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segunda-feira, 20 de abril de 2020

Mensagem do embaixador Ricupero, no Dia do Diplomata

Mensagem recebida do embaixador Rubens Ricupero, a propósito de minha entrevista concedida ao jornal O Estado de S. Paulo, segundo este registro: 


3642. “‘Fazer diplomacia pelo Twitter é errado’, diz embaixador”, Brasília, 20 abril 2020, 10 p. Entrevista gravada com o jornalista José Fucs, do jornal O Estado de S. Paulo, publicada em versão reduzida no jornal impresso (link: https://politica.estadao.com.br/noticias/geral,fazer-diplomacia-pelo-twitter-e-errado-diz-embaixador,70003275120); divulgado no blog Diplomatizzando (link: https://diplomatizzando.blogspot.com/2020/04/diplomacia-por-tweets-entrevista.html); versão resumida publicada no jornal impresso divulgada no blog Diplomatizzando (link: https://diplomatizzando.blogspot.com/2020/04/fazer-diplomacia-e-expor-divergencias.html). Relação de Publicados n. 1344.


" Caro Paulo Roberto,
Excelente sua entrevista ao Estadão: a mais completa e detalhada que li até agora sobre a calamidade que nos assalta no ministério. Nada mais apropriado do que sair no dia do Diplomata. 
Dizer a verdade é mais apropriado que celebrar num momento de degradação como o que vivemos. 

Como disse Giacomo Leopardi
“Se queremos algum dia despertar e retomar o espírito de nação (basta substituir “nação” por Itamaraty), nossa primeira atitude deve ser não a soberba nem a estima das coisas presentes, mas a vergonha”. 

Agradeço a Você por haver me mencionado na entrevista.

Lendo o relato das perseguições que sofreu, refletindo sobre sua obra gigantesca e de alta qualidade, não somente para nossa diplomacia, mas para a cultura brasileira, não pude deixar de pensar mais uma vez nas palavras do Padre Antônio Vieira que se aplicam com justiça à sua aventura humana. Você certamente as conhece, mas não faz mal repeti-las.
São do Sermão da Terceira Quarta-Feira da Quaresma, no qual declara na sua forma incomparável: 

“Se servistes à pátria, que vos foi ingrata, vós fizestes o que devíeis, ela o que costuma... Se servi, se pelejei, se trabalhei, fiz o que devia ao rei, fiz o que devia à pátria, fiz o que me devia a mim mesmo: e quem se desempenhou de tamanhas dívidas, não há de esperar outra paga... Os reis podem dar títulos, rendas, estados; mas ânimo, valor, fortaleza, constância, desprezo da vida, e as outras virtudes de que se compõe a verdadeira honra, não podem. Se Deus vos fez estas mercês, fazei pouco caso das outras, que nenhuma vale o que custa (...pois...) 
O maior prêmio das ações heroicas é fazê-las”. 

Não se pode dizer melhor. 
Abraço muito afetuoso do seu admirador e amigo,
                                                     Rubens [Ricupero] "

Depois que eu pedi autorização para transcrever a mensagem acima, e a obtive, ainda recebi a seguinte mensagem: 

Querido Paulo,
Ficarei orgulhoso se Você divulgar minha opinião, que corresponde apenas à objetividade do que Você é, do que tem feito e de sua força de caráter. Abraço forte,
                                             Rubens

Finalmente, permito-me referir a esta matéria que publiquei no mesmo dia no Estado da Arte, do mesmo jornal O Estado de S. Paulo

3637. “A diplomacia brasileira na corda bamba, sem qualquer equilíbrio”, Brasília, 16 abril 2020, 17 p. Junção dos trabalhos 3633 e 3636, retomando temas da política externa brasileira, para o suplemento Estado da Arte, do Estadão; enviado para Eduardo Wolf e Gilberto Morbach. Publicado no Estado da Arte, O Estado de S. Paulo (20/04/2020; link: https://estadodaarte.estadao.com.br/diplomacia-brasileira-corda-bamba/).


Barão do Rio Branco de passagem por Brasília - Hussei Kalout

Barão do Rio Branco de passagem por Brasília
Dia 20 de abril é considerado o Dia do Diplomata no Brasil
Hussein Kalout*
O Estado de S.Paulo, 20 de abril de 2020 | 08h59

Olá, meu jovem! Tudo bem? Olha só, me disseram que estão querendo reescrever a história do Brasil. É verdade isso? Fiquei um tanto surpreso. Essa modernidade de vocês é preocupante. Muitos mal sabem quem eu sou e o quanto me doei por este país abençoado. Ah, me desculpe, meu jovem, não me apresentei. O meu nome é José Maria da Silva Paranhos Júnior. Muito prazer!
Na minha época, sabe, eu fiquei conhecido como o Barão do Rio Branco. Mas, por favor, esqueça o título nobiliárquico que herdei. Não quero confundir a sua cabeça, é que eu servi ao Brasil como Ministro das Relações Exteriores na República. Me dediquei a ajudar quatro presidentes – Rodrigues Alves, Afonso Pena, Nilo Peçanha e Hermes da Fonseca – ao largo de uma década. Você já se situou? Ah, não? Tá bom, meu jovem, não importa.
Estou procurando o Itamaraty. Sabe onde fica? Está localizado na nova capital. Pois, foi o que o presidente Juscelino me falou. Ele disse que admirava o que eu fiz pelo Brasil. Preciso chegar lá, pois estou um pouco apressado. Depois que morri, fui aclamado como o Patrono da Diplomacia Brasileira. Nunca imaginei ser honrado com tamanha deferência. Morri trabalhando sobre a minha mesa lá no Palácio Itamaraty que ficava na antiga capital, o Rio de Janeiro – aquilo parece que virou uma bagunça; uma pena! Mas, voltando ao assunto: queria deixar tudo nos trinques, enfim, para que ninguém mais tenha que se preocupar com essa tal “resolução pacífica das controvérsias”.
Me disseram que hoje é o Dia do Diplomata, 20 de abril. É verdade, meu jovem? Soube pelo Oswaldo Aranha e pelo San Tiago Dantas que escolherem a data do meu natalício para celebrar o dia dos profissionais que se dedicam à causa diplomática. Estou me encaminhando para Brasília para conversar com certas pessoas. O meu espírito, desde 2019, anda inquieto. Ando apreensivo e desgostoso. Me tiraram do sossego e agora estou obrigado a vagar por esse mundo.
Passei muitos anos trabalhando duramente para estruturar os cânones da nossa política externa brasileira, meu jovem. Negociei sem que um tiro fosse disparado em nossos vizinhos para resolver as questões de nossas fronteiras. Por causa do Acre, discuti asperamente com o Rui Barbosa. Para ele tudo era sob a ótica do direito e das normas jurídicas. O baixinho era insistente e, por vezes, petulante para um geógrafo.
Enfim, não sou homem fácil de se convencer. Mas, fui! O Direito Internacional passou a ser um pilar estrutural de nossa tomada de decisão.
É assim que o Brasil melhor protege os seus interesses, meu jovem. Percebi que isso seria uma vantagem, especialmente, para dialogar mais a fundo com os líderes de um promissor país: os Estados Unidos da América. O seu presidente, na minha época, era o Theodore Roosevelt – um homem jovem, de quase 43 anos, e de justeza. Estudou, em Harvard, e foi até da revistinha de lá a tal The Harvard Advocate. Te confesso, que tenho certa admiração, meu jovem, pela carta dos pais fundadores daquela nação americana. Um deles era o Thomas Jefferson, de uma polidez intelectual e de refinamento jurídico indescritível. Foi o que eu soube. Não sei se você já leu algo sobre isso. Sou um velho que gosta, também, de história. O Rui está certo, sabe! O respeito ao Direito foi importante amalgama e um dos melhores argumentos a usar para estabelecer um laço de confiança para com os seus líderes.
Por isso, o Nabuco, o Joaquim, era a chave na nossa estratégia. Mandamos o Nabuco – era um sujeito garboso e de intelecto agudo – para chefiar a nossa Legação Diplomática, em Washington, que elevamos à categoria de Embaixada. Ali, ele tinha uma missão vital. Garantir o apoio dos Estados Unidos a nossa causa nas arbitragens de fronteira e, se possível, expandir o comércio. O Nabuco era duro na queda quando a coisa se enveredava para esses dois assuntos: soberania e a autodeterminação dos povos. O “Quincas” não abria mão em defesa dos dois princípios. Você deveria ler mais, meu jovem. É bom aprender. Quincas, o belo, é o Nabuco, ora! Me contaram que ele perambulava em Washington propagando os Lusíadas de Camões. Aliás, o que o pessoal anda lendo na nova capital? Quem? Fale de novo. Quem? Perdoe minha memória e velhice, mas nunca ouvi falar de Olavo de Carvalho. Deixe para lá.
O Senhor Elihu Root, Secretário de Estado de Roosevelt, tinha apreço especial pelo Nabuco – acabou lhe vendendo a casa. O pernambucano trabalhou bem, garantiu o apoio nos processos de arbitragens remanescentes e abriu uma boa frente comercial. E mais, desde então, nos tornamos, apesar dos percalços, os garantes da estabilidade da América do Sul. Sabe, meu jovem, é vital cuidar da nossa região e de nossos interesses. O Lampreia, o moço que ocupou o meu posto, me disse que o Celso Amorim tinha boa visão estratégica, mesmo com desacertos aqui ou ali.
O Lampreia, cá entre nós, deu também as suas escorregadas: olhou muito para o norte achando que dava samba! A nossa vocação, meu jovem, é universalista! Bom, chegando a Brasília no dia do diplomata, 20 de abril, tentarei encontrar com o moço que está à frente do Itamaraty. Soube que o Rubens Ricupero disse que a coisa está à deriva. Uma enciclopédia esse homem, segundo me disse o Afonso Arinos.
Nabuco ficaria com inveja da inteligência dele!
Na minha época a nossa projeção além-mar tinha três componentes: realismo, pragmatismo e interesse nacional. És jovem e ainda terás oportunidade de entender o que digo. E a religião? Qual religião, meu jovem? Não posso crer que já sequestraram a constituição em nome dele. O divino nada tem a ver com política externa. Se tivesse não seria necessário canhões para a guerra e diplomatas para a paz, meu jovem.
Deixe o altíssimo!
E tentarei ver o Presidente, se for possível para ele me receber. Ah...ele admira o Senhor Trump. O atual incumbente dos Estados Unidos. Quanta degradação, não? Tinha gente melhor a se espelhar, não? Podia ser o George Washington que, enfim, era militar. Podia admirar ao menos algum mandatário brasileiro. Há muito o que acertar antes de retornar ao meu sossego.
Enfim, até logo, meu jovem! Preciso ir e deixar o meu agradecimento aos verdadeiros patriotas de ontem e de hoje que me homenageiam em sua alma e em seu silêncio. Espero não ter de vir no ano que vem!

* Cientista Político, Professor de Relações Internacionais e Pesquisador da Universidade Harvard. Foi Secretário Especial de Assuntos Estratégicos da Presidência da República (2016-2018) e atuou como consultor das Nações Unidas e do Banco Mundial. Escreve semanalmente, às segundas-feiras.

Diplomacia por Tweets, entrevista completa ao OESP - Paulo Roberto de Almeida

Esta é a versão quase completa, ou pelo menos transcrita – com pequenos problemas de transposição da versão oral para a versão escrita – da entrevista que concedi ao jornalista José Fucs, do jornal O Estado de S. Paulo, que publicou apenas uma pequena parte na sua versão impressa.


‘Fazer diplomacia pelo Twitter é errado’, diz embaixador
Diplomata critica a política externa bolsolavista e o ministro das Relações Exteriores, Ernesto Araújo, fala dos bastidores do Itamaraty e diz que a reação do embaixador da China às críticas contra conduta do país na pandemia é “indefensável”
Entrevista com Paulo Roberto de Almeida
José Fucs, O Estado de S.Paulo
20 de abril de 2020 | 05h00


O embaixador Paulo Roberto de Almeida, de 70 anos, é um contestador nato. Quando discorda da política externa e das orientações do ministro das Relações Exteriores da hora, não costuma fazer segredo de suas divergências. Suas críticas lhe custaram o ostracismo tanto nos governos do PT, por se opor à postura “bolivariana” do Itamaraty, quanto no de Bolsonaro, por suas investidas contra o ministro Ernesto Araújo e as posições “olavistas” adotadas pela diplomacia brasileira na atual gestão.
Em represália à sua conduta, está relegado a uma função protocolar no arquivo, ao lado de estagiários e funcionários terceirizados, perdeu a vaga no estacionamento interno do órgão e teve até o salário descontado por alegadas faltas e atrasos ao trabalho em 2019. Em março, depois de ver indeferidas as suas justificativas de que estava em eventos oficiais e em atividades acadêmicas, entrou com um processo na Justiça contra o Itamaraty por “assédio moral” e pela “perseguição” de que afirma ser alvo.
“Sempre contestei chefes, com base no meu conhecimento técnico, e procurei fazer da autoridade do argumento um instrumento maior do que o argumento da autoridade”, diz. “Não por mero ‘contrarianismo’, por recusar tudo que os outros propõem, mas por acreditar que qualquer política externa deve ser analisada em seus fundamentos, no seu mérito, no custo/benefício e nos resultados efetivos oferecidos ao Brasil. Como eles não podem me punir por expressão de opinião, ficam procurando pequenas coisas para me prejudicar.”
Nesta entrevista ao Estado, Almeida revela o que está acontecendo nos bastidores do Itamaraty, fala sobre a troca de farpas do embaixador da China, Yang Wanming, com o deputado Eduardo Bolsonaro e o ministro da Educação, Abraham Weintraub, afirma que “fazer diplomacia pelo Twitter é errado” e ironiza a influência “nefasta” do assessor internacional na Presidência, Filipe Martins, e do deputado Eduardo Bolsonaro na política externa do País. Segundo ele, por causa da rejeição ao presidente Jair Bolsonaro no exterior, a entrada do Brasil na OCDE (Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico) e o acordo Mercosul-União Europeia não deverão sair do papel. Em sua visão, “a geopolítica internacional vai mudar depois do coronavírus” e "a China sairá mais forte que os Estados Unidos da pandemia”.

No governo Bolsonaro, houve uma enorme perda de inteligência na ação diplomática do País.

Como está o Itamaraty hoje, sob o comando do ministro Ernesto Araújo?
O Itamaraty vem sendo conspurcado. Desde a sua indicação ao cargo, logo depois das eleições, o Ernesto Araújo vem atacando de forma vil os diplomatas, nos acusando de sermos petistas, esquerdistas, marxistas, de termos aderido à agenda do lulopetismo. Foi tão agressivo que o (ex-embaixador Rubens) Ricupero se levantou imediatamente em defesa da Itamaraty e virou seu inimigo número 1. Ele promoveu uma guilhotina geracional, demitindo os nove secretários que chefiavam as diferentes áreas do Itamaraty, todos embaixadores com experiência em dois, três postos no exterior, sem oferecer nada em troca. Foram todos demitidos sumariamente, por telefone. Esse extermínio em massa, com tons de humilhação, causou uma comoção muito grande, porque foi um tremendo desrespeito. Ele eliminou todos os sêniores e designou ministros de segunda classe para todas as sete novas secretarias criadas no atual governo, com exceção de um embaixador que já era subsecretário de Economia e foi deslocado para a área de América do Sul.

Qual foi a reação do corpo do Itamaraty a essa mudança?
O Itamaraty é meio autista. Eles não são nem de esquerda nem de direita. São corporativistas, carreiristas e oportunistas. Todo mundo foca primeiro no seu interesse pessoal, na sua promoção, na sua remoção, no seu posto, na sua chefia. As pessoas se dobram, são submissas. Atendem a dois princípios que eu nunca atendi: hierarquia e disciplina. Ou seja, para eles, a chefia tem sempre razão. Eu sempre me revoltei contra isso. Sempre fiz da autoridade do argumento um instrumento maior do que o argumento da autoridade. Sempre contestei chefes, o que me causou alguns problemas na vida, mas com base no meu conhecimento técnico em algumas questões. Não por mero “contrarianismo”, por recusar tudo que os outros propõem, mas por acreditar que qualquer política externa deve ser analisada em seus fundamentos, no seu mérito, no custo/benefício e nos resultados efetivos oferecidos ao Brasil. Como costumo dizer, quando saio para trabalhar não deixo o cérebro em casa nem o deposito na portaria quando entro no trabalho. 

Como essa situação está afetando a diplomacia brasileira?
Houve uma enorme perda de inteligência na ação diplomática, uma grande diminuição da estatura diplomática do País, porque o Ernesto substituiu embaixadores experientes por jovens recém-promovidos a ministros de segunda classe. Agora, é claro, todos já foram promovidos a ministros de primeira classe, mas nunca exerceram chefias de posto. Sabem menos que os subordinados. Isso diminui muito a capacidade do Itamaraty de refletir e de ter diálogo com legisladores, altos funcionários e autoridades no exterior. É uma perda enorme de capital humano, no qual o País investiu muito ao longo do tempo. Esses embaixadores designados pelo Ernesto Araújo, assim como acontecia na época do Celso Amorim (ministro das Relações Exteriores de 2003 a 2011) não têm nenhuma autonomia. Têm de cumprir exatamente as determinações de Brasília.

O Ernesto Araújo era um burocrata comum que aderiu ao olavobolsonarismo por oportunismo.

Como é a relação do ministro Ernesto Araújo com o corpo de diplomatas do Itamaraty?
Não há nenhuma interação do Ernesto com os secretários e os chefes de departamento em qualquer assunto. O secretário-geral é o único que despacha com o ministro. O gabinete é um bunker fechado. Ele só faz coisas com o (deputado federal) Eduardo Bolsonaro (presidente da Comissão de Relações Exteriores da Câmara) e o (assessor internacional da Presidência) Filipe Martins. No dia 2 de janeiro do ano passado, na cerimônia de posse, o discurso do (ex-ministro) Aloysio Nunes foi aplaudido de pé, quando ele defendeu as posturas do Itamaraty frente à previsão de que tudo mudaria. O Ernesto foi aplaudido apenas de forma protocolar, inclusive porque fez um discurso estranho, com citações em latim, grego, alemão e toda uma filosofia recheada com menções a Raul Seixas e Nietzsche. No final do ano passado, aconteceu algo parecido, na cerimônia de promoção promovida pelo Itamaraty. O mais antigo das promoções, que foi promovido a embaixador, falou em nome de todos os 10 ou 12 diplomatas promovidos para diferentes cargos. Fez um discurso puramente burocrático, mas foi intensamente aplaudido. Depois, falou o Ernesto, que foi aplaudido muito parcamente. Ficou evidente que a Casa estava lhe enviando um sinal de reprovação. Ele deve ter sentido muita raiva. Por isso, está recrudescendo nesta questão da intimidação dos diplomatas que não rezam pela sua cartilha.

Por suas críticas à atual gestão do Itamaraty, o sr. foi designado para uma função protocolar e tem sofrido punições administrativas por causa de faltas e atrasos. Há outros diplomatas na mesma situação?
Nenhum outro embaixador tem sido visado e controlado desta forma. Há claramente uma ação discriminatória contra mim, como uma forma de intimidar os demais diplomatas, para que eles não ousem fazer críticas. Agora, você tem outros diplomatas sem lotação ou com lotação meramente formal. Tem uma sala de embaixadores, que chamo de Parque dos Dinossauros, que antes era lá no Anexo 1, aquele prédio de oito andares atrás do Palácio do Itamaraty, e agora foi deslocada para o Anexo 2, o chamado Bolo de Noiva, na qual eles costumam ficar. Há dois diplomatas que estavam lotados diretamente na Secretaria de Administração e tinham, portanto, suas faltas abonadas automaticamente ou não precisavam cumprir as oito horas diárias de trabalho. Há também diplomatas não lotados e que, portanto, não precisam se submeter à catraca eletrônica ou à contagem de horas de trabalho. Alguns já se afastaram, conseguiram emprego em outros lugares da administração. Tem gente que se aposentou e outros conseguiram emprego em representações dos Estados em Brasília ou um estágio na ESG (Escola Superior de Guerra), para ter ausência justificada.

Como o sr. vê a ligação do ministro Ernesto Araújo com o escritor Olavo de Carvalho, que o teria indicado para o cargo?
O Ernesto Araújo era um burocrata comum, talvez fundamentalista religioso ou algo assim, que viu subir a onda bolsonarista e grudou nela. Ele aderiu ao olavobolsonarismo por oportunismo, hipocritamente. Ainda que pudesse concordar com algumas posições do Olavo de Carvalho, como o anticomunismo, porque é filho de um eminente personagem da ditadura (o ex-Procurador-Geral da República Henrique Fonseca de Araújo), de direita e anticomunista, ele se atinha às diretrizes principais da Casa. Tanto que sua tese para ser promovido a ministro, na qual abordava o Mercosul, está dentro da filosofia desenvolvimentista, cepalista (referência à Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe) do Itamaraty. Nada parecia indicar que ele aderiria a uma ideologia de direita, antiglobalista, que vem daqueles direitistas americanos que acham que a ONU e as organizações internacionais são o diabo, que o mundo é dominado pelas grandes corporações e que o (megainvestidor e filantropo) George Soros e a esquerda querem acabar com a soberania das nações e estão à frente de uma conspiração para controlar o planeta. Isso é ridículo. O Olavo de Carvalho grudou nessas ideias malucas e o Ernesto Araújo, para se qualificar, também. Na campanha eleitoral, em 2018, ele criou anonimamente um blog chamado Metapolítica 17, no qual ele falava até da China maoísta, que não existe há 40 anos, para reforçar a sua ligação com o Olavo e se credenciar ao cargo.

O Ernesto até tentou cumprir a agenda olavista, mas os militares, o agronegócio, os industriais e os mais sensatos não deixaram

Recentemente, o sr. comentou em seu blog Diplomatizzando uma publicação do escritor Olavo de Carvalho nas redes sociais, na qual ele chamou o ministro Ernesto Araújo de “prepotente” e “intolerante”, por não ter agido para evitar que o Brasil se tornasse “um protetorado chinês”. Como o sr. analisa esse episódio? Houve um rompimento entre eles?
Sim e não. Isso aconteceu, provavelmente, porque o Ernesto não pode fazer aquilo que o Olavo quer que ele faça. O Olavo quer saber se o Ernesto Araújo está cumprindo ou não as ordens dele, que são a adesão ao Ocidente, ao Trump, aos Estados Unidos, a Israel, e uma agressividade contra os países islâmicos e contra a China, especificamente. O Ernesto até tentou cumprir a agenda olavista, mas os militares, o agronegócio, a (ministra) Tereza Cristina (da Agricultura), os industriais e os mais sensatos não deixaram. O Olavo gostaria que a política externa fosse mais ideológica, mas nem a Casa se dispõe a isso. Agora, ele nunca falou uma palavra contra o Olavo. Há pouco tempo, numa entrevista, ele se esquivou de responder uma pergunta sobre a pandemia, embora o Olavo partilhe da visão da direita americana de que você tem um vírus chinês, de que o Partido Comunista Chinês é responsável pela pandemia e de que se deve isolar a China e impor sanções contra o país. Antes, já haviam perguntado ao Ernesto se a terra é plana, como o Olavo insinuou, e ele falou: “Para mim, a terra é redonda”. Ou seja, ele está procurando se dissociar do Olavo sem dizer isso.

Da mesma forma que o sr. critica hoje a influência ideológica na diplomacia brasileira, o sr. também fazia criticava relação à política externa praticada nos governos do PT. Qual a diferença entre o que acontecia nas gestões do PT e o que acontece agora na política externa e no Itamaraty?
Sob o lulopetismo, houve aquele famoso discurso do Celso Amorim em 2003 em que ele dizia que era preciso vestir a camisa do governo. O Celso Amorim aderiu totalmente, fez coisas clandestinas, em acordo com o (então assessor internacional da Presidência) Marco Aurélio Garcia, em relação a Venezuela, Cuba, Honduras, Bolívia, mas era um grande diplomata. Além dele, talvez uns 15% ou 20% do Itamaraty tenham realmente aderido às ideias do governo. Todo o resto era puro Itamaraty: desenvolvimentismo, cepalianismo, unctadianismo (referência à Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento), multilateralismo, regionalismo e antiamericanismo moderado. Agora, poucos são bolsonaristas ou olavistas, porque é uma vergonha. Ninguém cultiva o olavismo, o antiambientalismo, o anticomercialismo o nacionalismo exacerbado. Todas essas invenções estapafúrdias do Olavo de Carvalho absorvidas pelo Ernesto Araújo, pelo Felipe Martins, pelo Eduardo Bolsonaro e pelo próprio presidente são tão absurdas que é impossível para um diplomata normal, tenha ele uma postura de esquerda, de direita ou neutra, ser a favor do que foi anunciado e do que vem sendo praticado na diplomacia brasileira. Hoje, o olavobolsonarismo afeta apenas a superfície, só o gabinete. O corpo do Itamaraty continua produzindo coisas boas, mas quando elas vão para o gabinete são transformadas em votação pró-americana contra Cuba, em apoio ao plano de paz para a Palestina, em posições contra a ideologia de gênero, contra o meio ambiente. Essa é a grande diferença.

Como nos governos do PT, quando o assessor internacional da presidência, Marco Aurélio Garcia, exercia uma grande influência na política externa do governo, o governo Bolsonaro também tem um assessor internacional fora da estrutura do Itamaraty. Como o sr. vê a ação do Filipe Martins, na política externa?
O Filipe Martins é uma influência nefasta sob todas as hipóteses. É um olavista fanático e conseguiu ser designado contra a vontade dos militares, que não o queriam no governo. Nem o (general Hamilton) Mourão (vice-presidente), nem o (general Augusto) Heleno (ministro do Gabinete de Segurança Institucional) nem o (general Eduardo) Villas Bôas (ex-comandante do Exército) queriam esse “garoto”, como eles o chamavam, sem experiência, lá. Mesmo assim, ele conseguiu pelo Olavo e sobretudo pelo Eduardo Bolsonaro, a quem ele é muito ligado, não apenas se firmar, mas ainda colocar o Ernesto Araújo como chanceler. O Ernesto Araújo dependeu totalmente do Filipe Martins e do Eduardo Bolsonaro, que eram a verdadeira ponte com o Olavo de Carvalho para ser escolhido para o Itamaraty e do Nestor Foster (hoje embaixador em Washington) para levá-lo ao Olavo de Carvalho, na Virgínia. Embora tenha um cargo equivalente, o Filipe Martins não tem a mesma proeminência do Marco Aurélio, que foi durante 20 anos secretário de Assuntos Internacionais do PT, amigo fiel dos castristas cubanos, a quem prestou serviços caninamente pelo Foro de São Paulo, do qual ele era um dos coordenadores. O negócio dele era América Latina. Ele tinha uma dimensão muito maior e muito mais leitura e mais abertura do que o Filipe Martins, que é um júnior, um Robespirralho, como costumam chamá-lo por aí.  

O Brasil não é mais prioridade para a China enviar equipamentos para enfrentar o coronavírus

Em meio à crise do coronavírus, o deputado Eduardo Bolsonaro e o ministro da Educação, Abraham Weintraub, fizeram críticas à China pelas redes sociais e acabaram gerando uma forte reação do embaixador chinês no País, Yang Wanming. Como o sr. viu os dois episódios? Que efeitos isso pode ter nas relações do Brasil com a China?
Acho que são duas coisas diferentes. O Eduardo Bolsonaro reproduziu um post que apontava o Partido Comunista Chinês como culpado pela disseminação do vírus. Ele provocou uma celeuma e não quis se retratar. Depois da resposta do embaixador chinês pelo Twitter, o Ernesto Araújo soltou uma nota censurando o embaixador que foi muito ruim. Deve ter sido ditada pelo Filipe Martins, pelo próprio Eduardo Bolsonaro. A coisa ficou tão feia que o pai percebeu e fez aquela ligação para o Xi Jinping e teoricamente acalmou a coisa. Aí, do nada, surgiu o Weintraub e fez aquela loucura, que foi muito mais grave. Pegou os personagens da revistinha do Maurício de Souza, a Turma da Mônica, que circula aos milhões na China, e ironizou os chineses de forma até preconceituosa. Aí, sim, o embaixador exigiu desculpas, mas nem o Planalto nem o Itamaraty se pronunciaram ainda. O próprio Weintraub deu uma desculpa esfarrapada, provocadora, inclusive, falando que se estiver errado dirá que é um imbecil. Recentemente, o ministro-conselheiro da China, Qu Yuhui, apareceu adotando um tom conciliador. Ele chamou de irresponsável o Eduardo Bolsonaro, mas disse que o episódio não vai impedir a cooperação, as boas relações entre os dois países.  Aparentemente vão deixar mesmo a coisa acalmar e continuar fazendo negócios com o Brasil normalmente. Só que, agora, o Brasil não é mais prioridade para envio de equipamentos de segurança para enfrentar o coronavírus. Se não eles teriam atendido o (ex-ministro da Saúde Luiz Henrique) Mandetta rapidamente, mas isso não aconteceu. Embora o setor privado responda por mais de 65% do PIB (Produto Interno Bruto) na China, talvez o governo intervenha em algumas coisas, como em atender os Estados Unidos, Itália, Espanha, para demonstrar boa vontade, deixando Brasil como segunda ou terceira prioridade. 

Como o sr. avalia as reações do embaixador chinês aos posts do Eduardo Bolsonaro e do ministro Abraham Weintraub no Twitter?
Achei muito ruim aquela reação do embaixador chinês, totalmente antidiplomática. Fazer diplomacia pelo Twitter é errado. Os governos expedem notas ou falam oficiosamente quando querem se pronunciar. Ninguém proclama abertamente discordâncias. Isso que o embaixador da China fez não é um comportamento de diplomata. Foi realmente fora da curva diplomática, totalmente despropositado. Ainda que o embaixador quisesse reagir nunca poderia ter feito daquela forma, naquele tom, que é indefensável, dizendo que o Eduardo Bolsonaro havia “contraído vírus mental”. É claro que os chineses podem comprar soja e carne dos Estados Unidos, mas eles dependem muito do Brasil, do agronegócio, de minérios, e outras coisas. Tem todo o interesse de preservar boas relações com o Brasil.

O sr. acredita que o embaixador chinês agiu por conta própria ou teve o aval do Pequim?
Acredito que ele agiu por conta própria, mas Pequim provavelmente não se opôs a que ele reclamasse da família Bolsonaro. Talvez o embaixador tenha procurado ganhar alguns pontos em Pequim ao confrontar os malucos daqui. Pequim sabe que o governo Bolsonaro é nefasto para a China, para bons negócios. Então o que o embaixador fez é algo não veio nem da chancelaria nem foi uma manifestação oficial. Foi um tweet que não vai ficar nas notas diplomáticas. Mas os chineses são muito pragmáticos. Eles separam o que é gente racional no Brasil, a ministra da Agricultura, o ministro da Saúde, todos os setores de interesse deles, e a família Bolsonaro, que eles sabem que é um horror. Eles não perdoam o Bolsonaro desde a viagem a Taiwan, em fevereiro de 2018. Então eles querem dar uma sinalização muito forte de que a família tem que se corrigir se não o Brasil vai ser prejudicado. A China é uma ditadura orwelliana, mas não quer exportar o seu regime político. Ela quer ficar rica, fazer negócios, e apesar do erro inicial em relação ao coronavírus, quando eles reprimiram e censuraram as informações, tem um know-how essencial, além de oferecer equipamentos e recursos humanos para outros países. Ou seja, a gente não pode hostilizar a China.

A ONU, é verdade, tornou-se um grande dinossauro ao longo dos anos

O sr. faz duras críticas à política externa atual, mas não é natural que com a ascensão de um governo de direita, que estava afastada do poder há décadas, tenha havido uma guinada na política externa, como aconteceu quando o Lula assumiu a Presidência em 2003?
Eu o desafio a me dizer qual é a política externa deste governo. Não há nenhum documento, nenhum statement do presidente, do chanceler ou de qualquer outra fonte neste sentido. Existem slogans, instintos proclamados, invectivas. Não há política externa nova. O que há é um amálgama de más ideias. O Ernesto Araújo, que tem algumas ideias, que eram as do mainstream do Itamaraty, aderiu a um amálgama mal concebido de instintos primitivos que estão guiando ações da política externa, sem doutrina, sem fundamento, sem teoria, sem nada. Claro que a nossa tradição do Itamaraty, que é mais ou menos progressista, avançada, politicamente correta, se encaixa um pouco nisso, na social democracia, de um liberalismo social como dizia o (filósofo José Guilherme) Merquior, no comércio internacional, na ajuda aos pobres. Você nunca teve aqui liberais puros. O próprio Roberto Campos, que nunca foi um liberal de origem, foi o homem que comandou a maior estatização da história brasileira no regime militar. Eles têm instintos primitivos da direita anticomunista como se o comunismo fosse um problema hoje. Não é. Esse pessoal é um retrocesso absoluto nas ideias. Aliás eles não têm ideias, tem instintos anticomunistas, religiosos, pró-americanos ou pró-Trump, anti-China, pró-Israel, que não têm nada a ver com a postura tradicional do Brasil, não têm nada a ver com o que a gente defende que são os nossos interesses nacionais. Tanto que os militares, o agronegócio e outros bloqueiam todas essas bobagens.

O sr. critica a posição antiglobalista do atual governo, mas quem a defende diz que ela se baseia na visão de que instituições multilaterais, como a ONU e até a OMS (Organização Mundial de Saúde), muitas vezes se colocam acima dos interesses dos países e têm forte viés de esquerda. Na ONU, por exemplo, muitos países têm regimes autoritários, são governados por ditaduras, e acabam aprovando as propostas mais estapafúrdias. Faz sentido isso?
É importante fazer uma distinção importante: as organizações internacionais não são supranacionais. Elas são intergovernamentais. Elas dependem em tudo e por tudo do acordo dos países. Então, todas essas resoluções aprovadas por maioria de 170, 180 membros do Terceiro Mundo, contra os Estados Unidos, contra Israel, contra alguns poucos aliados americanos, como o Japão e a Grã-Bretanha, não têm nenhuma função executiva. Se forem esquecidas na gaveta não vai acontecer nada. Todas essas bobagens que são aprovadas na Assembleia Geral não têm nenhum efeito prático, porque o Conselho de Segurança não vai implementar. Agora, você tem a burocracia desses órgãos internacionais. A ONU, é verdade, tornou-se um grande dinossauro ao longo dos anos. O General De Gaulle chamava a ONU de Le Grand Machin (a grande geringonça), porque havia se transformado num dinossauro mesmo que existia pela sua própria sobrevivência burocrática. Metade da agenda da ONU vem dos países e a outra metade vem da burocracia, que faz aquilo para se multiplicar e para justificar o seu trabalho. Os Estados Unidos da era Reagan saíram da Unesco pela primeira vez porque ela estava dominada por um africano só apoiava projetos esquerdistas e gastava 75% do seu orçamento em Paris, realizando seminários, pagando passagem para todo mundo, diárias.  Agora, você tem também organizações como o Clube de Paris ou Bretton Woods, que não são “assembleísticas”, como a ONU e outras agências públicas. São órgãos por ações. Quem domina o capital domina a política. Infelizmente no mundo, você tem crises de dívida, crises fiscais e outros problemas econômicos e tem de apelar a quem tem dinheiro, como o FMI (Fundo Monetário Internacional), o Banco Mundial, os bancos multilaterais e o Clube de Paris.

Um exemplo que é muito usado pelo antiglobalistas é a União Europeia e o poder exercido pela burocracia de Bruxelas sobre os países-membros.
Esse globalismo na Europa é mais avançado pela supranacionalidade, que não existe em nenhum outro lugar. Como eu disse há pouco, nenhuma entidade internacional é supranacional. Todas são intergovernamentais e dependem da vontade dos países. A única entidade supranacional é a Comissão de Bruxelas, que tomou uma rasteira do Parlamento. Havia um projeto de Constituição Europeia que o Giscard d’Estaing (ex-presidente francês) formulou e criaria um presidente europeu, um federalismo na Europa. Queriam enfiar isso pela guela dos europeus, mas a Holanda e a França rejeitaram e o projeto acabou sendo deixado de lado. Depois, outro projeto mais ameno acabou sendo adotado pela via do Tratado de Lisboa. O Parlamento Europeu também passou a controlar mais o comissariado. Hoje, os comissários têm de ser aprovados pelo Parlamento, que aprova o orçamento e dá palpite na União Europeia. Foi contra essa supranacionalidade que se revoltaram ingleses, poloneses, húngaros, italianos e outros, por diferentes razões. Isso explica essa ascensão do nacionalismo nos Estados Unidos com o Trump, porque tanto o Clinton quanto o Bush e Obama (ex-presidentes americanos) eram internacionalistas e nunca tentaram sabotar os organismos internacionais, exceto [o Bush] ao ignorar o Conselho de Segurança na invasão do Iraque. Esse nacionalismo explícito do (Matteo) Salvini (ex-vice-primeiro-ministro e ex-ministro do Interior da Itália), do (Viktor) Orban (primeiro-ministro da Hungria), dos poloneses, de alguns ingleses e do Trump, é uma coisa que encantou alguns intelectuais que ficam falando contra o globalismo. Agora, nunca vi nenhum deles provar que o globalismo interfere na soberania, retira poderes dos estados nacionais. Aonde está esse complô contra a soberania nacional de que falam os antiglobalistas? Isso não se traduz em nenhuma proposta de trabalho para reduzir o poder dos governos nacionais.

O Itamaraty é terceiromundista, antiamericano, ainda que moderadamente, e desenvolvimentista

Acredito que boa parte das críticas às organizações multilaterais se deve às posturas e resoluções terceiromundistas, que o Brasil muitas vezes apoiou, como no caso da condenação do sionismo como forma de racismo, em 1975, em vez de se alinhar com a visão dos países desenvolvidos. Por que o Brasil não pode seguir um novo caminho neste sentido?
O Brasil, é verdade, votou na maior parte das vezes com o Terceiro Mundo, com a maioria, que é um pouco a orientação do Itamaraty, porque é um pouco o direito internacional, mas sem nenhum efeito prático. O que vale para todos os efeitos são as decisões do Conselho de Segurança. Uma coisa é o direito internacional que a gente sempre defendia enfaticamente, e parou de defender, desde Rui Barbosa, que proclamou a igualdade soberana das nações em 1907, de Oswaldo Aranha, dos vários juristas da diplomacia brasileira, como Raul Fernandes, Vicente Rao, Hermes Lima, Santiago Dantas, e que se manteve até o Celso Lafer, o Fernando Henrique Cardoso. Depois houve uma certa acomodação na era lulopetista, com teses desenvolvimentistas, e agora se acomodou novamente, dentro das orientações antiglobalistas do governo Bolsonaro. Outra coisa são as adequações que você tem de fazer por realismo puro à situação do País em acordos econômicos, comerciais, de cooperação, resoluções sobre transferência de tecnologia, que têm o lado utópico dos países em desenvolvimento na ONU, Unesco, na própria FAO, às vezes, e outras entidades. O que conta são as decisões do Conselho de Segurança, como as sanções contra o antigo apartheid na África do Sul, que você tem que obedecer. A defesa do direito internacional, que a gente agora parou de

Agora, essa tradição diplomática do Itamaraty de que o sr. fala também é passível de críticas. De repente, ela pode ser revista e o Brasil adotar uma nova postura em sua política externa, respeitando o direito internacional. Isso não é possível?
O Itamaraty realmente é terceiromundista, antiamericano, ainda que moderadamente, e desenvolvimentista. O (Fernando) Collor (senador e ex-presidente) procurou mudar isso, ao conferir um perfil mais liberal à política externa e chocou muita gente no Itamaraty. Até o Sarney nós éramos perfeitamente terceiro-mundistas. Aí o Collor veio com a famosa frase: “Nós não queremos mais ser o primeiro dos subdesenvolvidos, queremos ser o último dos desenvolvidos.” Ele acabou com todas as teses desenvolvimentistas do Itamaraty, aceitou patentes farmacêuticas, mudou toda a política externa. A parte econômica foi defenestrada e entrou novo dogma: abertura, liberalização. O Mercosul foi mudado de forma considerável. Já naquela época, ele fez aquilo com ideia de abrir o país e colocá-lo no caminho da OCDE. Mas agora o que acontece é que você adere aos Estados Unidos nas coisas mais estapafúrdias como esse Plano Trump para a Palestina, que é contra o povo palestino e confronta o direito internacional. É favor do Netanyahu e da direita israelense. Isso é vergonhoso para o Itamaraty.

Qual a sua expectativa em relação ao ingresso do Brasil entrar na OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico) e ao acordo Mercosul-União Europeia?
Tanto o ingresso na OCDE quanto o acordo do Mercosul com a União Europeia não vão ocorrer sob o atual governo. Por causa do presidente e do chanceler, os países europeus fecharam as portas para o acordo com o Mercosul. Já falei com embaixadores europeus e não há nenhuma chance de eles aprovarem esse acordo. Para o ingresso, na OCDE, o Brasil depende precisamente da aceitação de todos os 35 países que são membros da organização. Embora o (Donald)Trump (presidente americano) tenha falado que os Estados Unidos apoiavam o Brasil, depois de eles terem afirmado que iriam apoiar a Argentina e a Bulgária, deixando o País de fora, nunca houve qualquer formalização disso. Na prática vale o que está escrito. Mesmo que isso aconteça, o ingresso do Brasil na OCDE não deve sair agora, por outras razões, como meio ambiente, direitos humanos, democracia. A Alemanha, a Noruega e a França vão dizer não, por mais que o Brasil siga toda a cartilha da OCDE. Infelizmente não tem mais chance por causa do Bolsonaro e de todos os outros. Será uma grande frustração para a burocracia econômica, que é liberal, defende a abertura econômica e que quer o Brasil na OCDE.

Depois do coronavírus, o comércio não vai crescer duas vezes mais do que o PIB global

Como o sr. avalia as reações do embaixador chinês aos posts do Eduardo Bolsonaro e do ministro Abraham Weintraub no Twitter?
O Trump só anunciou que iria suspender pagamentos até que se investigue o que houve na OMS em relação ao que ele chama de “vírus chinês”. Não houve ainda corte de cota americana na organização, que nem sei se é paga de uma vez só ou por remessas periódicas, O que aconteceu foi só um anúncio do Trump para sua tropa, com fins eleitorais, já que os mortos pelo coronavírus nos Estados Unidos estão se acumulando e ele quer tirar o foco do assunto.

O coronavírus levou a um isolamento da maioria dos países, com o fechamento de fronteiras. Na sua visão, como isso poderá afetar o mundo depois da pandemia? 
A gente já sabe que depois da pandemia o mundo não vai voltar a ser o que era. A geopolítica mundial vai ser diferente. Vai mudar tudo. Infelizmente, para pior. Nos últimos 60 anos, o comércio internacional cresceu praticamente o dobro do PIB (Produto Interno Bruto) mundial. Isso mudou na crise de 2008 e depois voltou ao normal. Mas após o coronavírus o comércio não vai crescer duas vezes mais do que o PIB global. Agora eu aposto que a China vai sair muito mais forte que os Estados Unidos da pandemia. A China está em todas as cadeias de valor do mundo. As empresas americanas dependem dos chineses. É claro que há movimentos nacionalistas, na Europa e nos Estados Unidos, dizendo que eles não podem mais ficar dependentes da China, porque numa hora de desespero ela não consegue atender à demanda nem querendo. A questão é que a China está ficando cara. Quando começou a globalização um operário chinês custava US$ 30 dólares por mês e hoje está custando mais de US$ 200. Fábricas americanas estão mudando para o Laos, o Vietnã, Banglasdesh, Índia, África ou voltando para o México, porque a China ficou cara. Agora, eu lamento profundamente o nacionalismo no combate à epidemia do coronavírus. O mundo estaria muito melhor se houvesse uma coordenação estreita da OMS com os governos nacionais, tanto nas medidas de restrições, que são necessárias, quanto na pesquisa e na cooperação para desenvolvimento de vacina e métodos curativos.

‘Fazer diplomacia e expor divergências por Twitter é errado’, entrevista Paulo Roberto de Almeida a José Fucs (OESP, 20/04/2020)

Esta é a versão reduzida de minha entrevista ao jornalista José Fucs, publicada no jornal OESP, impresso, em  20 de abril de 2020. Vou buscar a versão integral, para transcrever.
Paulo Roberto de Almeida

‘Fazer diplomacia e expor divergências por Twitter é errado’
“Ernesto Araújo vem atacando de forma vil os diplomatas, nos acusando de sermos petistas, esquerdistas, marxistas.” 
José Fucs
O Estado de S.Paulo, 20 Abril 2020 

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Isolamento. ‘Lamento muito o nacionalismo no combate ao coronavírus’, afirma Almeida

O embaixador Paulo Roberto de Almeida, de 70 anos, não poupa críticas ao ministro das Relações Exteriores, Ernesto Araújo, e às posições da diplomacia brasileira na atual gestão. Em represália à sua conduta, foi relegado a uma função protocolar no arquivo do Itamaraty e teve o salário descontado por alegadas faltas e atrasos ao trabalho. Em março, após ver indeferidas suas justificativas, ele entrou com um processo na Justiça contra o órgão por “assédio moral” e “perseguição” de que afirma ser alvo.
Em entrevista ao Estado, Almeida falou sobre a troca de farpas do embaixador da China, Yang Wanming, com o deputado Eduardo Bolsonaro (PSL-SP) e o ministro da Educação, Abraham Weintraub, e disse que “fazer diplomacia pelo Twitter e proclamar discordâncias abertamente é errado”.

• Como está o Itamaraty hoje, sob o comando do ministro Ernesto Araújo?
        O Itamaraty vem sendo conspurcado. Desde a sua indicação, Ernesto Araújo vem atacando de forma vil os diplomatas, nos acusando de sermos petistas, esquerdistas, marxistas. Ele promoveu uma guilhotina geracional, demitindo os nove secretários que chefiavam as diferentes áreas do Itamaraty, todos embaixadores com larga experiência no exterior. Esse extermínio em massa causou uma grande comoção, porque foi um desrespeito.

Como o sr. vê a ligação do ministro com o escritor Olavo de Carvalho, a quem se atribui a sua indicação?
     O Ernesto era um burocrata comum que viu subir a onda bolsonarista e grudou nela. Ele aderiu ao ‘olavobolsonarismo’ por oportunismo. Até 2018, nada parecia indicar que aderiria a uma ideologia antiglobalista, que vem dos direitistas americanos que acham que a ONU é o diabo, o mundo é dominado pelas grandes corporações e o (megainvestidor) George Soros e a esquerda querem acabar com a soberania das nações. O Olavo grudou-se nessas ideias malucas e o Ernesto, para se qualificar ao cargo, também.

De que forma o sr. avalia as reações do embaixador chinês às publicações de Eduardo Bolsonaro e do ministro Abraham Weintraub contra a China no Twitter?
Achei muito ruim a reação dele, totalmente antidiplomática. Fazer diplomacia pelo Twitter é um erro. Os governos divulgam notas oficiais ou falam oficiosamente. Ninguém proclama abertamente discordâncias. Ainda que o embaixador quisesse reagir, nunca poderia ter feito isso daquela forma, naquele tom. É indefensável. Os chineses podem comprar soja e carne dos Estados Unidos, mas dependem muito do Brasil, do agronegócio, de minérios. Têm todo o interesse em manter boas relações com o Brasil. Agora, não podemos hostilizar a China. Apesar do erro inicial em relação ao coronavírus, quando censurou informações, a China tem um know-how essencial, além de oferecer equipamentos e recursos humanos para outros países combaterem a pandemia.

Qual a expectativa em relação ao ingresso do Brasil na Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) e ao acordo Mercosul-União Europeia?
    Tanto o ingresso na OCDE quanto o acordo do Mercosul com a União Europeia não vão ocorrer sob o atual governo. Por causa do presidente e do chanceler, os países europeus fecharam as portas para o acordo com o Mercosul. Para o ingresso na OCDE, o Brasil precisaria que os 35 países-membros o apoiassem. Em outubro, o (Donald) Trump (presidente americano) falou que os Estados Unidos apoiavam o Brasil, mas isso nunca foi formalizado. Há também outros fatores pesando, como meio ambiente, direitos humanos, democracia.

Como o sr. analisa a ação de Trump contra a Organização Mundial da Saúde (OMS), cortando o financiamento americano?
    O Trump só anunciou que iria suspender pagamentos até se investigar o que houve na OMS em relação ao que ele chama de “vírus chinês”. Não houve ainda corte na cota americana. O que ocorreu foi um anúncio eleitoral do Trump para sua tropa, já que os mortos pelo coronavírus se acumulam e ele quer tirar o foco do assunto.

O coronavírus levou a um isolamento de muitos países. Como isso poderá afetar o mundo depois da pandemia?
A gente já sabe que após a pandemia o mundo não voltará a ser o que era. A geopolítica vai ser diferente. Eu aposto que a China sairá mais forte que os Estados Unidos. As empresas americanas dependem da China. Agora, eu lamento muito o nacionalismo no combate ao coronavírus. O mundo estaria bem melhor se houvesse coordenação da OMS com os governos nacionais, tanto nas medidas de restrições quanto na pesquisa e cooperação para vacinas e métodos curativos.

segunda-feira, 6 de abril de 2020

Documentos relevantes para o processo P. R. Almeida contra a União - Paulo Roberto de Almeida

Documentos relevantes para o processo P. R. Almeida contra a União

 

Síntese preparada por

Paulo Roberto de Almeida

Brasília, 6 de abril de 2020

 

Apresento abaixo links para alguns textos e documentos essenciais para compreender o contexto e a base documental do atual processo movido contra a União, em função de arbitrariedades conduzidas pela atual Administração do Ministério das Relações Exteriores. Começo por duas cronologias que informam objetivamente a sucessão de eventos que conduziram à situação atual, uma postagem sobre as supostas “faltas injustificadas” imputadas contra mim, minhas justificativas, indeferidas de modo extremamente rápido pela Divisão do Pessoal, o desconto no contracheque, e, portanto, o depósito de uma ação em Justiça. O MRE pretende antecipar-se a qualquer decisão judicial, e interpôs uma petição nesse sentido. Acredito nos juízes do Brasil...

 

1) Cronologia pessoal-funcional em tempos nao convencionais: Um diplomata, do limbo ao limbo, 2003-2019

https://www.academia.edu/42377104/Cronologia_pessoal-funcional_em_tempos_nao_convencionais_Um_diplomata_do_limbo_ao_limbo_2003-2019

 

2) Cronologia diplomatica em tempos nao convencionais, PRA de volta ao deserto: 2019-2020

https://www.academia.edu/42457475/Cronologia_diplomatica_em_tempos_nao_convencionais_PRA_de_volta_ao_deserto_2019-2020

 

3) Minhas faltas "injustificadas" segundo o Itamaraty - Paulo Roberto de Almeida (2020)

https://www.academia.edu/42519513/Minhas_faltas_injustificadas_segundo_o_Itamaraty_-_Paulo_Roberto_de_Almeida_2020_

 

4) Acao com pedido de tutela de urgencia contra a União Federal - Paulo Roberto de Almeida (31/03/2020)

https://www.academia.edu/42605745/Acao_com_pedido_de_tutela_de_urgencia_contra_a_Uni%C3%A3o_Federal_-_Paulo_Roberto_de_Almeida_31_03_2020_

 

5) Peticao Intercorrente Uniao PRAlmeida

https://www.academia.edu/42643031/Peticao_Intercorrente_Uniao_PRAlmeida

 

6) “Processos kafkianos no Itamaraty”, Brasília, 6 de abril de 2020, 4 p. Resumo das notas e informações anteriores, nesta postagem-síntese. Divulgado no blog Diplomatizzando (link: https://diplomatizzando.blogspot.com/2020/04/processos-kafkianos-no-itamaraty-paulo.html).

sábado, 21 de março de 2020

A "diplomacia" olavo-bolsonarista e a embaixada da China - Hussein Kalout e Grupo Band de Comunicações

Confirmado que a diplomacia daquela parte do governo brasileiro sob influência do olavo-bolsonarismo é capaz de criar suas próprias crises, tivemos, na semana que se encerrou, um raro incidente nos anais de nossas relações exteriores, consubstanciado nas declarações em Twitter de um deputado que aspirava ser o embaixador do Brasil nos Estados Unidos – por uma suposta "amizade com a família Trump"–, ou talvez até o chanceler brasileiro, sobre a responsabilidade da China pela pandemia do Coronavirus, e uma inédita reação do embaixador da China, em linguagem pouco protocolar, reagindo às acusações.
Abaixo o artigo de Hussein Kalout sobre o incidente e, mais abaixo, um "editorial" falado no Jornal da Band, em termos incisivos contra o atual chanceler, que o Grupo Bandeirantes simplesmente designa de IDIOTA.
Paulo Roberto de Almeida


O 'DELFIM DA POLÍTICA EXTERNA' E A FÁBULA CHINESA

Diante de uma grave crise global e nacional de saúde pública, Eduardo Bolsonaro emplacou uma olímpica crise diplomática com a poderosa China
https://epoca.globo.com/colunistas/coluna-o-delfim-da-politica-externa-a-fabula-chinesa-24318831


O Padre José de Anchieta historiou sobre a dimensão da estupidez e da irracionalidade do comportamento do homem perante o óbvio. Convencido de que pau torto não se desentorta, concluiu: “As cores da vida são as que pintamos”.
Diante de uma grave crise global e nacional de saúde pública, Eduardo Bolsonaro, “o delfim da política externa”, emplacou uma olímpica (e desnecessária) crise diplomática com a poderosa China. Usando sua conta no Twitter, atacou a China, responsabilizando Pequim pela crise global do coronavírus, ao agir de maneira análoga ao regime soviético por ocasião do desastre de Chernobyl.
Jogou para a plateia de milicianos digitais, em nome do suposto “debate democrático”, quando o que estava por trás era algo muito diferente: o emprego de teorias conspiratórias para desviar a atenção de sua própria incompetência.
O grande problema é que escolheu o alvo errado. Agora, setores do governo e do empresariado correm atrás do prejuízo, desesperadamente, no desiderato de apagar o incêndio e fazer contenção de danos com esse país que é, simplesmente, o maior parceiro econômico e comercial do Brasil.
Em estado de perplexidade, diplomatas, políticos e empresários questionam a necessidade de deflagrar um entrechoque diplomático direto com um país cujos recursos de poder são infinitamente maiores do que os do Brasil – e tudo isso em meio a uma luta para salvar a vida de brasileiros e resguardar a combalida economia do país.
Diante da saraivada de críticas institucionais e debaixo de um panelaço nacional, a estratégia pode ter buscado desviar o foco da crise para um inimigo externo. Encontrar bodes expiatórios – sobretudo se for estrangeiro e ainda melhor se for vermelho e comunista – encaixa bem na narrativa fabricada da nossa extrema-direita, ajudando a desviar a atenção dos problemas reais e de suas soluções urgentes.
A insistência em dizer que se trata de um vírus chinês, copiando Trump, mal consegue esconder uma visão xenófoba que se associa à tese, corrente entre grupos bolsonaristas, segundo a qual a doença seria uma invenção chinesa para dominar o mundo.
A ignorância da política internacional, a cegueira imposta por sua ideologia lunática e a ausência do menor traço de bom senso e compostura levaram Eduardo Bolsonaro – secundado por seu ajudante de ordens que responde formalmente pelo Itamaraty – a cometer dois erros pueris: 1) não entendeu que o “timing” para engrossar com a China é inadequado; e 2) não percebeu que o que funciona como estratégia nos EUA não necessariamente funciona no Brasil. O tiro saiu pela culatra!
A reação do Embaixador da China, Yang Wanming, ocorreu dez horas após os tuites do Deputado Eduardo Bolsonaro. É inimaginável pensar que essa reação ocorreu sem consultas com Pequim e sem o respaldo de Xi Jinping.
O grau de descontentamento chinês não poderia ser maior, como demonstra a opção de deixar de lado a sua tradicional liturgia diplomática, mandando recados incisivos, frontais e sem camuflagem na linguagem diplomática ao núcleo duro do bolsonarismo. A China sente que o vento já sopra em outra direção.
Não é preciso lembrar de que a China é o principal investidor estrangeiro em infraestrutura e importador majoritário de ampla gama de nossos produtos agrícolas. Cabe lembrar, ainda, que foi a China quem, recentemente, salvou o governo Bolsonaro do maior fiasco no setor energético – o megaleilão do Pré-Sal promovido pela Petrobras no fim do ano passado. E a China é quem está socorrendo a Itália e também fornecendo insumos de saúde para o Brasil, tendo merecido inclusive agradecimento do ministro da Saúde!
O setor empresarial brasileiro e o agronegócio estão em alerta e atônitos com a irresponsabilidade da conduta do deputado. A nossa área de saúde, preocupada em mobilizar a cooperação internacional, em particular da China, está estupefata.
Sem investimento e sem o escoamento da produção para a China a situação econômica do povo brasileiro seria impactada em matéria de ingresso de capitais, empregos e renda, e, tudo isso, em uma hora que precisamos de toda a ajuda possível para combater uma pandemia viral e impedir o declínio total da economia brasileira.
Independentemente dos acontecimentos, a incompetência do comandante-em-chefe da nação já foi precificada. Eximir o governo e a si mesmo pelos resultados dessa tragédia, na tentativa de estancar o derretimento de massa de votos que o levou ao poder, já não é mais uma opção viável. A estratégia de culpar os outros – esquerda, isentões, chineses – não vai colar, como já não colou no teflon das panelas que soaram em protesto.
Em momento de aguda crise e estado de calamidade pública, o que se espera dos políticos e membros de Poderes é que estejam à altura do desafio de liderar o país, o que requer abnegação e espírito público. O momento é crítico, vidas humanas estão em jogo, o bem-estar dos mais vulneráveis está em perigo.
É hora de mostrar maturidade, colocando de lado objetivos pessoais e político-partidários em nome do bem comum. Os indignos da tarefa, insensatos de sempre e notórios ineptos fariam bem em ao menos não atrapalhar. Por enquanto, infelizmente, vão confirmando a tese de Anchieta.
HUSSEIN KALOUT é cientista político, professor de Relações Internacionais e pesquisador da Universidade Harvard. Foi Secretário Especial de Assuntos Estratégicos da Presidência da República (2017-2018).
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Postura do Grupo Bandeirantes de Comunicação sobre a nota do chanceler a propósito do incidente entre um deputado e a embaixada da China (20/03/2020)

“A provocação desnecessária de um deputado irresponsável, seguida por um chanceler idiotizado, uma espécie de avesso do Barão do Rio Branco, colocou o Brasil em conflito com o seu maior parceiro comercial.
Pura inépcia. O chefe da diplomacia, que teria como missão zelar pelos interesses do país, torna-se assim um obstáculo, talvez o maior, no caminho de nossas relações com a China.
O lamentável chanceler realiza essa proeza de inverter seu papel, numa demonstração clara de que é incapaz de responder pelo cargo que lhe deram. Exigir, como ele exigiu, que o embaixador chinês se retratasse, depois de reagir ao destempero do deputado, é uma atitude descabida, que prova a inconsciência de um diplomata despreparado.
Uma atitude de desprezo pela amizade e respeito por um povo que, neste momento, mostra a sua tenacidade numa luta eficiente contra o Coronavirus, exatamente o contrário do que conseguem enxergar o deputado imaturo e o chanceler inepto.
Por quanto tempo ainda veremos um IDIOTA ocupar a cadeira de Rio Branco, Afonso Arinos e San Tiago Dantas.
Essa é a opinião do Grupo Bandeirantes de Comunicação.” (1:26)

https://m.youtube.com/watch?feature=youtu.be&v=VeNCehaybRE