquezas dos indivíduos. Montesquieu ensinou que as
instituições é que devem ser virtuosas. Nenhuma pessoa que é chamada para o
governo pode achar que haverá algum tipo de complacência. Nós temos de ser o
mais avesso possível aos malfeitos. Não vou transigir. É bom ficar claro que
isso não quer dizer que todos os ministros que deixaram o governo estivessem
envolvidos com alguma irregularidade. Alguns pediram para sair para evitar a
superexposição ou para se defender das acusações que sofreram.
Por
que a senhora não gostou da expressão “faxina ética”?
Parece
preconceituoso. Se o presidente fosse um homem, vocês falariam em faxina? Isso
é bobagem. A questão não é essa palavra, a questão é que o governo tem uma
obrigação de oferecer serviço público de qualidade à população. E para isso é
necessário que os processos no governo sejam eficientes, meritocráticos e
transparentes. Eu sempre mudei para tentar melhorar.
Essas
mudanças, porém, agora estão gerando uma crise no Congresso...
Não
há crise nenhuma. Perder ou ganhar votações faz parte do processo democrático e
deve ser respeitado. Crise existe quando se perde a legitimidade. Você não tem
de ganhar todas. O Parlamento não pode ser visto assim. Em alguma circunstância
sempre vai emergir uma posição de consenso do Congresso que não necessariamente
será a do Executivo. Isso faz parte do processo. A tensão é inerente ao
presidencialismo de coalizão com base partidária. No governo passado perdemos a
votação da CPMF, e o céu não caiu sobre a nossa cabeça.
O
que a senhora achou do discurso do ex-presidente Fernando Collor alertando-a de
que ele perdeu o cargo por falta de sustentação no Congresso?
Não
li o discurso. Mas vocês souberam do discurso do Miro? (Miro Teixeira, no dia
seguinte ao discurso de Collor, recolocou a questão nos eixos lembrando que não
existe comparação possível entre os governos Collor e Dilma.) O que é preciso
ter em mente é que as grandes crises institucionais no Brasil ocorreram não por
questiúnculas, pequenas discordâncias entre o Executivo e o Legislativo. As
grandes crises institucionais se originaram da perda de legitimidade do
governante.
Mas
essas derrotas, coincidentemente, começam quando o governo decide trocar suas
lideranças no Congresso e rever sua relação com alguns aliados.
Não
gosto desse negócio de toma lá dá cá. Não gosto e não vou deixar que isso
aconteça no meu governo. Mas isso nada tem a ver com a troca dos líderes. Eles
não saíram por essa razão. Devemos considerar que os parlamentares vivem um
momento tenso, natural em um ano de eleições municipais. Mas repito: não há
crise nenhuma.
É
difícil suceder na Presidência a um político popular e amado como Lula?
Não.
É facílimo. Para começo de conversa, eu fui ministra da Casa Civil do governo
Lula durante cinco anos e despachava com ele dezenas de vezes por dia. Aprendi
muito. Alguns setores menosprezam o Lula por causa de suas origens, mas eu sou
testemunha de que ele tem momentos de gênio na política e um carisma que nunca
vi em outra pessoa. Esse metalúrgico que muita gente menospreza mudou o Brasil
e ajudou a criar uma nova ordem mundial com o G20, por exemplo, do qual ele foi
o grande incentivador.
A
senhora tem dificuldade em discordar do ex-presidente Lula?
Nem
um pouco. Nós já divergimos muito no passado e continuamos não concordando em
algumas coisas. Eu tenho uma profunda admiração por ele, uma profunda amizade
nos une, ele é uma pessoa divertidíssima com uma capacidade de afeto
descomunal. Mas discordamos, sim. Isso é normal. Mas, no que é essencial, nós
sempre concordamos.
Em
que momentos a senhora percebe que faz diferença ser uma mulher na Presidência?
Quando
eu acordo de manhã e me vejo no espelho. Estou brincando. Eu acho que a
diferença mesmo eu vejo quando as mulheres simples desse Brasil param para
conversar comigo, acenam para mim, em quem enxergam um símbolo de emergência e
de ascensão. A cada dia eu me convenço de que o século XXI é o século das
mulheres.
A
senhora se dá o direito de ter uma opinião como mulher sobre determinado
assunto, o aborto, por exemplo, e outra como presidente?
De
maneira alguma. Ser presidente não me dá o direito de expressar opinião
pessoal, particular ou subjetiva sobre qualquer tema. Aos 64 anos, tenho de ter
a sabedoria de guardar essas opiniões para mim mesma.
O
que a senhora descobriu como presidente que não sabia como ministra?
O
povo se identifica com você, vê em você uma igual na Presidência. E, por isso,
o brasileiro se entrega, mostra como é caloroso. Ele te identifica na rua,
grita seu nome, te abraça, te pega. Você sente que está fazendo aquilo de que
ele precisa. Isso é maravilhoso!
[FIM]
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